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Querido @AleRocha,

Como já lhe disse em privado, se sentir insônia ou medo, me escreva ou ligue, ok?
Fui sincera e a oferta foi espontânea, de coração.

Sei como é horrível dormir sem ter certeza de que haverá um amanhã. Passei todas
as noites na UTI em claro, porque tinha medo de não acordar, de não me despedir
dos meus pais, das pessoas que amo.

Até hoje tenho pesadelos com o hospital, com a UTI, com as mortes que presenciei,
com médicos sussurrando pelos cantos e me olhando com ar assustado ou de pena...
Puta que o pariu, os olhares de comiseração acabavam comigo e faziam com que eu
me sentisse ainda mais miserável... Foi uma merda, Ale! Odiei cada segundo!

A droga da UTI restringe visitas a poucos minutos diários para evitar contaminações e
infecções generalizadas, bem como proíbe o uso de qualquer aparelho eletrônico
-como celulares, p. ex. - para evitar interferência em marcapassos e equipamentos
afins. Eu não podia nem mesmo enviar uma droga de msm para dizer que estava
morrendo, quanto mais usar a internet, afff!!!

Como o meu caso foi de choque séptico (septicemia) após infecção generalizada,
lembrava a toda hora daquela modelo que havia tido todos os membros amputados,
um por um, antes de finalmente morrer. Lembrava do estrago que meus órgãos, meu
cérebro, poderiam sofrer se eu entrasse no chamado “choque profundo” e tentava me
manter consciente e alerta.

Não tinha mais força para segurar livros, nem ânimo para lê-los. Apesar das punções
dolorosas nos pulsos por conta da gasometria diária, antes de perder por completo a
força nas mãos, tentava escrever como uma louca, redigindo meu codicilo como se
fosse a última carta a meus pais.

Você sabe o que é um codicilo, Ale? A grosso modo, de forma bem tosca, codicilo é
uma espécie de “últimas disposições”, um “testamento fast food”, informal e referente
a bens de pequena monta.

Redigi instruções para meus pais sobre não desejar o prolongamento artificial de
minha vida em nenhuma circunstância, sobre a doação de todos meus órgãos, ossos
e tecidos úteis, sobre todos os seguros que deveriam levantar, sobre todas as
pessoas que deveriam obrigatoriamente ser informadas no caso de meu falecimento e
também sobre aquelas que gostaria que soubessem que foram importantes para mim.

Alguns dos meus livros e objetos preferidos seriam destinados expressamente a


quem sabia que os apreciaria. Outros seriam doados a bibliotecas ou a instituições de
caridade. Alguns outros deveriam ser queimados, definitivamente destruídos, por
terem significado única e estritamente para mim.

Em outro documento à parte, anotei contas de banco, e-mails, senhas, tudo. Sei que
parece meio mórbido, neurótico ou exagerado, mas a última coisa que gostaria de
deixar para minha família eram problemas. Queria facilitar a vida deles após minha
morte.

Quando alguém morre, você se sente perdido, desnorteado, e já prevendo que minha
família se sentiria assim, achei que seria prático deixar elaborado um pequeno
manual de instruções sobre como proceder no caso de minha morte.

Naqueles dias, só dormia quando a exaustão me vencia e eu desmaiava. Literalmente


desmaiava de cansaço, Ale, não é figurativo.

Olha, o que vou dizer pode parecer uma puta falta de sensibilidade, mas estou sendo
sincera e expondo a coisa toda do meu ponto de vista, tá?

Acho que você deve lutar até o fim mesmo. Você a obrigação moral de fazer isso,
querido. Poxa, você tem uma esposa e, principalmente, um filho! Seria uma tremenda
putaria, uma covardia dos carambas se você ousasse desistir!

Sei que dói, que dá medo, que dá vontade de morrer só para não sofrer mais, para
fazer com que o medo e a dor cessem de vez, mas é uma tremenda covardia desistir
e deixar que tudo se vá... É o mais fácil, parece ser o mais reconfortante, mas não é
correto. Morrer sem lutar é uma mega-falta de consideração com as pessoas que
amamos!

Confesso que nos momentos em que meu organismo rejeitava os antibióticos, nas
horas em que os analgésicos não cortavam a dor, pensei diversas vezes em sair à
francesa, em dar uma de joão-sem-braço e morrer discretamente no meu leito
hospitalar. Bullshitagem da grossa, né? E quem iria trollar minha família e meus
amigos, hein? Rs! ;-)

Não sei dizer se me tornei uma pessoa melhor após ter enfiado os pés na cova, mas
certamente me tornei uma pessoa diferente. A perspectiva muda, porque você passa a
ter consciência de como morrer é fácil.

Por algum tempinho, meu organismo ainda estará mais frágil que o normal e não
poderei me expor demais, nem sobrecarregá-lo excessivamente, mas, em último
caso, morrer não é tão ruim assim...

Lembra que citei o pavor que tinha do choque séptico profundo? Pois é... Eu entrei
em choque profundo, Ale. A chamada “iminência da morte”, quando seu organismo já
está todo fudido e desistiu de funcionar. Não tive seqüelas físicas, o que é pouco
comum, mas cheguei ao fim e voltei.

O engraçado é que eu estava ciente do que estava ocorrendo no dia em que quase
aconteceu. Os médicos se assustaram um pouco na manhã seguinte por eu saber
que havia sido o pico, por ter sentido que era o fim.

É tranqüilo, Ale. Morrer é um ato solitário. Já nascemos prontos. Você não consegue
se mexer por mais que queira e sua voz não sai. Você sente que algo está estranho,
porque começa a relaxar demais, uma sonolência involuntária chega e se apodera do
seu corpo e até sua respiração se torna mais lenta e difícil... É calmo, suave... A dor
passa, vai embora... Foi o único momento em que não senti dor dentro do hospital.

Meus últimos pensamentos antes daquilo que achei que seria o fim foram um pouco
desconexos, mas a idéia foi somente uma: - É só isso? Tão simples assim?

Depois apaguei para acordar no dia seguinte, rodeada por médicos e agulhas. Viva.

Por sinal, continuo viva e, na medida do possível, vou bem e continuo cheia de planos
que vão muito além de um codicilo rascunhado às pressas... Entre os quais, ajudar
com sua ação e dar um jeito de conseguir seus medicamentos, rs! ;-)

Abraços nipônicos e sinceros da


Cecilia Tanaka

PS: - Acho que não era minha hora mesmo, porque não vi luz nenhuma, hahaha!!! ;-D

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