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ESCOLTA PESSOAL

Fora das portas, a poucas dezenas de metros da velha barreira


fiscal, há alguém a minha espera.
Vi-o pela primeira vez muitos anos atrás, quando eu era menino.
Tendo subido, para brincar, às antigas muralhas da cidade onde
morávamos , avistei um homem vestido de cinza, imóvel no meio de um
prado externo, que me fitava com interesse. Como a distância era de
pelo menos quatrocentos metros, eu não podia distinguir se era moço
ou velho, feio ou bonito, pobre ou rico. Com um bastãozinho na mão,
parecia que estava ali a passear e se detivera para fitar-me. Subir
àquele ponto das muralhas exigia que se escalasse um íngreme bastião
semi-arruinado. Pensei, portanto, que o desconhecido me olhava com
certa admiração. E, lisonjeado, saudei-o com um aceno. Ele ergueu o
bastãozinho e o agitou de leve, como que dando a entender uma vaga
cumplicidade entre nós : curiosa impressão. Não havia muito, naqueles
prados de subúrbio, tinham-se visto carroções de ciganos. Daí que me
viesse a dúvida: ali estava um cigano que talvez tivesse intenção de
raptar-me. Entretanto, a hora era tão amena e tranqüila, o sol da tarde
tão tépido, ainda que pálido, o aspecto do homem tão inofensivo, que
um medo que tal não podia subsistir. Mas ao temor banal de rapto
sobrepôs-se um pensamento, para mim novo e inquietante, que não
conseguirei nunca explicar era como se eu tivesse descoberto que,
além da família, da escola, dos amigos, havia um outro quinhão de vida,
até então inesperado, mas não obstante meu, à minha espera – um
quinhão de vida misteriosa sobre a qual eu me debruçava
abusivamente.
Foi um pensamento fugaz. Pouco minutos depois eu descia das
muralhas. E nunca mais teria provavelmente recordado aquela tarde se
três anos depois, aventurando-me de bicicleta à extrema periferia da
cidade, não houvesse notado, sobre um prado, um homem imóvel que
parecia fitar-me intensamente; semelhante em tudo àquele que eu vira
da muralha, tanto pelo aspecto geral como pela mesma expressão de
calma, o mesmo bastãozinho. Uma simples coincidência, poder-se-ia
pensar. A três anos de distância, como conseguiria eu lembrar com
exatidão? E quantos outros homens não poderiam estar na área
vestidos de modo quase idêntico, com igual corporatura e com um
bastão na mão? No entanto, tive a certeza instantânea de que se tratava
do mesmo homem e, confiante na bicicleta que me possibilitaria uma
rápida fuga no pior dos casos, aproximei-me para vê-lo melhor. Mas,
ou porque eu não tomasse o caminho certo, ou porque ele se tivesse
afastado no breve intervalo, ou porque eu me confundisse, no prado
encontrei não um , mas cinco indivíduos, nenhum dos quais me olhou,
nenhum dos quais se assemelhava ao homem procurado.
O encontro me despertara, porém, obscuras apreensões. E receei
que fosse começar para mim uma daquelas extraordinárias aventuras
de caráter mágico que eu lera nos livros. De quando em quando algum
homem é de fato chamado pela sorte a delas participar; tornam-se mais
e mais raras, contudo, à medida que os anos vão passando.
Mas a aventura não veio. Continuei a vida costumeira e o
pensamento do homem imóvel no prado acabou por deixar-me. Eu me
tornara enfim adulto; aquelas me pareciam tolas fantasias de meninice.
E assim foi durante uma dezena de anos. Até que me aconteceu
passar breve período numa cidade estrangeira. Ali, percorrendo de
automóvel uma rua periférica, vi certa tarde, num prado liso e tranqüilo,
para além das últimas casas, um indivíduo que me olhava, fazendo sinal
com um bastão.
É inútil perguntar-me como eu sabia que ele me olhava e não a
outrem, com tanta gente passando, tantos automóveis; e como eu
sabia que era o mesmo homem daquele dia distante, que atravessara o
mundo expressamente por minha causa para esperar-me à saída da
cidade, espião de um reino desconhecido. Era ele mesmo, sem dúvida.
Muitas vezes o revi desde então. Em qualquer cidade onde eu
estivesse, bastava-me sair da aglomeração, ou subir ao campanário de
onde o olhar pudesse espraiar-se, para avistá-lo. E por algum tempo, ao
pensar nisso, eu sentia medo: com que então aquele homem me seguia,
me assediava, talvez à noite tivesse transposto os limiares da cidade,
percorrido as ruas desertas e chegado até a minha morada para
surpreender-me no sono e atender aos seus objetivos ocultos. Como
poderia eu defender-me? Nas poucas vezes que , com extrema
coragem , me avizinhei dele para enfrentá-lo, acontecia sempre
alguma coisa que impedia o encontro. Ou ele desaparecia de
improviso, ou chegavam outras pessoas para causar confusão, ou eu
me perdia.
Que é que ele queria de mim? Provavelmente – dizia eu comigo - ,
se eu conseguisse chegar até ele, veria que não passava de um
vagabundo qualquer, como nome e sobrenome, ali chegado por acaso e
a quem minha curiosidade espantava. Nem isso, contudo, teria bastado
para aquietar-me. Eu evitava a periferia a fim de poupar-me da
ameaçadora aparição. Se ele nunca mais me visse – pensava eu
outrossim – quem sabe não se cansava e mudava para longe. Por toda a
vida iria então durar a perseguição?
No entanto, muito tempo transcorreu, sou hoje um homem velho
e ele ainda está lá embaixo, fora da muralha, qualquer que seja a cidade
que eu habite. Ainda recentemente entrevi-o mais de uma vez,
fugazmente; mesmo que eu estivesse confundido à multidão que
enchia o bonde, ou escondido atrás de uma cortina , ou protegido pelas
trevas, ele voltava para mim sua mirada firme e calma; para mim e não
para outrem.
Podem objetar-me: quando estou no campo ou no mar, onde é que
ele me espera? Mas essa é uma dificuldade ridícula. Se me demoro no
campo, ele fica pelas vizinhanças, a uma certa distância, e tem apenas a
dificuldade da escolha, ele que gosta dos prados. Se, em vez disso,
viajo por mar, ele sempre sabe do meu próximo desembarcadouro ;
acercando-me da terra, posso estar certo de que ele já lá chegou e
passeia tranqüilamente ao longo da margem.
Sei disso tudo, mas agora terminou a minha apreensão. Não
tenho mais medo dele. Mas continuo a ignorar o que deseja de mim, por
que se dá a tanto trabalho para seguir-me, de que mundo vem afinal
( pois não é certamente criatura desta terra). Nos últimos tempos, em
verdade, consegui não digo compreender, porque esta história está
sempre envolta num certo mistério, mas suspeitar algo acerca de suas
reais intenções. Isto é , persuadi-me de que o desconhecido não me
quer fazer mal, não pretende perseguir-me nem pensa assaltar-me de
noite, quando eu esteja dormindo. Contenta-se em esperar-me. Segue-
me de cidade em cidade, mantendo-se à parte, exposto aos ventos e à
chuva para não me importunar, na certeza de que um dia irei
finalmente parar. Mesmo que seja daqui a muitos anos – não sei se
devo ou não esperá-lo - , entrarei numa cidade ou num país pela última
vez; quero dizer, essa cidade assinalará a conclusão da viagem e eu
nunca mais poderei partir ( pelo menos no sentido habitual da palavra).
Só então ele se decidirá. Só então franqueará o limite das muralhas,
avançará com passo tranqüilo ao longo das ruas até a minha morada e
ali baterá à porta com o seu bastãozinho.
Não mais o temo. Melhor dizendo, com o correr dos dias sinto por
ele uma espécie de gratidão. Porque os anos passam, meu rosto
envelhece, foi-se a casa onde vivi em menino, um a um desapareceram
os amigos com quem eu podia recordar os belos dias de outrora, cada
primavera me encontra mais e mais sozinho, sempre menos pessoas à
minha volta que me queiram bem, sempre menos esperanças. Mas ele
me espera, paciente. Pouco a pouco se fará à minha volta completa
desolação e com certeza, de fiel, só me restará ele, imóvel no prado de
subúrbio, apoiado ao bastão. Só ele, depois de tudo, não me virá a
faltar; só ele estará perto de mim na hora mais difícil da vida. Por que
então deveria eu odiá-lo? Por que desejar que se vá?
Que diferença do dia em que subi às muralhas. Acreditarão se eu
lhes disser que agora tenho quase pressa de vê-lo chegar, custe o que
custar; que estou impaciente de reconhecer finalmente o seu rosto, de
saber que mensagem irá tirar de um dos bolsos de seu terno cinzento e
entregar-me com um sorriso nos lábios?

AS MONTANHAS SÃO PROIBIDAS


Dino Buzzati
Cia das Letras
1993

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