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A CASA DO CRIME

TRISTAN BERNARD

(1866-1947 - França)

Um tal Samuel, que vivia de rendas no quartier de


Saint-Simeon, foi encontrado por marinheiros à beira do
canal. Vestia um saco e estava cortado em cinco
pedaços. Encontraram sua cabeça, seu tronco, sua
perna direita, sua perna esquerda e seu braço esquer-
do. Só não encontraram seu braço direito. Circunstância
que se explica pelo fato de que ele havia perdido esse
braço com a idade de cinco anos. Samuel morava numa
casa de veraneio, número 29 do Faubourg Cugnat. O
procurador da República achou conveniente dirigir-se
para esse endereço em companhia de algumas pessoas,
magistrados e jornalistas, a fim de dar início às
investigações. Era um velho procurador de faro sempre
reputado como infalível. Chegaram todos diante de uma
cerca de grades bem fechada. O chaveiro da expedição
retirou da valise seus instrumentos e forçou a
fechadura.
- Observem - disse o procurador - que o assassino
tinha uma chave da casa, pois o gradeado estava
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trancado. Trata-se, portanto, de alguém que gozava a


intimidade do morador.
- Mas ele não poderia ter entrado por outro lugar? -
arriscou alguém.
- E o que diz o senhor destas pegadas? - respondeu
o velho magistrado, friamente.
Olhamos todos para o chão. Havia uma ligeira
marca na areia da alameda, bem ao lado do portão. Por
mais leve que fosse, não escapara ao olhar arguto do
procurador.
- São marcas de passos leves e que tentaram
desmanchar - disse ele.
Eis-nos perto da casa, ao fim de uma alameda sob a
sombra das árvores. Tudo estava calmo, após a
tragédia. As cortinas tinham sido hermeticamente
fechadas. O serralheiro forçou uma segunda porta,
numa espécie de plataforma. Um a um, entramos na
antecâmera escura, que se foi iluminando pouco a
pouco. A emoção nos dera um nó na garganta. Só o
velho procurador permanecia impávido, enquanto o
chaveiro forçava uma terceira porta. As cadeiras
estavam cobertas com panos. Com um dedo certeiro, o
velho cão de caça indicou um armário, onde devia estar
a prataria. O armário estava vazio. O roubo, portanto,
fora o móvel do crime. O chão da cozinha, onde sem
dúvida acontecera o esquartejamento, devia ter sido
lavado. Depois disso, o assassino, juntando uma parte
da poeira existente nos móveis, a distribuíra em
camadas iguais sobre o piso dos azulejos, tão bem
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distribuídas que nada revelavam da lavagem e todos os


olhos se angariaram, a menos, é claro, os olhos
experientes e alertas do velho juiz. E eis que, embaixo
da escada de pedra, o dedo do procurador, apontando
para o chão, dava a impressão de ter feito surgir um
botão de calça. Um providencial botão de calça,
marcado com o nome do alfaiate e que, indefectível-
mente, desde a morte de Abel, cada assassino esquece
no local do crime: "Aldibert, alfaiate".
- Quem conhece esse alfaiate? O guarda municipal
do quarteirão deve conhecê-lo. Onde está o guarda do
quarteirão?
Justamente naquele momento, chegava o guarda,
resfolegante:
- Senhor procurador! Não é no 27 Bis, é no 29 que
morava o tal de Samuel. Faz quase uma hora que
estamos lá em cima à sua espera ...

Tradução de Flávio Moreira da Costa

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