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a Ba upeat zagao E DEMOGRAGIA®™ InTRODUGAG Nesta ocasiio me-proponho, sobretudo, a colo- car algumas das questBes centrais que me parecem ainda insuficientemente pesquisadas no debate a respeito do processo chamado “globalizagao” e sobre suas relagées com as tendéncias aruais das formas institucionais de dominacio ¢ em particular do moderno Estado-nagio. Nao obstante, ainda que seja restrita como aqui, toda discussio dessas questécs implica de todo modo uma perspectiva tedrica ¢ histérica sobre a questio do poder ¢ € sem duvida pertinente assinalar alguns dos tragos mais importantes que orientam essa pesquisa, Do ponto de vista dessa perspectiva, o fendmeno do poder € caracterizado como um tipo de relagio social constituido pela co-presenga permanente de trés elementos ~ dominacio, ex- plorasio e conflito— que afeta as quatro éreas bisicas da existéncia social ¢ que ¢ resultado © expressio da dispura pelo controle delas: 1) 0 trabalho, seus recursos ¢ scus produtos; 2) 0 sexo, seus recursos ¢ seus produtos; 3) a autoridade coletiva (ou pablica) seus recursos € seus productos: 4) a subjetividade! intersubjetividade, seus recursos e seus produtos. ‘As formas de existéncia social em cada uma dessas {reas nao nascem mas das outras, mas nao existem, rnem operam separadas ou independentes entre si Por isso mesmo, as relagGes de poder que se constituem na disputa pelo controle de tais Areas ou Ambitos de existencia social tampouco nascem, rnem se derivam, umas das oucras, mas nao podem existir, salvo de maneira intempestiva precéria, + Esta € uma vero revista de uma conferéncia que profer nt Escola de Estudos Incernacionas e Diplomiticos Pedro Gual ‘em Carsexs Venezuela, om uno de 2000, Tradusio de Dina Lida Kinoshita, (Anibal Quijano } umas sem as outras. Isto & formam um complexo estrutural cujo Cardter € sempre histérico ¢ ‘especifco. Em outras palavras, trarase sempre de tum determinado padrio histérico de poder.’ (0 atual padréo de poder mundial consiste na articulagio entre: 1) a colonialidade do poder, isto 6 a ideia de “raga” como fundamento do padrio universal de classificagao social bésica ¢ de dominasio social; 2) 0 capitalismo, como padrao universal de exploragio social: 3) 0 Estado como forma central universal de controle da aucoridade coletiva eo moderno Estado-nagio como sua variante hegeménica; 4) 0 eurocentrismo como forma hegemonica de controle da subjetividadel intersubjerividade, em particular no modo de produzir conhecimento. Colonialidade do poder € um conceito que dé conta de um dos elementos fundantes do atual padrdo de poder, a classficagio social basica € universal da populagio do planeta em corno da ideia de “raga’? Essa idéia e a classificagio social e baseada cla (ou “racista”) foram originadas hé 500 anos junto com Amética, Europa ¢ 0 capitalismo. Sao a ‘mais profunda e perdurivel expressio da dominagio colonial e foram impostas sobre toda @ populagao do planeta no curso da expansio do colonialismo ceuropeu. Desde entio, no atual padrio mundial de poder, impregnam codas ¢ cada uma das éreas de existéncia social e constituem a mais profunda ¢ eficaz forma de dominacio social, material © incersubjetiva, e so, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais universal de dominagao politica dentro do atual padrio de poder. ‘A categoria de capitalismo esté referida a0 conjunco da articulagio estrutural de todas as formas historicamente conhecidas de controle do trabalho ou exploragio, escravidao, servidao, Novos Runos Ano 17 = 10-37 + 2002 (© Estado, como escruura de autoridade e como- forma de dominagao coletiva, é muro antigo. Nao estd totalmente bem estabelecido desde quando e fem associagao com quais condigdes histéricas foi imposto como a forma central universal de controle da autoridade coletiva e de dominagao politica, menos ainda quando, como ¢ onde chegou a ser Estado-nagio. Por sua ver sabemos bem que 0 moderno Estado-nacio €, por uma parte, re- lativamente recente ¢, de outra parte, nao esté consolidado a nao ser em poucos espasos de dominagao estatal ou patses. Seus signos especificas sio, primeiro, a cidadania ou presungio formal de igualdade juridico-politica dos que habitam em seu espaco de dominagio nao obstante sua desigualdade nos demais imbitos do poder; segundo, a repre- sentatividade politica que, sobre essa bas, se atribui ao Estado com respeito a0 conjunto de cidadios ¢ no s6, como nas outras variantes de Estado, de algum interesse social particular ou setorial. Foi se constituindo no periodo conhecido como a mo- dernidade, que se abre a partir da América, € em vinculagéo com o processo de eurocentrizasio do capitalismo ¢ da modemidade; aleanga seus tragos atuais definitérios desde finais do séeulo XVIII e € admitido durante 0 século XX como © modelo mundialmente hegemdnico, 0 que néo equivale, com cerceza, que tenha chegado a ser praticado também mundialmente. Na etapa atual do poder colonial/capitalista, sua “globalizacio", em especial desde meados dos anos 1970, pressiona pelo des- vireuamento daqucles tragos especificos, inclusive pela reversio de seus respectivos processos, em particular do conflito social em torno da ampliacao da igualdade social, da liberdade individual ¢ da solidariedade social.’ Em todo caso, como a racio= ; ‘constitido pla co-presenga nalidade hegeménica, 0 modo dominante de pro- | pet manent de és elementos: ducao de conhecimento. Hite (ie aecar ra: | SAR aN entre seus elementos rine cipais ¢ pertinente destacar sobretudo o dualismo radical entee“ranio” ¢ “corpo” € entre “sujeito” e “objeto” na produgio do conhecimento; tal dualismo radical esté associado a propensao reducionista e homogencizante de seu. modo de definir ¢ identificar, sobretudo na percepyao da experiéncia social, sea em sua versio schistériea, que percebe isolados ou separados os fendmenos ou os objetos e nio requer por con- seqiléncia nenhuma idéia de totalidade, seja na que admite uma idéia de totalidade evolucionista, orginica ou sistémica, inclusive a que pressupde um macrossujeito hist6rico. Essa perspectiva de conhecimenco esté atualmente em um de seus mais abertos periodos de crise, como o esté toda a versio ‘eurocéntrica da modernidade.* Por suas caracterlsticas, na histéria conhecida «esse foi o primeiro dos padraes de poder com carder € vocagio global. Nesse sentido, 0 que agora se chama “globalizagao” é, sem duvida, um momento do processo de desenvolvimento histérico de tal padrio de poder, talvez o de sua culminagio ¢ de sua transigio, como jd foi sugerido por vérios.” ‘Todas essas propostas ¢ categorias sio, como & ‘byi0, questOes abertas. Nao se deve perder de vista, em conseqiiéncia, que sua pesquisa siseematica ¢ seu debate estio apenas comegando. Isso no quer dizer que as propostas que faco neste trabalho sejam arbitririas, mas sim que voltarei a clas conforme a estigagdo ¢ 0 debate se desenvolvam. Mo 17 +9637 + 200 @ Novos Roos AS QUESTOES CENTRAIS DA “gLoeaizagaa” © que hoje se denomina “globalizagao” é obyiamente, uma questo mailtipla ¢ sobre a qual ha um grande debate © uma vasta e crescente liceratura. & provivel que a idéia mais difundida que circula associada a esse termo scja a de uma integeagio econdmica, politica e cultural continua ¢ crescente do mundo, Na pritica, isso implica que ha fendimenos € processos que afetam a todo 0 mundo de maneira imediara, inclusive simultinea, isto ¢, global. E se attibui a “revolugio cientifico- tecnolégica” nos meios ¢ sistemas de comunicagéo © de transporte a qualidade de ser a principal determinante histirica desse possivel processo. Originalmente, a “globalidade” foi referida a tuma mudanca drdstica nas relagSes entre o espago € 0 tempo na subjetividade, como conseqtiéncia da velocidade da circulagao de informagoes produzida pelos novos recursos cientifico-tecnolégicos, de tal rmaneira que se podia perceber simultaneamente 0 que ocorria em qualquer lugar do mundo. Em nossa subjetividade, em nossas relagdes intersubjetivas, ‘© mundo nfo s6 havia se apequenado, mas também iss0 ocorria porque o mundo havia se integrado no tempo, era simultineo. A famosa imagem de “alia global” foi, sem duvida, a construgio mental inicial exitosa que dava conta dessa nova relagao subjetiva com 0 espago € com 0 tempo." ‘Mesmo que, para muita gente, calvez, essas sejam ainda as imagens mais associadas com a idea de “globalizacio”, € preciso admitir que vio sendo submersas sob outras mais recentes, que para muitos jf parecem ter toda a consisténcia de genuinas categorias conceituais, apesar de resistirem a0 abandono de seu habitat medidrico: a “realidade virtual”, 2 “sociedade virtual” ¢ a “nova economia” (que a partir da mesma perspectiva poderia ser também denominada “economia virtual”). A primeira tem implicagées decisivas no debate sobre a produsio do conhecimento. Poe em relevo, sobretudo, que com a tecnologia atual ja nao se reproduz apenas, se combina ou se usa imagens ¢ sons jf presentes na “natureza" ou na “realidade”, mas se produr, manipula c difunde novos elementos visuais e sonoros, novas imagens produzidas com tais novos elementos que em seu conjunto jé constituem um mundo “virtual” ¢ que de muitos ‘modos se superpem c ainda deslocam e substituern ‘© mundo “real” a ponto de que em numerosas & diversas areas nao é tarefa ficil distinguir entce ambos, com tudo que isso significaria para a ‘questio da percepcio, do conhecimento ¢ do modo de produzir conhecimento. A “sociedade virwal” & tuma idéia que prolonga essa imagem e prope que as relagdes sociais ocorrem, cada ver mais, pre cisamente dentro de ¢ tramadas com aquela “realidade virtual” ¢ de algum modo tem essa consistencia. A “nova economia” é a mais recente, medidriea em sua origem como todas as demais, remete & idéia de que a economia do mundo atual se converteu, ou esté em curso de sé-lo, em uma rede tiniea de intercimbio de mercadorias e de valor. Essa seria a expressio emblemitica da integracio global da economia mundial e certamente se apdia fem e se trama com aquelas “realidade virtual” € “sociedade vireual’ © debate nao consegue desviar sempre uma tendéncia & mistificacio. De fato, na linguagem mediética 0 termo “globalizagao” passou a ser virtualmente sinonimo de um vasto ¢ sistémico maquinério impessoal, que existe ¢ se desenvolve de modo independente das decisdes humanas, quer dizer, de um certo modo natural e, nesse sentido, inevitivel, e que abarcariae explicaria todas as atuais ages humanas. Mas 0 “mundo” ~ se com esse termo se implica a existéneia social humana articulada em uma specifica toralidade hist6rica -, seja ou ni “globalizado”, nao se poderia entender por fora do contexto de que ¢ um padrio de poder especifico, ‘6 que Ihe outorga seu cardter de “mundo” ou de totalidade hist6rica especifica, sem o qual qualquer idéia de “globalizagio” seria simplesmence intl De outro modo, resultaria que as redes de comunicagio, de informacio, de intercimbio, etc. cexistem © operam em um tipo de vécuo histérico. Portanto, € teoricamente necessirio, n&o sé pertinente, investigar cada uma das atuais arcas de controle da existéncia social para trazer & luz os sentidos possiveis que a famosa “globalizacio” tem ‘ou pode ter na experiéncia, Dentro dos limies deste trabalho nao irei além de colocar as questoes que me parecem centrais em duas areas principais, 0 controle do trabalho © o da autoridade publica. Gariauismo & GLOBALIZAGAD ‘Ao examinar com euidado as atuais tendéncias do capitalismo os dados sio sem diivida im- Novos Ramos Q) Aro 17 = ne 37 = 2008 pressionantes, seja no que se refere 4 geografia politica da distribuicao de renda, bens © scrvigos basicos ou das fluxos de capital, seja, as relagoes entre formas de capital ou as relagées entre capital e trabalho. Como os dados sao, em geral, acessiveis a todos, para os propdsitos desta investigagao é pertinente assinalar melhor algumas das tendéncias principais: 1, Em 1800, 74% da populagio mundial (entdo de 944 milhocs) detinha 56% do produto mundial (em US$ de 1980: 229,095,000,000), enquanto 26% dessa populagio concentrava 44% de tal PMB. Mas em 1995, 80% da populasio mundial (ja de 5.716.000.000) detinha somente 20% do produto mundial (USS de 1980: 17,091,479,000,000), enquanto 20% concentrava 80% do produto mundial 2. A diferenga de 9 2 1 com respeita a razio entre a renda média dos paises ticos © a dos paises pobres, em dois séculos, chegou a uma diferenca de 60 a 1. Enquanto isso, desde 1950 (8 paises ricos tém aumentado sua populagio em 50% enquanto os paises pobres o fizeram em 250%. 3. Segundo o informe do Banco Mundial (ano 2000), em rermos de produgio mundial, em 1999 05 paises do Grupo dos 7 (G7 daqui em diante), isto é menos de 12% da populagio mundial ¢ com 16% da superficie do planeta, produziam 65%, 3% a mais do que em 1980. 4, Eno mesmo movimento histérico, também a distancia entre ricos ¢ pobres dentro de cada tum dos paises do mundo tem crescido. Assim, no pais mais rico do planeta, Estados Unidos, se em 1970 havia 24,7 milhdes de pessoas em situagao de pobreza critica (11,6% da po- 6 pulasio), em 1997 essa cifta havia saltado para 35,6 milhdes (13.3% da populagao), isto é, em 43% em menos de 20 anos. Um estudo recente ‘mostra que, entre 1977 e 1989, 1% das familias conseguiu captar 70% do total do aumento da riqueza familiar ¢ viu aumentada sua renda em 100%. Na América Latina, desde 1973 as diferencas de renda tém piorado: a renda média dos 20% que obtém renda ¢ hoje 16 vezes mais alta do que a dos 80% restante. No Brasil essa diferensa chega a ser de 25a 1, comparado com 102 1 na Europa ocidental e de 5 a 1 nos EUA. Também, a diferenga de salirio entre os “qualificados” ¢ os outros. Por exemplo, no Peru, cresceu na década de 1990 em mais de 30%, ¢ na Colombia em mais de 20%." Dadas essas condigdes, as erés pessoas mais ricas do mundo tém uma fortuna superior a0 PIB dos 48 Estados mais pobres. Quer dizer, da quarta parte da totalidade dos Estados do mundo, Por exemplo, com respeito 3 América Latina, em 1996 as vendas da General Motors Corporation foram de 168 bilhdes de délares, genquanto que o PIB combinado da Guatemala, EI Salvador, Honduras, Costa Rica, Nicardgua, Panamé, Equador, Peru, Bolivia, Paraguai ¢ Uruguai, délares. thegou somente a 159 bilhes de Ao mesmo tempo, segundo a ONU (informe da UNDR, 1998), para saisfazer is necessidades bbasicas do conjunto da populagio do planeta, bastariam 4% das 225 maiores fortunas do mundo. E para satisfazer as necessidades sanitérias (em 1998, 4 bilhoes de habitantes do Terceiro Mundo nao tinham acesso & égua potivel nem & energia elétrica) e de nuttiglo (50% das criancas sofrem de desnutricao), bastariam 13 bilhoes de délares, quer dizer, 13% do que se gasta anualmente nos Estados Unidos © na Europa em perfume. Ao considerar a diregao dos fluxos de capital, verifica-se que entre 1990 e 1995, por exemplo, 165% do total do Fluxo de Investimento Direto (EDD) foi para o “centro” © que o restante foi para uns poucos dos chamados “paises cmergentes’. Entre 1989 ¢ 1993, s6 der desses paises receberam 72% desse restante do FDI (China, México, Malisia, Argentina, Tailindia, Indonésia, Brasil, Nigéria, Venezuela ¢ Coréia Ao 17 #1 37 + 2002 Novos Ronce do Sul)" Um problema crucial do luxo mundial de capitais € que a divida do Terceiro Mundo subiu em menos de duas décadas de 615 billoes de délares para 2.500 tilhées de délares. E esta é como todo mundo sabe, uma historia infindével, literalmente, porque ¢ impagéve. Mas &, sobretudo, uma historia trigica."” Por outra parte, dos 6 bithoes de pessoas que formam a populagio do plancta ao iniciar-se novo século, uns 800 milhes nao tém emprego assalariado, E essa é, por certo, uma estimativa conservadora, jd que as estatisticas registram somente aqueles que buscam emprego, ¢ a cifra ainda deve set multiplicada pelo menos por cinco, se fosse considerado ‘0 niimero de membros de ») familias ou lares que depen- deriam de tais salérios ine- Umproblemacnicialdoftw0 | istentes. E a populagio mundaldecatiséqeachida |

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