You are on page 1of 20

EXEMPLOS DE ANÁLISE DE

CONTEÚDO EM PESQUISAS

EXEMPLO 1:

Uma análise de conteúdo de crenças relacionadas com


a AIDS entre participantes em O.N.G.s. (Marco Antonio de
Castro Figueiredo; Luciana Nogueira Fioroni - Universidade de São Paulo)

Qual a proposta do trabalho?


Uma amostra de sete sujeitos, pertencentes a Organizações Não
Governamentais (ONGs) de Ribeirão Preto, foi entrevistada através de
procedimentos semi estruturados para verificação de cognições associadas
a quatro categorias de conteúdos relacionados à AIDS: a doença em si, o
tratamento, o paciente e prevenção.

Metodologia:
Sujeitos

Foram entrevistados sete voluntários das duas Organizações Não


Governamentais (ONGs) que atuam diretamente em programas de
atendimento e prevenção à AIDS, na cidade de Ribeirão Preto, o Grupo de
Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA) e Brigada dos Militares Espíritas.

Procedimento

Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com o objetivo de evocar,


enunciar e verificar crenças relacionadas com alguns aspectos da AIDS
para, posteriormente, proceder uma análise de conteúdo de representações
sociais dos sujeitos entrevistados, com referência ao fenômeno em questão.
A entrevista foi realizada em três etapas, cujo procedimento é descrito no
quadro 1.

1
As verbalizações dos sujeitos foram transcritas sob forma de locuções e
classificadas segundo quatro categorias, Doença, Tratamento, Paciente e
Prevenção, cujos conteúdos são apresentados pelo quadro 2.

2
3
Com base nestes resultados, uma síntese dos conteúdos obtidos foi
realizada. O quadro 3 apresenta os conteúdos selecionados para cada
categoria de análise e respectivas subcategorias:

4
5
A análise de conteúdo realizada permitiu verificar para cada categoria os
conteúdos modais que, de certa forma, representam as cognições associadas
aos aspectos ligados à AIDS e que podem ser considerados como
significantes para uma análise posterior de propensões e atitudes de pessoas
envolvidas com atividades de ONGs no que se refere à AIDS.

a. Considerando conteúdos relacionados à doença em si, prevaleceram os


pensamentos de caráter social envolvendo o pensamento na morte, a
vergonha dentro da família e o silêncio das pessoas, levadas pelo medo de
contrair o HIV. Além disso, respostas teleológicas relacionadas aos
costumes apareceram associadas ao surgimento da doença devido à hábitos
censurados pela sociedade.

b. Da mesma forma, para o paciente, apareceram conteúdos de forte


conotação social envolvendo a estigmatização, o efeito psicológico e as
necessidades da pessoa infectada. Para as pessoas que trabalham nas ONGs
a perda da cidadania, a responsabilidade pela própria doença e a rejeição
pela família determinam a estigmatização do paciente. Em contrapartida, o
efeito psicológico no paciente é visto como conseqüência irreversível,
deixando-o propenso a contaminar outras pessoas.

Nota-se por estes conteúdos preocupações com a família e com respostas


afetivas que determinam tanto o isolamento do paciente quanto o silêncio
das pessoas não infectadas, identificando o fenômeno que Daniel (1989)
chama de morte social, colocando o paciente frente a constrangimentos
determinados pela recusa ao tratamento (Calabrese, Kelley, Cullen &
Locker, 1991; Carlisle, 1992) e pela exclusão nos mais elementares direitos
à cidadania (Biancarelli, 1992; Castanheira & Vassalo, 1992; "Curso da
USP", 1989; Greig, 1987).

c. No que se refere ao tratamento, foram selecionados conteúdos ligados à


omissão de socorro e política de saúde, tais como a falta de interesse por
parte dos laboratórios em curar a doença. O tratamento médico não é visto
como eficaz, já que a evolução do quadro clínico leva à morte da pessoa
contaminada, onde os efeitos das condições de atendimento incidem
também sobre o profissional, este necessita de suporte para continuar
atendendo.

Esta visão do tratamento é confirmada pela literatura, que relata estigmas


arraigados por parte dos especialistas (Gallop, 1991; Gillon, 1987; Hardie,
1992; Kelly, 1987), coincidente com os relatos da produção do
conhecimento científico, denotando uma aproximação da forma
mergulhada da percepção da comunidade, enquanto usuária do serviço de
saúde.

6
Muitos trabalhos têm relatado dificuldades psicológicas de profissionais de
saúde com relação às formas de interação (Calabrese et al, 1991; Gallop,
1991), envolvendo sentimentos como antipatia (Kelly, 1987) desconforto
(Gillon, 1987) e perplexidade (Carlisle, 1992) frente às condições físicas e
emocionais em que o paciente se encontra. O tratamento do paciente com
AIDS deixa seqüelas que podem se tornar irreversíveis na vida do
profissional. Presa de exigências conflitantes, que envolvem
simultaneamente responsabilidade e auto-preservação (Figueiredo, 1994), o
profissional se vê frente a situações ambivalentes que necessitam ser
esclarecidas. Os resultados obtidos no presente trabalho denotam uma clara
percepção destas dificuldades por parte dos sujeitos entrevistados.

d. Finalmente, a visão de prevenção se respalda em crenças que envolvem


a participação da família e o uso de preservativos, muito comuns nos
programas de disseminação de informação para a população (Coverdale &
Aruffo, 1992; Vasconcelos, 1992; Williams, 1991). Além disso, um
componente de forte conotação sócio-econômica implica em crenças sobre
maiores dificuldades de prevenção no interior das camadas mais pobres da
população, motivado pela falta de informação. Curiosamente parece existir,
dentro dos grupos não governamentais estudados, crenças de que alunos de
medicina têm preconceito quanto ao uso da camisinha. Tal aspecto parece
denotar uma suspeita de que o preconceito já esteja estabelecido durante a
formação do profissional de saúde, indicando alguns limites psicossociais,
lançando dúvidas com respeito à preparação do profissional para o
suprimento das necessidades do paciente enquanto indivíduo.

De um modo geral pode-se dizer que as crenças levantadas no presente


estudo levam a indicadores interessantes para avaliação afetivo-cognitiva
das propensões de participantes de ONGs quanto às atividades de
tratamento e prevenção da AIDS na comunidade. Como era de se esperar,
conteúdos de forte conotação social foram encontrados, envolvendo
principalmente os limites determinados pelo estigma e pelas dificuldades
psicossociais do atendimento à AIDS. Por outro lado, sinalizam na direção
do núcleo familiar como uma importante fonte de recursos para prevenção
e atendimento do portador e paciente com AIDS.

Todas estas questões suscitadas pelos sujeitos estudados nos remetem às


bases do fenômeno AIDS, colocando a descoberto algumas contradições
que determinam as dificuldades mais importantes para o tratamento
psicossocial do paciente, independente do lugar onde é atendido: se nos
hospitais e serviços de saúde, ou se em domicílio, ou pela comunidade
organizada. Ainda que a sociedade organizada possa ser a resposta
"legítima" ao fenômeno social, dada sua condição de "elemento nele
mergulhado" (Figueiredo, 1994, p.130), nem sempre constitui a forma

7
adequada; por outro lado, por mais que as equipes técnicas estejam
instrumentalizadas técnica, teórica e metodologicamente, sua compreensão
do fenômeno restringe-se ao seu corpo especializado e a ação se ressente,
na prática. Assim, se a resposta da comunidade não se ajusta à ação
sistemática, ou seja, à forma disciplinadamente científica, as tentativas da
técnica esbarram nos limites da especialidade da ação, tornada parcelar.

Futuros projetos deverão tratar de forma mais detalhada os conteúdos aqui


levantados, onde um possível rearranjo de tais conteúdos em dimensões de
avaliação poderão servir de base para a elaboração de um instrumento de
diagnóstico para melhor aproveitamento dos recursos humanos que a
comunidade tem à disposição na luta contra a AIDS.

8
EXEMPLO 2:

Drogas e saúde na imprensa brasileira: uma análise de


artigos publicados em jornais e revistas (Ana Regina Noto;
Murilo C. Baptista; Silene T. Faria; Solange A. Nappo; José Carlos F. Galduróz;
Elisaldo A. Carlini - UNIFESP)

Qual a proposta do trabalho?


O presente estudo analisa as informações que a imprensa escrita vem
divulgando atualmente no Brasil sobre as implicações do uso de drogas
para a saúde. Por meio de análise de conteúdo, foi pesquisada uma amostra
de 502 artigos divulgados ao longo do ano de 1998 em jornais e revistas.
Entre os psicotrópicos mais evidenciados nas manchetes, destacaram-se o
cigarro comum (18,1%), derivados da coca (9,2%), maconha (9,2%),
bebidas alcoólicas (8,6%) e anabolizantes (7,4%). Em contrapartida, os
solventes, que são os psicotrópicos mais usados no Brasil (excetuando-se o
álcool e o tabaco), foram evidenciados em apenas um artigo.

Metodologia:
Amostragem

O levantamento dos artigos foi conduzido pela Lupa Clipping, empresa


especializada em clipping de artigos publicados em jornais e revistas do
País. Para o presente estudo, foram adquiridos dessa empresa os artigos
que discorriam sobre saúde, publicados no período de janeiro a dezembro
de 1998. Posteriormente, foi realizada uma nova triagem, tendo sido
selecionadas apenas as matérias referentes ao tema "drogas" divulgadas
nos seguintes meios de comunicação:

a) jornais de abrangência estadual (Estado de São Paulo, Folha de São


Paulo, Jornal do Estado – Curitiba, Paraná; O Povo – Fortaleza, Ceará; A
Crítica – Manaus, Amazonas, entre outros);

b) revistas de abrangência nacional (Veja, Isto É, Criativa, Época, entre


outras).

9
Organização e classificação do material

Foi realizada uma classificação preliminar, tendo como referência o tema


destacado nas manchetes:

a) para os artigos cuja manchete enfatizava alguma droga em especial


(65,1%), como tabaco, álcool, maconha, cocaína, entre outros: a
classificação foi realizada com base na(s) droga(s) em questão;

b) para os que mencionavam termos gerais (34,9%), como "drogas",


"psicotrópicos", "entorpecentes" ou "tóxicos", sem especificar um
psicotrópico em especial: a classificação foi feita com base no assunto
destacado na manchete (como prevenção, políticas públicas, tratamento,
entre outros).

Análise de conteúdo

Uma vez organizados, todos os artigos selecionados foram submetidos a


uma análise de conteúdo detalhada.

A análise foi iniciada a partir de uma "leitura flutuante" dos artigos

Ao longo desse processo de leitura dos artigos, foram selecionados alguns


temas considerados mais relevantes para investigação. Esses temas
serviram de base para a elaboração de uma ficha-padrão ("Planilha de
análise de conteúdo") para a análise individual de cada artigo.

A planilha contemplou os seguintes tópicos: (a) temas centrais (da


manchete e do texto); (b) personagens (faixa etária, sexo, grupos
específicos, relação com a droga); (c) droga (papel e conseqüências); (d)
intervenções mencionadas (legislação, repressão, prevenção, redução de
danos e/ou tratamento); (e) enfoque do artigo (eventual tendenciosidade e
conseqüências privilegiadas); (f) fonte das informações divulgadas; (g)
autoria do artigo.

10
11
12
ANÁLISE E RESULTADOS:

Um dos resultados interessantes do presente estudo refere-se à


observação de estereótipos diferenciados para cada categoria de
psicotrópico. Por exemplo, a heroína é apresentada na imprensa brasileira
como um suposto problema crescente no País; a cocaína, como um
problema já instalado, responsável por inúmeros casos de dependência e de
violência; e a maconha, como uma droga relativamente segura, de uso
consumado e aberto para negociações na legislação relativa ao seu uso.

Esses diferentes enfoques merecem uma reflexão histórica, uma


vez que, ao longo dos anos, os psicotrópicos parecem sofrer ciclos de
tolerância x intolerância, que variam de acordo com o contexto histórico e
social (Carlini-Cotrim, 1995). Voltando cerca de cem anos na história,
encontramos um retrato muito diferente do observado no presente. No
início do século passado, o "vinho de coca do Peru" era amplamente usado
como medicação revigorante e a heroína era comercializada livremente
como sedativo para a tosse. Já o álcool sofria sua pior onda de intolerância
norte-americana, a qual culminou na famosa "Lei Seca" (Carlini et al.,
1996; Carlini-Cotrim, 1995).

Nos anos subseqüentes, essa postura foi sendo modificada e, por


volta da década de 80, foi observada em diversos países uma onda de
intolerância acentuada em relação a algumas drogas, especialmente
cocaína, heroína e maconha. Nos Estados Unidos, a "guerra às drogas"
chegou a ser prioridade de governo (Carlini-Cotrim, 1995).

Os dados obtidos no presente estudo mostram que essa onda de


intolerância acentuada ainda impera para algumas drogas, em particular
para os derivados da coca (cocaína, crack e merla). A mídia geralmente
apresenta essas drogas associadas a casos dramáticos de dependência ou
situações de violência, somados a uma tendência de crescimento do
consumo.

No que diz respeito à maconha, por volta da década de 70, os


artigos eram exclusivamente intolerantes, inclusive associando o seu uso a
atividades politicamente subversivas (Carlini-Cotrim et al., 1995). No
entanto, voltando aos tempos atuais, observamos um processo gradativo de
tolerância, abrindo espaço para debates sobre a descriminalização e o uso
terapêutico (Lefèvre & Simoni, 1999). Esse novo discurso é "saudável",
uma vez que propicia um debate menos emocional e mais realista da
questão, mas requer cautela no que diz respeito à sua interpretação (Noto et
al., 1995). Embora o assunto seja a descriminalização, esta muitas vezes é
interpretada como liberação e, apesar de a ciência ponderar o uso médico

13
controlado de algumas substâncias presentes na Cannabis, muitas vezes a
imprensa brasileira generaliza para o uso social da droga, usando
manchetes como "Descobertos os Benefícios da Maconha" (Diário
Popular, 1998), "Maconha Contra Derrame" (Época, 1998), entre outras.
Nesse sentido, uma vez que a droga ainda é considerada ilícita no Brasil e,
portanto, os meios para sua aquisição são clandestinos, a "dupla
mensagem" (proibição enfática x discurso tolerante) pode soar de forma
confusa, especialmente entre os jovens.

Por outro lado, vale comentar o destaque da imprensa a um


suposto início do consumo indiscriminado de heroína no País, por meio de
manchetes como "A Heroína Passa de Mito a Ameaça Real no Brasil"
(Rydle & Wassermann, 1998), divulgadas em meados de março de 1998.
Ao contrário, os estudos epidemiológicos até então realizados não
apontaram nenhum dado que pudesse fundamentar tal alarde. Nesse
sentido, poderíamos levantar pelo menos duas hipóteses para explicar essa
divergência: a imprensa e alguns profissionais da área poderiam estar
utilizando referenciais ainda não mensuráveis pela epidemiologia, como,
por exemplo, um uso restrito a determinados estratos sociais, ou
poderíamos estar diante de um mito (Noto, 1999).

14
EXEMPLO 3:

Histórias de perdas fetais contadas por mulheres:


estudo de análise qualitativa (Alba Lúcia Dias dos Santos; Cornélio
Pedroso Rosenburg; Keiko Ogura Buralli – Faculdade de Saúde Pública/USP)

Qual a proposta do trabalho?

OBJETIVO: (Re)conhecer o significado da perda fetal para mulheres que


vivenciaram a experiência, a partir da compreensão do processo de
gravidez, com base em seus relatos.

Metodologia:
Pesquisa de análise qualitativa com base nas histórias de sete mulheres que
vivenciaram a experiência de perda fetal, no município de Arujá, SP, no
período de julho de 1998 a junho de 1999. As mulheres foram identificadas
a partir de atestados de óbito de nascidos mortos no período de estudo,
obtidos no Cartório de Registro Civil de Arujá. Como procedimentos
metodológicos, foram utilizadas a técnica de história oral para a coleta de
dados e a técnica de análise de conteúdo do material coletado. As
entrevistas realizadas foram gravadas e transcritas integralmente, e
posteriormente recortadas para análise.

Com o objetivo de compreender como certas questões foram percebidas e


sentidas no seu universo real, foram feitas com as mulheres que
vivenciaram o problema de perda de seus bebês algumas perguntas de
partida, motivando todo o processo de investigação:

• Como foi percebida a gravidez?

• Quais as alterações sentidas em seu corpo?

• Como foi recebida a notícia da vinda do bebê?

• Quando e como ocorreu a busca pelo serviço de saúde?

15
• Como relatam as circunstâncias da perda do bebê?

• Quais as reações descritas por essas mulheres após a perda?

• Qual o significado da perda do bebê no contexto de vida dessas


mulheres?

De um total de 15 mulheres identificadas, 11 foram localizadas. Dessas 11


mulheres, sete foram entrevistadas, enquanto quatro não o foram pelos
seguintes motivos: duas não compareceram ao local marcado, embora
tivessem sido visitadas em sua residência por três vezes; uma havia
mudado de cidade após a localização e uma mulher não concordou em
participar da entrevista.

As entrevistas foram realizadas em suas residências, mediante a assinatura


do Termo de Consentimento.

Utilizou-se a técnica de história oral para a coleta de dados e, para a análise


dos relatos das mulheres entrevistadas, a técnica de análise de conteúdo,
em especial, a análise temática.

Foram utilizadas as duas primeiras etapas citadas por Bardin2 (1977) para
a análise temática: a pré-análise e a exploração do material. As entrevistas
foram gravadas e transcritas integralmente, sendo realizada a correção do
português e, para obter um texto para análise, utilizaram-se as regras de
transcrição de Preti15 (1997); posteriormente, foram selecionadas
categorias temáticas para o estudo.

Para a análise, foram considerados dois momentos do processo


vivenciado por essas mulheres, aqui denominados de contexto
circunstancial da gravidez e impacto após a perda.

— Contexto circunstancial da gravidez: foram considerados os relatos


do processo de gravidez até a perda, incluindo o atendimento ao parto,
tomando-se como categorias:

• a percepção da gravidez;

• a vinda do nenê;

• os problemas de saúde até a perda;

• o atendimento do serviço de saúde.

16
— Impacto após a perda: foram considerados os relatos do processo
vivido pelas mulheres do estudo depois da perda, desde o momento de sua
chegada em casa sem o bebê, até o momento da entrevista. As categorias
utilizadas foram:

• as reações apresentadas;

• a lembrança do nenê;

• o significado da perda;

• redes sociais de apoio;

• mensagem para mulheres;

• perspectivas.

As reações apresentadas pelas mulheres desse estudo corresponderam a


uma longa trajetória de sofrimento e dor, que se iniciou no hospital,
mediante a notícia fria do médico, e que continuou ao chegarem em casa,
ao se depararem com tudo que seria para o nenê - berço, enxoval,
roupinhas - momento identificado como o contato com a realidade da
ausência do nenê.

"Ah, é duro ter que enfrentar a verdade, chegar em


casa e ver tudo do nenê, ver berço arrumado, ver as
roupinhas... fazer repouso durante oito meses para
nada... foi tudo em vão... cria uma revolta... a gente
tem que se conformar... a dor para mim é muita."
(Marilsa)

Os relatos mostram que, à medida que a mulher foi tomando consciência da


perda do bebê, muitos foram os sentimentos que dela tomaram conta,
revelados de forma verbal e não-verbal: frustração, decepção, revolta,
tristeza, culpa e choro.

"O que eu vou dizer para você... apesar... da perda...


((choro)) eu ainda choro..." (Mariana)

17
Interpretou-se que Mariana também relatou fatos de sensação percebida de
alucinação e Cristina expressou o desejo de morrer, conforme relatos na
seqüência:

"Eu lembro que, eu acho que isso é importante, eu


lembro que meu corpo todinho, é como se
levantassem bolinhas... e eu falava assim para o meu
marido, você está vendo... olha só como eu estou...
aquela hora eu precisava de um médico...
((choro))... eu precisava de um calmante naquele
momento... ((choro))... ninguém. Ninguém
percebeu" (Mariana)

"Não dá nem prá explicar, uma tristeza só... vontade


de até morrer também... É que eu tenho cabeça,
senão tinha feito besteira até, Deus que me perdoe...
perder assim... tinha vontade de morrer também
junto..." (Cristina)

O significado da perda do bebê para as mulheres do estudo envolveu a


reflexão sobre o acontecimento da experiência que vivenciaram. Para a
maioria delas, a perda se revestiu de múltiplos significados.

A partir dos relatos, procedeu-se um processo de interpretação, baseado no


evento acontecido, e que resultou na elaboração do significado em três
eixos: perda de parte/pedaço do corpo, fatalidade pela vontade divina e
mudança de atitude perante a vida.

"Prá mim, foi uma parte de mim que foi embora... eu


não sei, mas aquele nenê era uma parte de mim...
era parte de minha vida, eu não sei porque, mas
uma coisa inexplicável, mas... Prá mim, foi uma
experiência, uma dor... uma experiência dura, mas
que a gente tem que passar." (Marilsa)

"É que ela não tinha que ser minha... tinha que ser
de Deus... Deus quis assim... Mas um dia Ele irá me
dar outra, se Deus quiser... é tarde..." (Alzira)

"Significou muito, porque eu mudei bastante... Antes,


eu era muito nervosa com os meninos, mas agora
não, agora eu penso assim: já perdi um e não vou
perder os outros que estão vivos..." (Ane)

18
"O significado... Não deixar de viver, que é muito
importante viver. O significado dessa perda foi muito
profundo... porque a gente vai descobrindo a missão
da gente. Porque depois dessa gravidez... eu fiquei
mais exigente comigo mesmo, assim... Eu acho que
a lição que me deixa é isso. Sabe que a gente tem
que viver a cada minuto... o minuto é agora... mas
com responsabilidade. No sentido que amanhã vai
ser um novo dia e que eu tenho que estar inteira...
Para poder realizar todos os meus sonhos daquele
minuto... daquele tempo que passou que eu
programei...

Eu posso dizer para você que nessa gravidez eu


amadureci... estou cobrando mais de mim, estou
bem mais madura..." (Mariana)

Conclusões:

O presente estudo, de natureza qualitativa, permitiu uma


aproximação da compreensão do significado da perda fetal vivenciada por
mulheres, considerando a dimensão de totalidade do ser humano.

Foi possível obter elementos para o entendimento de sua realidade


sociocultural, a partir das diversas circunstâncias relatadas, do
relacionamento com os serviços de saúde, instituições religiosas e pessoas,
mostrando a forma como todos esses relacionamentos aconteceram e foram
sentidos por essas mulheres diante do problema.

Faz-se necessária uma mudança de paradigma nessa missão de


atender pessoas; é preciso humanizar o atendimento nos serviços de saúde.
Ficou muito evidente a necessidade do acompanhamento de usuárias de
serviços de saúde que tiveram uma perda fetal, por uma equipe
multiprofissional. Foi evidenciada, também, a importância de uma rede de
apoio para mulheres que vivenciam esse problema.

A perda fetal representou uma ruptura/crise na vida dessas


mulheres. Implicou a reconstrução de sua identidade, em outras bases, que
lhes possibilitou dar um salto de qualidade em suas vidas, trazendo
sabedoria para aconselhar outras mulheres, com vistas a evitar processos
semelhantes aos vividos por elas.

19
20

You might also like