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O DESAPONTAMENTO ADVENTISTA

Por João Flávio Martinez

Dissertando sobre as frustrações


emocionais pelas quais muitas pessoas
passam em determinados movimentos
religiosos, o psicólogo Henry Gleitman,
em seu artigo: “A teoria da dissonância
cognitiva”, elucida, do ponto de vista
psicológico, a persistente confiança do
adepto de seita na doutrina, no grupo ou
em seu líder, mesmo após freqüentes
decepções. Diz ele em sua introdução:

“As pessoas tentam dar um sentido ao


mundo ao redor, mas como? Procuram
uma analogia entre as próprias
experiências e lembranças, e buscam
uma confirmação de que a analogia está
certa na opinião dos outros. Se tudo vai
dar certo, ótimo. Mas o que acontece
quando encontram-se incoerências?”.

Deparar-se com incoerências


doutrinárias (heresias) é uma constante
que alguns sectários sinceros são
incapazes de negar. Prosseguindo em sua
declaração, Henry diz que: “O estudo de
Asch (Solomon Asch, 1956) mostrou o
que acontece quando há discordância
entre as próprias experiências (e as
crenças fundadas nelas) e as das outras
pessoas. Mas, e se a incoerência estiver
no interior das próprias experiências ou
nas crenças das pessoas? Isso vai
provocar uma inclinação a reconstruir
uma coerência cognitiva, ou seja: a
reinterpretar a situação de maneira a
tornar menor o desacordo encontrado.
De acordo com as teorias de Leon
Festinger, isso acontece porque cada
incoerência percebida entre os aspectos
do conhecimento, dos sentimentos e do
comportamento é causa de angústia —
dissonância cognitiva — que as pessoas
logicamente tentam aliviar (Festinger,
1956)”.

Cabe salientar que muitos grupos


denominados “cristãos” passaram por
isto. Entre eles está o grupo religioso da
senhora Ellen G. White. Pela analogia, o
leitor irá perceber que a “teoria da
dissonância cognitiva” explica, de modo
satisfatório, o fenômeno vexatório
chamado pelos adventistas de “o grande
desapontamento de 1844”. Cabe
ressaltar, ainda, que a Sra. White fazia
parte do movimento adventista de então,
que esperava a parousia (o aparecimento
de Cristo em glória) para aquela época.
Mais tarde, porém, ela se tornou uma das
fundadoras e profetisa da Igreja
Adventista do Sétimo Dia, grupo
religioso com fortes raízes na doutrina do
advento.

A “arte” de “interpretar determinada


situação com o objetivo de esconder
incoerências foi, sem dúvida, um artifício
que envolveu os adventistas daquela
época. Henry propõe um fato ilustrativo
que se encaixa perfeitamente na
frustrante experiência do movimento
adventista. Ele explica isso empregando o
exemplo de uma seita esotérica que, por
meio de sua profetisa, havia recebido
uma mensagem dos “guardas do
universo” para esperarem o fim do
mundo em uma data fixa, à meia-noite,
ocasião em que aconteceria uma
inundação enorme e apenas os
verdadeiros fiéis se salvariam, sendo
arrebatados por discos voadores.
Empregaremos aqui o mesmo método
para traçar um paralelo com o que
ocorreu com os adventistas.

Observe que, semelhantemente, os


adventistas da primeira geração
acreditavam, por meio das teorias de
Guilherme Miller (um leigo pregador
batista), que Jesus voltaria em 1843. O
principal pilar da teoria de Miller eram
os 2.300 dias e, ligado a isto, estava a
idéia da purificação terrestre do
santuário, ambos contidos no livro do
profeta Daniel. Como nada aconteceu na
data fixada, remarcaram a data, desta
vez para 1844. Novamente, a profecia
falhou. A Sra. White fazia parte daquela
geração que esperava o retorno de Cristo
para aquele tempo, conforme
acreditavam os adventistas.
Posteriormente, Ellen White declarou
que os estudos de Miller foram guiados
por Deus, confirmando, assim, a crença
na predição do segundo advento com
data fixa.

Mas o que o desapontamento adventista


tem de comum com o grupo esotérico
apontado por Henry? Deixemos que a
profetisa White nos ajude a encontrar a
resposta.

A primeira pergunta é: Há alguma prova


de que Miller havia recebido seu cálculo
profético de Deus? Veja o que pensava
Ellen G. White acerca disso: “Deus
encaminhou a mente de Guilherme
Miller para as profecias, e deu-lhe
grande luz quanto ao livro do
Apocalipse”.1

Mas será que os adventistas acreditavam,


de fato, que seriam arrebatados naquela
ocasião? Segundo Ellen White, os
adventistas que vivenciaram aquela
frustração não “desejavam ser instruídos
ou corrigidos por aqueles que estavam
indicando o ano em que acreditavam
expirarem os períodos proféticos, e os
sinais que mostravam estar Cristo perto,
às portas mesmo2 [...] Os santos
esperaram ansiosamente pelo seu Senhor,
com jejuns, vigílias, e oração quase
constante”.3

Como podemos perceber, a Sra. White


não só afirmava em seus escritos que
Miller fora instruído por Deus como
também dizia que Cristo voltaria num
dia prefixado para buscar os que
acreditavam naquela profecia,
circunstância em que se daria o fim do
mundo.

Acompanhe o exemplo mencionado por


Henry e veja como os membros da seita
amenizaram o problema (correlacione o
fato com a IASD): “No Dia do Juízo, os
membros da seita reuniram-se à espera
da inundação. À hora prevista para o
pouso dos discos voadores chegou e
passou, a tensão era maior com o passar
das horas, quando a líder da seita
recebeu a suposta mensagem
‘aliviadora’: o mundo foi poupado como
prêmio pela confiança dos fiéis. Houve
muita alegria e os crentes tornaram-se
mais fiéis”.

Da mesma forma, com os adventistas, o


tempo foi passando e as expectativas
aumentando cada vez mais. Alguns
dizem que os adventistas até mesmo se
vestiram de roupas brancas para esperar
o grande acontecimento, contudo, isto é
hoje negado veementemente pela IASD.
Seja como for, os alardes das predições
de Guilherme Miller arrastaram
multidões de crédulos na crença de que
Jesus voltaria na data marcada.
Entretanto, a predição falhou mais uma
vez. Mas isso não foi o suficiente, pois
muitos preferiram permanecer na
pertinácia, procurando alternativas para
a falha profética.

Atente para os fatos que envolveram esta


circunstância. Qual foi o resultado desta
grande expectativa? Jesus realmente
voltou? Ellen White responde: “Vi que os
que estimavam a luz olhavam para o alto
com ardente desejo, esperando que Jesus
viesse e os levasse para si. Logo uma
nuvem passou sobre eles, e seus rostos
ficaram tristes. Indaguei a causa dessa
nuvem, e foi-me mostrado que era o seu
desapontamento. O tempo em que
esperavam o seu Salvador havia passado,
e Jesus não viera”.4

Qual foi então a desculpa, ou “nova


mensagem”, que a Sra. White encontrou
para explicar esse fracasso e amenizar a
angústia dos desapontados? Ela explicou
a questão nos seguintes termos: “Estão
de novo desapontados em suas
expectações. Jesus não pode ainda vir à
terra. Precisam suportar maiores
provações por seu amor. Devem
abandonar erros e tradições recebidos de
homens e voltar-se inteiramente para
Deus e sua Palavra. Precisam ser
purificados, embranquecidos, provados.
Os que resistirem a essa amarga prova
obterão eterna vitória. Jesus não veio à
terra como o grupo expectante e jubiloso
esperava, a fim de purificar o santuário
mediante a purificação da terra pelo
fogo. Vi que eles estavam certos na sua
interpretação dos períodos proféticos; o
tempo profético terminou em 1844, e
Jesus entrou no lugar santíssimo para
purificar o santuário no fim dos dias. O
engano deles consistiu em não
compreender o que era o santuário e a
natureza de sua purificação. Ao olhar de
novo o desapontado grupo expectante,
pareciam tristes. Examinaram
cuidadosamente as evidências de sua fé e
reestudaram a interpretação dos
períodos proféticos, mas não lograram
descobrir erro algum”.

Mas isso não é tudo. A Sra. White


continua: “Foi-me mostrado o doloroso
desapontamento do povo de Deus por
não ter visto a Jesus no tempo em que o
esperava. Não sabiam porque seu
Salvador não viera; pois não podiam ter
evidência alguma de que o tempo
profético não houvesse terminado. Disse
o anjo: ‘Falhou a Palavra de Deus?
Deixou Deus de cumprir suas promessas?
Não; Ele cumpriu tudo o que prometera.
Jesus levantou-se e fechou a porta do
lugar santo do santuário celestial, abriu
uma porta para o lugar santíssimo, e
entrou ali para purificar o santuário’.
Todos os que pacientemente esperarem
compreenderão o mistério. O homem
errou; mas não houve engano da parte de
Deus. Tudo o que Deus prometeu foi
cumprido; mas o homem erroneamente
acreditou que a terra era o santuário a
ser purificado no fim do período
profético. Foi a expectativa do homem,
não a promessa de Deus, que falhou”.5

Observe que Ellen White confirmou que


os crentes, na teoria do advento pregado
por Miller, se reuniram para esperar, no
dia marcado, o retorno de Cristo, porém,
o dia chegou e passou e Cristo não veio,
para o desapontamento de todos. Daí, ela
alegou que alguns receberam de Deus
algumas explicações para o fracasso
ocorrido. Entre essas explicações, a que
dizia que Deus resolveu, de “última
hora”, provar o seu povo, adiando, assim,
a oportunidade para que outros
aceitassem a mensagem do advento.
Aqueles que aceitaram essa explicação
tornaram-se ainda mais fiéis.

Novamente, retomando o paralelo com a


seita esotérica, Henry comenta: “Com o
ridículo fracasso de uma profecia tão
exata, era lógico imaginar, como reação,
o abandono daquelas crenças e o
afastamento dos fiéis da seita. Mas a
teoria da dissonância cognitiva explica
este comportamento: deixando de
acreditar nos ‘guardas do universo’, a
pessoa tem de aceitar uma dissonância
entre o atual cepticismo e as crenças
antigas, e isso é causa de dor”. Trazendo
para o contexto adventista, isso quer
dizer que se os adventistas deixassem de
acreditar na profecia, teriam de aceitar e
reconhecer a enorme incoerência que
envolveu o episódio, e isso lhes traria
uma frustração ainda maior.

Ellen White explica a persistência dos


adventistas na derrocada doutrina dos
2300 dias? Ao invés de reconhecerem o
erro, passaram a acreditar numa suposta
resposta (forjada) para o acontecido, a
fim de amenizar a decepção que tiveram.
“Aqueles fiéis e desapontados, que não
puderam compreender porque seu
Senhor não viera, não foram deixados em
trevas. De novo foram levados às suas
Bíblias, a fim de examinar os períodos
proféticos. A mão do Senhor removeu-se
dos algarismos, e o erro foi explicado.
Viram que o período profético chegava a
1844, e que a mesma prova que haviam
apresentado para mostrar que o mesmo
terminava em 1843, demonstrava
terminar em 1844. Ao passar o tempo, os
que não haviam recebido inteiramente a
luz do anjo se uniram com os que haviam
desprezado a mensagem, e voltaram-se
contra os desapontados, ridicularizando-
os”.6
Naturalmente, com tamanho erro de
predição era de se esperar que aquela
idéia da volta de Cristo com data
marcada se encerraria por aqueles dias.
Mas confirmando a teoria da
“dissonância cognitiva”, a dor da
decepção foi “superada” por uma nova
teoria.

Comentando a desilusão que acometeu


alguns adeptos da seita esotérica, Henry
diz: “A sua antiga fé seria agora uma
humilhante idiotice. Alguns membros da
seita chegaram até a perder o trabalho e
a gastar todo o seu dinheiro, e, agora,
recusando a ideologia dos ‘guardas do
universo’, tudo isso teria parecido como
uma ridícula bobagem sem sentido. A dor
da dissonância teria sido intolerável.
Assim foi reduzida de importância
acreditando na nova mensagem, e, vendo
outros membros aceitá-la sem dúvida
nenhuma, a fidelidade saiu até
fortalecida. Agora podiam se considerar
como heróicos e leais membros de um
corajoso grupo que salvou o mundo”.
Da mesma maneira, os adventistas
procuraram esconder os erros cometidos
atrás de eufemismos sutis. Os adventistas
mais radicais não deram “o braço a
torcer” reconhecendo seu erro e, ao invés
disso, procuraram amenizar o problema,
interpretando de outra maneira o cálculo
profético das 2.300 tardes e manhãs,
espiritualizando-o: o tabernáculo não era
mais a terra, mas o céu. Portanto, não
havia fim de mundo, ou volta literal de
Cristo, que apenas havia passado de um
compartimento do santuário celestial
para outro. Essa nova interpretação,
admitida paulatinamente, desembocou
na aberração teológica da doutrina do
“Santuário”, do “Juízo Investigativo” e
do “Bode Emissário”. E tudo isso
debaixo de uma suposta visão que Hiram
Edson teve após o “grande
desapontamento”. É importante
esclarecer que tudo isso não passou de
uma desculpa acanhada para tentar
remendar o desastre teológico de Miller.
Assim, o grupo poderia novamente
assegurar-se de que estava no rumo
certo. Ou seja, não eram mais
considerados fanáticos ou he
réticos, pois tinham recebido uma nova
revelação de Deus como resposta para o
fiasco anterior.

Os adventistas que perseveraram nessa


idéia da nova revelação sofreram
algumas privações. “Os que não ousaram
privar os outros da luz que Deus lhes
dera foram excluídos das igrejas; mas
Jesus estava com eles, e estavam alegres
ante a luz de seu semblante. Estavam
preparados para receber a mensagem do
segundo anjo7 [...] De igual maneira, vi
que Jesus considerou, com a mais
profunda compaixão, os desapontados
que haviam aguardado a sua vinda; e
enviou os seus anjos para dirigir-lhes a
mente, de maneira que pudessem segui-lo
até onde Ele estava. Mostrou-lhes que a
terra não é o santuário, mas que Ele
devia entrar no lugar santíssimo do
santuário celestial, a fim de fazer
expiação por seu povo e receber o reino
de seu Pai e, então, voltaria à terra e os
tomaria para ficar com Ele para
sempre”.8

160 anos depois

Ainda muito poderia ser comentado


sobre o desapontamento adventista,
todavia, acreditamos ter sido possível
compreender, pelo paralelo entre o
movimento do advento e o exemplo que
Henry forneceu, as técnicas psicológicas
empregadas pelos então pioneiros
adventistas, com o objetivo de aliviar a
frustração angustiante (dissonância
cognitiva) por uma profecia não
cumprida. A fim de amenizar a seriedade
do fracasso e da incoerência da predição,
inventaram uma nova teoria
(supostamente revelada por Deus), que
tornou menor o desacordo encontrado.
Com isso, conseguiram tirar a atenção
dos adeptos dos pontos mais críticos do
erro profético ocorrido em 1843-4. E
hoje, cerca de 160 anos após esse grande
desvio ter ocorrido, a IASD continua
acreditando que é a única igreja
verdadeira na face da terra — os
remanescentes. Estes foram os resultados
do desapontamento adventista.

• Todas as citações de Henry Gleitman


foram extraídas da obra Basic
Psychology, Norton (1983), traduzida por
A. Maria De Florim M. Martinelli.

Notas:

1 Primeiros escritos de Ellen Gould


White. Tradução de Carlos A. Trezza.
Casa Publicadora Brasileira. Santo
André: São Paulo, 1967, p. 231.
2 Ibid., p. 234.
3 Ibid., p. 239.
4 Ibid., p. 241.
5 Ibid., p.250-1.
6 Ibid., p. 246.
7 Ibid., p. 237.
8 Ibid., p. 244.

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