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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoríam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanza a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanca e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristao a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ERGIMD
e

Responderem

ANO ///
ÍNDICE

1*48.
i. filosofía e religiáo

1) "Qunl o pcnaamenlo fihxófiro de. llcuri Itergsou, rujo pri-


wciro centenario de nascimento ororreu fin l!>r>!) ?
Que significado Icrá csse filósofo va hora presente ?" 3

II. DOGMÁTICA

2) "Que se entende propriamvnte por vocablo ?


K quitia os criterios divlintipox de urna corara» ?" 8

III. SAGRADA ESCRITURA

■i) "Jexus CrvstOr-por sita pcrsovalitlade e xua obra, terú real-


vwnlit correspondido as proferías do Avligo Testamento ?" 15

IV. MORAL

b) "Como procederá o médico católico diuntc de um ruso de


yraridez em que a mac pos:-iia sanyuc lili negativo, e o pai sangue
Rh poailivo ?
Km vista ilox ¡leriyos de moría pura a máe c de anomnlin para
o füho, nesaux circunxtáncitts iiñu se acoti-selliariam o anticonrepcio-
nísmo e o aborto dito terapéutico ?" •.)!>

ñ) "Como se podan definir as rclacóes vii/cntes entre a Arte


n ti Moral ?
Nao sao tais que ponen enha da intensa prodiicáo dos artistas
potle xcr aceita pelos cristaos ?" . . . S3

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

ti) "Kntre os cristáos anylicanos tcr-ne-á conservado a suees-


sito apostólica, dr, modo a possnircm hixpox e sacerdotes validamente
ordenados ?" $$

COI» APROVAgAO ECLESIÁSTICA


'« P E R G U N T E E RE S PONDEREMO S »

'-• '■ Ano III — N* 25 — Janeiro de' 196Ü

LACERDA (Rio de Janeiro):

1) «Qual o pensamento filosófico de Henri Bergson, cujó


primeiro centenario de nascimento ocorren em 1959 ?
Que significado terá ésse filósofo na hora presente?»

Antes de analisarmos a mensagem filosófica de Henri Bergson,


parece oportuno expor rápidamente alguns traeos biográficos désse
autor. É o que passamos a fazer abaixo.

1. Dados biográficos

Henri Bergson nasceu em París aos 18 de outubro de 1859;


filho de familia israelita da Irlanda. '
Fói sucess'.vaménte aluno e prófessor da Escola Normal
Superior de París, onde se doutorou em Filosofía no ano de
■1889; Enquanto lecionava Filosofía, nao deixava de escrewr,
produzindo as obras «Matiére et Mémoire» (1896), «Le rire¿
(1900), «L'Évolution créatrice» (1907). Em 1900 tomou-se
prófessor do Colegio de Franga, onde ensinou com grande
sucesso até 1924, ano em que espontáneamente se retiróu.
Em 1927 conquistou o Premio Nobel de Literatura. Passou
seus últimos anos afastado da cátedra por motivo de saúde,
entregando finalmente a alma ao Criador aos 4 de Janeiro
de 1941, em circunstancias que merecem especial atengáo-•:
■ . ■ í

Aos poucos, Bergson, que nao professava credo algum, mas sé


preocupava sinceramente com o problema religioso, foi-se aproximando
do Catolicismo: por volta de 1933, após 25 anos de procura e reflexao;
comecou a afirmar a existencia de Deus. De entáo por diante compra-
z?á-se em observar que so o • Cristianismo mudara alguma co"sa no
género humano; donde concluía, embora em termos vagos, que só
a religiao de Cristo poderia salvar a humanidade :
«Nao creio que a natureza humana possa ser transformada.
Quanto mais me adianto em idade, tanto mais adquiro opiniao
pessimista a respeito dos homens, cujo fundo é formado por interésse,
vaidade, inveja, que geram os odios e as guerras. Contudo essa
natureza humana foi abrandada pelo Cristianismo; sómente éste podé
salvar a humanidade, suposto que ela seja suscetível de salvagáo»
(texto transcrito do artigo «A propos du centenaire de Bergson»,
em «L'Ami du Clergé», 2 de julho de 1959, 421).
Evoluindo mais e mais em seu pensamento, Bergson chegou a
um ponto em que se aguardava a sua próxima conversáo ao catoli
cismo, como atestam os seus amigos Henry Bordeaux, Jacques
Chevalier, P. Pouget e outros. Urna coisa, porém, o deteve até o
íim da vida: o amor á condicáo de perseguido, condicáo que afetava
o povo judeu (ao qual ele pertencia) nos países ocupados pelo
nacionalsocialismo e que cedo ou tarde se podia tornar também
a partilha de Bergson! O filósofo assim se explicava quatro anos
antes de morrer, em seu testamento espiritual, datado de 1937:
«Minhas reflexóes trouxeram-me cada vez mais perto do Catoli
cismo, no qual vejo a consumacao do judaismo. Eu me converteria,
se nao tivesse visto preparar-se de alguns anos para cá (em parte
grande, alias, por culpa de certos judeus inteiramente destituidos
de senso moral) a tremenda onda de anti-semitismo que se vai desen-
sadear sobre a mundo. Resolví permanecer entre aqueles que serño
amanliá perseguidos. Espero, porém, que um sacerdote católico venha
fazer sufragios em minhas exequias, desde que o Cardeal-Arcebispo
de Paris o autorize. Caso nao se dé esta autorizacáo, será preciso
chamar um rabino, sem, porém, lhe ocultar, e sem ocultar a
quem quer que seja, minha adesáo moral ao Catolicismo e meu
desejo previamente formulado de ser assistido pelas oragóes
de um sacerdote católico» (transcrito da íonte ácima citada).
A éste trecho de Bergson, Jacques Chevalier, no seu valioso
estudo «Bergson et le P. Pouget» (Paris 1954), acrescenta o seguinte
comentario:
«O testamento é datado' de 8 de fevereiro de 1937 e assinado por
H. Bergson. Na verdade, como mo confirmaram o Cardéal Suhard
e a filha do filósofo (a qual respeitou o desejo de seu pai), um
sacerdote católico, o Cónego Leliévre de Neuilly, na falta daquele
que íóra designado e que já morrera, foi recitar as preces da Igreja
sobre o homem que recebera o batismo de desejo».
Batismo de denejo... Tal terá sido, conforme o historiador, a
via pela qual Bergson se agregou ao Catolicismo.
Que quer dizer próprlamente essa expressao ?
Certamente Bergson nao desejou em termos explícitos o sacra
mento do Batismo; ao contrario, recusou-o para nao ser afagado
por alguma vantagem social dai decorrente, ou seja, para nao perder
a condicáo de perseguido, que ele antevia para si qual tesouro
precioso. Por conseguinte, só se poderia falar de um Batismo de
desejo implícito no filósofo. Tal expressao teria o significado seguinte:
julga-se que Bergson era movido por sinceridade tal na demanda
da verdade que, caso alguma vez houvesse compreendido o in-
substituivel valor do sacramento do Batismo (valor que nao excluí
as gracas anexas ao estado de perseguido e penitencia, mas, ao
contrario, as atrai e fecunda plenamente), o filósofo teria pedido
e recebido tal sacramento. Faltou-lhe apenas a compreensáo exata
do que é o Batismo e do que é tomar a cruz de Cristo todos os
dias numa vida crista coerentemente vivida. Se Bergson tivesse enten
dido isto, ele, que procurava a graca do opróbrio (a qual, em
última análise, nao é senSo a cruz de Cristo), nao se teria del-
xado ficar no limiar da Igreja de Cristo, mas haveria solicitado
explícitamente o - Batismo sacramental. Só nao o fez porque nao
soube exatamente onde localizar ésse Cristo que ele implícitamente
procurava no seu itinerario espiritual. — Ora, afirmam os teólogos
que o Senhor leva em conta toda a sinceridade daqueles que assim
O procuram; tais individuos tornam-se cristáos por possuirem o
desejo de Batismo implícitamente contido em sua sincera procura
da Verdade.

4 . •
Sonriente Deus sabe até que ponto ser¿ válida a interpretacáo
dada por Chevaher á conduta de Bergson. Nao recusamos crer que
seja auténtica.
Faz-se agora mister expor

2. As principáis doutrinas de Bergson

1. Bergson, á semelhanga de outros pensadores moder


nos (tenham-se em vista principalmente os existencialistas),
coloca-se na linha de reagáo contra o intelectualismo (racio
nalismo) exagerado que encheu as escolas do sáculo passado.
Em vez da raison raisonnante e do «cientificismo» ou scien-
tisme que desde Descartes (t 1650) imperam na Filosofía,
levando os estudiosos ao materialismo e ao positivismo, Bergson
preconiza a intuigáo ou a consciéncia (conscience). Esta vem
a ser, para o filósofo parisiense, urna especie de simpatía in
telectual que leva a apreender os objetos na sua estrutura
essencial, ou que leva a «viver por dentro» os objetos do
conhecimento. Em oposigáo á intuigáo, Bergson afirma que
o raciocinio e as ciencias empíricas apenas permitem descre-
ver os objetos e exprimi-los de maneira simbólica; conseqüen-
temente, as teorías das ciencias, assim como os dogmas da
Religiáo, gozam apenas de valor relativo, pois nao atingem a
realidade profunda e auténtica; torna-se necessário ultrapas-
sá-los mediante a intuigáo.

2. Um dos primeiros resultados a que leva o método de Bergson,


é a percepcáo de que tudo no mundo se acha em incessante flutuagáo;
a realidade nao apresenta duas vézes a mesma fisionomia a quem
a observa. A ésse fluxo perene o mestre dá o nome de duracao real;
esta é, no homem, a unldade resultante da sueessao continua dos
diversos estados da alma.

3. A fonte inesgotável do fluxo em que se acham o homem e


o universo, é o impulso vital (élan vital). Nao se trata de urna
substancia, mas de urna fórga que, por evolugáo, produz sempre
novas e melhores formas. Tal Impulso se afirma tanto na vida
vegetativa como na sensitiva, elevando-se no homem até o plano
da consciéncia e da liberdade. Admitindo em todos os seres o
impulso vital capaz de se desenvolver até o grau intelectivo, Bergson
pretendía emancipar das teorías mecaniclstas e materialistas a vida,
dando a esta um significado espiritual.

Ora a ésse élan vital o filósofo chama por vézes «Deus».


Destarte o estudioso é induzido a considerar a questáo religiosa
e moral tal como ela se propós a Bergson. — Dotado de tem
pera ardente, o filósofo francés focalizou o aspecto prático e
vivido da Religiáo muito mais do que a teoría. Urna das teses
que ele muito acentuou, é a famosa distingáo entre «Moral
(ou Religiáo) estática» e «Moral (ou Religiáo) dinámica».

— 5 —
Aquela seria própria de quem se contenta com o estrito cum
plimento da lei, fechando-se a qualquer iniciativa de perfeicáo
que ultrapasse os limites do dever; é, em suma, a ética do
burgués rotineiro. A moral dinámica, ao contrario, caracte
rizaría as almas abertas a todos os nobres objetivos, almas
tendentes a fazer mais do que aquilo que é de estrita obri-
ga;áo; exercer-se-ia, por exemplo, na prática das bem-aven-
turancas evangélicas («Bem-aventurados os pobres..., bem-
-aventurados os que tém fome e sede..., bem-aventurados
os que sofrem perseguigáo...»). É pela Moral dinámica que
o homem se adata por excelencia ao «impulso vital», e chega
á vida mística. Esta significa emancipacáo frente a toda lei
e todo dogma religioso; Deus fala interiormente aos místicos,
levando-os a rejeitar as proposigóes das religióes positivas,
pois os dogmas, para Bergson, nao sao mais do que a expressáo
subjetiva e simbólica da experiencia mística. Assim se esva-
nece qualquer forma de Religiáo objetiva, com suas proposi-
cóes dogmáticas e moráis.
Tais sao as grandes linhas do pensamento bergsoniano,
tal como se depreende das obras do filósofo.

3. Urna palavra de apreciacao

1. Como se vé, a raiz e, ao mesmo tempo, o vicio capital


de toda a sintese fílosófica de Bergson é o seu anti-intelectua-
Iismo exagerado. Recusando a adesáo sadia e natural ao rar
ciocínio, o filósofo francés se fechou á realidade objetiva, su-
jeitando-se as divagagóes arbitrarias da fantasía, divagagóes
tanto mais perigosas e deletérias quanto mais inspiradas por
profundo senso místico.
A posigáo básica de Bergson teve suas conseqüéncias mais
lamentáveis no setor da Religiáo, o qual foi talvez o que mais
prendeu a atengáo do mestre. A Religiáo, para Bergson, é
algo de estritamente subjetivo ; é o individuo quem a concebe,
independentemente de algum magisterio religioso. Ora nao
há quem nao veja que tal religiáo é ilusoria, pois certamente
a Deus, e nao ao homem, compete formular o credo e os pre-
ceitos religiosos; em materia de religiáo, o homem será sem-
pre disc'pulo e Deus sempre Mestre (nao há dúvida, porém,
de que o Senhor pode falar aos homens por meio de outros
homens devidamente chamados e credenciados para serem
auténticos porta-vozes do Altíssimo). Na verdade, Deus se
dirigiu as criaturas por Cristo (Deus e Homem) de maneira
objetiva e reconhecível por criterios seguros ; essa Revelagáo
divina se acha atualmente depositada na Santa Igreja Católica.

— 6 —
É nesta, portante, que todo homem tendente á vida mística
há de aprender as sendas que levam a Deus. — Sobre as cre-
denciais de Cristo e da Igreja Católica, cf. «P.R.» 7/1957,
qu. 1; 7/1958, qu. 4 ; 14/1959, qu. 2.

A contribuicáo imprescindivel da razáo humana na tarefa de


apreender a verdade já foi explanada em «P. R.» 20/1959, qu. 1.
Nínguém negará que o homem, além de dispor de sua razáo, possui
a faculdade de conhecer também por intuicáo; é o que se dá
em grau máximo na experiencia mística sobrenatural. Contudo mesmo
a intuicáo mística supóe as bases da razáo; o Senhor Deus nao a
concede á criatura independentemente de urna dogmática objetiva,
dogmática que impede o místico de se perder em devaneios da
imaginacáo. .:

Em virtude do imanentlsmo subjetivista que professam, algumas


obras de Bergson foram pela S. Igreja colocadas no Índice dos
livros proibidos. Será difícil, porém, dizer em que medida Bergson,
no íim da sua vida, ainda subscreveria as idéias religiosas relativistas
ácima expostas; o desejo de se converter ao Catolicismo implicava
remocSo de tais conceitos.

2. A nossa ligeira apredagáo nao se poderia encerrar


sem um complemento de Índole positiva. Ao menos um grande
mérito toca a Bergson: o de haver sublinhado que Religiáo
nao é algo de estático, ou de ter realgado o caráter dinámico
do genuino Cristianismo. Ele bem compreendeu que, sendo o
Catolicismo «a Metafísica do amor» («il [le Catholicisme]
apparait comme une métaphysique de la Charité» ; é esta
urna das frases fináis de Bergson, contida em sua última
obra), o cristáo auténtico vem a ser essencialmente um homem
sequioso e sedente, sempre aberto a procura da perfeigáo
evangélica; por graga de Deus, ele tende normalmente a urna
entrega cada vez mais generosa de si ao Senhor e ao próximo;
o sermáo sobre a montanha (Mt 5-7), com suas normas apa
rentemente desconsertantes, deve tomar realidade crescente
na conduta prática do cristáo.

É o que táo bem inculca urna das mais expressivas passagens


de Bergson referentes ao Catolicismo, que aqui citamos á guisa
de ilustragüo e conclusáo:
«A Moral do Evangelho é essencialmente a Moral da alma aberta:
nao teráo razáo aqueles que observam que ela atinge o paradoxo, e
mesmo a contradicao, ñas mais precisas das suas recomendacóes?...
O paradoxo, porém, desaparece, a contradicáo se esvanece, desde que
se considere o fim visado por essas máximas, que é o de provocar
um estado de alma... Bcm-aventurado o pobre 'em espirito'! O que
é belo, nao é o ser despojado, nem mesmo o despojar-se; é o nao
sentir o despojamento» (Les deux sources de la Morale et de
la Religión. Paris 1934, 56s).
Ao julgar o autor dessas linhas, o Pai do Céu terá levado em
conta a nobreza de alma de que ele aqui dá provas.

— 7 —
II. DOGMÁTICA

INTERESSADO (Curitiba) :

2) «Que se entende própriamente por vocacáo ?


E quais os criterios distintivos de urna vocagao ?»
«Vocacáo» é termo que ocorre tanto na linguagem do psicó
logo como na do teólogo. Por isto a nossa resposta explanará
pnmeiramente a vocacáo em geral, para depois deter-se em aspectos
da vocacao religiosa ou sacerdotal em particular.

1. Vocagao em geral

1. Por «vocagáo» entende o psicólogo a inclinacao inata


da criatura humana para determinada profissáo, carreira ou
estado de vida: diz-se, com efeito, que alguém tem «vocacáo
de educador, artista, advogado...».
Já éste modo de falar cotidiano exprime urna verdade
profunda. Assim como todo chamamento supóe urna perso-
nalidade que emita ésse chamado, assim a vocacáo do homem
para determinado estado de vida supóe urna personalidade
que a profira; ora tal personalidade só pode ser o Autor do
homem, Deus. A vocacáo, portante, vem a ser o eco de Deus
a ressoar dentro da alma humana. Está claro que o Senhor,
tendo criado todos os homens, assinalou a cada um, desde
toda a eternidade, urna tarefa própria a desempenhar no con
junto do universo. E quis que a essa tarefa correspondesse
urna inclinacao espontánea no homem, para que, assim como
o Senhor tudo fez por amor, assim também o homem realize
com amor o que ele deve realizar.
A estas consideracóes acrescenta agora o teólogo : o ser
humano nao tem apenas um destino natural. Foi elevado á
ordem sobrenatural, isto é, chamado pelo Criador para par
ticipar (além de qualquer exigencia de sua natureza) da filia-
gáo divina, o que implica «ver a Deus face a face na eterni
dade». É, portante, neste plano sobrenatural que o conceito
de vocacáo toma seu sentido pleno. A vocacáo por excelencia
vem a ser o chamado misterioso pelo qual Deus se digna atrair
o homem á intimidade consigo como a seu ultimo Fim.
Éste chamado geral toma seus aspectos ou modalidades
concretas aqui na térra : há a vocacáo sacerdotal, a voca?áo
religiosa, a vocagáo conjugal (o matrimonio é, sim, urna ta
refa santa e sobrenatural), modalidades que todas, em última
análise, convergem para a uniáo consumada da criatura com
o Criador ou, em outros termos, para a santidade. A cada

— 8 —
uma dessas vocagóes o Senhor anexou os aux:lios necessáriog
ao bom desempenho da mesma e á santificagáo do individuo.
É sómente na sua vocagáo própria que a pessoa humana en-
contra as gragas divinas de que precisa para chegar á con
sumado ; fora da sua vocagáo, o homem perde tempo e es-
forgos ; váo, pois, seria tentar tarefa que o Senhor nao tivesse
assinalado, por mais sedutora que fósse tal incumbencia.

Destas breves nogoes depreende-se quáo importante é, para cada


pessoa, desde os anos de sua juventude tomar conhecimento exato
da própria vocacáo e seguir a esta com fidelidade, sem perder passos
fora da via: «A coisa mais importante de toda a vida é a escolha
da respectiva ocupacáo», dizia o filósofo francés Pascal (Pensées,
ed. Havet III 4); idéia esta que a sabedoria grega, a seu modo
próprio, assim formulava: «O coméco é mais importante do que
metade da. caminhada».

2. A éste propósito convém notar que o Senhor Deus


pode chamar uma criatura humana a percorrer sucessivamente
caminhos diversos, até mesmo contrarios. Em tais casos, é
preciso frisar que Deus nao muda seu designio a respeito de
tal homem; a variedade está incluida desde toda a eternidade
no único propósito divino; embora nao entendamos porque a
Vontade de Deus se manifesté táo variegada no currículo de
vida da mesma criatura, nao duvidamos de que a linha sinuosa
da caminhada é certeira, tendendo ao único objetivo dé toda
e qualquer vocagáo, isto é, á uniáo da criatura com o Criador.
Suposta uma vocacáo dessas, a Providencia reserva gragas
especiáis para cada uma das etapas da sua criatura, a fim de
que esta realize a unidade na multiplicidade, isto é, venha a
ser santa, sim, por vias variegadas.

A guisa de exemplos, váo aqui propostos alguns casos (inspirados


pela experiencia real) de vocacáo multiforme e una:
Admita-se um jovem seminarista cuja vocacáo nao causa a
mínima dúvida aos Superiores; feito diácono, prepara-se para a
ordenacao sacerdotal. Acontece, porém, que oito dias antes desta
cai de tal modo doente que nunca poderá receber o sacerdocio, e
os Superiores teráo que dar ao seu caso solucáo de todo imprevista
(será reduzido ao estado laical ou esperará por toda a vida o
dia da restauracáo de sua saúde); nao obstante, deverá tender
sempre á santidade e poderá contar com o auxilio de Deus para
isto. Outro exemplo seja o do esposo cristSo que, ao voltar da
guerra, encontra seu lar irremediávelmente dissolvido, porque a esposa
infiel o abandonou; embora casado, tal varao terá que viver conti
nente, enquanto a esposa permanecer em vida... Deus o terá chamado
a realizar simultáneamente algo da vida conjugal e algo da vida
celibatária, destinando-o, porém, a um só objetivo, isto é, a ser santo.
Dentro déste quadro de idéias, merecem especial atencao casos
como o seguinte: urna iovem donzela, aos 18 anos de idade, rejeita
categóricamente a hipótese de se consagrar a Deus pelos votos

— 9 —
religiosos de pobreza, obediencia e castidade; casa-se, e tem filhos
felizes, mas, embora se dé muito bem com todos os seus, sente-se
continuamente perturbada; parece-lhe que o seu quadro de vida está
radicalmente viciado por nao estar e!a seguindo a vocacáo religiosa.
— Será que tal senhora nao tem realmente razáo para recear estar
caminhando íora da via ? — Nao; mesmo na hipótese de que o
Senhor Deus Ihe assinalasse a entrada na vida religiosa regular
quando ela tinha 18 anos de idade e de que da tenha pecado rejei-
tando tal convite, mesmo em tal hipótese, no momento atual a
Vontade de Deus estaría certamente mandando que ela vivesse
como esposa e máe, cumprindo sua tarefa nao em tristeza, escrúpulos
e remorsos, mas na alegría de servir a Deus com amor e confianca.
Ainda que essa pessoa tivesse pecado seriamente aos 18 anos, tal
pecado, urna vez devidamente acusado e perdoado pelo sacramento
da Penitencia, nao deveria mais absorver a sua atencao, pois isto
seria, da parte déla, derrogar á virtude da esperanca. O Senhor,
permitindo que ela entrasse no estado conjugal pela via ácima
enunciada, certamente Ihe assinalou as gracas necessárias para se
santificar na vida matrimonial. Essa vida matrimonial, portanto,
ela a pode seguir com paz de animo e alegría, desde que estela
arrependida de seus pecados.

3. E quais seriam os criterios pelos quais alguém há de


reconhecer a sua germina vocagáo ?
Sem focalizar especialmente o estado religioso ou sacer
dotal, deve-se dizer que cada qual pode comegar a perceber
a sua vocagáo auscultando as aptidoes de sua natureza. Sim,
conforme dissemos, a vocacáo pode ser comparada ao atra-
tivo e deleite que o artista experimenta no exercício da sua
arte; assim como Deus, o Supremo Artífice, tudo realizou e
realiza com amor, assim também quis Ele que o homem de-
sempenhe com amor espontáneo a sua missáo neste mundo.
Donde se vé quáo pouco acertada seria a tese, professada por
um ou outro autor, segundo a qual é preciso em tudo contra
riar a natureza, mormente no tocante a escolha da vocacáo.
Nao; Deus, chamando o homem para a tarefa predominante
de sua vida, certamente nao entende sufocar as aspiragóes
próprias que Ele mesmo, ao criar, infundiu em cada perso-
nalidade humana.

Donde se vé que a vocacáo do médico está, em boa parte, baseada


na capacidade de «compadecer-se» (sem moleza. mas com energia)
do próximo; a vocacáo do advogado pressupóc apurado senso de
imparclalidade e justica, em oposic&o a todo sentimentalismo
exagerado; a vocacáo do engenheiro depende do acume matemático
do individuo, etc. — Quanto á vocagáo religiosa e á sacerdotal, délas
íalaremos explícitamente mais abaixo.

Está claro que qualquer vocagáo profana está, em última


análise, subordinada á vocagáo religiosa, isto é, ao chamado
á santificagáo que Deus dirige a todas as criaturas. É para

— 10 —
ser santo, segundo as suas notas pessoais, que tal homem é
chamado á missáo de escritor, tal outro a exercer a medicina,
um terceiro á tarefa de educador, etc. Repitamo-lo: há urna
vocagáo comum, para a qual as demais convergem — a voca
gáo á santidade.

2. Voca$áo sacerdotal e vocagáo religiosa

O assunto se torna xnais delicado e as responsabilidades maiores,


quando se trata das duas vocacdes que visam servir a Deus num
estado especialmente consagrado ao Senhor: a vocacáo sacerdotal e
a vocagáo religiosa.
Por «vocacao sacerdotal» entende-se o chamado ao ministerio
do culto e da cura de almas, no Corpo Místico de Cristo; é ofi
cialmente conferido pelo sacramento da Ordem, destinado aos var6es
apenas (cí. «P. R.» 1/1957, qu. 4). «Vocacáo religiosa» vem a ser
o apelo a urna vida norteada pelos, conselhos evangélicos (pobreza,
obediencia e castidade) sob urna Regra aprovada pela Igreja. Como
se entende, as duas vocagdes sao separáveis urna da outra.
Urna das questóes que primeramente afloram ao espirito do
estudioso déste assunto, é a seguinte: como discernir a vocacáo sacer
dotal e a vocacao religiosa ?
Por serem as mais importantes e especificas de todas, as duas
vocacóes vém marcadas por sinais assaz característicos, dos quais
procuraremos recensear os principáis.

1. Criterios naturais. Compreende-se que o fundamento


normal de urna vocagáo sacerdotal ou religiosa seja urna na-
tureza humana sadia, um equilibrio físico e psíquico tal que
possa satisfazer as imperiosas exigencias do estado de con-
sagragáo a Deus. Quem nao possui os prerrequisitos de saúde
para tanto, pode crer (á excegáo de casos extraordinarios)
que também nao possui a vocacáo sacerdotal ou religiosa.

Neste conjunto de idéias, merecem especial mengáo as análises


e os testes psicológicos. Nao há dúvida, sao de valor para se discernir
urna vocacao sobrenatural, pois a graca supfie a natureza, como a
germinacáo de urna serr.?nte supOe a receptividade do terreno. £
mister, porém, advertir que as testes psicológicos por si nao íornecem
a última palavra no dtscernimento de urna vocagáo sacerdotal ou
religiosa. Em outros termos: nao é ao psicólogo, nem ao médico,
que compete proferir a sentenca definitiva sobre urna presumida
vocacáo dessas; tal sentenca toca a quem se serve das criterios
sobrenaturais, estritamente religiosos, isto é, geralmente ao sacerdote
diretor de consciéncias ou ao bispo (no caso das ordenacóes sacer-
dotaisi e ao Mestre ou á Mestra de novigos e novicas (ao se tratar
de urna vocacao religiosa).
Muito a propósito observava o Santo Padre Pío XI:
«Eis algo de mais grave ainda: a pretensáo falsa,' de.srespeitosa
tanto quanto va, de querer submeter a pesquisas, experiencias e
julgamentos de ordem natural e profana fatos de índole sobrenatural
referentes á educacáo, como, por exemplo, a vocacáo sacerdotal ou
religiosa e em geral tñdas as atividades misteriosas da graca.

— 11 —
Ésses íatos, embora elevem as fórcas da natureza, elevam-nas
infinitamente e nao podem de modo algum ser submetidas as leis
físicas, pois o Espirito sopra onde quer* (ene. «Divini illius Magistrb).
Por conseguinte. depois de se considerar a psicología do candidato,
será forcoso levar em conta criterios sobrenaturais, dos quais uns
sao positivos, os outros negativos.

2. Criterios sobrenaturais positivos. Seguindo S. Inácio


de Loiola, os autores costumam discriminar tres modalidades
pelas quais Deus pode comunicar a u'a alma o chamado ao
sacerdocio ou á vida religiosa :

a) iluminacao repentina do espirito, a qual, por sua evi


dencia, se impóe, provocando ¡mediatamente a aquiescencia
do discípulo. Foi o que se deu com S. Paulo prostrado pelo
Senhor na estrada de Damasco,... com S. Agostinho, inter
pelado por urna voz misteriosa no jardim de Cassiciaco, e com
outros justos. Os cristáos, porém, sabem que os sinais extraor
dinarios sao raros nos designios da Providencia; ninguém,
por conseguinte, pretenderá obter tais indicios da vontade de
Deus para discernir sua vocagáo, pois o Senhor nao está obri-
gado a concedé-los, nem os costuma outorgar;

b) atrativos vivos e continuos. Consistem em estima


especial das coisas de Deus, estima que fomenta o cultivo da
vida interior, o prazer de rezar, o amor ao culto sagrado, ao
canto religioso, á ornamentacáo da casa de Deus, o repudio
ao pecado. Estas notas devem ser particularmente acentuadas
ñas almas que tém vocacáo sacerdotal ou religiosa ;

c) discernimento da razáo. É o que S. Inácio de Loiola


assim explica :

«O terceiro tempo (conjunto de sinais) é tranquilo. O homem,


considerando primeiramente por que foi criado (louvar a Deus
Nosso Senhor e salvar a sua alma), é movido pelo desejo de obter
éste fim; escolhe entao, qual meio apto, um estado ou género de
vida entre os que a Igreja autoriza, para melhor labutar no servico
do seu Salvador e na salvacáo de sua alma. Chamo tempo tranquilo
aquéle em que a alma nao é agitada por espiritos diversos e faz
uso de suas faculdades naturais, livre e tranquilamente».
Ensinam os mestres de espiritualidade que Deus pode chamar
alguém a se Lhe consagrar, pelo fato de lhe dar urna compreensáo
luminosa do que é a vida consagrada (sacerdotal ou religiosa), sem
lhe conceder, ao mesmo tempo, particular atrativo sensivel para
isso (atrativo que nüo coincide com os que mencionávamos sob a
letra b ácima); a fé, iluminando a razáo, faz que esta reconheca
a grandeza do estado sacerdotal ou religioso; em conseqüéncia,
a vontade passa a estimar ésse estado e a querer abragá-lo, sem
que nisto a pessoa experimente algum deleite sensivel; o atrativo
natural em tais almas é suprldo pela fé pura e pelo desejo de
devotamento e sacrificio; o mérito das almas atingidas por tal

— 12 —
modalidade de vocacáo é geralmente maior que o das outras. Essa
pura visto sobrenatural acompanhada de urna vontade firme e perse
verante de dar tudo ao Senhor, independentemente da compensagáo
sensível que tal doagáo passa acarretar para o sujeito respectivo,
é étimo indicio de vocagáo. A experiencia, porém, ensina que Deus,
cuja sabedoria tudo dispóe com fórga e suavidade, nao costuma
subtrair o deleite sensivel aqueles que Ele escolhe.
Urna vez apurados os diversos indicios de vocacáo, o juizo decisivo
cabe geralmente, em cada caso, ao Diretor espiritual.

3. Criterios sobrcnaturais negativos. Aparentes criterios


positivos de vocacáo podem ser sobrepujados por evidentes
criterios negativos. Estes se prendem geralmente a fainas mo
ráis e temperamentais dos candidatos.

A vida sacerdotal e a vida religiosa tém índole, em certo grau,


comunitaria; requerem sujeicáo e maleabilidade. Por isto qua^quer
vocacáo de tal tipo sup5e no candidato largueza de espirito, capacidade
de suportar e de se adaptar, qualidades sem as quais se torna
irrealizável a vocacáo.
Especificando, os autores recomendam que se leve em conta
particular
a) um temperamento insociável: há pessoas que, por suas ati-
tudes espontáneas, envenenam o ambiente em que se encontram;
Irritadlas, tendem a interpretar para o mal tudo que o que se lhes
diz e faz, de modo que nao conseguem viver sem se desentender
com os outros; atribuem ao próximo as suas intengoes maliciosas e
o criticam levianamente;
b) um temperamento anárquico ou indócil: trata-se de pessoas
que sistemáticamente tendem a emitir opiniáo contraria á dos Supe
riores, chegando a criar partidos e dissidéncias; dir-se-ia que nasceram
para mandar, nao para obedecer e fazer como os outros;
c) um temperamento inconstante e impulsivo: sao pessoas que
nao sabem manter seus pareceres, seus planos e resolugóes, ficando
á mercé do entusiasmo ou do desánimo;
d) um temperamento mundano ou pouco amigo da piedade,
sempre inclinado a se deleitar em dlversdes fúteis e pouco moráis.
Desde que tais traeos, após adequado periodo de experiencia,
se mostrem incorrigfveis ou predominantes, nao resta dúvida de que
Deus nao chamou a vida religiosa ou sacerdotal os candidatos assim
marcados, pois evidentemente carecem do substrato imprescindível
para poderem perseverar.
Aquí nao mencionamos explícitamente as chamadas «irregula
ridades canónicas». Estas vém a ser defeitos estipulados pelo Direito
Eclesiástico em vista do acesso á vida religiosa ou sacerdotal: seriam,
entre outras, a falta de idade mínima, o nascimento ilegitimo,
obrigacóes contraidas para com Deus ou alguma entidade (votos,
casamento, dividas, cura de almas, arrimo paterno ou materno, etc.);
cf. Código de Direito Canónico can. 542 (para as vocacSes religiosas);
can. 983-991 (para as vocaefies sacerdotais). As irregularidades, sendo
geralmente dispensáveis pela autoridade eclesiástica competente, nao
constituem na maioria dos casos indicio negativo dirimente para se
discernir urna vocacáo.

— 13 —
3. Qucstoes complementares

Aínda merecem atengáo alguns aspectos particulares do


tema até aquí explanado.

1. Quem contraria ao chamado de Deus abracando definitiva


mente um género de vida incompatível com tal vocacáo, nao deses
pere da sua salvacao eterna, por mais pusilánime ou imprudente
que haja sido. Os autores de espiritualidade recomendam que tal
pessoa se arrepentía sinceramente e procure cumprir fielmente as
obrigaedes do estado de coisas que escolheu definitivamente; viva
na graca de Deus, esforcando-se por dar no seu ambiente o testemunho
de bom católico. Para realizar esta tarefa e assim salvar a sua
alma, nao há dúvida de que lhe assistirá o auxilio de Deus; a ninguém
será licito desesperar da salvacao eterna, desde que aprésente ao
Senhor um coracao contrito e humilde.

2. A vocagáo, urna vez comunicada pelo Senhor Deus,


pode ser perdida ou tornada nula antes de ser executada.
Principalmente ao se tratar de urna vocacáo sacerdotal ou re
ligiosa, é de crer que o demonio se empenha com todos os
requintes de sua astucia para frustrar o chamamento de Deus;
requer-se, por conseguinte, urna conduta geral de vida muito
digna e fiel da parte da criatura chamada, a fim de que possa
conservar e desenvolver o tesouro da vocagáo.

Deus nos ensinou a d'Éle nao exigir milagres (caso file os queira
realizar, efetua-os gratuita e imprevistamente); cf. Mt 4,7. Ora
exigiría milagre a criatura que expusesse o germen de sua vida
sobrenatural aos perigos déste mundo (espetáculos licenciosos, leituras
mórbidas, companhias de má fama...) e, apesar dlsso, pretendesse
que Deus nela conservarse o atrativo pelo estado religioso ou sacer
dotal. Tal criatura faria o que a Escritura condena sob o título
de «tentar a Deus» (= pedir sem motivo justificado derrogacáo ao
curso normal das coisas).
Com isto nao queremos dizer seja ilícito experimentar as vocacóes,
submetendo-as a testes de índole sobrenatural: reconher-se-á tanto
aos candidatos como a seus país e superiores o direito de o fazer.
Contudo teráo todo o cuidado para n&o empreender, sob éste pre
texto, alguma obra pecaminosa e para nao recorrer a provas tais
que. conforme as previsdes da prudencia, sejam aptas a destruir
na alma a chama da fé e do amor a Deus.
«Se (os pais) receiam que a vocacáo (da crianca) nao passe
de impressao fugitiva, submetam-na á prova. Mas, saibam-no bem:
submeter á prova nao significa sufocar; seria realmente um crime
tomar urna crianga sob pretexto de melhor conhecer a sua fórca
de vontade, e envia-la fríamente para lugar em que estivesse fatal
mente exposta á perda da inocencia e da fé!» (Mons. Lobbedey, bispo
de Arras. Franca : Carta Quaresmal de 1913).

3. Há quem repita quase á guisa de adagio : «A vocaCao


(religiosa ou sacerdotal) tem que nascer espontáneamente ñas
almas». Capciosa afirmagáo!

— 14 —
Verdade é que a vocagáo vem de Deus. Nao menos ver-
dade, porém, é que o Senhor a quer conceder envolvendo ge-
ralmente a colaborado e, em particular, a prece dos homens.

Por conseguinte, as vocacOes para as grandes tárelas desta vida,


principalmente para o estado religioso e o sacerdocio, tém que ser
obtidas mediante oracáo: «Rogai ao Senhor da messe, envié operarios
para a sua messe» (Mt 11,38). Sao Joáo Bosco podia em sua época
(1815-88) afirmar: «Tenho a experiencia dos jovens; urna térga parte
déles traz em si o germen da vocacao».
Se as vocacóes ao servido do Senhor escasseiam hoje em dia,
nao se creia — adverte Pió XI — «que haja menos adolescentes
chamados por Deus á vida sacerdotal ou religiosa, mas (creia-se),
sim, que muito menos numerosos do que outrora sao os que hoje
obedecem á mocáo do sópro divino». A oragáo, por conseguinte,
tenderá a impetrar para ésses jovens as gracas da correspondencia
e da íelicidade ao chamado divino.
Além da prece, recomenda-se aos educadores católicos o recurso
aos meios normalmente aptos para despertar o amor á vida consa
grada a Deus: susdtem nos discípulos, mediante o seu exemplo, as
suas palavras e os seus escritos, o zélo pela salvacáo das almas
no mundo inteiro. Principalmente ao sacerdote competirá dar o
exemplo de vida sacerdotal perleita, pois nada é táo apto para
despertar nos jovens o desejo de serem padres quanto o conhecimento
de um bom sacerdote. Muito se aconselha tambera a diíus&o da
leitura de biografías de modelares pastores de almas; o exemplo
comunica, ao mesmo tempo, idéias para a inteligencia e fdrca para
a vontade. — Está claro que o uso de tais meios de formacáo
se íará, tomando-se o cuidado de remover qualquer modalidade de
violencia á Índole dos pupilos.

III. SAGRADA ESCRITURA

PIONEIRO (Distrito Federal) :

3) «Jesús Cristo, por sua personalidade e sua obra, terá


realmente correspondido as profecías do Antigo Testamento?»

Na explanaQáo desta questáo. procuraremos mostrar como aos


poucos. a partir do segundo milenio antes de Cristo, nos escritos
do Antigo Testamento se vao delineando os traeos característicos do
Messias ou, mais precisamente, daquele mesmo Senhor Jesús Cristo
que os Evangelhos de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. Joáo,
no século I da era crista, nos descrevem como Salvador do mundo.

1. A familia e a patria do Messias

A linhagem do Grande Personagem aguardado por Israel


se acha esbozada nos seguintes textos, que, sobrepondo-se uns
aos outros, caracterizam com traeos cada vez mais precisos
o vulto do Messias :

— 15 —
1) Logo no primeiro vaticinio da Biblia (chamado «o
Proto-evangelho»), o Salvador é anunciado como genuino
memoro da estirpe humana :

«Porei inimizades entre ti (Satanaz representado pela serpente)


e a mulher, entre a tua descendencia e o rebento da mulher.
Éste te esmagará a cabeca...» (Gen 3,15).
A tradicáo judaica e a crista habituaram-se a ver no vitorioso
«rebento da mulher» nao apenas a descendencia de Eva coletivamente
entendida, mas o Messias prdpriamente dito. Éste, portanto, é, logo
de inicio, apregoado como verdadeiro homem.

2) Para obter a anunciada Vitoria, o Senhor benévola


mente se servirá do tronco de Sem (semita), de tal modo que
os demais povos da térra, prefigurados por Canaá (ou Cam)
e Jafé, irmáos de Sem, conseguiráo a salvacáo participando
dos bens espirituais dos semitas. É o que se acha expresso
ñas palavras poéticas atribuidas a Noé em Gen 9,26s :

«Bendito seja Deus, Deus de Sem,


E Canaá seja seu servo.
Deus dilate os espacos de Jalé;
Que Jafé habite ñas tendas de Sem,
E Canaá seja seu servo!»

Neste trecho Deus é dito «Deus de Sem» porque, após Noé,


estaría especialmente relacionado com Sem e sua posteridade, prepa
rando, mediante os semitas, a vinda do Messias. Canaá é apresentado
como «servo de Sem»; o que qucr dizer: subordinado a Sem, por
participar dos bens espirituais de Sem. O mesmo sentido toca á
expressáo; «Jafé habite ñas tendas de Sem!»; designa, sim, a repar-
tigáo amigável ou fraterna de bens religiosos que o Senhor haveria
de depositar na lignhagem de Sem por meio do Messias.
Correspondentemente a tais vaticinios, Sao Paulo no Novo Testa
mento (Rom 1,16 e 11,13-27) inculca o designio divino de dar salvacáo
ao mundo inteiro mediante os semitas ou, mais exatamente, mediante
os israelitas.

3) Precisando um pouco mais, a profecía anuncia que,


dentre os semitas, o Patriarca Abraáo e seu povo sao parti
cularmente escolhidos para constituirem a nacáo do Messias :

A Abraáo promete ó Senhor que sua posteridade (a qual culminará


na pessoa do Messias) se tornará «fonte de béncáo para todas as
na?6es da térra» (Gen 12.3). A promessa é renovada a Isaque e
a Jaco (cf. Gen 26,3-5; 27,28-30; 35,11).

4) O panorama sofre nova restricáo. Dentre as doze


tribos oriundas de Jaco, a tribo de Judá há de se tornar a
estirpe do Messias. De fato, diz poéticamente Jaco, ao morrer,
que «á posteridade de Judá competirá o cetro ou o bastáo

— 16 —
regio de comando, até que venha o Messias, a quem tocará
a realeza e ao qual as nacóes prestaráo obediencia» ícf.
Gen 49,10).

5) A dignidade regia do Messias é agora mais enfática


mente prevista por Balaá, o pagáo a quem Javé concede o
dom da profecía : Balaá prediz, sim, a origem de urna estréla
a partir de Israel, o surto de um Dominador edeura cetro
que daráo a Israel ascendencia (a ascendencia messiánica,
religiosa) sobre a térra inteira :

«Eu o vejo — nao, porém, para agora;


Percebo-o — nao, porém, de perto:
Um astro, oriundo de Jaco, torna-se Chefe;
Um cetro ergue-se, proveniente de Israel...
Israel desdobra o seu poder,
Jaco domina sobre os seus inimigos».
(Núm 24,17-19)
Note-se que a estréla era no antigo Oriente sinal da Divindade
e, por conseguinte, sinal de um Rei Divino; cf. Is 14,12.

6) O Messias, Rei descendente de Judá, é ulteriormente


descrito como filho da Casa regia de Davi. Sao numerosos os
textos que incutem tal trago ; tenha-se em vista principalmente
o vaticinio de Jer 23,5s :

«Eis que días viráo — oráculo do Senhor --


Em que suscitare! a Davi um germen justo,
O Qual reinará como verdadeiro Rei e será sabio;
Excrccrn na torra direito e Justina.
Em seus dias Judá será salvo
E Israel habitará em seguranca.
Eis o nome pelo qual O designarlo:
'O Senhor-Nossa-Justica'».

Neste trecho chama a atencao o apelativo «Germen», que se


tornou característico do Me&sias na literatura israelita do séc VIII
a. C. em diante; cí. Zac 3,8; 6,12; Is 11.1.
Quanto ao titulo «O Senhor-Nossa-Justica», faz eco ks designacSes
«Cidade-Justica, Vila-Fiel», que conviráo a Jerusalém nos dias do
Messias, conforme Is 1,26. — «Justica» nessas express5es nao é
apenas a eqüidaclo no exercicio do direito, mas é de corto modo a
maniíestacfio o a eomunicacüo aos homens, da santidade de Deus
(cf. Is 5.16).
Sobre o nascimento do Messias na familia do rei Davi, veiam-se
outrossim Jer 33,16; Ez 17,22; Is 11,1.

7) Como se compreende, o Messias, Filho de Davi, será


Rei para todo o sempre, Rei de todos os homens, nao apenas
de urna nagáo, Rei detentor de poder sobre a vida temporal
e a vida eterna de seus súditos.

É o que o Senhor, por intermedio do profeta Nata, anuncia a


Davi:

— 17 —
«Quando teus dias se completarem e te repousares com teus
pais, conservare! após ti a linhagem procedente de tuas entranhas
e corroborarei a sua realeza... Serei para Ele (o Filho de Davi
por excelencia, o Messias) um Pai, e Ele será para Mim um filho.
Tua casa e tua realeza subsistirao para sempre diante de Mim,
teu trono será confirmado para sempre» (2 Sam 7,12.14.16; cf. SI88).
A tais dizeres correspondem no Novo Testamento as palavras do
anjo a María Santissima :
«(O Salvador) será grande, e chama-Lo-ao Filho do Altíssimo.
O Senhor Lhe dará o trono de Davi, seu pai; reinará sobre a Casa
de Jaco para sempre, e seu reino nao terá fim» (Le l,32s).

8) Descendente da Casa de Davi, o Messias será, em


última análise, filho de urna virgem, conforme a profecía de
Is 7,14 :

«Eis que a jovem donzela Calman) concebeu, e dará á luz


um Filho que ela chamará Emamiel».
A tradicáo judaica entendía o termo 'almah no sentido de í.virgem»
própriamente dita; haja vista a tradugáo grega do Antigo Testa
mento (dita dos LXX) feita no Egito no séc. II a. C, traducáo que,
reproduzindo o modo de pensar dos judeus, no versiculo ácima íala
de parthénos, virgem. Sao Mateus (1,23) asseverou ter-se cumprido
tal vaticinio no seu teor grego, quando Jesús Cristo foi concebido
da SSma. Virgem Maria. — Quanto ao título Einanucl, Deus conosco,
é característico do Messias; cf. Is 8.8-10; SI 45,8.10.
O texto de Miq 5,2, íazendo eco a Is 7,14, parece comprazer-se,
por sua vez. em p6r em relevo a Mae do Messias: fala, sim, de urna
época de bonanca caracterizada pelo fato de que «terá dado á luz
aquela que deve dar á luz...»

9) Nem o lugar do nascimento escapou as previsóes dos


Profetas; é Miquéias (5,1) quem indica a cidadezinha de Belém
no territorio de Judá :

«Tu, Belém de Eíratá,


A mínima dentre as poreñes de Judá,
De ti nascerá para Mim
Aquéle que deve reinar sobre Israel.
Sua origens dataráo dos tempos antigos,
Dos dias de outrora».

Nascido em Belém no decorrer da historia, o futuro Rei messiá-


nico já terá tido nascimento anterior, o que insinúa a sua geragáo
isenta de subordinacáo e de sucessáo cronológica no seio da SSma.
Trindade, ou, em outros termos,... insinúa a natureza divina d'Aquéle
que se dlgnou nascer da linhagem humana.
Sao Mateus. (2,6) assinala o cumprimento desta profecía por
ocasiáo do nascimento de Cristo.

10) O Profeta chega a ver o Menino recém-nascido, por


tador de títulos que, de um lado, O assemelham aos grandes
heróis de sua linhagem e, de outro lado, O identifican! com o
próprio Deus :

— 18 —
«Um menino nos nasceu,
um íilho ñas íoi dado;
a soberanía repousa sobre seus ombros,
e ele se chama:
Conselheiro admirável, Deus lorte,
Pai eterno, Príncipe da paz.
O seu imperio será grande e a paz sem fim
sobre o trono de Davi e em seu reino,
file o firmará e o mantera
pelo direito e pela Justina
desde agora e para sempre».
(Is 9, 5s)

2. O caráter humano e a missao terrestre do Messias

As linhas marcantes da personalidade e da tarefa do


Messias também se acham esbozadas no Antigo Testamento.
1) Para restaurar a justica e a ordem sobre a térra,
Ele aparece cheio do Espirito Santo, de acordó, alias, com a
doutrina comum entre os profetas de que o Espirito Santo
seria dado em plenitude aos homens nos tempos do Messias.
Assim vaticina Isaías (11,1-5) :
«Um renovó sairá do tronco de Jessé,
e um rebento brotará de suas raizes.
Sobre ele repousara o Espirito do Senhor,
Espirito de sabedoria e de entendimento,
Espirito de conselho e de íortaleza,
Espirito de ciencia e de temor do Senhor.
Sua alegría se encontrará no temor do Senhor.
Ele nao julgará pelas aparéncias,
e nao decidirá pelo que ouvir dizer;
mas julgará os íracos com eqüidade,
fará justica aos pobres da térra,
e com o sópro dos seus labios fará morrer o ímpio.
A justiga será como o cinto de seus rins
c a lealdade circundará seus flancos».

Observe-se que Jessé ou Isaí, mencionado no v. 1 ácima, é o


pai do rei Davi.

Merece outrossim atencüo a deseric.áo da obra do Messias em


Is 61,ls :
«O Espirito do Senhor repousa sobre mim,
porque o Senhor me consagrou pela uncáo;
enviou-me a levar a Boa Nova aos humildes,
curar os coragSes doloridos,
anunciar aos cativos a redencáo,
aos prisioneiros a liberdade.
proclamar um ano de gragas da parte do Senhor».
Ora é notorio que, logo no limiar de sua vida pública, Jesús
tendo entrado em urna sinagoga a fim de celebrar o sábado, abriu
o livro do Profeta Isaías, leu em voz alta o texto ácima e o comen-
tou nos termos seguintes : «Hoje cumpriu-se aos vossos ouvidos esta
palavra da Escrituras (cf. Le 4,16-21).

— 19 —
2) A mansidio de alma do Messias e sua obediencia sao
descritas com grande beleza de estilo nos famosos cánticos
do «Servo de Javé» :

«Eis meu Servo, que Eu amparo,


meu eleito, ao qual dou toda a minha afelgáo;
íaco repousar sobre ele meu Espirito,
para que leve ás nagóes a justiga.
Élc nüo grita, jamáis eleva a voz,
nao clama ñas rúas.
Nao quebrará o canigo envergado,
nao extinguirá a mecha que aínda fumega.
Anunciará com toda a franqueza a justiga;
nao desanimará nem desfalecerá,
até que tenha estabelecido a justiga sobre a tena».
(Is 42,1-4)

«O Senhor Deus deu-me a linguagem de um discípulo,


para que eu saiba
reconfortar pela pala-vra o
que está abatido.
Cada manhá Ele desperta meus ouvidos para que
escute como discipulo;
o Senhor Deus abriu-me o ouvido;
e eu nao relutei,
nao me esquivéis.
(Is 50, 4s)

Süo Mateus (12,14-21) vé realizado na vida pública de Cristo


o oráculo de Is 42.1-4 :
«Os fariseus sairam dali e deliberaram sobre os meios de O matar.
Jesús o soube. e afastou-se daquele lugar. Urna grande multidao o
seguiu, e Ele curou todas os seus doentes. Proibia-lhes firmemente
falar disso, para que se cumprisse o anunciado pelo profeta Isaías:
Is 42,1-4».

3) A vinda do Messias acarretará para os homens tran-


sigáo das trevas da ignorancia e do pecado para a luz da ver-
dada e da grasa ; conseqüentemente enorme alegría irradiar-
-se-á no mundo :

«O povo que andava ñas trevas viu grande luz;


sobre aqueles que habitavam urna regiáo tenebrosa res-
plandeceu urna luz.
Vos suscitáis grande regozijo,
provocáis ¡mensa alegría;
rejubilam-se diante de Vos como na alegría da colheita,
como exultam na partilha dos despojos».
(Is 9,ls)

4) Na Galilóia fará o Messias a sua primeira aparigáo :

«Outrora (o Senhor) humilhou a térra de Zabulón e a térra de


Neftalí; no futuro, porém, Ele glorificará a estrada do mar, a regiáo
além do Jordáo e o distrito das nagóes» (Is 8,23b).

— 20 —
A propósito déste texto observe-se o seguinte: o profeta divide
a historia inteira em dois tempos: o passado e o futuro, os quais,
segundo a teologia do Antigo Testamento, correspondem respectiva
mente á época do pecado e á do Messias. A primeira, no trecho
ácima, é caracterizada por humilhacáo, e humilhacáo das regiSes de
Zabulón e Neftalí, regides muito expostas a incursóes de exércitos
estrangeiros (a guerra assim é apresentada como característica do
mundo atetado pelo pecado). A época posterior, messiánica, é marcada
por gloria, e gloria no distrito das nagoes (gentíos) ou seja, na
Galiléia (em hebraico, Gelll significa «distrito»); a escolha da Galiléia
como lugar de Revelacáo da gloria, no texto de Is 8,23, insinúa
a universalidade do reino do Messias.
Ora íoi justamente na Galiléia que Jesús Cristo comecou a
exercer o seu ministerio público, cumprindo destarte a profecía de
Isaías, conforme nota SSo Mateus (4,12-16):
«Jesús voltou á Galiléia, e, deixando Nazaré. foi estabelecer-se
em Cafarnaum, a beira-mar, nos confins de Zabulón e Neftalí. Assim
se cumpriu o oráculo do profeta Isaías: 8,23-9,1».

5) Até mesmo a pessoa do Precursor Sao Joáo Batista


entra na visáo dos profetas: ésse varáo, dotado de tempera
forte para reprovar os pecados de seu povo, é, nos vaticinios
do Antigo Testamento, assemelhado a Elias, o homem de
Deus que no séc. IX a. C. soube pregar fé e penitencia aos
maiorais de Israel.

Assim, por exemplo, fala o Senhor no livro de Malaquias :


«Eis que enviarei meu Mensageiro, para que abra o caminho
diante de Mim» (3,1). «Eis que vos enviarel Elias, o profeta, antes
que venha o meu dia (o día do aparecimento do Messias), grande
e temível; ele há de reconduzir o coragáo dos pais aos filhos,
e o dos filhos aos pais» (3,23 ou Vg 4,5s).
£ Sao Lucas quem observa que o envió de Elias profetizado
por Malaquias se verificou na vinda de Sao Joao Batista. Eis, conforme
o Evangelista, as palavras com que o anjo Gabriel se refere ao filho
de Zacarías e Elisabete :
«Reconduzirá muitos filhos de Israel ao Senhor seu Deus. file
mesmo O precederá no espirito e no poder de Elias, para trazer
os coragóes dos pais aos filhos e os rebeldes á sabedoria dos justos,
preparando para o Senhor um povo de santas disposigoes» (Le l,16s).
Sao Mateus (17,10-13) dá a ver que Joao Batista é o próprio
Elias que eslava para vir:
«Os discípulos O interrogaram: 'Porque dizem os escribas que
Elias deve vir primeiro ?' Jesús respondeu-lhes: 'Elias de fato deve
yir e restabelecer tddas as coisas. Mas eu vas digo que Elias
já veio, contudo nao o reconheceram; antes, fizeram com ele quanto
quiseram. Do mesmo modo faráo sofrer o Filho do homem'. Os
discipulos compreenderam entáo que ele lhes falava de Joáo Batista».

3. Paixao e glorificagáo do Senhor Jesús

Também os sofrimentos e o triunfo de Jesús Cristo sao


anunciados pelos Profetas, com pormenores que só podem ter

— 21 —
sido apreendidos por estrita revelagáo sobrenatural. Tenham-se
em vista os seguintes tragos :
1) O Profeta Zacarías (9,9s) prevé a acolhida regia,
triunfal, do Senhor em Jerusalém, montado sobre um jumen-
tinho, a dar o exemplo da humildade e da mansidáo :

«Exulta de alegría, filha de Siáo,


solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém;
eis que vem a ti o teu reí,
justo e vitorioso,
humilde, montado sobre um jumento,
no potro de urna jumenta.
Ele suprimirá os carros de guerra na térra de Efraím...
proclamará a paz entre as nacoes,
Seu imperio estender-se-á de um mar a outro,
desde o rio até as extremidades da térra».

Sao Mateus observa como tal visao profética teve seu cumpri-
mento quando o Senhor entrou em Jerusalém no domingo de Ramos
(21,5). O jumento, em oposicáo ao cávalo de guerra (cf. Zac 9,10),
simboliza o caráter brando e pacifico do Rei-Messias; era a montadura
dos antigos reis e chefes (cí. Jz 5,10; 10,4).

2) Os padecimentos de Jesús em sua Paixáo sagrada


foram previstos com vivacidade surpreendente:

a) os ludibrios, a crucifixáo, o sorteio da túnica de Cristo sao


longamente descritos no SI 21, juntamente com a glorificacáo subse-
qüente á Paixáo do Senhor. A maioria dos comentadores reconhece
que ésse cántico, com seus pormenores impressionantes, se refere
direta e exclusivamente a Jesús Cristo padecente e triunfante :

«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste ?

Sou um verme, nao sou homem,


O opróbrio de todos, a abjecao da plebe.
Todos os que me véem, zombam de mim; '
Dizem, meneando a cabeca :
'Esperou no Senhor. portanto que Ele o livre,
Que o salve, se o ama'...
Como a agua que se derrama,
Assim todos os meus ossos se desconjuntam...
Traspassaram minhas máos e meus pés.
Posso contar todos os meus ossos,
Éles observam e, vendo-me, alegram-se,
Repartem entre si as minhas vestes,
e lancam sorte sobre a minha túnica.
Contudo, Senhor, nao vos afasteis de mim;
ó meu auxilio, bem depressa ajudai-me...
Entáo anunciarei vosso nome a meus irmaos,
E Vos louvarei no meio da assembléia».

b) a venda do Senhor por trinta dinheiros entregues ao traidur


é atestada por Zacarías (11,12); cf. Mt 27,9.

— 22 —
c) A íiagelacáo no dorso, os escarnios na face injuriada por
escarros dos adversarios sao de antemáo contemplados em Is 50,6-9.

d)O Messias dessedentado com vinagre é previsto pelo SI 6822;


cf. Mt 27,48.

e) Cristo traspassado pela lanca do soldado aparece em Zac


12,10s :
«Éles (os filhos de Israel) contemplarao Aquéle que teráo
traspassado... Naquele dia haverá grande lamentagáo em Jerusalém»
<cf. Jo 19,37; Apc 1,7).

f) O caráter expiatorio do sacrificio de Cristo, seu valor de


redengáo ou resgaste em favor do povo de Deus, 'assim como a
gloria posterior á humilhacáo do Messias, sao vivamente inculcados
em Is 52, 13-53, 12. peca de rara beleza literaria.

4. Divindade de Jesús Cristo

Por fim, nao se poderiam silenciar os salmos em que a Divindads


do Messias é diretamente afirmada.
Assim o SI 109 fala do Messias Rei e Sacerdote á semelhanca
de Melquisedeque, e igualmente verdadeiro Deus, gerado desde toda
a eternidade do seio do Pai. Jesús Cristo, convivendo com os nomens
aquí na térra, houve por bem aplicar ésse salmo a Si mesmo,
apresentando-Se destarte como verdadeiro Deus e homem (cf. Mt
22,41-45). Sao Pedro, por sua vez. ilustrou a obra de Jesús Cristo
mediante o SI 109; cf. At 2,34s.
O SI 2 esboga a figura do Messias Rei universal em sua natureza
humana, referindo, ao mesmo tempo, á sua natureza divina, segundo a
qual file procede do Pai desde toda a eternidade. — Sao Paulo,
em At 13,33, aplicou ésse salmo á Pessoa e a obra de Jesús Cristo.
O mesmo foi feito pelos primeiros cristáos, conforme At 4,25s.

5. Urna dúvida, porém. . .

Contudo poderia alguém objetar que, ao lado dos vaticinios


cumpridos na vida de Jesús Cristo, outros há que nao foram de
modo nenhum realizados.
Tal observagüo é oportuna, pois nos dá ensc.io de por em relevo
urna das notas típicas do mcssianismo eristáo.
Em primeiro lugar, deveremos reconhecer que todas as profecías
referentes á vida terrestre de Jesús se cumpriram devidamente.
O Senhor Jesús Cristo, que outrora viyeu na Palestina conforme
relatam os Evangelhos, se sobrepoe á figura do Messias esbozada
no Antigo Testamento, e preenche exatamsnte as exigencias desta.
Acontece, porém, que as profecías, além de descrever a vida
terrestre de Cristo, predizem renovacáo moral c material dos homens,
restauracáo da natureza irracional em sua ordem primitiva paradi
siaca (cf. Is 11,6-9), a extingáo das guerras e a implantacáo da paz
universal (cf. Is 9,2-6; Zac 9,9s)..., de sorte que a vinda do Messias
parece, segundo os escritos do Antigo Testamento, dever dar inicio
a um novo mundo e a urna nova fase da historia do género humano.
— Ora tal renovacáo até hoje nao se verificou...

— 23 —
— Nao há dúvida. Será preciso, porém, lembrar o seguinte: a
Previdencia Divina decretou salvar o mundo entre duas vindas do
Senhor Jesús a esta térra: na primeira o Messias devia sujeitar-se
as conseqüéncias do pecado de Adáo, isto é, á dor e á morte padecidas
numa auténtica natureza humana, a fim de santificar a própria dor
e a própria morte; em conseqüéncia, estas deixaram de ser mero
castigo, para se tornarem como que algo de divino e instrumento
de redengáo para o género humano. Cristo triunfou da morte, déla
fazendo o canal da imortalidade gloriosa. Tendo dado ésse sentido
novo as realidades antigás, o Senhor houve por bem substrair aos
homens sua presenca visivel e deixar que a historia prossiga, marcada
agora por estas duas notas antagónicas: morte e, nao obstante,
certeza de Vitoria final sobre a morte, desordem decorrente do pecado
e, nao obstante, esplendor (latente ñas almas) oriundo da graca
do Redentor... Os tempos se desenrolaráo assim até a segunda
vinda de Cristo, que no dia determinado pela sabedoria do Pai
se manifestará de novo, dessa vez na plenitude de sua gloria de
Rei. Entáo encerrar-se-á a obra do Redentor nos remidos: os corpos
dos homens que tiverem aceito a salvacáo, serao ressuscitados
gloriosos a semelhanca do corpo de Cristo (a gloria que hoje é
latente ñas almas dos filhos de Deus, transfigurará os corpos), c o
mundo irracional, que junto com o homem sofre atualmente as
conseqüéncias do pecado, será remodelado, havendo entáo «céus novos
e térra nova» (cf. Apc 21,1; Is 66,22). Entrementes, enquanto vivemos
entre a primeira e a segunda vinda do Messias, o género humano
e a natureza inteira encontram-se sob o regime do «Sim» e do «Nao»:
um germen e penhor de renovacáo foi-lhes dado, sim, mas ainda nao
se acha plenamente desabrochado.
Feita esta observacAo, vcrifica-se que sao as profecías referentes
ao desdobramento da Redencáo e á renovacáo do universo que ainda
aguardam sua total realizacáo ao passo que os oráculos concernentes
á vida do Salvador na Palestina já se cumpriram.
Inegávelmente, os profetas do Antigo Testamento era suas
predicóes fundiram os eíeitos da primeira e da segunda vinda do
Salvador como se a Redencáo se devesse dar numa única etapa; dai
a perplexidade que por vézes surge na mente dos leitores. Tenhamos
consciéncia, porém, de que tal é o modo de ver dos profetas bíblicos:
nao costumam distinguir as intervalos que medeiam entre diversos
acontecimentos futuros. Neste ponto assemelham-se a um observador
que, colocado sobre o cume de u'a montanha, contempla o panorama
á sua frente; desvenda bem as cristas das cordilheiras que se
sucedem paralelas urnas as outras diante déle, mas nao distingue
os vales que separam tais cristas entre si; a tal observador parece
que tais cristas se ligam entre si scm hiato. Ora algo de análogo
se verifica na visáo espiritual dos profetas: apreenderam os aconteci
mentos da primeira e da segunda vinda do Messias como se se
devessem realizar simultáneamente, sem o intervalo que aíualmente
vamos percorrendo.
Consciente de que tal é o modo de perceber dos videntes escritu-
risticos, o estudioso nao se perturbará, mas, ao contrario, voltará
mais seguramente ainda sua atencáo para a harmoniosa correspon
dencia existente entre os SS. Evangelhos e as profecías do Antigo
Testamento; reconhecerá, conseqüentemente, que o Autor de tal
correspondencia so pode ter sido o próprio Deus, O qual desta forma
quis atestar a autenticidade da missáo de Jesús Cristo. Verdadeiro
Deus feito Verdadeiro Homem para dar novo sentido á vida e á morte
dos homens.

— 24 —
IV. MORAL

HOMEM DE DEUS (Ceara) :

4) «Como procederá o médico católico diante de ¿im


caso de gravidez em que a mae possua sangue Rh negativo,
e o pai sangue Rh positivo ?
Em vista dos perigos de morte para a máe c de anamalia
para o filho, nessas circunstancias nao se aconselhariam o
anticoncepcionismo e o aborto dito terapéutico ?»

Em primeiro lugar, recordaremos os principios da Moral crista


referentes á limitacáo da natalidade e ao aborto em geral. A seguir,
examinaremos o caso particular suscitado pelo sangue Rh, a fim
de averiguar como pode ser enquadrado na observancia désses
principios.

1. Os principios gerais

As normas da Moral Católica referentes a limitacáo da prole e


ao aborto já foram expostas respectivamente em «P. R.» 5/1957 qu.
4 e 6/1957, qu. 9 (cf. 8/1957. qu. 12). Explicitemo-las, porém, mais
urna vez aquí a fim de favorecer o entendimento do caso especial
que depois será focalizado.

1. Limitacáo da natalidade. O Criador anexou a cada


funQáo do organismo humano urna determinada finalidade
que regula o uso de tal fungáo. Ora a finalidade do ato sexual
ou conjugal é a propagapáoda. especie humana. Em conse-
qüéncia, torna-se inconcebíveT qualquer modalidade do ato
sexual ou do intercambio matrimonial que, por meios artifi
ciáis, exclua a prole : em verdade, nao é lícito ao homem in-
tervir ñas fungóes da natureza de modo a so gozar do prazer
anexo a essas fungóes, ficando excluido ó fim primario em
vista do qual ésse prazer é dado pelo Criador á criatura.
Á luz destas proposicóes, só se pode admitir limitagáo
da natalidade, caso esta nao implique em interferencia do
homem ñas leis da natureza. É o que se dá desde que se obser-
vem os periodos de fecundidade e esterilidade da própria na
tureza : calculando (de acordó com a conhecida tabela de
Qgino-Knaus) os dias em que a mulher é naturalmente infe
cunda, os cónjuges usam livremente das relagóes conjugáis em
tais épocas ; abstém-se, porém, das mesmas desde que pre-
1 vejam fecundidade da natureza. Destarte nao cometem vio-
lagáo as leis do Criador. — Para que aos cónjuges se torne
lícito o recurso a tabela, bastam as dificuldades que costumam
pesar sobre a vida conjugal em nossos dias (razóes de eco-

— 25 —
nomia, saúde, educacáo da prole, etc.) ; nao se admitem, po-
fem', motivos de comodismo e egoísmo.
, Na execucáo de tais normas, que por vézes se torna ardua, os
'. esposos cristáos nao se deixam abater; coníiam, antes, na graca de
Deus, conscientes de que o Pai do Céu nunca poe seus filhos
' em situacñes perplexas, ñas quais seja impossível evitar o pecado.

2. O aborto dito terapéutico. Por «aborto terapéutico»


entende-se aqui a intervencáo módica que tenha por objeto
extrair do seio materno um feto vivo, ainda_náo viável, a
titulo de salvar a vida materna. Trata-se, portante, de uma
agáo que atinge diretamente a vida da manga, extinguindo-a;
pouco importa, no caso, que nao se vise, como finalidade su
prema da intervencáo, a morte do feto como tal, mas a pre-
servagáo da vida da gestante.
a) Do ponto de vista moral, uma tal operacáo é conde
nada como assassinio direto, pois o embriáo humano, desde o
primeiro instante de~súá existencia no seio materno, é, con
forme a maioria dos autores, portador de alma verdadeira-
mente humana, ou, se nao é tal (conforme outros autores), o
feto ao menos significa um processo vital destinado a terminar
num ser verdadeiramente humano, exigindo, por conseguinte,
para si todo o^respeito devido á personalidade humana. Cf.
«P.R.» 3/1957, qu. 3.
O fato de se intencionar uma finalidade boa (isto é, a
<conservacáo da vida materna) mediante o morticinio da
crianca nao justifica o homicidio ou o aborto ; o fim nao
santifica os meios ; nao é permitido cometer o mal para daí
tirar algum bem.
No caso em que, durante a gesta^áo, sobrevenha conflito
entre a vida materna e a vida da crianca, a ninguém será licito
escolher uma das duas vidas, e matar urna (a da máe ou a
¡dá crianga) para salvar a outra (é, sim, assaz comum dizer-se
Que a Moral católica dá preferencia ñ viña ffa_nrjan,ca, a0 Passo
que a ética náo-católica tende a salvar antes a vida materna);
matar diretamente, seja a máe, seja a crianga, em caso ne-
nhurn é lícito. Por conseguinte, o médico católico nao dá pre
ferencia nem á vida do feto nem a da máe, mas procura posi
tivamente salvar uma e outra, sem se permitir acáo alguma
que de per si seja ordenada a produzir a morte de uma das duas.
t -i Pode acontecer, porém, o seguinte : a máe, no período de
t gestagáo ou na hora do parto, sofre de molestia ou infecgáo
tal que a sua vida possa ser salva mediante um tratamento
ou uma intervengáo cirúrgica que de per si vise realmente
curar o estado patológico da gestante, mas que indiretamente,

— 26 —
corno.efeito secundario, provoque a morte da crianga. O recurso
á" tal tratamento (ingestáo de remedio, aplicagáo de injecóes,
operagáo...) nao pode ser tido como ilícito, pois se trata de
urna agáo que por si nao é mortífera e cuja finalidade direta
é boa. Sim ; é um trátaménto que se aplica a um estado doen-
tio, como tal, da mulher, e que se lhe aplicaría independente-
mente da gravidez anexa.

A titulo de excmplo, scja citado o caso clássico de u'a mulher


grávida cujo útero é canceroso... Sabe-se que a extracáo dos tecidos
cancerosos é ó tratamento comum para os casos de cáncer, indepen-
dentemente das circunstancias de gravidez anexa. Será lícito, por
conseguinte, tratar de tal mulher mediante a extracáo do útero
canceroso, ainda que éste se ache grávido; como conseqüéncia da
extragáo, dar-se-á naturalmente a morte do feto nao viável. Éste,
porém, nao terá sido o efeito diretamente decorrente da operagáo,
mas apenas a conseqüéncia secundaria e contingente de urna inter
vencáo 'qlie" por si nao é de modo algüm ocisiva. Veja-se também
o caso da gravidez ectópica estudado em «P. R.» 8/1957 qu. 12.
O médico que proceda segundo as normas ácima, estará reali
zando urna acáo com duplo efeito — um bom (diretamente visado
em si), outro mau (secundario, nao visado, mas apenas_tojerado
P.elo agente). Para que as acoes déste tipo sejaní realmente licitas,
os moralistas costumam indicar algumas condicdes a ser rigorosamente
observadas :
1) a intervencáo cirúrgiea ou o tratamento infligido á gestante
devem ser tais que, por sua natureza mesma, vjsejn_ salvar e jiaa.
matar; dado que a morte da crianca dai decorra, serü sempré uirf
efeito secundario, mediato, nao diretamente incluido na finalidade da
intervencáo como tal;
2) haja realmente necessidade de recorrer a tal expediente (acáo
com duplo eíeito), por nao ser possivel de outro modo prover á
salvacáo da vida materna;
3) a intencáo do médico seja honesta;
4) procurem os interessados. na medida do possivel, proporcionar
á crianca o Batismo antes que pereea.

Eis os principios incutidos pela Moral crista no tocante


ao chamado aborto terapéutico. A própria Medicina, diante
dos progressos que últimamente tem feito, já nao abonaría
o predicado «terapéutico» no caso, pois está comprovado que
o abórto_pode ser evitado mediante o_emprégo.de_±ratamen£os
modernos ate"Tfies~mo fias'sftuacQes que antigamente eram tidas
como perplexas e só solúveis pelo recurso ao morticinio. Sa-
be-se, além do mais, que todo aborto tende a produzir na
¡ mulher efeitos daninhos de ordem tanto somática como
¡ psiquica.

b) Eis. porém, que ainda merecem atencao algumas objecóes


tendentes a justificar, apesar de tudo, a prática do aborto :
aa) «O feto, dizem, nos seus primeiros tempos (durante 40
dias, se é masculino; durante 80 dias, se é feminino), nao está

— 27 —
animado por alma humana intelectiva; por isto, nessas circunstancias
será licito eliminá-lo sem se cometer homicidio».
— Tal diíiculdade já foi considerada em «P. R.» 3/1957, qu. 3.
Sumariamente lemhraremos que a maioria dos fisiólogos e filósofas
modernos tende a admitir a existencia de alma intelectiva no embriáo
desde p_ inicio da_gestaeáo. Em qualquer caso, porém, o aborto nao
udeixaria de ser homicidio, porque, como foi dito atrás, extinguiría
Jjum processo vital destinado por si a terminar em um ser humano.
o bb) «A cr¡an<;a é parte ou apéndice da mae. Ora, assim como
M a esta é licito cortar urna de suas maos para salvar a própria vida,
assim também será permitido eliminar o embriáo que a ponha em
perigo de vida».
— É erróneo supor que a crianca seja parte de sua máe; desde
o principio da gestagáo, o feto se manifesta como organismo autónomo,
dotado de circulagáo de sangue e de pulságóés próprias; é verdade
que recebe de sua máe o alimento, mas elabora-o e assimila-o por
um principio vital próprio.
■) i ce) «O embriáo se equipara a um injusto agressor a atentar
- ' contra a vida materna!»
— Tal afirmagáo é gratuita. Poder-se-ia igualmente dizer que
a máe é que faz as vézes de agressora. pois, padecendo de alguma
molestia, como insuficiencia hepática, mau funcionamento de glán
dulas, etc., vem a ser causa pela qual o filho carece dos elementos
necessários ao seu desenvolvimento normal. De resto a crianca nao
tem culpa alguma de ter vindo a^ste mundo. "
,' dáí «Mas entao perder-se-áo duas vidas — a da máe e a da
'*'• crianca — em vez de salvar ao menos a vida da máe!»
— O lema do médico católico, num caso de gestagáo dificil,
nunca poderá ser: perder urna das duas vidas para salvar a outra,
mas será sempre: salvar asiduas vidas. O médico, por conseguinte,
nao formulará o problema nos termos": «ou a máe ou o filho», mas
antes propor-se-á «salvar lanto a máe como o.filho». Sim; mae e
filho sao duas pessoas humanas, dotadas ambas do direito de viver,
Itíe sorte que nao se pode diretamente sacrificar urna para salvar a
¡putra, como num caso de naufragio nao é licito arrancar o salva-
Mvida de um náufrago para entregá-lo a outro.
ee) «É hediondo deixar morrer u'a mae de familia, amparo
-> insubstituível do marido e dos filhos. só para nao matar urna crian-
cinha cuia personalidade ninguém conhece!»
— Nao há dúvida. é sempre dolorosa a morte de u'a máe de
familia. Por isto o médico há de empregar todas os recursos da
ciencia a fim de evitar tal desenlace. Caso, porém. nao se possa
salvar a vida materna, o médico e os familiares cristáos aceitaráo
com fé e confianca o designio da Providencia; o Pai do Céu nao
abandona seus filhos, mesmo quando lhes subtrai o estéio (no
caso, —. a "esposa e mae) aparentemente-indispensável. — Algo de
semelhante, alias, se dá em um incendio ou em um naufragio:
ás vézes é preciso em tais ocasióes contemplar simplesmente a aguo da
morte sem que haja algum expediente para que se possa intervlr.
«Dejxarjnorrer» nao significa, de per si, «matar».
! \ tí) «Em" casos de gravidez contraída fora do matrimonio, se
nao se tolera o aborto, compromete-se a honra de urna jovem ou
quigá a de urna familia inteira».
— Ninguém pretenderá sanear um defeito acrescentando-lhe
outro; um erro cometido por cópula sexual ilícita nao será corrigido
por um homicidio. O auténtico remedio em tais casos consistirá em

— 28 —
reeducar ou em excitar e corroborar a resistencia moral e o vigor
de ánimo das pessoas envolvidas no pecado para que nao recaiam
no mesmo.
Dito isto, passemos a considerar as situacoes particulares criadas
pelo íator Rh, que só recentemente foi descoberto pela medicina,
parecendo exigir atencáo especial da parte dos moralistas.

2. O fator Rh e snas conseqüéncias a luz da Moral médica

1. Em que consiste prdpriamente o fator Rh. O íator Rh deve


sua designacáo ao nome do macaco «Rhesus». Em 1937 os Drs.
Karl Landsteiner e Alexander Wiener do Rochefeller Institute (U.S.A.)
identificaram nos glóbulos vermelhos do sangue déste animal um
elemento., aglutínpgénLo_.o qual, injetado em sangue de cobaia, ai
provocóú e provoca a formacáode áglutiñiha ou de anticorpos
tendentes a destruir o elemento oriundo do macaco Rhesus.
Ora éste mesmo aglutinogénio se encontrou também no homem,
de acordó com as seguintes proporcóes : 85% dos individuos humanos
brancos possuem o fator Rh (pelo que sao ditos Rh positivos), ao
passo que 15%, carecendo déle, sao chamados Bh negativos. Na
raga negra, a proporcáo é de 90% de individuos de Rh positivo,
chegando entre os chineses a 99%. O dentista Philip Levine tornou-se
particularmente benemérito no estudo do fator Rh, investigando o
fenómeno da eritroblastose (destruicao dos globos vermelhos do
sangue).
A principio julgava-se que o novo aglutinogénio nao tinha
importancia prática na clinica; os médicos, porém, tiveram que mudar
de parecer, quando em 1939 Levine e Wiener demonstraram que os
¡individuos de Rh negativo podem, em certas circunstancias, produzir
': anticorpos contra o fator Rh positivo, anticorpos que tém conse-
! qUéncias serias no próprio estado de saúde de quem os produz.
Os estudiosos aínda nño chegaram á plena clareza sobre a estru-
tura e os corpúsculos constituintes do fator Rh. Asseguram, porém,
que se trata de um aglutinogénio comparável aos fatores A, B, AB
e O, que determinara os quatro grupos sanguíneos mais conhecidos,
de modo que hoje se admitem mais do que quatro classes de sangue
humano.
Os pormenores da questáo nao interessam diretamente o assunto
de que vimos tratando neste artigo. O que importa reter, é que a
infusáo de sangue Rh positivo em sangue Rh negativo—provoca
geralmente réacao por parte déste ~é. ém conseqüéncia, perigo de
aglutinacao e destruicao do composto sanguíneo resultante.

2. Nos casos de gestacáo. O problema de Rh que inte-


ressa a moral do obstetricista pode-se assim formular: um
embriáo é concebido de pai Rh positivo e máe de sangue Rh
negativo. O feto geralmente herda o fator paterno, isto é, fica
sendo Rh positivo. Em conseqüéncia, dentro do organismo
materno (Rh negativo) o novo ser provoca a formacáo de
aglutinina ou de anticorpos que reagem contra o fator Rh po
sitivo da enanca. A produgáo déste reagente pode verificar-se
em quantidade maior ou menor; pode verificar-se, porém, em
quantidade tal que afete o sangue do embriáo (esta hipótese

— 29 —
) nao costuma verificar-se na primeira gestagáo, mas, sim, na
segunda ou na terceira...). O feto entáo passa a sofrer de
eritroblastose fetal , molestia que freqüentemente ataca o
figado, o cerebro e outros tecidos, podendo chegar a provocar
a morte no seio materno. Caso estas perturbares se déem,
nao há dúvida de que a situagáo se torna melindrosa para a
gestante ; nao é, porém, fatal: submetendo-se a máe grávida
a controle médico periódico, pode-se averiguar em que condigóes
se acha o feto e, caso se verifique ter morrido no seio materno,
procede-se a extracáoJmediata-do mesmo, salvando-se a vida
da paciente. Ogjjons .médicos nao julgam necessárío nem opor
tuno, para evitar ürñá eventual situagáo dessas (aborto infec
tado), recorrer ao aborto artificial e voluntario, eliminando
sistemáticamente o feto de pai Rh positivo e máe Rh nega
tivo. Admitir-se-á, porém, o seguinte : desde que haja indica-
góes favoráveis a tanto, proceder-se-á á extragáo do feto com
vida e perfeitamente viável após o sextp__ou--o -sétimo mes,
evitando-se destarte aiguma complicagáo prevista para o fim
do periodo de gestagáo.
Dado que a gravidez chegue naturalmente a termo, os
médicos teráo o cuidado de examinar particularmente a crian-
ca : a eritroblastose manifesta-se por vézes no intervalo de
(72 hs. após o nascimento, provocando urna crise hcmolítica e
"a morte da crianga; caso nao induza a morte, pode acarretar
anemia e estados patológicos crónicos. Em outros termos, dir-
se-ia : o organismo do recém-nascido tende a produzir sangue
jRh positivo (heran^a paterna), mas é portador de urna dose
¡imais ou menos grande de anticorpos herdados do organismo
.¡materno. Se a quantidade distes últimos fór avultada, haverá
perigo de auto-destruigáo do sangue da crianga. A fim de
evitar os males assim previstos, os médicos procedem a urna
transfusáo de sangue: tendo extraído todo o sangue com que
a crianga nasce, infundem-lhe sangue novo, do tipo daquele
que o recém-nascido tende a produzir dentro do seu organismo.
Fica assim removido o perigo de conflito no sangue da crianga,
confuto que provocaría a morte da mesma ou urna grave
anomalía (psíquica ou somática). Como se vé, também na
hipótese de chegar a gravidez a termo, contomam-se com os
recursos da medicina moderna os possíveis desastres (morte
ou doenga) na crianga.

Está claro que, repetindo-se as gestagOes numa mulher de sangue


Rh negativo portadora de feto Rh positivo, o sangue materno vai
ficando cada__vez mais sensibilizado; torna-se mais e mais saturado
de anticorpos, que téndem a'aeilrulr o sangue do embriáo e a pro
vocar o aborto infectado. Éste inconveniente, porém. também é supe-
rável: conHecém-se'fñaes que, mesmo em tais condigóes, deram

— 30 —
á luz seis ou oito íilhos sadios, salvando-se devidamente a saúde
materna. Nena_o. anticoncepcionismo nem o aborto voluntario seriam
necessários para evitar as desgracas posslveis em tais repetidas
gestaeSes.

Em conclusáo, verifica-se que, por aplicagáo dos recursos


da ciencia moderna, os perigos de infelicidade nos diversos
casos de prole oriunda de Rh positivo com Rh negativo (au-
v' rante e após a gestagáo) sao cada vez menos consideráveis;
conseguem-se hoje em dia superar os inconvenientes que há
poucos anos atrás ainda eram Jtidos como fatais.
Mesmo, porém, que nao se chegue a evitar todo e qualquer
infortunio nos mencionados casos, nao será lícito em eventua-
lidade alguma recorrer ao aborto voluntario ou ao anticon
cepcionismo (tenham-se em vista os principios enunciados na
primeira parte desta explanagáo). — A posicáo clara da Moral
católica neste assunto nao depende nem de rigorismo nem de
condescendencia, nj^é_£uestfa_jig_4}rMeréndas_^^
deuma_ época, .mas_esta baseada _em_Drincipios muito_mais
profundos (de ordem ontolbgica, e nao meramente psicológica),
a saber: a^vida é dom de Deus outorsado aos homens para
que estes 6 administren! segundo as leis do Criador manifes
tadas pela natureza. Embora custe ao homem desempenhar o
papel_de mero administrador, e nao de senhor. da vida, tal
■ sacrificio de "modo"neñRüm significa detrimento para o cristáo:
■ servindo a Deus, e únicamente servindo a Deus, é que o homem
reina. O discipulo de Cristo nao identifica «ser feliz» com
«condescender com os caprichos e os comodismos de urna na
tureza desregrada».

Quanto á influencia do fator Rh no período pré-nupcial, julgam


v os moralistas que náo_é^necessário atribuir importancia decisiva a
tal fator jaaescolha 3s_¿ini_espdsOü"~á'e urna esposa. Nem devem
os cónjuges deixar-se invadir pelo fefhor e a perplexidade, caso
venham a verificar, após o casamento, que o marido é Rh positivo
e a consorte Rh negativo: além de se entregarem totalmente a
vontade de Deus (motivo máximo de tranqüilidade), os cónjuges
licristüos tém consciéncia de que a medicina contemporánea dispOe
Jde recursos suficientes para salvaguardar a vida da máe e a do filho,
desde que o casal conceba e queira respeitar a lei do Senhor.
Além do mais, os autores, atendendo ás estatisticas respectivas,
observam que o problema de cópula de Rh positivo com Rh negativo
é relativamente raro: entre individuos de raga negra e amarela
(99% dos chineses tém Rh positivo) quase nao ocorre; toma-se
um pouco mais freqüente na raca branca (onde se contam 85%
de.individuos Rh positivo para 15% de negativo): aproximadamente
i(l2% dos casamentos, na raca branca, se realizam entre varáo Rh
positivo e mulher Rh negativo; nem todos estes matrimonios, porém,
chegam a ocasionar problemas de gestacáo; sámente um caso entre
250 produz entroblastose fetal, ou seja. as graves perturbac5es no

— 31 —
organismo da crianca devidas á incompatibilidade de sangue paterno
e sangue materno.
As diversas consideragdes ácima habilitam os autores hoje em
día a nao atribuir ao fator Rh preponderancia dirimente no estudo
dos problemas atinentes á vida conjugal.
Veja-se a propósito o criterioso estudo de Charles J. McFadden:
Medical Ethics. 2d. ed. Philadelphia 1951 (F. A. Davis Company Pu-
blishers). Outrossim T. Bosio, II fattore Rhesus nelle recenti scoperte
e studi sul sangue, em «Civiltá Cattolica» 1950 IV 326-337.

Em apéndice, vao aqui citadas duas passagens de S. S. o Papa


Pió XII atinentes ao assunto.
O primeiro texto deve-se a um discurso proferido em francés
por Pió XII aos 5 de setembro de 1958, quando recebeu mais de
500 professóres, médicos e estudantes, provenientes de 40 nagóes
diversas, a fim de participaren! do VII Congresso da Sociedade
Internacional de Transfusáo do Sangue:

«A gravidade das questSes em causa chama particularmente a


Nossa atengáo: a Igreja, como sabéis, nao iica indiferente desde
que estejam em jógo problemas que envolvem o destino humano
individual e social, temporal e eterno, desde que ela possa, pela
sua presenta ou por urna intervencáo oportuna, fazer muito
bem ou evitar muito mal.
... Sabe-se assaz geralménte na hora atual que os glóbulos
vermelhos do sangue possuem caracteres próprios e que a humanidade
se divide em quatro grupos sanguíneos (A, B, O e AB). Se se chama
1 'nntígena' a cnpncidadc de provocar num organismo a íormagáo de
'substancias chamados '.aotieprpos', suscetiveis de se unirem ao antí-
geno e de determinar primeiro a aglutinacáo e depois a destruido
dos glóbulos vermelhos, pode-sc explicar a existencia dos quatro
grupos da mancira scjjuinte: os grupos A e B possuem cada um
um antigeno próprio, mas nüo o anticorpo que a ele corresponde,
ao passo que possuem o anticorpo do antfgeno que nao tém; o
grupo AB possui os dois antígenos, mas nenhum anticorpo do
sistema; o grupo O nao possui nenhum antigeno, mas, sim, os
doís anticorpos. Durante estas últimas décadas, o descobrimento de
outros sistemas introduziu urna complexidade considerável na deter-
minacáo exata dos tipos de sangue humano. Mas o que mals Nos
interessa é o descobrimento do fator 'Rhesus', que permite esclarecer
a patogénese da doenca hemolitica do recém-nascido, a qual até
entáo ficara sendo de origem desconhecida. U'ajmáe possuldora do
'RhnegaÜvol produzirá anticorpos para, os glóbulos" 'Rh positivos',
e, se o fíIHo que ¿la tfaz em si é 'Rh positivo', ela Ihe causará
daño. Visto que os grupos sanguíneos se herdam segundo o meca
nismo da hereditariedade, mecanismo conforme no essencial ás leis
de Mcndel, é evidente que. para ter um filho 'Rh positivo', a máe
deverá ter um esposo 'Rh positivo'; se éste fór filho de pais dos
quais um seja 'Rh positivo' e outro 'Rh negativo', terá urna proba-
bilidade de 50% de gerar íilhos 'Rh positivo' mas, se os pais fórem
ambos 'Rh positivo', todos os filhos também o seráo. Quando u'a
imulher 'Rh negativo' esposa um homem 'Rh positivo', acha-se
naquilo que é denominado a 'situacáo Rh', em perigo potencial de
ter filhos doentes».

— 32 -.
Tendo exposto os dados do problema no trecho ácima, S. S. Pió XII
voltava ao assunto urna semana mais tarde (12/IX/1958) em
outra alocucáo, dessa vez dirigida ao VII Congresso Internacional
dé Hematología, que reunia perto de 2000 médicos e peritos perten-
centes a um total de 53 países. Foi entáo que Sua Santidade
formulou o ponto de vista da Moral católica frente á situado Rh :

«Na sétima questáo perguntais se se pode considerar a situagáo


Rh como motivo de nulidade do matrimonio, quando ela acarreta
a morte dos filhos desde a primeira gravidez. Supondes que os esposos
nao se quiseram comprometer a ter filhos que fóssem vitimas de
morte prematura por causa de tara hereditaria. Mas o simples fato
de que as taras acarretam a morte dos filhos nao prova que nao
tenha havido vontade de contrair o matrimonio. Essa situagáo eviden
temente é trágica, mas o raciocinio estriba-se numa consideracáo
, que nao concluí. 0,-abjeto do_ contrato matrimonial nao é o filho,
e sim q cumprimento do ato matrimonial naturáT'ou,..mais precisa
mente, o direito de~ cffmpnr"e^5e"~aTo: tal direito permanece inde-
pendente do patrimonio hereditario do filho gerado e, do mesmo
modo, da sua capacidade de viver.
No caso de um casal em situacáo Rh perguntais também se é
permitido desaconselhar sempre a procriacáo ou se se deve esperar
o primeiro incidente. Os especialistas da genética e da eugenia
sao mais competentes do que Nos nesse terreno. Trata-se, com
efeito, de urna questáo de fato. que depende de fatóres numerosos,
dos quais sois os juízes competentes. Do ponto de vista moral,
basta aplicar os principios que mais ácima expusemos, com as dlstin-
gSes necessárias».

Os principios a que alude o Santo Padre neste final de discurso,


sao os que recordamos na primeira parte dosta resposta, ás págs. 25-27
déste fascículo: condenam o anticoncepcionismo praticado por métodos
artificiáis, assim como toda especie de aborto direto.

J. A. P. (Tcrcsina) :

5) «Como se podem definir as relacoes vigentes entre a


Arte e a Moral ?
Nao sao tais que pouca coisa da ¡mensa producao dos ar
tistas pode ser aceita pelos cristáos ?»

Por «arte» costuma-se entender em nossos dias a atividade humana


que produza algo de belo nos diversos setores do som. do verso,
do colorido, da pedra. da madeira, etc., dando origem conseqüente-
mente á música, ao canto, á poesía, á pintura, á escultura, á arquite-
tura, á danca, ao cinema, ao teatro... Esta conceituacáo é produto
de longa evolucfio da nocáo de arte. Os antigos gregos. por exemplo,
careciam de conceito correspondente ao moderno: para éles, téchne
(=arte) designava a habilidade conquistada e conscientemente
aplicada por um homem a fim de obter o dominio sobre outros
homens e sobre criaturas inferiores.
Questáo assaz debatida a que estuda a autonomía ou subor-
dinacáo da arte em relacao aos valores moráis ou aos ditames da
consciéncia. humana. Abaixo procuraremos em primeiro lugar formular
o problema com exatidáo; a seguir, analisaremos os principios que
regem a sua solucáo.

— 33 —
1. A posigáo do problema

1. A Moral é a ciencia que dirige a atividade humana


para o seu Fim último, isto é, para Deus e a bem-aventuranga
celeste. Visa, portante, a perfeigáo própria do homem enquanto
homem, isto é, enquanto é criatura inteligente destinada a
fruir de Deus por toda a eternidade. Em conseqüéncia, diz-se
que urna agáo é moralmente boa se é conforme ao verdadeiro
Fim último da vida humana ou se é conforme a certos princi
pios de conduta que ressoam igualmente em todos os filhos
de Adáo, visando levá-los a seu objetivo supremo.
A arte, ao contrario, encaminha a atividade do homem
para um termo que nao é própriamente Deus nem a perfeigáo
suprema do homem, mas é urna obra bela, de valor ora mais,
ora menos limitado. O criterio para se dizar se urna agáo é
«boa» do ponto de vista artístico é a conformidade dessa agáo
com tal fim particular e com as regras a ser observadas para
se atingir tal objetivo (um belo artefato).

Acentuemos bem a diferenca: a Moral visa aperfeicoar o homem


como homem, isto é, no plano da sua dignidade humana característica.
A arte, nao; tende a tornar períeito um objeto posto fora do
homem, sem implicar mudanga ñas disposigfies que o homem nutre
em relacáo ao seu último Fim ou a Deus; a atividade do artífice
enquanto artífice só conhece urna lei: as exigencias e o bem da
obra a ser obtida. Cf. S. Tomaz, Suma Teol. I/II 57, 3 c 4.
Por isto alguém pode ser bom músico ou bom poeta, scm que
concomitan temen te seja homem bom ou perfeito. O bom músico é
homem bom sob um aspecto restrito, isto é, na medida em que
ele tem um sen.so musical o o faz vibrar de acordó com as regras
da música; o bom poeta e homem bom apenas na medida em que
tem senso poético e o utiliza em conformidade com as regras da
poesía. O homem moralmente bom, porém, é bom no seu aspecto
essencial, isto é, enquanto é um ser inteligente destinado a conhecer
a Verdade Suprema e amar o Bem Infinito. Todo homem normal
pode e deve tender a ser moralmente bom, pois todos (por dom
do Criador) possuem um potencial para isto; ao contrario, nem
todo individuo normal (por muito normal que seja, do ponto de
vista da natureza humana) pode pretender ser um bom músico, pois
pois o senso musical é dom restrito e contingente.

2. Tendo em vista estas premissas, os autores se dividem


em duas correntes contrarias no tocante as relagóes entre
Arte e Moral.
1) Há os que afirmam que as leis da Moral regem dire-
tamente as da Arte ; sao

a) os otmetafislcos», os quais atribuem ao belo um valor reli


gioso tal que, para éles. a arte tem necessáriamente a íuncáo de
elevar a Deus, do qual ela se deriva como de seu primeiro principio;

34
b) os «catárticos», islo é, partidarios da kathürsis ou purifica gao,
os quais afirmam que a arte possui um poder purlficador, removendo
as imperíeic5es moráis do artista.

2) Do outro lado, situam-se os que consideram a Arte


como valor autónomo, de sorte que lhe é lícito contradizer as
normas da consciéncia moral; sao

a) os amoralLstas, para os quais a Arte é totalmente indiferente


á Moral;
b) os separatistas, segundo os quais o artista, como artista, é
independente das leis da Moral.

Diante do problema assim exposto, vejamos qual a posigáo


incutida pela reta apreciagáo dos valores em causa.

2. Os principios de solugáo

Procederemos por etapas, enunciando as grandes normas


que elucidam a questáo.

1. Nao há dúvida, o cultivo da Arte nao é, por si, meio


ordenado a um íim ulterior, nao é própriamente instrumento para
se conseguirem objetivos de índole diversa. Nao requer, por conse-
guinte, que o artista, ao representar o belo, tenha em vista outra
finalidade que nao a de exibir um objeto digno da contemplagáo
dos espectadores.

2. Contudo deve-se notar que a atividade artística nao


existe em si mcsma, mas sempre localizada em determinado
sujeito humano (artista ou artífice). Ora tal sujeito em todos
os seus atos age, ao menos virtualmente (indiretamente), em
demanda do seu Fim supremo ; nenhum ato humano concreto,
ensina a Ética, é moralmente neutro ou indiferente, mas ou
é conforme ao objetivo supremo da natureza humana (moral-
mente bom) ou contrario a éste (moralmente mau). Disto
se segué que o cultivo da arte, na realidade concreta, é sempre
subordinado a consecucáo do último Fim do agente. Toda a
atividade artística fíca, por conseguinte, sujeita a urna quali-
ficacáo ética : será moralmente boa se fór compativel com a
obtengáo do genuino Fim supremo da natureza humana (Fim
supremo que é Deus) ; será, porém, moralmente má, se estiver
em oposigáo a Lei de Deus. O artista que cultivasse a Arte
como um bem absoluto, independente de qualquer outro, es
taría adorando um ídolo ou muitos ídolos...
A mesma doutrina se poderia exprimir também nos se-
guintes termos:
por seu objeto, a arte nao está subordinada a alguma fina
lidade ulterior, isto é, a obra de arte, como dissemos, por si

— 35 —
mesma nao é etapa nem instrumento para a consecucáo de
algum bem criado ;

por seu sujeito, porém, a Arte está subordinada á obten-


gáo do Bem supremo désse sujeito ; éste nunca age senáo em
demanda do Fim último. Por isto nao é licito á Arte, em hipó-
tese alguma, derrogar as Ieis da moralidade.

3. A subordinacao que assim se impoe á atividade artística,


nao é constrangedora para o cristáo. Éste ama sobre todas as coisas
o Bem supremo, Deus, ao qual procura aderir cada vez mais conse-
qüentemente; donde se segué que qualquer valor criado ou qualquer
obra de arte que íira a Deus, também fere o cristño; deixa de lhe
proporcionar o deleite dccorrente da harmonía ou da ordem, perdendo
assim o seu titulo de beleza ou de obra de arte (pois o belo tem,
entre suas notas próprias, a de agradar e deleitar). Para quem vive
conforme as normas da Ética, estas deixam de ser Ireio odioso;
emancipam das paixSes o próprio «eu», permitindo que éste realize
melhor a sua personalidade e aíirme mais desimpedidamente a sua
liberdade.

4. Mais precisamente, pode-se dizer que o problema das


relacóes entre a Arte e a Moral se póe nos seguintes termos :
a Arte, embora se destine a cultivar o belo, nao pode deixar
de representar a realidade humana ; ora esta é um misto de
bem e mal moráis; disto parece seguir-se que a Arte, para nao
ofender a Moral, há de se contentar com representagóes par-
ciais e «mutiladas» da realidade, desfigurando a face dos fatos
e das personalidades que em verdade ocorrem.

O problema assim concebido se resolve sem grande difi-


culdade. A Moral crista nao manda que, de maneira sistemá
tica e absoluta, o homem feche os olhos ao mal. Nao; há casos
em que ele tem que considerar o mal como existe e descrevé-lo;
dado, porém, que o faca, o cristáo deverá denunciar o mal
como mal, sem o justificar nem exaltar, sem sugerir a mínima
complacencia néle ; exprimir o mal nao é um mal, desde que
isto se faga com finalidade construtiva, ou a fim de promover
o bem ; calar o mal só é dever imperioso, dado que exprimí-lo
equivalha a exaltá-lo. Em outros termos ainda, deve-se dizer
que a Moral nao proibe ao artista descrever a realidade hu
mana tal como cía é, mas veda expressá-Ia tal como cía nao é,
ou seja, como grandeza (nos casos em que ela é ruina), como
lícita e louvável (nos casos em que é ilícita e condenável),
como justa (nos casos em que ela é injusta). Tenham-se em
vista as «Confissóes» de S. Agostinho e o «Decamerone» de
Boccaccio; sao obras que contém a descrigáo do pecado ; já,
porém, que tomam atitudes diversas perante o mal, merecem

— 36 —
ser diversamente apreciadas : ñas «Confissóes» o vicio é apre-
sentado como objeto de arrependimento e repudio por parte
do autor (o que vem a ser construtivo), ao passo que no
«Decamerone» se percebe complacencia no pecado e glorifi-
cacáo déste (atitudes reprováveis). Em geral, observa-se que
descrever o mal sem insinuar algum juízo sobre o mesmo equi
vale práticamente a incutí-lo e recomendá-lo (tal é o poden
de sedugáo do pecado) ; por isto o artista nao se pode eximir
de censura da Moral quando ele apenas descreve os homens
e os acontecimentos lascivos como éles se apresentam na sua
realidade cotidiana. Nao basta a descrigáo honesta ou «ínte
gra» das realidades visíveis, para que o artista seja isento
de culpa ; desde que se trate de objetos moralmente maus,
estes tém que ser (elegantemente, se quisermos) denunciados
como tais, pois difícilmente se pode crer que, para o público,
a singela descricáo nao redunde em detrimento de consciencia.

5. Em vista do que acaba de ser ponderado, entende-se que


a autoridade eclesiástica se atribua o direito e o dever de exercer
oportuna censura sobre as obras de arte (sejam romances, sejam
filmes cinematográficos, sejam pecas de teatro, sejam representagóes
plásticas...). A Igreja tem que velar pela preservacáo moral de
seus filhos, principalmente dos mais simples e mais sujeitos ás
insinuacoes capciosas dos homens de cultura.

Com outras palavras, a Sta. Igreja sabe que é impossível ao


homem viver sem o gozo de algum prazer: «Ninguém pode viver sem
deleite, ensina a sabcdoria perene por meio de S. Tomaz e Aristó
teles. Por isto, qucm nao se pode deleitar com as alegrías e.spiriluais,
entrega-se ás carnais» tS. Tomaz, S. Teol. II/II 35, 4 ad 2; cf.
Aristóteles. Ethica Nicom. VIII, 5 e 6; X 6).

Consciente disto, a Igreja só pode estimar o cultivo nobre e


digno da Arte, fazendo tudo para que ela permanega sempre no
plano dos valores superiores ou típicamente humanos.

Está claro que o controle exercido pela Espdsa de Cristo sobre


a Arte e os artistas nao há de consistir apenas em restrigóes e
proibigóes. Estas tém, sim, sua razáo de ser; mas, ao lado de tais
medidas negativas, a Igreja procura dar aos seus filhos um antidoto
positivo, que vem a ser ainda mais importante e eficaz, a saber :
sólido alimento religioso e cultural, doutrina e sabedoria tais que
permitam aos fiéis resistir de maneira vital, isto é, espontánea e
conscientemente, ás insinuagfies mórbidas da arte pervertida. Educando
os artistas e o público, moralizando os homens, a Igreja moraliza
também a Arte; querer isto sem realizar aquilo seria aspirar ao
impossivel.

«Essa grande Contemplativa (a Igreja)... possui o discerni-


mento profundo de tudo que é necessário ao coracáo humano; el?
conhece o valor único da arte. É por isto que ela tanto a protegeu
no mundo... Ela pede á arte, componha os perfumes de alto valor
que Ela derrama sobre a cabeca e os pés do Mestre» (J. Maritain,
Art et Scolastique. París 1935, 134).

— 37 —
3. Conclusáo

As consideracóes ácima incutem com evidencia que o ar


tista, longe de ser um boémio «honesto» ou «legalizado» por
profissáo, é, ao contrario, um homem profundamente discipli
nado ou ascético. A observancia das regras da arte muito
o deve aproximar da observancia das regras da virtude ou
da moralidade. Sim; o artista, para poder cultivar a arte em
sua pureza, tem que se precaver contra os atrativos da bana-
lidade, do comodismo ou do mercantilismo, do sucesso e da
vá gloria, que fácilmente se insinuam na sua carreira; tal
acautelamento tende a fazer do artista um homem humilde
e magnánimo, prudente, temperante e puro. Ora estes sao
predicados que por excelencia competem aos santos. Donde
se vé que o artista coerente com a sua profissáo deve encon
trar na Arte forte estimulo para cultivar os valores superiores
da Moral e da santidade ; sómente o artista de categoría infe
rior nao se deixa assim afetar pela sua profissáo.
Dado que o artista eleve os valores e o ideal da Arte até
o valor e o ideal supremo, Deus, ele faz a obra mais harmo-
niosa possível, atingindo a Arte por excelencia que é a Beleza
e a Santidade de Deus.

«A Arte cnsina os homens a deleitar-se segundo o espirito, e,


já que ela é algo de sensivel e adaptado a natureza humana, ela
os pode ótimamente levar a um valor mais nobre do que a própria
Arte. A Arte descmpenha assim na vida natural a mesma funcüo,
dir-se-ia, que as 'gracas sensiveis' na vida sobrenatural; e de longe,
sem que se tenha consciéncia disto, ela prepara o género humano
para a contemplacáo (contemplacáo característica dos santos), cujo
deleite espiritual excede todo deleite e que parece ser o objetivo de
todas as atividades humanas» (J. Maritain, ob. cit. 132).

V. HISTORIA DO CRISTIANISMO

R. N. (Rio de Janeiro) :

6) «Entre os cristaos anglicanos ter-se-á conservado a


sucessáo apostólica, de modo a possuirem bispos e sacerdotes
validamente ordenados ?»

A questSo é assaz importante na hora presente, em que tanto


se trabalha pela reuniáo dos cristaos entre si. Os anglicanos, pela
sua estima ao episcopado ean sacerdocio, distinguem-se dos demais
irmáos que se separaram da Igreja no séc. XVI; afirmara ter
conservado ininterruptamente até hoje a sua serie de bispos legítimos,
procedentes dos Apostólos e do próprio Cristo; neste ponto assemelhar-
-se-iam aos cristaos orientáis cismáticos. Tal tese nunca loi reconhe-
cida pela Santa Igreja. Contudo hoje em dia pergunta-se se a Sé

— 38 —
de Roma nao poderia tomar atitude diferente, facilitando assim a
volta dos irmáos da Inglaterra ao único Rebanho sob um só Pastor.
Já que a solucáo do problema depende de fatos históricos, e nao
prdpriamente de boa ou má vontade dos católicos, vamos sumaria
mente analisar tais fatos e averiguar como deram fundamento á
posicáo negativa dos teólogos.

1. Urna serie de acontecimentos a ponderar

Sabe-se que o rei Henrique VIII da Inglaterra, diante da recusa


do Papa Clemente VII, alheio a reconhecer a pretensa nulidade de
casamento do monarca com Catarina de Aragáo, resolveu procla-
mar-se Chefe Supremo da Igreja na Inglaterra, ato que o Parlamento
confirmou em 1534. Separando-se da Igreja universal, o soberano
nao quis modificar o credo e o culto entáo vigentes no país.
O seu filho Eduardo VI (1547-1553), porém, sucedendo-lhe com
nove anos de idade, possibilitou a Eduardo Seymour, duque de
Somerset. e a Cranmer, arcebispo de Cantuária, a introdugáo das
inovagóes protestantes na Inglaterra: livros de doutrina e de oracao
portadores das idéias luteranas e calvinistas íoram sendo propagados
no reino. Dentre estes interessa destacar um «Ordinal» ou um novo
Ritual de ordenacóes sacerdotais, que, por ordem do govérno civil,
entrou em vigor em 1550 e íoi em 1552 inserido, com algumas
mudancas, no segundo «Prayer Book» (grande coletánea de preces).
Durante o subseqüente reinado de Maria Tudor (1553-58), verifi-
cou-se a reconciliacáo da Inglaterra com a Sé de Roma e a volta aos
livros litúrgicos antigos.

A restauragáo católica, porém, foi efémera, pois a rainha


Elisabete (1558-1605), subindo ao poder, implantou de maneira
definitiva doutrinas e práticas protestantes na Inglaterra. Aos
28 de abril de 1559 o chamado «Ato de Uniformidade» impñs
a todo o reino o «Prayer Book» e o «Ordinal» de Eduardo VI;
no dia seguinte, 29 de abril, o «Ato de Supremacía» conferia
á rainha o título de «Moderadora Suprema da Igreja da In
glaterra», exigindo de todos os cidadáos juramento de fideli-
dade á autoridade religiosa de Elisabete. Os bispos se recusa-
ram a prestar tal homenagem, exceto um só, Kitchen, bispo
de Llandaff, o qual, tendo dado resposta evasiva, conseguiu
conservar a sua sé, mas de entáo por diante se absteve de
qualquer fungáo episcopal; os demais pastores diocesanos fo-
ram depostos e encarcerados. Assim é que no inicio de 1559
nao restava na Igreja de Elisabete mais nenhum b'spo em
atividade ; era absolutamente necessário proceder á criacáo
de nova hierarquia.
Em vista disto, foi eleito arcebispo de Cantuária um antigo
capeláo da rainha, Mateus Parker, o qual recebeu a sagragáo
episcopal aos 17 de dezembro de 1559, as 5 hs. da manhá, na
cápela de Lambeth, segundo o «Ordinal» de Eduardo VI. O
sagrante foi um bispo deposto que se quis prestar a tal oficio:

— 39 —
William Barlow, ex-titxilar da diocese de Bath, sagrado ainda
sob Henrique VIII; assistiam-lhe os bispos John Scory e
Miles Coverdale, depostos das dioceses respectivamente de
Chichester e Exeter (ambos sagrados segundo o ritual de
Eduardo VI), e John Hodgkin, sufragáneo de Bedford, orde
nado segundo o antigo rito, ainda sob Henrique VIH.

A sagracüo de Mateus Parker licou muito tempo envolvida em


silencio, nao se sabe por que motivo. Isto deu ocasiáo a que alguns
autores nega&sem a realidade histórica da mesma; outros forjaram
a lenda do «Nag's Head» (cabera de cávalo), conforme a qual, no
albergue de Cheapside dito «da Cabeca de Cávalo», Scory teria «orde
nado» Parker, impondo-lhe urna Biblia sdbre a cabeca e dizendo-lhe:
«Recebe o poder de pregar a palavra de Deus em sua pureza»; está
claro que tal proceder jamáis poderia ser tido como sagraeáo episcopal.
Hoje em día, porém, nao há historiador que negué a realidade da
cerimónia de Lambeth.

De 21 de Dezembro de 1559 a 1' de setembro de 1560, o


novo arcebispo de Cantuária, seguindo o rito de Eduardo VI,
sagrou treze bispos, os quais passaram a integrar a hierarquia
da Inglaterra. Esta, como se vé, foi reconstituida, dependente
toda de Mateus Parker. O problema, portanto, consiste agora
em saber se Parker era realmente bispo, capaz de transmitir
o caráter episcopal á hierarquia anglicana.

Nos séc. XVII e XVIII os teólogos católicos (aos quais se associa-


vam no caso os orientáis cismáticos) se mostraram contrarios a tal
hipótese; era, por conseguinte, praxe reordenar os ministros anglica-
nos que se convertessem ao Catolicismo. No séc. XIX, em virtude
da crescente aproximacSo entre anglicanos e católicos, a questáo
foi estudada de maneira sistemática, ocasionando finalmente urna
declaracáo papal sobre o assunto, isto é,

2. A bula «Apostólica* curae» de Leao XIII (13/K/1896)

No séc. XIX, o chamado «Movimento de Oxford», favorecendo


entre os anglicanos o estudo da Tradicao crista, provocou numerosas
conversóes á Santa Igreja. O resultado da evolucáo do século foram
as conversas entaboladás nos anos de 1894/96 no intuito de unir
definitivamente católicos e anglicanos; os pioneiros da aproximacáo
eram, por parte daqueles, o Pe. F. Portal, lazarista, e, por parte
déstes, Lord Halifax, os quais tomaram como primeiro ponto de seus
estuaos justamente a questao das ordens sacras anglicanas. Percebia-se
que á volta dos irmüos anglicanos a Roma seria muito facilitada
se a Santa Sé um dia julgasse possivel reconhecer a validade das
ordenacoes anglicanas.
Após a publicacáo de livros e artigos varios sdbre o assunto o
Papa Leño XIII resolveu mandar estudar exaustivamente a questáo; no
inicio de 1896, portanto, nomeou para isto urna cotnlssao internacional
de teólogos, recrutada dentre partidarios (tais eram Monsenhor
Gasparri, Mons. Duchesne e o Pe. Augustinis) e adversarios (assim

— 40 —
o Cardeal Gasquet, o Cónego Moisés e o franciscano Flemming) das
ordenares anglicanas. Os arquivos do Vaticano íoram postos á
disposicáo de tais estudiosos.
A comissao se reuniu em doze sessóes de 24 de margo a
7 de maio de 1896; foi muito focalizado o aspecto histórico da
questáo, com a colaboracáo dos anglicanos Lacey e Puller, que,
especialmente convidados para residirem em Roma, apresentaram
toda a documentacáo que lhes parecia oportuna a um estudo objetivo.
Após analisar todas as pecas do arquivo «pro» e «contra», e após
comparar entre si as fórmulas de ordenacáo dos varios grupos
cristáos cismáticos, a comissao aos 8 de junho de 1896 apresentou
suas conclusóes a urna junta de Cardeais; estes, após um mes de
ponderacáo, confirmaram o resultado do minucioso inquérito, decla
rando que a análise atenta dos documentos corroborara a senteruja
já práticamente adotada pela Igreja: as ordenacóes anglicanas deviam
ser tidas realmente como nulas.
Diz-se que Leáo XIII esperava ardentemente poder dar aos
anglicanos urna resposta agradável, considerando suas ordenacdes ao
menos como duvidosas, o que obrigaria os convertidos a urna reor-
denacSo condicional apenas; esperava, se isto nao Ihe fósse possivel,
ao menos abster-se de algum pronunciamento sobre o assunto, a fim
de nao melindrar os ánimos. Verificou-se, porém, que os estudos
previos haviam chamado a atencao do público a tal ponto que a
observancia de silencio por parte do Papa seria demasiado ambigua,
capaz mesmo de induzir em erro. Diante disto, Leño XIII ainda
dedicou tres meses á reflexáo, após os quais publicou, aos 13 de
setembro de 1896, a bula «Apostolicae curae».

Qual o conteúdo désse documento ?


No preámbulo, o Pontífice lembrava a simpatía que sempre
devotara aos movimentos de uniáo entre os cristáos; recor-
dava os esforcos que desempenhara nesse sentido, mediante a
carta «aos Ingleses que procuram o Reino de Deus na unidade
da fé» (15 de abril de 1895) assim como mediante a epístola
dirigida ao mundo inteiro sobre as condicóes de unidade da
Igreja. Declarava, a seguir, haver sido movido pelas mais be
névolas disposigoes no estudo do assunto que Sua Santidade
passava a abordar.
O Santo Padre expunha entáo as tres razóes pelas quais
se via obrigado a declarar nulas as ordenagóes anglicanas :
1) a praxe da Igreja: desde o séc. XVI a Santa Sé sem
pre se recusara a reconhecer a validade do sacerdocio angli-
cano ; ora «consuetudo óptima legum interpres — o cpstume
é o melhor intérprete das leis».
2) A insuficiencia do rito : nos sacramentos os elemen
tos essenciais sao os sinais sensíveis chamados em linguagem
teológica «materia» e «forma». A materia é algo assaz inde
terminado, cujo sentido em cada sacramento é explicitado
pela forma ou pelas palavras que acompanham o uso da res
pectiva materia. Ora na Ordem a materia é a imposigáo das

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tnáos, sinal que de maneira geral significa a comunicagáo de
um dom ou ds urna graga ; o «Ordinal» de Eduardo VI (se
gundo o qual Mateus Parker foi sagrado) prescrevia como
forma concomitante as palavras : «Accipe Spiritum Sanctum
— Recebe o Espirito Santo». Tal fórmula é, por sua vez, assaz
indeterminada, ficando longe de indicar qualquer atividade
específicamente sacerdotal; e isto, porque os autores do
«Ordinal» trataram propositadamente de remover do antigo
Ritual todas as palavras que indicavam os poderes sacerdotais
e, em particular, o de consagrar a Eucaristía e oferecer o
S. Sacrificio da Missa (poder sacerdotal por excelencia). Tal
cancelamento de vocábulos nao era senáo a expressáo da tese
errónea protestante segundo a qual a Eucaristía nao é ge-
nu'na ceia sacrifical.

Verdade é que os anglicanos em 1662 acrescentaram aos vocábulos


«Accipe Spiritum Sarictum» o complemento «ad officium et opus
presbyteri» ou «episcopi» (isto é, «para o encargo e a atividade de
presbítero oO de bispo»). Éste acréscimo, porém, se fez tarde demais,
quando haviam sido insuficientes ou inválidas as ordenag5es realizadas
durante um século; além do que, as palavras complementares ainda
nao especificavam os poderes transmitidos pela imposigáo das maos.
Donde se depreende, concluía o Pontífice Leáo XIII, a deficiencia
do rito ao qual Mateus Parker e em geral a hierarquia inglesa
deviam suas «ordenac.5es>; estas só podiam ser nulas.

3) A falta de inteiujáo devida: sabe-se que, para a vali-


dade de qualquer sacramento, se requerí da parte do ministro,
a intengáo de fazer aquilo que faz a Igreja ou aquilo que faz
Cristo por meio da sua Igreja. Ora o «Ordinal» de Eduardo VI
se deve a retoques infligidos ao antigo Ritual justamente para
exprimir um designio diferente do da Igreja, ou seja, para
exprimir a intengáo de ordenar ministros que nao consagrem
a Eucaristía nem oferegam o Sacrificio da Missa. Disto se
segué que os anglicanos conceberam a intencáo de fazer coisa
diversa da que faz a Igreja ; por conseguinte, nao administra-
ram o sacramento da Ordem.

Até Leáo XIII os teólogos perguntavam com certa insistencia


se Barlovv, o bispo sagrante de Mateus Parker (como ácima foi dito),
possuia de fato o caráter episcopal, de modo a poder transmitir a
ordem sacra (caso preenchesse as exigencias de rito e intencáo).
A razüo de duvidar era o silencio dos documentos da historia a
respeito da sagracáo de Barlow. Leao XIII, porém, já nao deu
importancia a tal questáo, visto que o argumento do silencio era
insuficiente para se concluir pela negativa. Os teólogos contempo
ráneos nao tém dificuldade em admitir naja sido Barlow auténtico
bispo; a validade das ordenacoes que conferiu, depende, antes, do
rito que ele aplicou e da intencáo que ele concebeu.

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Explanadas as razóes ácima, Leáo XIII declarava final
mente «ordinationes ritu anglicano actas, irritas prorsus fuisse
et esse omninoque millas — ... que as ordenagóes realizadas
segundo o rito anglicano foram e sao de todo inválidas e, sem
dúvida alguma, nulas».
A bula se encerrava com urna exortagáo paterna do Pon
tífice aos cristáos anglicanos, principalmente aos membros da
hierarquia, no sentido de voltarem ao aprisco do Bom Pastor.

Tal documentacáo era de enorme importancia para o que dizia


respeito á unidade de católicos e anglicanos. Punha termo a dúvidas
e também a certas esperances em torno do ponto mais nevrálgico
de toda a questao. Aos 19 de fevereiro de 1897 os arcebispos anglica
nos enviaram a todos os bispos católicos urna resposta á bula de
Leao XIII, tentando dissolver os tres argumentos explanados pelo
Pontifice; teve inicio assim urna certa bibliografía de opúsculos
e artigos atinentes ao caso, bibliografía da qual um dos temas
principáis hoje em dia é a questáo: até que ponto deve a declaracáo
de Leáo XIII ser dita irrcformável ? Donde o novo parágrafo déste
nosso estudo. •

3. Declaracáo infalível ou nao ?

Como se compreende, a bula «Apostolicae curae» deu origem


entre anglicanos e católicas a pequeño debate, no decorrer do qual
aqueles e alguns déstes emitiram a opiniüo de que a decisáo de
Leáo XIII nao era definitiva. Fol o que suscitou urna carta do
mesmo Pontifice ao Cardeal Richard no d:a 5 de novembro de
1896, carta em que S. Santidade afirmava a intencao de dirimir
a questáo: «consilium fuit absolute iudicarc penitusque dirimere.
Idque sane perfecimus eo argumentorum pondere eaque formularum
tum perspicuitate tum auctoritate ut sententiam Nostram... catho-
lici... omnes omnino deberent obsequio amplecti, tamquam perpetuo
firmam, ratam, irrevocabilem».
Em vista déste dizeres, muitos autores católicos julgaram que
a bula «Apostolicae curae» tinha Índole de definigáo infalível, pois
parecía animada pela intengáo de apontar um fato dogmático, isto
é, um fato cuja realidade é tal que afeta o dogma; sem dúvida,
a afirmacáo de nulidade das ordenagóes anglicanas se prende ao
conceito dogmático de sacerdocio e de sacrificio da Missa. conceito
que seria solapado, caso se admitisse a validade de tais ordena-
cóes. — Tais fatos dogmáticos, ensinam os teólogos, podem ser
objeto de definiedes infallveis.
Eis, porém, que, reconsiderando o assunto, alguns autores obser-
vam o seguinte: Leáo XIII afirmou explícitamente no fim da bula
«Apostolicae curae» que tinha toda a questáo na conta de um «caput
disciplinae», um ponto de disciplina («ídem caput disciplinae, etsi
iure iam definitum...»); por conseguinte, sua decisáo nao terá índole
dogmática, mas disciplinar; ora as medidas disciplinares dos Papas
e das autoridades da Igreja em geral costumam visar determinadas
circunstancias transitorias, podendo ser revogadas. Estaríamos assim
diante de urna nova interpretacáo do documento pontificio.
Talvez, porém, se possa dizer que esta outra sentenca nao
corresponde a intencáo do Pontifice, pois o texto oficial da bula

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«Apostólicas curae», publicado no tomo 16 da colecüo «Leonis XIII
Pontificis Maximi Acta» (Roma 1897), oliminou o vocábulo «disci-
plinae» na expressáo «caput disciplinae». O significado doutrinário
déste cancelamento tem sido objeto d.e estudos especiáis por parte
dos teólogos católicos; cf. G. D. Smith, The Church and her Sacra-
ments, em «The Clergy Review» 33 (1957) 228-230. Como quer que
seja, enquanto ainda pairam dúvidas sobre o assunto, parece nao ser
¡licito admitir a revogabilidade da declaracüo de Lea o XIII (a qual
teria em vista apenas a disciplina a ser adotada na Igreja de acordó
com as circunstancias de urna época); entre os partidarios recentes
desta tese, pode-se citar o Pe. L. Renwart S. J. no artigo «Ordinations
anglicanes et intention du ministre», em «Nouvclle Revue Théologique»
79 (1957) 1034. Dever-se-á apenas notar que a sentenca da revogabi
lidade condiz muito pouco com a mente dos documentos focalizados.
Além do mais, os argumentos aduzidos por Leáo XIII na bula
«Apostolicae curae» ,sáo suficientemente claros e persuasivos para
gerar, independentemente de alguma definicáo papal infalivel, a
conviecáo definitiva de que as ordenagóes anglicanas nao íoram
válidas.
Somonte a acáo da Santa Igreja Romana através dos tempos
próximos poderá projetar luz dirimente sobre os argumentos e as
observagóes que hoje em dia se movem em torno da famosa questáo
das ordenagóes anglicanas.
Apraz por fim notar que, vista á luz da experiencia recente,
a questáo da revogabilidade da decisáo de Leáo XIII nao é de
importancia capital para a reuniáo de anglicanos e católicos. Eis,
de fato, observacoes que já em 1912 (quando foram feitas) tinham
seu propósito e que em nossos días ainda mais adequadas parecem :
«A decisáo de Leño XIII contristou notftvel número de anglicanos
dentre os melhores; muitos oulros, porém, e dentre éstos nume
rosos bispos. reconheceram que Roma era fiel a si mesma e que
a lealdade n§o lhe permitía agir de maneira diversa. De maio de
1895 a setembro tic 1806. contou-se um total de 10 a 11.00 convers6es
de anglicanos; éste fato prova que a bula «Apostolicae curae* de
modo nenhum afastou da Igreja Romana o povo inglés, como
alguns quiseram dar a entender. Deve-se observar que os rnelhores
historiadores da Reforma interpretam como Roma os textos litúrgicos
anglicanos o os documentos dos teólogos fio Eduardo VI c Elteanete»
(J. de La Serviére, La controverse .sur la valldité des «ordinations
anglicanes», em «Études» t. CXXXII 665).
D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.

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