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SEGISMUNDO SPINA — 4 Poesia de Gregério de Matos, prefacio de Haroldo de Campos, S30 Paulo, EDUSP, 1995, 234 pp. 4. No essencial, 0 volume que iremos comentar retoma um trabalho que 0 A. publicou em 1946. A partida, e independentemente da avaliagao que fagamos da sua versio original, havia curiosidade em saber como, meio século depois, voltaria Segismundo Spina a encarar a obra de Gregério de Matos, tanto do ponto de vista da leitura quanto no respeitante & sua apresentagao antolégica. A expectativa fundava-se, antes de mais, no facto de, beneficiando do ineremento dos estudos sobre 0 barroco, sobretudo a partir da década de $0, ¢ da repercussdo da edigao de James Amado, saida em 1969, a visibilidade do pocta baiano se ter tomado muito mais intensa, tanto junto do piblico como ao nivel da historiografia ¢ da critica literérias. Em consequéncia disso, e quase sempre no meio de alguma polémica, foram surgindo novas propostas de Ieitura da poesia de Gregério, 20 mesmo tempo que, em areas diversas, se foram impondo — sobretudo na éltima década — trabalhos com um certo carieter definitive: no campo da biografia, poderfamos destacar a obra de Fernando da Rocha Peres (em especial Gregério de Mattos e Guerra: Uma re-vistio biogréfica, Salvador, 1983); no dominio do estudo da obra, 0s ensaios de Joao Carlos Teixeira Gomes (Gregdrio de Matos, 0 Boca de Brasa - Um estudo de plagio e criagdo intertextual, Petropolis, 1985) e de Joao Adolfo Hansen (A Sétira e 0 Engenko — Gregério de Matos e a Bahia do século XVII, S80 Paulo, 1989); na drea da versificagio, o trabalho de Rogério Chociay (Os Metros do Boca: Teoria do verso em Gregorio de Matos, So Paulo, 1993): e, rel tivamente aos estudos vocabulares, a dissertagdo de doutoramento de Ruy Magalhaes de Araijo (Glossério Critico-Etimolégico das Poesias Atribuidas a Gregério de Matos e Guerra, Rio, UFRJ. 1993). Face a este panorama, interessava portanto conhecer a reacgao de Spina — que entretanto publicou varios artigos sobre a obra de Gregério de Matos ‘modo como ele incorporaria as novas contribuigdes. Contudo, @ expectaiva despertada pela reedigao do trabalho de 1946 sai frustrada, Evidenciando graves lacunas de infor- magio, 0 A. foi incapaz de proceder a uma reformulagdo efectiva da obra, comprome- tendo assim a seriedade ¢ a utilidade desta nova edigtio. E isso que procuraremos mos~ trar de seguida, pereorrendo de forma breve os diversos momentos do trabalho de Spina. € avaliar 0 2. A antologia & precedida por uma longa introdugao (pp. 17-88), em que 0 A. procura apresentar 0 poeta baiano e @ sua obra. Abrindo com uma secgdo dedicada & biografia, logo ai se evidenciam as lacunas de informagdo de que falivamos. 557 FRANCISCO TOPA Baseando-se — neste como noutros momentos do seu trabalho — num discutivel e dis cutido relato biogrifico setecentista feito por Manuel Pereira Rebelo, Spina ignora as muitas informagdes documentalmente apuradas nos iiltimos anos, tarefa especialmente devida a Femando da Rocha Peres, como deixémos dito. De outra modo nao se expli- caria. por exemplo. que apontasse 1623 ou 1633 como ano de nascimento de Gregorio € 1696 como ano da sua morte, Com efeito, essas duas velhas questdes foram ha muito resolvidas por Peres: Gregorio de Matos nasceu na Baia a 23 de Dezembro de 1636 ¢ morreu em Pernambuco a 26 de Novembro de 1695. A par de erros desse estilo ¢ de Imuitas omissdes, 0 A. produz também afirmagdes vagas. ¢ parcialmente erroncas. deste tipo: «Gregorio € nomeado curador de Srgdos [o A. deveria querer dizer wérfaos»] € juiz de crimes respectivamente de uma comarca proxima de Lisboa e de um dos ara- baldes da mesma capital» (p. 20). Supomos que esteja a referirse, respectivamente, aos cargos de juiz de fora de Alcicer do Sal. para o quat o poeta foi nomeado em 1663. € de juiz do Civel de Lisboa, com nomeagdo ocorrida em 1671. Mais grave. contude. € a referencia a supostos factos que carecem de suporte documental. 2 0 caso. por exemplo. do alegado exercicio da advocacia em Lisboa. a propdsito do qual o A, faz esta surpreendente afirmagdo: «para todos os processos. Gregorio sempre encontrava solugdes improvisadas, embargos de nulidade e arrrazoades pomogriticos» (p. 20). Por aqui se pode ver o estilo de biogratia — romanceado ¢ com frequéncia apoiado na obra atribuida a Gregorio — que Spina apresenta ao leitor. Relativamente as consideragdes sobre a poesia gregoriana. o panorama ndo é muito melhor. Um dos momentos mais interessantes & aquele que 0 A. dedica a0 estudo do léxico. procedendo ao levantamento e comentirio de arcaismos mérficos e semanti- cos. formagdes pessoais. diminutivos € aumentatives. eultismos. prov tas, palavras € expressdes latinas e castelhanas. Esta parte inclui também um interes- sante estudo da vertente brasileira do léxico gregoriano, com especial atengdo aos termos de origem tupi ¢ africana. Algum interesse apresenta também a discussio — a partir do conceito classico de imitagaio — das acusagdes de pligio que. sobretudo desde @ década de 30, pesaram sobre 0 poeta baiano, De forma segura. 0 A. considera os exemplos apresentados por Silvio Julio — 0 maior acusador de Gregorio nesta matéria — acabando quase sempre por rebater os seus argumentos © por mostrar que. mesmo Partindo com alguma frequéncia de motivos, formas, versos alheios. © poeta brasileiro foi quase sempre original. Contudo, esta discussdo poderia sair enriquecida se 0 A. con= voeasse alguns aspectos dos ensaios ja referidos de Teixeira Gomes ¢ de Rogério Choeiay Menos felizes sdo os comentarios sobre a poesia de Gregorio de Matos. Ignorando propostas de leitura mais recentes, o A. fica-se por uma visio superficial que chega a cair no lugar-comum. Além disso. inclina-se em alguns momentos para uma leitura biografista da obra, inspirada por Rabelo. Por outro lado, incapaz de compatibi lizar as vertentes que nela surpreende — a lirica, a sacra ¢ a satirica —. propde uma leitura cronolégica. que carece de argumentos: «Ao que parece. 0 lirismo do Poeta, sobretudo 0 amoroso, foi precedido por uma intensa atividade satirica; a certa altura as duas formas correram paralelamente, até que. como ponto de chegada. um periodo de {8 © de reflexao the abonangou a impetuosidade venenosa ¢ 0 génio picaresco» (p. 48), bios e frases fei- 558 RECENSOES Por aqui se pereebe também que, para Segismundo Spina, a sétira resultaria de dispo- sigdes temperamentais ou de ressentimento, Junta-se a esta concepgdo uma leitura rea- lista do discurso satirico: segundo o A., Gregério foi «o primeiro prelo e 0 primeiro jomal que circulou na Colénia» (p. $9), € «por intermédio dele ¢ dos cronistas da Epoca que poderenios reconstruir com grande fidelidade 0 retrato da sociedade brasileira do século XVilv (p. $4). Spina ignora assim aquilo que Hansen pos em destaque: 0 dis curso satirico obedece também a regras ¢ convengoes retdrics tivas na época em que Gregério de Matos escreveu a sua obra Na secgdo intitulada «Bibliografian. o A. refere-se a problemdtica das fontes manuscritas. dando uma vez mais mostras de falhas de informagao. Se € verdade que 0 levantamento sistematico ¢ 0 estudo dessas fontes esti longe de estar feito, & verdade também — ao contrério do que afirma Spina — que a informagio existente € signi particularmente norma- cativa e segura. Nao se compreende por isso que 0 A. afirme que existem apenas cinco cédices — referidos aliés de forma muito vaga — ¢ se permita ainda tecer considera~ ‘gdes sobre a sua exceléncia, O numero de cédices gregorianos que sio do conhecimento piblico & muito maior. $6 na Biblioetca Nacional do Rio de Janeiro, hé um total de 18 documentos, embora de natureza diferente (a par dos cédices antigos. hha quatro c6pias modermas e um dactiloscrito), sendo que a sua relagio foi pela primeira vez apresen- tada, ainda que de forma insatisfatéria, em 1969 por James Amado. Por ela se ficou também a saber que existem na Biblioteca Histérica do Ministério das Relagdes Exteriores, no Rio de Janeiro, dois cédices que pertenceram a Francisco Adolfo Vamhagen. Também desde 1969. esto inventariados em Portugal 9 cédices, trabalho devido a Rocha Peres, que publicou na revista Ocidente um artigo intitulado «Gregério de Mattos ¢ Guerra: Os apégrafos em Portugal». Vinte anos depois, Gilberto Mendonca Teles (na sua antologia Se souberas falar também falaras, Lisboa, 1989) revelaria a descoberta de outro cédice em Portugal, na altura na posse de um particular € hoje na Biblioteca Ne onal de Lisboa. Para além destes. sdo ainda conhecidos os dois cédices existentes na Lybrary of Congress, em Washington. Deficigncias do mesmo tipo voltam a surgir na listagem bibliogré A. encerra 2 «lntrodugao». Para © comprovar basta que se observe qu da bibliografia passiva, apenas 8 foram publicados depois de 1950. Ora. sendo certo, como dissemos, que foi sobretudo a partir da edigdo Amado que Gregorio comegou a interessar de forma sistematica a critica, isto signifiea que fiearam de fora muitos dos melhores trabalhos: quase todos os que referimos no inicio. a que poderiamos juntar ‘uma série consideravel de ensaios de bom nivel, de autores como Angela Maria Dias. Licia Helena, Haroldo de Campos. Alfredo Bosi, Maria Eurides de Freitas, Luiz Koshiba. Por outro lado, note-se que, a0 lado de historias da literatura que trazem arti- {208 repetitivos sobre 0 poeta baiano, o A. cita muitos artigos ¢ volumes sem interesse. ‘como os de Plinio Barreto, Afonso Costa, Anténio Lopes ou Otoniel Mota. Algo de semihante se poderia dizer a propésito das «Edigdes € florilégios» elen- cados. Com efeito, basta notar que Segismundo Spina nem sequer indica a 2.” edigao de James Amado (Gregorio de Matos — Obra poética, 2 vols.. Rio de Janeiro, 1990). Ficaram igualmente de fora antologias que, recorrendo a fontes manuscritas anterior~ 559 FRANCISCO TOPA mente nao utilizadas, tém uma importincia acrescida, como € 0 caso da que preparou Darcy Damasceno (Os Melhores Poemas de Gregorio de Matos, Séo Paulo, 1985) ¢ a ja referida de Gilberto Mendonga Teles. 3. A antologia propriamente dita também nos parece passivel de criticas. Mesmo sem entrar no capitulo das apreciagdes individuais — discutindo a incluso ou exclusio de determinados textos -, € possivel observar de imediato que a imagem que esta anto- logia refelete da obra de Gregério de Matos & pouco fidedigna. Isso fica a dever-se antes de mais a0 facto de os $2 poemas apresentados terem sido escolhidos a partir da edigdo de Afranio Peixoto, que, como se sabe, nao retine toda a obra atribuida a0 poeta baiano, inclusive pela circunstincia declarada de ter sido excluida a parte fescenina que constava das fontes utilizadas. Se este critério se poderia compreender — mais do que aceitar — na época de Peixoto, € hoje completamente injustivivel, comprometendo assim a antologia em aprego. Mais incompreensivel ainda é que esta atitude tenha sido acompanhada por pequenos actos de censura, como a oped0 por uma forma como «Cc...» (p. 208). Da mesma forma, ¢ apesar de a vertente satirica corresponder a cerca de metade dos poemas seleccionados, compreende-se mal o elevado niimero de textos de tematica religiosa ou moral (cerca de um tergo). que superam os de orientagdo lirica amorosa, Esta falta de fidelidade da antologia pode ainda ser observada no dominio das formas. Com efeito, hi um claro predominio dos sonetos (32), sendo que no conjunto da obra conhecida de Gregorio de Matos os poemas em décimas (que na antologia ouco ultrapassam a dezena) sdo maioritérios. Outro exemplo é o dos romances: apesar de se tratar de forma muito frequente ¢ caracteristica da poesia gregoriana, surge ape~ nas uma vez na antologia. Outra critica que deve ser feita tem a ver com a incluso de pelo menos seis poe- mas relativamente aos quais ja foram levantadas sérias objeccées de atribuigdo. E certo que esta matéria, na auséncia de estudos sisteméticos, ainda nao dispde de conclusdes efinitivas, até porque & bem conhecida a pouca fiabilidade das indicagdes de autoria constantes das fontes, manuscritas ou impressas, do periodo barroco. De qualquer forma, © mesmo sem ter feito investigagdo propria neste dominio, Spina tinha obrigagao de conhecer a bibliografia disponivel sobre o assunto e, no caso de optar pela inclusdo dos poemas duvidosos, de informar o leitor. Ora, na maior parte dos casos, nio € isso que acontece. O primeiro caso diz respeito aos sonetos «E a vaidade, Fabio, nesta vida» (P. 108) © «Sto neste mundo império de loucuray (p. 111), que, significativamente, alcangam uma escassa representagdo nos cédices que reimem a poesia atribuida a Gregorio. Como A. deveria saber, Maria de Lordes Belchior Pontes (Bibliografia de Anténio da Fonseca Soares (Frei Anténio das Chagas), Lisboa, 1950) apontou varias fontes manuseritas em que os sonetos surgem atribuidos a Fonseca. Mais tarde, Vitor de Aguiar e Silva (Maneirismo e Barroco na Poesia lirica Portuguesa, Coimbra, 1971) indicaria uma outra fonte manuscrita que confirma essa atribuigdo. Outro caso € © do soneto «Ramilhete do ar, € flor do vento» (p. 155). Desta vez, contudo, 0 A. — apoiando-se na observagdo feita por Eugénio Gomes em 1968 — 560 RECENSOES informa que uma versdo algo diferente vem incluida no tomo III de 4 Fenix Renascida, atribuida a Francisco de Vasconcelos. Em relagio a dé jada pelo verso «Levou um livreiro a dente», 0 A. tam- bém da conta de parte das diividas que ela oferece: citando Mario Martins a partir de Teixeira Gomes, refere que Filinto Elisio se referira a este texto como sendo de um ‘Anténio Barbosa. Ha contudo outros elementos que demonstram que esse testemunho ndo sé & insuficiente como errado. Na verdade, tudo indica que a décima seja de Antonio Serrao de Crasto. O primeiro a colocar a hipétese foi Xavier da Cunha (Umpressies Deslandesianas, vol. I, Lisboa, 1894), que observou que nos cancionciros dos séculos XVII ¢ XVIII 0 texto tanto vinha atribuido a Gregorio como a Serrao, Um testemunho adicional seria apresentado por Heitor Gomes Teixeira (As Tébuas do Painel de um Auto (Antonio Serréo de Crasto), Lisboa, 1977), que informa que a décima consta do manuscrito 6031 da Biblioteca Nacional de Lisboa, o qual esta datado de 1704 © reime apenas obras atribuidas a Serrio de Castro. Uma tltima prova pode ser encontrada no conjunto dos cédoces conhecidos que recolhem a obra do poeta baiano: 0 texto apenas consta de dois deles, sendo que num dos casos 0 malogrado judeu é dado como seu autor. Os dois iiltimos poemas que oferecem davidas so as quadras de circunsténcia «Quando 0s meus olhos mortais» (p. 229) e «Dizem que as almas que véion (pp. 229- -230). Note-se, em primeiro lugar, que nenhuma delas consta dos cédices gregorianos nem das varias verses da biografia de Rabelo. Por outro lado, a primeira foi contes- tada por Joao Ribeiro (Incertezas da nossa historia literaria, in «Revista da Academia Brazileira de Letras», n° 3, Janeiro de 1911), que afirma que a anedota foi posta em cireulagdo em 1868, nas Memérias de Fr. Jodo de S. Joseph, bispo do Grio-Paré no século XVIII. Segundo o articulista, a atribuigdo do episédio ao poeta baiano feita pelo bispo poderd ter ficado a dever-se a sugestio do nome «Gregério» no final do epi- grama. Apesar disso, refere, sempre foi tido como autor da quadra o P.* Bris da Costa. que viveu no século XVIII. Feito este reparo, passemos agora ao comentario do texto apresentado por Segismundo Spina. O A. tinha declarado que utilizara as duas edigbes ditas completas, a de Peixoto ¢ a de Amado, e que quase sempre preferira a primeira, por oferecer melhor leitura. No entanto, nao é bem isso que se veri basicamente, 0 A, limita-se a reproduzir 0 texto da edigo da Academia, adoptando em momentos isolados uma ou outra solugdo fornecida por James Amado. Por outro lado, raramente procede ao con- fronto explicito das duas edigdes: apenas nos casos em que ha grandes discrepancias ou quando nenhuma das solugdes disponiveis Ihe parece aceitavel, tem 0 cuidado de apre- sentar ao Ieitor as duas alternativas. Acrescente-sc ainda que, embora partindo da edi- ga0 de Peixoto, o A. — sem o declarar — lhe introduziu modificagdes: actualizou a ‘ortografia; tentou modernizar a pontuagdo, ainda que sem grande critério, o que chega ‘a comprometer a compreensio dos poemas; alterou o sistema das maitdsculas, seguindo uma linha que também se revela incompreensivel. Para além destas insuficiéncias gerais, hé uma série de falhas evidentes na fixa- do do texto dos poemas antologiados. Citaremos apenas alguns exemplos: —No soneto «E a vaidade, Fabio, nesta vida» (p. 108), 0 A. ndo teve a perspi- cacia suficiente para corrigir dois lapsos da edigdo da Academia: no v. 11, em vez de 561 FRANCISCO TOPA «alentos presa», deveria estar «alentos prezan; no v. 13, em vez de wa guarda», dever tia estar caguarday: —No v. 14 do soneto «So neste mundo império de loucura» (p. 111), em lugar do incompreensivel «Se ¢ gala», deveria estar «Se és galin, conforme de resto se 1é em Peixoto; —0 verso inicial do soneto «Um calgao de pindoba, a meia zorra» (p. 181) esta errado, apesar de a ligdo ser comum a Peixoto © Amado. Em nota, 0 A. ainda tenta explicar a expressio destacada: «meia zorray seria um tipo grande de pido. Reconhece contudo que essa proposta no se coaduna com o texto. Ora, mesmo sem recorrer as fontes manuscritas — em cuja esmagadora maioria se 18 porra em lugar de zorra — Spina poderia ter encontrado a solugdo na ja citada antologia de Darcy Damasceno «Um calagdo de pindoba a meia porra», isto é, a meia altura do pénis; No ¥. 6 do soneto «tim negro magro em sufulié justo» (p. 189), em lugar de «Sem eriangas», deveria estar «Seis criangas», que € alids a versio de Peixoto — Relativamente aos wy. 1-2 da quarta décima do texto «O vés, quem quer que sejais» (pp. 223-225), 0 A., adoptando a ligo proposta por Peixoto, confronta-a com a de Amado € conelui que nenhuma delas oferece sentido claro. Na primeira Ié-se: «Oh faga um copioso chao. / Uma sitira 0 Doutorn; a segunda regista: «Oh: faz a um cus- pir no chao / Uma satira © Doutor». Prestando atengao ao contexto € colocando os clemntos da frase em ordem directa, ficil € verificar que a segunda é a versio correcta € que 0 seu sentido € pleno: «Oh! O Doutor [Gregério de Matos} faz uma sétira a um [simples] cuspir no chao, isto é tudo Ihe serve de matéria pata o exercicio da sétira: No v. $ do poema em ovillejos «Que falta nesta cidade? ... Verdade» (pp. 231- +233), Spina acolhe a versio «neste rocrécion, sugerindo em nota que se trate de «termo girio da época». Embora esta hipétese seja admissivel, € contudo mais provavel Que a forma correcta seja «socrécion, como se Ié na edig2o de James Amado, ainda que sem anotagdo explicativa. A solugio talvez seja a que sugeriu Angela Maria Dias na sua antologia (Gregdrio de Matos — Séiira, 2.° ed., Rio, 1989, p. 94): socrdcio pode ser um substantive formado a partir de socrestar, que Morais regista como variante de sequestrar; — Uma observagto final: teré sido por um erro de impressiio que a décima «A nossa Sé da Bahia» (p. 219) € apresentada sob a forma de duas quintilhas? Depois de cada poema, 0 A. apresenta quase sempre um comentirio, geralmente Util, em particular no dominio da critica de fontes. E contudo de lamentar que Spina se incline por vezes para uma leitura dos poemas segundo o relato biogrifico de Rabelo. ‘como acontece, por exemplo, com as décimas «Meu amado Redentor» (pp. 119-121), E de notar também que alguns comentérios poderiam beneficiar de um melhor conheci- mento da bibliografia especializada. A titulo exemplificative, veja-se 0 soneto «Divina flor, si en esa pomapa vana» (p. 103), 0 finico poema em castelhano incluido na anto- ogia e um dos poucos que ndo merece nem comentério nem notas. O motive que 0 domina — a analogia entre os 6rgdos florais do maracujazeiro e os instrumentos da pai- xdo de Cristo — poderia ter sido brevemente explicado por uma simples remissdo para 0s trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda (Visdo do Paraiso, Rio, 1959) e Mello Nobrega (rredores da Poesia, Sao Paulo, 1978), 562 RECENSOES Quanto as notas, predominam as de cardcter lexical. embora surjam também observagdes € comentarios sobre outros aspectos do texto, a comegar pelo estilo, Também neste dominio ¢ possivel surpreender alguns deslizes, que rapidamente exem- plificaremos: —No v. 7 do soncto «Sa0 neste mundo império de loucura» (p. 111). pode + «Se & palesira do engenbo a campa friay. Afirma o A. que & palavra destacada se encontra na sua acepgdo primitiva de «parte do gindsio destinada aos exercicios do corpo», © que sentido ler manifestamente errado: sendo um atributo do engenho. palestra est no corrente de «capacidade discursivan: —No v. 4 do soneto «Como corres, arroio fugitive?» (p. 141). temos: «Que sem- pre a despenhar-se corre altivon. A propésito da forma destacada, 0 A. faz uma obser vagdo surpreendente e que dispensa comentirios: «a particula se € ai um mero exple- tivo, perfeitamente dispensavel»: — Em consequéncia de alguma falta de cuidado, visivel noutros aspectos. 0 vocd- bulo brichore suscita duas notas diferentes (pp. 180 © 190): ~ Confirmando a falta de revisto da edigdo de 1946, 0 A. remete a dada altura para «o recente trabalho de M. Rodrigues Lapa, Estilistica da Lingua Portuguesa, Lisboa, 1945» (p. 217) 4. Pelos motivos que fomos apontando, no podemos estar de acordo com Haroldo de Campos, que, no préfacio, saiida esta reedigo como «um evento muito aus picioson. Num ano que coincidiu com a passagem do terceiro centendrio da sua morte, Gregirio de Matos merecia melhor presente, 0 que alidis — pelo que se conhece de outros trabalhos do A. — estaria ao aleance de Segismundo Spina. Francisco Topa 563

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