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1. Introdução
Este artigo introduz algumas noções sobre este tema jurídico atual, o Direito Urbanístico,
objetivando sensibilizar os leitores para a importância do seu estudo, sobretudo, neste momento, em
que normatizações têm sido editadas pelo Poder Público para ordenar as nossas cidades.
Preambularmente, necessário se faz um breve escorço introdutório. As cidades modernas,
como hoje conhecemos, passaram por intensas transformações em decorrência do fenômeno da
urbanização, que, ao preço do progresso, trouxeram problemas sociais e estruturais muito grandes.
No Brasil, durante os últimos 50 anos, o crescimento urbano transformou e inverteu a distribuição
da população no espaço geográfico. Em 1945, a população urbana representava 25% da população
total de 45 milhões. No início de 2000, a proporção de urbanização chegou a 82% do total de 169
milhões.1
Essas recentes transformações das cidades experimentadas pela sociedade brasileira
destacaram as tensões sociais ocasionadas pela flagrante desigualdade social, como o apartheid
social, o desemprego, a falta de infra-estrutura adequada de moradia, saneamento básico e
transporte e o afastamento da população dos direitos sociais como educação, saúde e segurança.
As cidades, como lugar privilegiado destes e outros conflitos e contradições, são atualmente
objetos de intensas discussões e iniciativas em todos os níveis da sociedade civil e do Estado. O
Município é por excelência, o locus de solução dos problemas urbanos2 e como era de se esperar,
nas Casas Legislativas Municipais, ou a partir das esferas executivas, têm sido feitas várias
propostas que atingem, em cheio, a vida das cidades.
Essas propostas jurídicas buscam, na maioria das vezes, transformar o meio urbano para
melhorar os aparelhos estruturais (construções, obras), sem lidar diretamente com a solução dos
problemas de desigualdade social. Isso ocorre porque tal tema em discussão é muito novo no ramo
jurídico e só tem tido relevância junto a áreas ligadas à Geografia e Arquitetura e Urbanismo,
estando ainda muito incipiente dentro da pesquisa do Direito e carente de aplicabilidade dos seus
princípios para o saneamento das deficiências produzidas pela inércia dos poderes públicos.
No ordenamento jurídico brasileiro, apesar de, há tempos, existirem normas de regulação da
propriedade, do uso e ocupação do solo, do sistema viário e outros, somente com o processo de
democratização do país, que alavancou o surgimento de movimentos sociais em defesa da Reforma
Urbana, é que o Direito Urbanístico ganhou importância suficiente para fazer parte da seara política.
Na Assembléia Nacional Constituinte, com a apresentação da Emenda Popular da Reforma
Urbana e a pressão dos movimentos populares, principalmente aqueles ligados ao direito à moradia,
foi possível destacar um capítulo do nosso ordenamento maior para a Política Urbana.
1
RATTNER, Henrique. Prefácio à obra ‘A duração das cidades’, p. 9.
2
INSTITUTO PÓLIS e outros. Estatuto da Cidade – Guia (...), p. 16.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
O avanço obtido foi grande, entretanto, a quase totalidade dos instrumentos urbanísticos
previstos na Constituição dependiam do estabelecimento de uma norma geral por lei específica –
Lei Federal de Desenvolvimento Urbano – que veio a ser aprovada e sancionada quase treze anos
depois da CF/88, a Lei 10.257 de 10.07.2001, conhecida como Estatuto da Cidade.
A nova lei urbanística, originou-se de um projeto de lei (n.º 5.788/90) apresentado pelo ex-
Senador Pompeu de Souza. No mesmo período tramitaram vários outros projetos com o mesmo
intuito de regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, porém, o PL 5.788/90,
tornou-se referência por ter sido aprovado no Senado Federal em 1990. Por mais de dez anos, o
Estatuto da Cidade tramitou na Câmara dos Deputados, tendo recebido inúmeras emendas, muitas
delas com a participação de entidades civis organizadas que atuam no ramo urbanístico e sofrendo
várias alterações que originassem o texto final aprovado recentemente3.
Com a vigência do Estatuto da Cidade, aguarda-se com grande expectativa a implementação
de um direito à cidade para garantir um desenvolvimento urbano que possa reduzir as desigualdades
sociais e promover a justiça social e a melhoria da qualidade de vida urbana. É verdade que, se a
população não tem acesso à moradia, transporte público, saneamento, cultura, lazer, segurança,
educação, saúde, é impossível postular a defesa de que essa cidade esteja atendendo à sua missão
social, preconizada no ordenamento jurídico vigente.4 E é justamente essa idéia que se pretende
instigar nos leitores com esse artigo.
2. Cidade e Município
Antes de qualquer estudo sobre o urbanismo, é essencial definir o seu objeto. Daí a
necessidade de apresentar a cidade, em seus conceitos e abrangência, para, depois aprofundar o
debate sobre as questões relativas aos princípios do Direito Urbanístico.
Urbanismo vem do latim urbs que significa cidade, daí os conceitos de urbanismo e de
cidade estarem estreitamente ligados. Segundo De Plácido e Silva, em Vocabulário Jurídico, cidade
“vem do civitas latino, com significado muito mais amplo do que aquele em que é tido pela técnica-
administrativa. Nesta, com melhor razão, adotou-se o sentido de urbs, também como tradução de
cidade”.5
Apesar das primeiras cidades terem se desenvolvido por volta do ano 3500 a.C., na antiga
Mesopotâmia, somente na primeira metade do século XIX, em decorrência da Revolução Industrial,
é que apareceu o fenômeno da urbanização, característico das cidades como conhecemos.
As cidades modernas caracterizam-se por agregarem atividades comerciais e industriais,
estabelecendo uma diferenciação com o espaço rural, onde a atividade predominante é a agrícola.
José Afonso da Silva assevera que nas cidades devem estar presentes quatro requisitos: “1-
densidade demográfica específica; 2- profissões urbanas como comércio e manufaturas, com
suficiente diversificação; 3- economia urbana permanente, com relações especiais com o meio rural;
4- existência de camada urbana com produção, consumo e direitos próprios”.6
Raquel Rolnik buscou expressar a cidade como a realidade de vários espaços, percebendo-a,
ao mesmo tempo, como cidade-imã, que atrai as pessoas com a oferta de trabalho e moradia; como
cidade-escrita que traduz símbolos e formas em estruturas arquitetônicas (construções); cidade
como ‘civitas’ ou cidade-política, porque da vida urbana emerge necessariamente uma vida pública
coletiva, da qual decorre a organização política-administrativa (poder) e; como cidade-mercado,
3
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 171/172.
4
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 61.
5
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, p. 169.
6
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 19.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
porque esta surge, historicamente, do excedente de produção que deve ser trocado, tornando-a
centro de produção e consumo.7
Relevante ainda, principalmente para o direito, distinguir os termos Cidade e Município. “A
cidade compreende o que, vulgarmente, se diz de perímetro urbano, não se estendendo, pois, a seus
arredores rurais e términos, melhormente compreendidos na jurisdição municipal, não citadina. Daí
se infere a distinção da cidade e do município. Onde termina a zona urbana termina a cidade. O
Município é o todo que compreende a cidade, a zona suburbana e a zona rural, sob sua jurisdição,
ou intendência”.8 No Brasil, há também uma relação jurídica entre ambas, uma vez que a cidade
está caracterizada como sede do governo municipal.
3. Urbanização e Urbanificação
4. Urbanismo
Os problemas criados pela urbanização, que necessitavam serem corrigidos por medidas de
urbanificação, originaram um conjunto de planos e políticas técnicos e científicos, conhecido como
urbanismo.
A fim de disciplinar as massas que traziam problemas devido a sua concentração em certos
pontos do espaço, uma nova ciência de aplicação eclodiu, a ciência da organização das massas
7
ROLNIK, Raquel. O que é Cidade, p. 13 a 29.
8
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, p. 169.
9
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 21.
10
BARDET, Gastón. O Urbanismo, p. 7, nota 2.
11
MUKAI, Toshio. Curso de Direito Urbano-Ambiental, p. 48.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
sobre o solo. Por volta de 1910, ela foi batizada na França de Urbanismo (tow planning, Städtebau),
o que quer dizer etimologicamente, ciência do planejamento das cidades.12
Durante a história, o urbanismo teve duas fases: a primeira, chamada primitiva ou empírica,
que vigorou na Grécia antiga e nas cidades do Império Romano chegando até a Renascença,
buscava embelezar a cidade. A segunda fase inicia-se com a Revolução Industrial e apresenta o
urbanismo como técnica e ciência, uma vez que surgiram com a urbanização problemas
econômicos, sociais e estruturais que demandavam soluções urbanísticas que deveriam ser
tecnicamente planejadas e de forma científica.
Diante desses problemas urbanos, duas correntes buscaram o urbanismo para solucionar as
falhas da urbanização desordenada. A corrente dos utopistas, representados por Robert Owen, Sant-
Simon, Charles Fourier e Jean-Baptiste Godin, se opunha à cidade existente e entendia que era
necessário conceber novos modelos de cidades, por isso, esses autores descreveram cidades ideais e
formas de colocá-las em prática, apresentando, inclusive, planos de urbanismo.13
A corrente representada pelos técnicos urbanistas optou por solucionar os problemas das
cidades através de medidas administrativas e legais específicas para as áreas desordenadas que
remediassem os problemas sem aprofundar as contradições das transformações sociais ocorridas nas
cidades.14 Dessas idéias, surgiram planos e projetos de ordenação dos espaços, principalmente
quanto à infra-estrutura urbana, e também as primeiras normatizações sobre o urbanismo.
Modernamente, esses estudos sempre se concentraram nas áreas da Arquitetura e Geografia,
deixando ao Direito e a outros ramos científicos, mero papel de adequar essas soluções urbanísticas
propostas à realidade do espaço existente.
Até 1940, os problemas do Urbanismo restringiam-se a problemas de tráfego, higiene e
estética. Com a obra “Problèmes d’Urbanisme”, de Gastón Bardet, os estudos do urbanismo
centraram-se na solução de cinco grandes problemas: tráfego, higiene e conforto, problemas sociais
e econômicos, estética e problemas intelectuais e espirituais.15
Depois de identificar os problemas a serem solucionados, restaram ainda, ao urbanismo a
definição de seu alcance científico e suas funções. Em relação ao seu alcance, com o advento das
modernas concepções de urbanismo, desaparece a vinculação do urbanismo apenas como técnica e
ciência relativa ao espaço urbano. “A partir da obra de Ebenezer Howard (Garden Cities of
Tomorrow, 1902), o urbanismo começa a desvencilhar-se da cidade, procurando abranger também o
campo, e, além disso, preocupando-se não mais com os aspectos meramente físicos do território”.16
Em relação às funções do urbanismo, num primeiro momento, reportavam-se ao urbanismo
apenas os planos e projetos de organização do espaço físico, tais como saneamento básico, solo e
subsolo, obras de infra-estrutura viária, limitação do uso da propriedade e outros. As obras de
Gastón Bardet17 e Robert Auzelle18, entretanto, procuraram dar um sentido social ao urbanismo
inserindo conhecimentos sociológicos, geográficos, econômicos, jurídicos, biológicos, médicos e,
principalmente, políticos, às medidas urbanísticas implementadas.19
O urbanismo, então, passou a adotar, não só funções de organização do espaço físico, mas
também de implementação de políticas relativas à melhoria das condições de vida do habitante da
cidade. Traduzindo esse entendimento, o Vocabulário Jurídico prescreve o significado atual do
urbanismo: “De urbano, do latim urbanus (relativo à cidade), designa o conjunto de medidas de
ordem técnica relativas à arquitetura, à higiene, à administração, ou a qualquer outro objetivo, tendo
12
BARDET, Gastón. O Urbanismo, p. 8.
13
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 22.
14
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 22.
15
BARDET, Gastón. O Urbanismo, p. 37/38.
16
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 15.
17
L’urbanisme, citada em: MUKAI, Toshio. Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 17.
18
Chaves do Urbanismo, citada em MUKAI, Toshio. Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 17.
19
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 17.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
por finalidade traçar o plano, ou o projeto de construção geral de uma cidade, que melhor assegure
não só o desenvolvimento racional e de melhor aspecto, como a sua perfeita salubridade”.20
Também nesse sentido é a definição de Hely Lopes Meirelles, que parece bem clara:
“Urbanismo é o conjunto de medidas estatais destinadas a organizar os espaços habitáveis, de modo
a propiciar melhores condições de vida ao homem na comunidade, entendido como espaços
habitáveis, todas as áreas e que o homem exerce coletivamente qualquer das quatro funções sociais:
habitação, trabalho, circulação e recreação”.21
Modernamente, a essas quatro funções, foi acrescida a melhoria da qualidade de vida do
homem, como diretriz norteadora das ações urbanísticas.22
Assim, o urbanismo, mais do que qualquer outro ramo científico, tem por objetivo organizar
o espaço visando o bem estar coletivo, o que ocorre principalmente por meio de ações do Poder
Público, a quem compete zelar pela comunidade.
Com o passar do tempo e o agravamento da situação das cidades “os técnicos, urbanistas,
sociólogos, geógrafos, engenheiros, etc. sentiram a necessidade de disciplinar, de modo racional, o
desenvolvimento caótico das cidades, em especial das grandes capitais, onde o fenômeno da
conurbação urbana denunciou caminhos indesejáveis para a qualidade de vida das nossas
comunidades”.23
Os problemas das cidades levaram não só a priorização dessas atividades urbanísticas, mas
também a uma necessidade de estabelecer regras para a aplicação de medidas para corrigi-los. A
definição clara de regras para implementação de ações urbanísticas torna-se imprescindível à
medida que a ordenação do espaço requer a intervenção direta do Poder Público em todas as áreas
da cidade, inclusive atingindo interesses privados.
Como já asseverado, a atividade urbanística tem por objetivos a humanização, ordenação e
harmonização dos ambientes habitados pelo homem. Vê-se daí, que a atividade urbanística é
essencialmente uma função pública, pois há a supremacia do interesse público sobre o privado, na
definição das medidas urbanísticas a serem implementadas.
Ocorre que essa intervenção pública buscando o interesse coletivo, ao impor limitações ao
interesse privado em favor da coletividade, ocasiona conflitos que devem estar regulados por
normas estatais de função urbanística destinadas a legitimar a atuação do Poder Público, uma vez
que a legalidade é princípio fundador da atividade estatal.
Assim, à medida que são gerados conflitos, as normas jurídicas passam a ser necessárias
para estabelecer um arcabouço de dispositivos que regulem esses conflitos e autorizem o Poder
Público a intervir na cidade para assegurar os interesses da comunidade, seja na disciplina do uso e
ocupação do solo, na regulação do sistema viário ou no planejamento urbano. Essas normas
constituem o direito das relações sociais na cidade, conhecido como direito urbanístico.
20
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, p. 843.
21
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, p. 379.
22
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 23.
23
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 9.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
24
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, p. 388.
25
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 32.
26
FARIA, Manuel Veiga de. Elementos de Direito Urbanístico, Lisboa, p. 34, citado por MUKAI, Toshio. Direito
Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 19.
27
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, p. 278.
28
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 84.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
Ocorre que a atuação da política urbana passa pela concretização de normas e princípios
norteadores, constantes na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais, nas Leis Orgânicas
Municipais e nas legislações específicas dos Municípios como o Plano Diretor e o Plano
Urbanístico.
A Constituição Federal atribui aos Municípios, mais do que a qualquer outro ente federativo,
o papel de promover a política urbana e o fez acertadamente. O Direito Municipal, então, passa, no
campo urbanístico a ter relevo e as questões relativas à autonomia dos municípios e até ao pacto
federativo passam a ser objetos de estudo do Direito Urbanístico com vistas a garantir a
implementação efetiva de normas e princípios saneadores dos problemas urbanos visíveis
principalmente nas grandes cidades.
E esses problemas não têm soluções apenas políticas e administrativas. O Direito
Urbanístico tem propiciado instrumentos jurídicos de defesa das cidades como o parcelamento ou
edificação compulsórios, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no
tempo, a desapropriação para fins de reforma urbana, o usucapião coletivo, e outros elencados em
legislações esparsas.
Uma questão em debate atualmente é sobre a autonomia do Direito Urbanístico como ramo
do Direito Público. Seria já um ramo autônomo do Direito ou ainda capítulo de outro?
A maior parte dos autores, dentre eles, Ítalo Di Lorenzo, Virgílio Testa, Pérz Botija, Guaita,
Nuñez Ruiz e Jacquignon, entendem o Direito Urbanístico como capítulo do Direito
Administrativo.29 Já Diogo de Figueiredo Moreira Neto aduz que o Direito Urbanístico é espécie do
gênero Direito Ecológico ou Ambiental.30 Outros autores como Farjat o concebem como ramo
especial do direito econômico.31
Os principais doutrinadores brasileiros, como José Afonso da Silva, Toshio Mukai e Carlos
Mouchet pronunciam-se no sentido de que o Direito Urbanístico é, no estágio atual, uma disciplina
de síntese, sem autonomia própria, agregando elementos de Direito Constitucional, Administrativo,
Municipal, Civil e Financeiro. 32
Nelson Saule Júnior, além de coadunar com essa posição, suscita que a progressiva
normatização do urbanismo (legislações e instrumentos próprios), firmará o Direito Urbanístico
como ramo autônomo do direito público, com caráter multidisciplinar.33
29
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 21.
30
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao Direito Ecológico (...), p. 85.
31
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 35.
32
MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental Brasileiro, p. 22.
33
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 85.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
O direito à propriedade privada era tido como garantia fundamental e ilimitada do homem,
entendimento este advindo do liberalismo e consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789.
Esse direito à propriedade compreendia o amplo exercício dos poderes de dela usar, gozar,
fruir e dispor, sem restrições e garantido soberanamente pelo direito civil. Entretanto,
modernamente, esse direito à propriedade deixou de ser ilimitado. Georges Ripert, citado por Hely
Lopes Meirelles, adverte que: “o direito não pode ser absoluto, visto que absolutismo é sinônimo de
soberania. Não sendo o homem soberano na sociedade, o seu direito é, por conseqüência,
simplesmente relativo”.37
Dessa compreensão, surgiram as teorias justificadoras da limitação negativa da propriedade
privada e posteriormente da imposição de fazer, até chegar-se a uma concepção de propriedade-
função. O direito à propriedade passou, então, a ser regulado de acordo com o interesse da
comunidade, tido como predominante sobre o individual.
Com o advento do urbanismo moderno, destacadamente por meio do IV Congresso
Internacional de Urbanismo, realizado em Atenas em 1933, é que se falou, pela primeira vez, nas
funções urbanísticas das propriedades: habitação, condições adequadas de trabalho, recreação e
circulação humanas.
Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles observa que o “direito de propriedade evoluiu da
propriedade-direito para a propriedade-função”.38 Daí dizer que a propriedade deve cumprir uma
34
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, p. 299.
35
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo, p. 23.
36
SUNDFELD, Carlos Ari. In ROTEMBERG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais, p. 57.
37
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, p. 258.
38
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro¸p. 318.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
função social, que é justamente atender, naquele momento histórico e naquela localidade, o
interesse público, o interesse coletivo.
No ordenamento brasileiro, a função social da propriedade não é novidade. Nas legislações
pátrias, além de institutos de limitação da propriedade, a função social da propriedade já na
Constituição de 1937 aparecia implicitamente, entretanto, só com o processo constituinte de 1988, é
que propriedade-função foi elevada ao patamar de princípio importante da política urbana. O artigo
5º da CF/88, em seus incisos XXII e XXIII, que não podem ser interpretados isoladamente,
estabeleceu que “é garantido o direito à propriedade” e que esta “atenderá a sua função social”.
Note-se que o dispositivo constitucional não estabelece que a propriedade deverá atender a função
social, mas sim, atenderá, o que significa dizer que, no direito brasileiro, não se admite que uma
propriedade deixe de atender a função social.
A função social da propriedade não se confunde com a limitação do direito à propriedade,
pois esta última regula o exercício do direito, enquanto a primeira interfere com próprio direito de
propriedade.39 Em suma, o princípio norteador do regime da propriedade urbana é a sua função
social, permitindo ao Poder Público exigir o cumprimento dos deveres do proprietário de aproveitar
do solo urbano em benefício da coletividade, o que implica numa destinação concreta do seu imóvel
para atender um interesse social40, o que caracteriza, portanto, uma obrigação positiva, obrigação de
fazer. Pode-se dizer, portanto, que o princípio da função social da propriedade trouxe ao Direito
Privado, algo até então exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma
finalidade.41
Antes de analisar a instituição da função social da propriedade em nosso ordenamento, é
preciso mencionar que a consolidação desse princípio urbanístico deveu-se, em grande parte, aos
movimentos sociais urbanos de acesso à moradia e regularização fundiária. Betânia Alfonsin, muito
bem define a regularização fundiária, objeto de reivindicação desses movimentos como “o processo
de intervenção pública, sob aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência
de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de
habitação, implicando melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cidadania e da
qualidade de vida da população beneficiária”.42
As pressões populares desses movimentos sociais e a apresentação da Emendar Popular da
Reforma Urbana na Constituinte de 1988 garantiram a inclusão do conceito de propriedade-função
na Carta Magna e estabeleceram a função social em dois níveis: a subordinação da propriedade à
política urbana, através do plano diretor; e as sanções para aquele que não atendesse a função social
da propriedade, como o parcelamento e edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e
até mesmo a desapropriação com fins urbanísticos.
A Constituição Federal de 1988 consagrou a função social das propriedades rural e urbana
de forma distinta. Para que a propriedade rural cumprisse a sua função social deveria atender ao
aproveitamento racional e adequado, à utilização adequada dos recursos naturais e preservação do
meio ambiente, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186 da CF/88), isto é, o próprio
ordenamento constitucional estabeleceu os requisitos da função social da propriedade rural.
Já no caso da propriedade urbana o parágrafo 2º do artigo 182 da CF/88, estabeleceu que:
“Art. 182 - ...
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.
39
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 65.
40
INSTITUTO PÓLIS e outros. Estatuto da Cidade – Guia (...), p. 48.
41
SUNDFELD, Carlos Ari. Função Social da Propriedade, p. 5. In: DALLARI, Adilson Abreu e FIGUEIREDO,
Lúcia Valle. Temas de Direito Urbanístico.
42
ALFONSIN, Betânia. Instrumentos e experiências de Regularização Fundiária (...)¸ p. 24.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
Portanto, não há eficácia imediata desse dispositivo, pois está adstrito ao estabelecimento de
critérios no plano diretor dos Municípios. Ressalte-se, então, que sem um plano diretor em vigor, o
Município não poderá implementar nenhuma medida urbanística que toca à necessidade utilizar a
propriedade urbana, conforme sua função social. Devido a essa aplicabilidade dependente, merece
crítica a disposição, que a exemplo do art. 186 da CF/88 quanto à propriedade rural, deveria ter
trazido os requisitos para que se implementasse, constitucionalmente, a função social da
propriedade urbana.
A proposta da Emenda Popular da Reforma Urbana apresentada na Assembléia Nacional
Constituinte disciplinava os requisitos para que a propriedade urbana cumprisse sua função social,
com o intuito fundamental de eliminar a especulação imobiliária e ampliar o acesso à moradia, até
porque difícil é separar a função social da propriedade urbana do direito à moradia.
Como se sabe, os setores conservadores com representação na Assembléia Nacional
Constituinte barraram esse grande avanço. Anos depois, na discussão do Estatuto da Cidade
também foi intentada tal regulamentação, que não vingou frente a sua inconstitucionalidade. Desse
modo, somente nos Municípios, em que houver o plano diretor e este expressamente determinar os
requisitos para que a propriedade urbana cumpra sua função social, é que se poderá ver efetivado
esse princípio fundamental do direito urbanístico.
Entretanto, consoante ao princípio da função social da propriedade urbana, algumas
propostas populares foram respaldadas pelo legislador constituinte, graças à articulação dos
movimentos sociais. O §4º do artigo 182 da CF/88 atribuiu ao Poder Público a possibilidade de
exigir o adequado aproveitamento do solo urbano, por meio de institutos de reforma urbana como o
parcelamento e a edificação compulsórios, o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação:
“Art. 182 - ...
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída
no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob
pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em
parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros
legais”.
Essa inovação foi uma das melhores tentativas de diminuir as tensões sociais em matéria
habitacional e de parcelamento do solo, apesar de serem medidas voluntárias, dependendo da
municipalidade as instituir por lei específica para área incluída no plano diretor.43 Entretanto, devido
à ausência da lei federal de desenvolvimento urbano que traria as diretrizes gerais também para a
implementação desses institutos urbanístico, na maioria das vezes, às cidades não era admitida a
eficácia desses instrumentos. Com a aprovação do Estatuto da Cidade, tais institutos foram
regulamentados pelos artigos 5º e 6º (parcelamento, edificação ou utilização compulsórios), 7º
(IPTU progressivo no tempo) e 8º (desapropriação). Assim, os Municípios agora têm competência
integral para instituírem tais medidas e exigirem do proprietário urbano o aproveitamento da área
subutilizada.
Outra inovação constitucional que veio a somar forças para garantir a eficácia do princípio
da função social da propriedade urbana foi a criação de um novo instituto jurídico, o usucapião
urbano, consagrado como um dos instrumentos urbanísticos mais importantes para a regularização
fundiária. O Código Civil de 1916 dispõe que aquele que, por vinte anos, sem interrupção, possuir
como seu imóvel independentemente de título e boa-fé, pode requerer o domínio pelo usucapião.
43
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira, p. 442.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
Essa era a única forma de usucapir um imóvel. Com a Constituição de 1998, foram instituídas duas
novas modalidades de usucapião, o rural e o urbano. No caso do usucapião rural, dele aproveita
aquele que possuir como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona
rural não superior a cinqüenta hectares tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, nela
residindo, desde que não seja proprietário de imóvel rural ou urbano.44 Já o usucapião urbano, veio
assim disposto no artigo 183 da Constituição de 1988:
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros
quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua
moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou
a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
O legislador constituinte atento às tensões sociais resultantes dos problemas enfrentados
pelos sem-teto instituiu uma nova modalidade de usucapião, estreitamente vinculada à função social
da propriedade.45 Quanto a sua importância, enquanto instrumento de política urbana, o Usucapião
Urbano, visa assegurar o direito de moradia, principalmente dos grupos sociais emergentes na luta
pelos direitos inerentes à vida na cidade, como instrumento de regularização fundiária visa conferir
como sanção ao proprietário que não atender a função social pelo abandono do imóvel a perda da
propriedade.46 Tal instituto já está disciplinado no Novo Código Civil, Lei 10.406 de 10.01.2001,
que contempla as três modalidades de usucapião, nos seus artigos 1.238, 1.239 e 1.240,
respectivamente, usucapião convencional, rural e urbano e no Estatuto da Cidade, nos seus artigos
9º a 14.
Em suma, apesar da limitação quanto à eficácia das normas que disciplinam a função social
da propriedade urbana, é inegável que a consagração em nível constitucional desse princípio, tenha
sido uma medida positiva, uma vez que subordinou seu regime jurídico às normas urbanísticas. É
que com as normas dos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988, a propriedade urbana passou a
ser “formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica;
realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições adequadas de
trabalho, recreação e circulação humana, realizar em suma, as funções sociais da cidade”. 47 Mais do
que tirar a propriedade de quem a usa mal, a função social e seus instrumentos visam propiciar uma
melhora na qualidade de vida das pessoas. A propriedade urbana, então, passou a ser um típico
conceito do Direito Urbanístico e sua função social um princípio basilar.
9. Planejamento Urbano
44
Artigo 191, caput, da Constituição Federal de 1988.
45
CORDEIRO, Carlos José. Usucapião Constitucional Urbano, p. 124.
46
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 57/58
47
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 67.
48
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 77.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
49
FERRARI, Célson. Curso de Planejamento Municipal Integrado, p. 3.
50
INSTITUTO PÓLIS e outros. Estatuto da Cidade – Guia (...), p. 27.
51
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 273.
52
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro, p. 93.
53
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 272.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
2) a delimitação das áreas em que poderá se exigir o direito de preempção, ou permitir o direito de
construir acima do coeficiente de aproveitamento básico e a alteração de uso do solo mediante
contraprestação, a aplicação de operações urbanas consorciadas e a transferência do direito de
construir; e 3) a definição de um sistema de acompanhamento e controle.
Por fim, é preciso ressaltar que ao planejamento urbano aplicam-se diretrizes,
principalmente aquelas que democratizam a gestão da cidade, como a participação popular na
elaboração desses planos, requisito essencial para a legitimidade das propostas urbanísticas a serem
implementadas. Nelson Saule Júnior sugere que o planejamento urbano, como instrumento de
democratização da gestão da cidade, deve pressupor quatro preceitos básicos: 1) considerar a
realidade local e as necessidades da população; 2) a participação popular direta; 3) a linguagem
simplificada e acessível a qualquer cidadão; e 4) um sistema de informações sobre a vida da
cidade.55
José Afonso da Silva aponta ainda que o planejamento deve observar as seguintes diretrizes:
a) o processo de planejamento é mais importante do que o plano; b) o processo deve elaborar planos
adequados à realidade do Município; c) os planos devem ser exeqüíveis; d) o nível de profundidade
dos estudos deve ser apenas o necessário para orientar a ação da municipalidade; e) a
complementariedade e a integração de políticas, planos e programas setoriais; f) o respeito e a
adequação à realidade regional, além da local e em consonância com os planos e programas
estaduais e federais existentes; e g) a democracia e o acesso às informações disponíveis.56
58
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição brasileira, vol. 6, p. 431.
59
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 61/62.
60
INSTITUTO PÓLIS. Estatuto da Cidade – Guia, p. 47.
61
SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro (...), p. 22.
62
INSTITUTO PÓLIS e outros. Estatuto da Cidade – Guia (...), p. 34.
63
AGENDA 21 – Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Princípio 1.
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
5. Considerações finais
A Ciência do Urbanismo tem estudado a nova organização das cidades, com vistas a
solucionar os principais problemas decorrentes da desordenada urbanização que as cidades
experimentaram nos últimos séculos. Dessa necessidade de ordenar o espaço habitável, surgiu o
Direito Urbanístico para legitimar as intervenções do Poder Público na propriedade e na cidade,
com o objetivo de garantir a supremacia do interesse coletivo.
No Brasil, o Direito Urbanístico ainda é tese nova, com reduzido material de pesquisa e
aprofundamento teórico. Entretanto, o aumento dos conflitos sociais nas cidades, a ascensão de
movimentos sociais de luta pela Reforma Urbana, a inércia estatal para a implementação de
soluções urbanísticas e a enorme concentração de renda e propriedades, têm provocado o debate na
sociedade para a construção de um modelo de cidade que atenda as condições de habitação,
trabalho, lazer e transporte, possibilitando o bem-estar e a qualidade de vida dos cidadãos.
Porém, esse cenário idealizado está distante. Hoje, o país enfrenta a questão da moradia, por
exemplo, amparado apenas na expansão de favelas, cortiços e assentamentos em áreas insalubres,
de risco e ilegais ou irregulares e na perpetuação de práticas de especulação imobiliária. O
desemprego alcança recordes de índices, principalmente nas grandes capitais, onde os problemas
urbanos são ainda maiores. No transporte e demais serviços públicos, o custo para a população tem
aumentado sem a correspondente melhora nos serviços, já quase totalmente privatizados. E ao fim,
observa-se uma crescente degradação ambiental e das instalações de infra-estrutura das cidades.
Ocorre que o direito até o presente momento não conseguiu dar respostas a esses problemas
urgentes, deixando ineficazes os princípios fundamentais do Direito Urbanístico, a Função Social da
Propriedade, o Planejamento Urbano e as Funções Sociais da Cidade, apesar das positivação do
urbanismo na Constituição Federal e no recém-aprovado Estatuto da Cidade.
O capítulo sobre Política Urbana na Constituição de 1988, incluído graças à pressão dos
movimentos sociais na propositura da Emenda Popular da Reforma Urbana na Assembléia
Constituinte, trouxe à lume, princípios e institutos jurídicos de grande valia para o direito do
urbanismo, mas de questionável eficácia:
a) os dispositivos constitucionais avançam no entendimento de um direito do urbanismo
includente, ao normatizar a função social da propriedade, por meio da instituição do
usucapião constitucional urbano, das medidas de aproveitamento do solo pelo proprietário
sob pena edificação compulsória, IPTU progressivo no tempo e até desapropriação; e
também normatizar o planejamento urbano, com a obrigatoriedade do plano diretor, e ainda
ao ter como diretriz a garantia do direito a cidades sustentáveis;
b) entretanto, essas normas da Constituição não se tornaram eficazes, por dependerem
principalmente, dos Municípios, que têm atribuições de implementar a política urbana. Se o
Poder Público Municipal não se manifesta ou não atua, o direito urbanístico naquela
localidade corre o risco de não se efetivar, descumprindo a vontade do legislador e da
própria sociedade.
Já o Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/01) é a lei federal de desenvolvimento urbano que
tramitou por doze anos no Congresso Nacional e, agora aprovada, traça as diretrizes gerais para a
União, Estados e Distrito Federal e Municípios implementarem as medidas de política urbana:
a) o texto legal hoje em vigor traz inovações jurídicas muito interessantes, como a outorga
onerosa do direito de construir, as operações consorciadas, o estudo de impacto de
vizinhança, e também regulamenta institutos jurídicos, a exemplo do IPTU progressivo no
tempo, da desapropriação, do usucapião urbano, que podem ser implementados pelo Poder
Público Municipal para que faça cumprir a função social da propriedade e para efetivar a
regularização fundiária;
Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 31, p. 237-268, 2003.
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