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copyricht © David Mamet, 1991 TITULO ORIGINAL AMERICANO On Directing Film CAPA Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Joao de Souza Leite EDITORACAO ELETRONICA Art Line se iareaitee aie en ES CIP-BRASIL, CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Mamet, David M231s Sobre diregdo de cinema / David Mamet; tradugao de Paulo Reis. — Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 2002 + — (Oficina interior) Traducdo de: On directing film ISBN 85-200-0606-X 1. Cinema — Produgao e diregao. I. Titulo. II. Série. CDD 791.430233 39-1758 CDU 791.44 Todos 0s direitos reservados. Proibida a reproducdo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagio por esctito. Todos os direitos reservados pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA & um selo da Distribuidora Record de Servigos de Imprensa S.A. Rua Argentina, 171 - Sao Cristévao 20921-380 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (0xx21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 Impresso no Brasil 2002 Construindo um filme (Em colaborag&o com os estudantes da escola de cinema da Universidade de Columbia) MAMET Vamos fazer um filme a partir da situagdo em que estamos ago- ra. Um bando de gente chegando para a aula. Qual é um jeito interessante de filmar isso? ESTUDANTE De cima. MAMET Ora, por que isso é interessante? ESTUDANTE E interessante porque € um Angulo inusitado e d4 uma visdo aérea de todo mundo chegando, meio que enfatizando a quan- tidade. Se ha uma certa quantidade de gente chegando, vocé pode querer sugerir que isso seja significativo. MAMET Como vocé pode saber se essa é uma boa maneira de filmar a cena? Ha intimeras maneiras de filmar isso. Por que “de cima” € melhor do que qualquer outro Angulo? 29 SOBRE DIREGAO DE CINEMA ESTUDANTE Depende do que for a cena. Vocé pode dizer que a cena é sobre uma reuniao realmente tumultuada e fazer as pessoas ficarem andando de um lado para o outro. Isso iria criar uma cena dife- rente de outra em que a tensio fosse subjacente. MAMET E exatamente isso. Vocé tem de perguntar “essa cena é sobre o qué?”. Entao, vamos deixar de lado 0 modo “vamos ficar seguindo o protagonista” de fazer filmes e vamos perguntar sobre o qué essa cena é. Precisamos dizer que nossa tarefa ndo € ficar seguindo o protagonista. Por qué? Porque hé um nime- ro infinito de maneiras de filmar um bando de gente numa sala. De modo que essa cena nao é simplesmente sobre um bando de gente numa sala; é sobre outra coisa. Vamos sugerir sobre o qué essa cena poderia ser. A tinica coisa que sabemos sobre a cena é que se trata de uma primeira reunido. De modo que vocés vao ter que eleger sobre o que essa cena é. E é essa eleigao, essa opcdo nao por “um jeito interessante” de filmar a cena (coisa que € uma eleigao baseada na novidade, e basicamente um dese- jo de ser amado), e sim por dizer “eu gostaria de fazer uma declaracao baseada no sentido da cena, e nao na aparéncia da cena”, que é a opcao do artista. Vamos entio sugerir sobre o que a cena poderia ser. Vou dar uma pista para vocés: “o que o protagonista quer?”. Porque a cena termina quando o protago- nista alcanga isso. O que o protagonista quer? E esse projeto que vai fazer a historia avangar. O que o protagonista quer? O que ele ou ela fazem para chegar la... é isso que mantém a pla- téia nas cadeiras. Se vocé nao tem isso, tem de ficar iludindo a platéia para que ela preste aten¢do. Vamos voltar a idéia da “turma”. Vamos dizer que é a primeira reuniao, de uma série, entre as pessoas. Uma pessoa, na primeira reuniao, pode estar 30 sons Satomi cette RR RRR Stn dn sem Pb arte ai onsentes it irene fiche SOBRE DIRECAO DE CINEMA tentando granjear respeito. Como vamos abordar isso cinema- tograficamente? Nesta cena o sujeito quer obter o respeito do instrutor. Vamos contar a histéria por meio das imagens. Agora, se vocé tiver dificuldade para abordar isso, e der um branco em sua cabega, basta se escutar contando a historia para 0 cara a seu lado num bar. Como vocés contariam essa historia? ESTUDANTE “Um cara entra na aula e a primeira coisa que ele faz é sentar bem ao lado do professor e olhar para ele com muita atencio... € escutar com muita atengo o que ele esta dizendo, e af quan- do 0 professor deixou cair seu braco protético, ele se abaixou, agarrou o brago e devolveu para o professor.” MAMET Bom, é. E isso que 0s roteiristas fazem hoje em dia, os roteiris- tas e os diretores. Mas nés, por outro lado, queremos manter tudo que for “interessante” de fora. Se um personagem nao for construido para ser interessante, esse personagem so poderd ser interessante ou desinteressante na medida em que isso servir a historia. E impossivel tornar um personagem “interessante” no geral. Se a historia é sobre um homem que quer ganhar o respei- to do instrutor, nao é importante que o instrutor tenha um bra- $0 protético, Nao é tarefa nossa tornar a historia interessante. A historia s6 poderd ser interessante se acharmos a trajetéria do personagem interessante. E o objetivo do protagonista que nos mantém ali nas cadeiras. “Duas criancinhas entraram numa floresta escura...” Ta legal, mais alguém? Vocés esto escreven- do 0 filme. O objetivo é ganhar o respeito do instrutor. ESTUDANTE “Um cara na aula de cinema, que chegou com vinte minutos de 31 DAVID MAMET antecedéncia, sentou numa das pontas da mesa. Af a turma entrou junto com o instrutor, e ele pegou a cadeira e trocou de lugar, tentando sentar perto do instrutor, e af o instrutor sentou do outro lado da sala.” MAMET Bom. Ja temos algumas idéias. Vamos trabalhar com elas um pouquinho. Um sujeito chegou com vinte minutos de antecedén- cia. Para qué? Para ganbar o respeito do instrutor. Ficou senta- do numa das pontas da mesa. Agora, como podemos reduzir isso a planos? ESTUDANTE Plano dele entrando, plano da sala de aula, plano dele sentan- do, plano do resto da turma entrando. MAMET Bom. Mais alguém? ESTUDANTE Um plano de um relégio, um plano do momento em que ele entra, segura isso até ele decidir onde vai sentar, um plano dele esperando sozinho na sala vazia, um plano do relégio e um pla- no de muita gente entrando. MAMET Vocé precisa de um plano do relégio? A menor unidade, na qual vocé mais quer se concentrar, é o plano. O conceito maior da cena é conquistar 0 respeito do instrutor. E isso que 0 protagonis- ta quer... esse € o superobjetivo. Agora, como podemos descobrir a primeira seqiiéncia da cena? O que que nés fazemos primeiro? 32 i j ; i i SOBRE DIREGAO DE CINEMA ESTUDANTE Situar o personagem. MAMET A verdade é que vocé nunca precisa situar o personagem. Em primeiro lugar, nao existe isso que se chama personagem fora da ago habitual, como ja nos dizia Aristételes ha dois mil anos. Simplesmente no existe isso, Nem aqui, nem em Hollywood nem em lugar nenhum. Lé em Hollywood eles vivem falando do personagem, e na realidade nao hé nada pare- cido com isso. Isso n3o existe. O personagem nao passa de acdo habitual. “Personagem” é exatamente o que a pessoa faz, lite- ralmente, em busca do superobjetivo, o objetivo da cena. O res- to nao conta. Um exemplo: um sujeito vai a um bordel, chega para a cafe- tina e pergunta “o que eu consigo por cinco paus?”. Ela tesponde “vocé deveria ter vindo ontem, porque...” Bom, vocés, como membros da platéia, ficam querendo saber porque ele deveria ter ido no dia anterior. E isso que vocés querem saber, Mas agora vamos contar uma histéria cheia de caracterizagao. Um sujeito magro, em forma e obviamente enamorado pelas coisas boas da vida, mas ndo sem uma certa seriedade, vai até um bordel de baixo nivel e mau gosto situado numa rua residencial tranqiila, numa parte outrora elegante da cidade. Ao subir os degraus de lajota... Esse € um desses filmes americanos que nés fazemos. O roteiro eo filme estao sempre “situando” alguma coisa. Ora, ndo vao vocés sair por af “situando” coisas. Facam com que a platéia se pergunte o que esté acontecendo colocan- do-a na mesma posi¢ao do protagonista. Enquanto o protagonista estiver querendo alguma coisa, a platéia estard querendo alguma coisa. Enquanto o protagonista 33 DAVID MAMET estiver se esforcando e tentando obter aquilo, a platéia estard se perguntando se ele vai ou nao conseguir. No instante em que 0 protagonista, ou 0 auteur do filme, parar de tentar obter algo e comecar a tentar influenciar alguém, a platéia vai dormir. O fil- me nao é sobre um personagem ou lugar j4 situados, como a televisdo faz. Vejam a historia do bordel: nao é assim que a maioria dos programas de televisao é elaborado? Um plano do “ar”, ea ca- mera se inclina para enquadrar um prédio. Uma panoramica prédio abaixo, até uma placa que diz “Hospital Geral de Elm- ville”. O que interessa nao é “onde se passa a historia?”, e sim “6 sobre o qué?”. E isso que torna um filme diferente do outro. ‘Vamos voltar a nosso filme. Ora, qual é 0 primeiro concei- to? Qual sera um dos alicerces necessdrios para “ganhar o res- peito do instrutor”? ESTUDANTE .. © cara chegar adiantado? MAMET Exatamente. O cara chega com antecedéncia. Agora, a maneira de vocé saber se um conceito é essencial ou nao é tentar contar a historia sem ele. Tire-o fora e veja se precisa dele ou nao. Se nao for essencial, jogue-o fora. Seja uma cena ou um plano, jogue fora tudo que nfo for essencial. ““O cara diz para a cafetina...” Bom, obviamente vocé nao pode comegar a cena do bordel assim. Precisa de alguma coisa antes. “Um cara vai a um bordel eacafetina diz...” Nesse exemplo o primeiro alicerce é “um cara vai a um bordel”. Eis outro exemplo: a fim de poder descer, tem-se de andar até o elevador. Para descer, tem-se de chegar até o elevador e entrar, Isso é essencial para poder descer. E se 0 objetivo for 34 aan SOBRE DIRECAO DE CINEMA chegar ao metré e vocé partir de um andar alto do prédio, a pri- meira etapa vai ser “descer”. Ganhar o respeito do instrutor 6 0 superobjetivo. Que eta- pas sao essenciais? ESTUDANTE Primeiro, chegar com antecedéncia. MAMET Bom. Isso. Como é que nés vamos criar essa idéia de antecedén- cia? N&o precisamos nos preocupar com o respeito agora. O respeito € a meta geral. Agora s6 precisamos nos preocupar com a antecedéncia; é a primeira coisa. Vamos entdo criar a idéia de antecedéncia justapondo imagens n4o-infletidas. ESTUDANTE Ele comega a suar. MAMET TA legal, quais so as imagens? ESTUDANTE © homem sentado sozinho, de terno e gravata, comegando a suar. Vocé poderia ficar observando o comportamento dele. MAMET Como isso nos da a idéia de antecedéncia? ESTUDANTE Sugeriria que ele estd na expectativa de alguma coisa. as ir DAVID MAMET MAMET Nao, nés nao precisamos nos preocupar com expectativas. Nessa seqiiéncia s6 precisamos perceber que ele est adiantado. “ Também n4o temos de ficar observando comportamentos. ESTUDANTE Uma sala vazia. MAMET Bom, agora sim, isso é uma imagem. ESTUDANTE Um plano de um homem sozinho numa sala vazia justaposto a um plano de um grupo entrando, vindo do lado de fora. MAMET Ta legal, mas isso ndo nos da a idéia de antecedéncia, da? Pensem nisso. ESTUDANTE Eles podiam estar todos atrasados. MAMET ‘Vamos expressar isso em imagens absolutamente puras e ndo- infletidas que nao exijam polimento adicional. Quais as duas imagens que v4o nos dar a idéia de antecedéncia? ESTUDANTE Um cara estd caminhando pela rua, 0 sol esta nascendo, os garis esto passando, esta amanhecendo e nao ha muita atividade na “ene ether ent e SOBRE DIREGAO DE CINEMA tua. E depois talvez uns dois planos de umas pessoas acordando e ai vocé vé o cara, o primeiro homem, entrar numa sala e outras pessoas esto 14 concluindo um trabalho que estavam fazendo, talvez terminando 0 teto ou alguma coisa assim. MAMET Bom, esse cendrio dé a idéia de inicio de manha, mas temos de manter uma certa visdo geral. Temos de deixar que 0 nosso des- pertadorzinho dispare de vez em quando, se nos desviarmos demais da trilha; o despertador que diz “sim... isso é interessan- te, mas atinge o objetivo?”. Queremos a idéia de antecedéncia a fim de que ela possa ser usada como alicerce para se ganhar res- peito. De jeito nenhum exigimos a idéia de inicio de manha. ESTUDANTE Poderia ter, do lado de fora da porta, um cartaz informando “Aula do Professor Tal-e-Tal” e dando o hordrio. Af se poderia ter um plano de nosso cara sentando-se obviamente sozinho com 0 relégio por tras. MAMET TA legal. Alguém acha que talvez fosse uma boa idéia evitar o relogio? Por que poderiamos achar isso? ESTUDANTE E um cliché. MAMET E, é meio que um cliché. Nao que isso seja necessariamente ruim. Como jé nos dizia Stanislavski, nao devemos rejeitar algo s6 por ser um cliché. Por outro lado, talvez poOssamos encontrar algo melhor. Talvez o relégio no seja ruim, mas vamos deixé-lo 37 DAVID MAMET de lado um instante sé porque nossa mente, essa covarde pregui- cosa, correu para ele primeiro, e talvez esteja tentando nos trair. ESTUDANTE Ento vocé tem ele chegando, e ele esta no elevador, nervoso e j talvez olhando para o relégio. 1p MAMET N§o, nao, nao, nao. Nao precisamos disso ai, precisamos? Por que no precisamos disso? ESTUDANTE Talvez um relégio pequeno...? MAMET ... Ele nao precisa nem parecer nervoso. Isso também tem a ver com o que digo para os atores, coisa que nés vamos discutir mais tarde. Vocé nao pode depender da atuag4o para contar a historia. Ele nfo precisa estar nervoso. A platéia vai entender a idéia. A casa tem de parecer uma casa. O prego nao precisa pa- recer uma casa. Do jeito que nés descrevemos essa seqiiéncia, ela ndo tinha nada a ver com “nervosismo”; trata-se de chegar adiantado, e s6 isso. Ent4o, quais seriam as imagens aqui? ESTUDANTE Vemos o cara vindo pelo corredor, ele chega a porta, tenta entrar apressadamente e descobre que ela esta trancada. Ai ele se vira e procura um faxineiro no corredor. A cAmera fica nele. MAMET Como vocé sabe que ele est4 procurando um faxineiro? A tni- See ee ae ae SOBRE DIRECAO DE CINEMA ca coisa que vocé pode fazer é fotografar. Vocé pode fotografar um cara se virando. Nao pode fotografar um cara se virando para procurar um faxineiro. Isso vocé teria de contar no plano seguinte. ESTUDANTE Vocé pode cortar para o faxineiro? MAMET Agora a pergunta é: um plano de um cara se virando e um pla- no de um faxineiro passam para vocé a idéia de antecedéncia? Nao, nao passam. O mais importante é sempre aplicar os crité- rios. Esse é o segredo para se fazer um filme. Alice perguntou ao Gato “que estrada devo pegar?”. Eo Gato respondeu “para onde vocé quer ir?”. Alice disse “nao me importa”. E o Gato replicou “entdo nao importa que estrada vocé vai pegar”. Por outro lado, se realmente importa para onde vocé esta indo, entao realmente importa a estrada que vocé vai pegar. Por enquanto vocés sé tém de pensar em antece- déncia. Pensem na idéia da porta trancada. Em como nés pode- mos usar isso, porque é uma idéia muito boa. Ja é mais estimu- lante do que o relégio. Nao mais estimulante em geral, mas mais estimulante em termos da idéia de antecedéncia. ESTUDANTE Ele chega 4 porta e ela est trancada, de modo que ele se vira, senta e espera, MAMET Entao quais sdo os planos? Um plano de um homem vindo por um corredor. Qual seria o plano seguinte? 39 DAVID MAMET ESTUDANTE Um plano de uma porta, que ele tenta abrir, ela esté trancada, nao abre. MAMET Ele se senta? ESTUDANTE Senta. MAMET Isso passa a idéia de antecedéncia? Passa? ESTUDANTE E se a gente combinar tudo? Comega com o sol nascendo. O segundo plano é de um faxineiro passando 0 rodo no corredor, caminhando pelo corredor, e quando ele vai passando tem alguém sentado em frente 3 porta, e o cara se levanta e aponta para a porta, e’o faxineiro podia olhar para o relégio e o cara aponta para a porta de novo, e af o faxineiro olha para o reldgio de novo, da de ombros e destranca a porta. MAMET O que parece mais limpo? O que nos dé mais clareza nesse caso? Quando vocé escreve, dirige e monta, a coisa mais dificil € abandonar as preconcepgGes e aplicar ao problema os testes que vocé elegeu como corretos. Fazemos isso atendo-nos a nossos princfpios basicos. O pri- meiro principio, neste caso da cena, é que nao se trata de uma ce- na sobre uns caras que entram numa sala, trata-se de uma cena sobre uma tentativa de ganhar o respeito do instrutor; o segun- 40 tee nt | | I i | | i | i | | i | I r ne etpepese nme SOBRE DIRECAO DE CINEMA do pequeno principio é que esta seqiiéncia refere-se a antece- déncia. S6 precisamos nos preocupar com isso, antecedéncia. Ora, temos dois planos de filmagem aqui. Qual o mais sim- ples? Sempre faga as coisas da maneira menos exdtica, e vocé faré um filme melhor, A experiéncia me mostrou isso. Sempre faga as coisas da maneira menos exética, da maneira mais dire- ta. Porque af vocé nao corre o risco de ir contra 0 objetivo da cena ao ser exdtica, coisa que sempre entedia a platéia, que coletivamente é muito mais esperta do que vocé e eu, € jd enten- deu a piada final. Como poderiamos manter a atencdo deles? Com certeza nao dando a eles mais informagées, mas ao con- trario, retendo informagoes... retendo todas as informagGes, exceto as informagées cuja auséncia torne a progressdo da his- téria incompreensivel. Essa é a regra do beijo.* De modo que temos trés planos. Um sujeito vem pelo corredor, Tenta abrir a maganeta da porta. Close-up da maganeta da porta sendo girada. Ai o sujeito se senta. ESTUDANTE Acho que vocé precisa de mais um plano se vocé quer mostrar que ele esté adiantado. Ele abre a pasta, tira um punhado de lapis, e comega a fazer ponta neles, MAMET TA legal, agora vocé j4 esta se adiantando. Terminamos nossa tarefa, certo? Nossa tarefa termina quando tivermos estabeleci- do a idéia de antecedéncia. Como nos dizia William de Occam, quando se tem duas teo- tias, ambas descrevendo adequadamente um fendmeno, escolha * Do inglés Kiss: Keep it simple, stupid [Seja simples, idiota]. (N. da E.) at DAVID MAMET sempre a mais simples. Coisa que é um jeito diferente de dizer “seja simples, idiota”. Ora, vocé ndo come um peru inteiro, cer- to? Vocé arranca a coxa e dé uma mordida na coxa. TA legal. Vocé acaba eventualmente comendo o peru inteiro. Provavel- mente ele vai estar ressequido antes de vocé acabar, a nao ser que vocé tenha uma geladeira incrivelmente boa e um peru muito pequeno, mas isso nao cabe no 4mbito desta conversa. Entdo arrancamos a coxa do peru... sendo o peru a cena. Damos uma mordida na coxa, sendo a mordida a seqiiéncia especifica de antecedéncia. Vamos entdo postular a identidade da segunda seqiiéncia. N§o temos de ficar seguindo 0 protagonista, temos? Qual seria a proxima pergunta a ser feita? ESTUDANTE Qual a préxima seqiiéncia? MAMET Exatamente. Qual a préxima seqiiéncia? Ora, temos uma coisa com a qual comparar essa préxima seqiiéncia, nao temos? ESTUDANTE A primeira seqiiéncia. MAMET Outra coisa, que vai nos ajudar a descobrir como ela vai ser. Que coisa é essa? ESTUDANTE Acena? | re nee rte ene Settee: SOBRE DIRECAO DE CINEMA MAMET O objetivo da cena: exatamente. A pergunta cuja resposta ira nos guiar inequivocamente é “qual o objetivo da cena?”. ESTUDANTE Respeito. MAMET Ganhar o respeito do instrutor é 0 objetivo geral da cena. Sen- do esse 0 caso, se sabemos que a primeira coisa é chegar adian- tado, o que poderia ser a segunda coisa? Uma segunda seqiién- cia positiva e essencial, j4 tendo chegado adiantado. A fim de fazer 0 qué...? ESTUDANTE Ganhar o respeito do instrutor. MAMET Sim. O que poderia ser feito? Ou entdo, uma outra maneira de que p > perguntar seria: “para que ele chegou adiantado?”. Sabemos que ganhar o respeito do instrutor é 0 superobjetivo. ESTUDANTE Ele poderia pegar o livro do instrutor e rever a metodologia do instrutor. MAMET No. Isso é abstrato demais. Vocé est4 num nivel de abstracdo alto demais. A primeira seqiiéncia é antecedéncia. Portanto, no mesmo nivel de abstracao, qual poderia ser a segunda seqiién- cia? Ele chegou com antecedéncia a fim de fazer o qué? 43 =e DAVID MAMET ESTUDANTE Se preparar. MAMET Talvez a fim de se preparar. Mais alguém? ESTUDANTE Ora, nao temos de resolver a porta trancada? Ele tem um obs- taculo: a porta est4 trancada; ele tem de reagir a esse obstaculo. MAMET Esquecam o protagonista. Vocés precisam saber 0 que 0 prota- gonista quer porque o filme é sobre isso. Mas nao precisam foto- grafar isso. Hitchcock denegria os filmes americanos, dizendo que eram todos “imagens de pessoas falando”... como de fato a maioria é. Vocé conta a historia. Nao deixe que o protagonista a conte. Vocé conta a histéria; vocé a dirige. Nao precisamos ficar seguindo o protagonista. Nao precisamos situar o “persona- gem”. Nao precisamos ter a “histéria pregressa” de ninguém. A Yinica coisa que temos a fazer é criar um ensaio, exatamente co- mo um documentario; sendo 0 objetivo desse documentario especifico ganhar o respeito de. O primeiro ensaio é sobre ante- cedéncia; qual a segunda coisa? ESTUDANTE Poderia ser esperar? MAMET Esperar? Qual a diferenga entre esperar e se preparar? 44 SRN i | ' t BPE nephrin SOBRE DIRECAO DE CINEMA ESTUDANTE O protagonista fica mais ativo. MAMET Em qual? ESTUDANTE Na segunda. MAMET Em termos de qué? ESTUDANTE Em termos da agao. E mais forte ter o ator fazendo alguma coisa. MAMET Vou indicar para vocés um teste melhor. Se preparar € mais ati- vo em termos deste superobjetivo especifico. E mais ativo em termos de conquistar 0 respeito. Esta aula é sobre uma coisa: aprender a fazer a pergunta “isso € sobre o qué?”. O filme nao é sobre um cara. E sobre ga- nhar o respeito de. A seqiiéncia nao é sobre um cara que entra. E sobre antecedéncia. Agora que j4 tratamos da antecedéncia, digamos que a préxima seqiiéncia seja preparacdo. Contem a idéia de preparagdo como se estivessem contando para alguém num bar. ESTUDANTE Entdo esse tal cara estava sentado num banco esperando, espe- 45 DAVID MAMET rando, s6 esperando. E ai tirou da pasta um livro escrito pelo professor. MAMET Agora, como vocé filma isso? Como vocé sabe que é um livro escrito pelo professor? ESTUDANTE A gente podia ter o nome do professor na porta, e no mesmo plano ver o nome no livro. MAMET Mas nés nao sabemos que ele esté se preparando para a aula. Vocés nao precisam colocar toda essa narracdo literdria... estao vendo como a narra¢4o enfraquece o filme? O que vocés tém de saber realmente é que a seqiiéncia refere-se a preparagao. Nao precisamos saber que ele est se preparando para a aula. Isso surge por si s6. O que realmente temos de perceber é que se tra- ta de uma preparagao. O barco tem de parecer um barco... a quilha nao tem. N&o precisamos da espera. Esperar é tentar reiterar. Ja temos a antecedéncia. Ja cuidamos disso. A tinica coisa que temos de fazer agora € a preparagao. Escutem a si mesmos descrevendo esses planos. Quando vocés usam as palavras “sé”, “meio que” e “tipo”, esto diluindo a histéria. Os planos nao devem ser s6, meio que ou tipo qualquer coisa. Devem ser diretos, tao diretos quanto os trés primeiros planos do filme. ESTUDANTE Ele comega a pentear 0 cabelo, endireitar a gravata. 46 SOBRE DIREGAO DE CINEMA MAMET Isso se encaixa na definigdo de se preparar? ESTUDANTE E que nem se embelezar. MAMET A preparaco poderia ser fisica ou poderia ser uma preparacgao para o assunto em pauta... ganhar o respeito de. Qual delas sera mais pertinente 4 cena? Qual delas ser4 mais pertinente ao superobjetivo geral, conquistar o respeito do ins- trutor? Tornar-se mais atraente, ou se preparar? ESTUDANTE Ele pega o caderno, 1é tudo muito depressa, depois pensa, nao, e af volta e olha para uma certa pagina. MAMET Ora, isso vai contra um dos preceitos que andamos discutindo, que é: contar a histéria por meio dos cortes. Vamos adotar isso como nosso lema. Obviamente h4 vezes em que vocé vai precisar ficar seguin- do o protagonista um pouco; mas somente quando essa for a melhor maneira de contar a historia; coisa que, se nos dedicar- mos & feliz aplicagao desses critérios, descobriremos ser um caso excepcional. Enquanto tivermos o luxo que é o tempo, entendam, seja aqui no curso ou em casa fazendo o storyboard, temos a capacidade de contar a historia da melhor maneira. Podemos entdo ir para o set de filmagem rodar. Quando estamos no set de filmagem, j4 ndo temos esse 47 DAVID MAMET luxo. Af temos de ficar seguindo o protagonista, e é melhor arranjarmos uma Steadicam.* Portanto, o que estamos tentando fazer é descobrir dois ou mais planos cuja justaposig&o nos dé a idéia de preparacao. ESTUDANTE Que tal o seguinte: esse cara tem uma pasta de trés furos. Ele pega um pedacinho de cartolina branca e rasga as bordas per- furadas, dobra-as em duas e as coloca nos plasticozinhos que separam as paginas da pasta de trés furos. MAMET E uma idéia interessante. Vamos descrevé-la em planos: ele pega a pasta, tira um pedago de papel, que é uma dessas etiquetazi- nhas. Cortamos para o insert (um plano apertado das mos dele). Ele est4 escrevendo alguma coisa na etiqueta. Aj, enfia o pedaco de papel no negécio de plastico. Depois, cortamos de volta para o master-shot (o plano geral da cena). Ele fecha a pasta. Todas essas imagens s&o nao-infletidas, nao sio? Isso nos da a idéia de preparacGo? Vou fazer outra pergunta para vocés: o que é mais interessante... lermos 0 que ele est escrevendo na etiqueta ou nao lermos 0 que ele estd escrevendo? ESTUDANTE Nao lermos. MAMET Exatamente. E muito mais interessante se nao lermos 0 que ele * A Steadicam nao é mais capaz de auxiliar na criagdo de um bom filme do que o computador na confecg4o de um bom romance — ambos sao artefatos que poupam trabalho, que simplificam, e que assim tornam mais atraentes os aspectos puramente mec4nicos de uma obra criativa. 48 are peer ESS ieee ie eS REP A mee SOBRE DIREGAO DE CINEMA esta escrevendo. Porque se o fizermos, a finalidade sorrateira da cena passa a ser a marra¢do, nao? Passa a ser dizer A platéia onde nés estamos. Se no estabelecermos nenhum propésito sorrateiro na cena, entao a seqiiéncia sé precisa ser sobre a pre- paracGo. Qual é 0 efeito disso na platéia? ESTUDANTE, Suscita a curiosidade dela. MAMET © Exatamente, e também conquista 0 respeito e a gratidao dela, porque tratamos a platéia com respeito, sem expor ninguém ao que nao seja essencial. Queremos entdo saber o que ele esté escrevendo. E obvio que ele chegou adiantado. 6 ébvio que esta se preparando. Queremos saber: adiantado para qué? Prepa- tando-se para qué? Ai j4 colocamos a platéia na mesma posicao do protagonista. Ele est ansioso para fazer alguma coisa e nds estamos ansiosos para que ele faca alguma coisa, certo? De modo que estamos contando a histéria muito bem. E uma boa idéia. Tenho outra idéia, mas acho que a de vocés é melhor. Minha idéia é a seguinte: ele ajeita os punhos da camisa, olha para o punho, cortamos para um insert e vemos que a camisa ainda esta com a etiqueta. De modo que ele arranca a etiqueta. Nao, acho que a de vocés é melhor, porque da mais a idéia de preparag&o. A minha era até graciosa, mas a de vocés tem muito mais a ver com o estar preparado. Quando se tem tempo, como temos agora, compara-se sua idéia com o objeti- vo, ¢ como bons fildsofos que somos, seguidores dos caminhos tanto da Pena quanto da Espada, escolhemos 0 caminho mais proximo ao objetivo, descartando aquele que é meramente gra- cioso ou interessante; e certamente descartando aquele que tem um “sentido pessoal profundo” para nds. 49 DAVID MAMET Quando se est no set de filmagem e nao se tem tempo livre algum, as vezes escolhe-se algo simplesmente por ser uma idéia graciosa. Que nem a minha dos punhos... na imaginacg4o pode- se sempre levar para casa a garota mais bonita da festa, mas na realidade de festa isso pode nao acontecer. ‘Vamos partir agora para a terceira seqiiéncia. Qual seria a terceira seqiiéncia? Como podemos responder a essa pergunta? ESTUDANTE Voltando ao objetivo principal, conquistar o respeito do ins- trutor. MAMET Perfeito. Agora vamos abordar isso de forma diferente. Qual seria uma md idéia para a terceira seqiiéncia? ESTUDANTE Esperar. MAMET Esperar seria uma mé idéia para a terceira seqiiéncia. ESTUDANTE Se preparar é uma mé idéia para a terceira seqiiéncia. MAMET E, porque ja fizemos isso. E que nem subir numa escada. Nao queremos subir numa escada em que jé subimos. De modo que se preparar de novo seria uma mé idéia. Para que rodar a mes- ma seqiiéncia duas vezes? Vamos tocar para a frente. Todos dizem que o jeito de melhorar qualquer filme é queimando o erent cn ttre ences | i I t SOBRE DIREGAO DE CINEMA primeiro rolo, e é verdade. Todos nés temos essa experiéncia quase toda vez que vamos ao cinema. Depois dos vinte primei- ros minutos, dizemos “Ora, eles deviam ter comecado o filme ai”. Vamos tocar para a frente, pelo amor de Sdo Miguel. Entrem na cena tarde, saiam da cena cedo, contem a histéria com o corte. E importante lembrar que nao é fungdo do drama- turgo criar o confronto ou o caos, mas sim criar ordem. Comecem com o evento perturbador, e deixem que a seqiiéncia se faga sobre a tentativa de se restaurar a ordem. A seguinte situagdo nos é dada: esse sujeito quer isso e aqui- lo... ele tem um objetivo. Vocés j4 tém caos suficiente af mesmo. Ele tem um objetivo. Quer conquistar o respeito de seu profes- sor. O sujeito precisa de algo. Vai tentar conseguir isso. A entropia é a progressao légica na direcdo do mais sim- ples, da situac&o mais em ordem. Tal como o drama.* A entro- pia, o drama, continua até que um estado em desordem seja colocado em repouso. As coisas foram postas em desordem, e tém de voltar ao repouso. A desordem nao € taxativa nesse caso, é bastante simples: alguém quer o respeito de um cara. Nao temos que nos preocu- par em criar um problema. Faremos um filme melhor se nos preocuparmos em restaurar a ordem. Porque se nos preocupar- mos em criar problemas, nosso protagonista vai passar a fazer coisas que sejam interessantes. Nao queremos que ele faa isso. Queremos que ele faga coisas que sejam légicas. Qual é a préxima etapa? A préxima seqiiéncia serd sobre 0 qué? Estamos falando em termos de nossa progressao especifica. Sendo a primeira seqiiéncia chegar com antecedéncia. Sendo a se- * Sei que o dicionario define a entropia como uma progressao na diregZo de um estado de mais desordem... mas neste ponto, divirjo do mais extra- ordindrio dos livros. 51 DAVID MAMET gunda a preparacdo, se preparar. E qual a terceira? (Sempre pen- sando em termos do superobjetivo do filme, que é ganhar o res- peito de. Esse € 0 teste. E esse o teste final: ganhar o respeito de.) ESTUDANTE Se apresentar? eRe esa MAMET eee Talvez a seqiiéncia seja sobre uma saudagdo. Sim, como chama- mos esse tipo de saudacgdo? ESTUDANTE t Reconhecimento...? ESTUDANTE Simpatia...? 5 MAMET Ser simpdtico, mostrar deferéncia, reconhecer, saudar, fazer contato. Qual destas alternativas é mais pertinente ao superobjetivo de ganhar o respeito de? ESTUDANTE Acho que deferéncia. MAMET Esta bem, entZo. Vamos fazer aqui um pequeno ensaio fotogréfi- co sobre a deferéncia. Quanto mais profundamente vocés pensa- rem, melhor saird a coisa. Profundamente, no sentido autoral, como seria se fosse eu?”. Nao “como alguém poderia 52 “7 trenton therm nh A RDR t nem SOBRE DIREGAO DE CINEMA mostrar deferéncia?”, mas “o que a idéia de deferéncia significa para mim?”. E isso que diferencia a arte da decoracao. Como seria realmente mostrar deferéncia? ESTUDANTE O professor chega, e o nosso cara vai 14 apertar a mao dele. MAMET TA legal. Mas isso é que nem o relégio, nao é? Antecedéncia... relogio. Deferéncia... aperto de mao. Nao h4 nada de errado isso, mas vamos pensar com mais um pouquinho de profundi- dade, porque podemos nos dar ao luxo de gastar tempo. Qual seria uma maneira adordvel de mostrar deferéncia, uma maneira que realmente signifique algo para yocés? Porque se vocés quiserem que isso signifique algo para a platéia, terd de significar algo para vocés. A platéia é que nem vocés... seres humanos: se nfo significar nada para vocés, n4o vai significar nada para eles. O filme é um sonho. O filme deve ser como um sonho. De modo que se comecéssemos a pensar em termos de sonhos em vez de em termos de televisio, o que poderiamos dizer? Vamos fazer um pequeno ensaio fotografico, um peque- no documentario sobre a deferéncia. ESTUDANTE Quando vocé diz sonho, quer dizer que a coisa nao precisa ser crivel no sentido de alguém poder realmente fazer isso na vida real? : MAMET N&o, quero dizer... Nao sei até que ponto podemos esticar essa teoria, mas vamos descobrir, vamos esticar até que ela arreben- 53 DAVID MAMET te. Ao final do filme Um lugar no corag&o, Robert Benton criou uma seqiiéncia que é uma das coisas mais fortes num filme ame- ricano em muitos anos. E a seqiiéncia na qual verificamos que todo mundo que foi morto no filme est4 vivo novamente. Com isso, ele criou algo que é como um sonho. Estd justapondo cenas que so descontinuas, e essa justaposicao nos dé uma terceira idéia. Na primeira cena todo mundo esté morto. Na segunda cena todo mundo esté vivo. A justaposigao cria a idéia de um grande desejo, e a platéia comenta “ah, meu Deus, por que as coisas ndo podem ser assim?”. & como um sonho. Que nem quando Cocteau faz as mos safrem da parede. E melhor do que » ficar seguindo o protagonista, nao €? No meu Jogo de emogGes, quando os dois caras estao lutan- do pela arma no umbral da porta e cortamos para um plano do companheiro insepardvel, o personagem do professor, s6 obser- vando, é af é que se ouve 0 tiro. Foi um modo de filmar, bastante razoavel, que realiza o objetivo que se pretendia. Pode até nao ter sido uma grande maneira, mas foi bem melhor do que na televisio. Certo? Passa a idéia. Eles estéo lutando; vocé corta para o cara observando. A idéia é vai acontecer algo e nds nao podemos fazer nada. Passa a idéia de impoténcia, e a seqiiéncia é sobre isso. O pro- tagonista estd impotente: nés entendemos isso sem ter de ficar seguindo-o. Colocamos 0 protagonista na mesma posi¢ao da pla- téia... por meio do corte... ao fazer com que o espectador crie a idéia ele mesmo, na prépria cabega, como Eisenstein nos di: ESTUDANTE Que tal se o aluno apresentasse alguma coisa ao professor? Uma espécie de presente especial. Ou se curvasse quando o cara ferecesse uma cadeira a ele? o SOBRE DIREGAO DE CINEMA MAMET Nao, vocé est4 tentando contar a coisa no plano. Nés queremos contar a coisa no corte. Que tal o seguinte... o primeiro plano é ao nivel dos pés, um travelling de um par de pés caminhando. E © segundo plano é um close-up do protagonista, sentado, e ele vira a cabeca rapidamente. O que a justaposigao dessas duas coisas nos diz? ESTUDANTE Chegada. MAMET E? ESTUDANTE Reconhecimento. MAMET E; nao é bem deferéncia, é um estado atento ou de atencGo. Pelo menos, sao dois planos criando uma terceira idéia. O primeiro plano tem de conter a idéia de onde os pés esto. Os pés esto um pouco distantes, certo? Com a idéia de os pés estarem dis- tantes e 0 sujeito ouve aquilo de qualquer maneira, o que a jus- taposigao dessas duas coisas nos da? ESTUDANTE Um estado de alerta. MAMET Um estado de alerta; talvez nao de deferéncia, mas um estado 55 DAVID MAMET de alerta ou de grande atenco, coisa que talvez se aproxime sorrateiramente de deferéncia. Que tal se tivéssemos um plano distante dos pés aproximando-se pelo corredor e depois um plano do nosso cara se levantando? Mostra um pouco mais de deferéncia, j4 que ele esta se levantando. ESTUDANTE Principalmente se ele se levantasse de um jeito humilde. MAMET Ele nao precisa fazer isso de um jeito humilde. A tinica coisa que nés temos a fazer é mostra-lo se levantando. Ele nao preci- sa absolutamente se levantar de um jeito especifico; s6 precisa se levantar. A justaposigo disso com 0 plano do outro cara 14 longe j4 passa a idéia de deferéncia. ESTUDANTE Que tal se ele abaixasse a cabega quando se levantasse? MAMET Isso na verdade nao acrescenta muita coisa. E em temos de filma- gem é menos no-infletido, ou seja, pior. Quanto mais nés “infle- tirmos” ou “carregarmos” o plano, menos poderoso vai ser 0 corte. Mais alguém? ESTUDANTE o do protagonista com a pasta visto por cima. Ele ergue nta-se € corre para fora do quadro. Um plano do nosso corredor e da porta do corredor, que tem uma janela de vidro. O pr ista entra em quadro correndo e abre a porta o homem sai andando em outra direcao. 56 al spec ele E ¥ k # i : i t b SOBRE DIRECAO DE CINEMA MAMET E. Bom. Vejo que vocés gostam disso. Duas perguntas que poderiamos fazer a nés mesmos... uma pergunta seria “isso passa a idéia de deferéncia?”. E a outra: “eu gosto disso?”. Se vocé fizer a segunda pergunta, vai dizer, bom, poxa, nao sei se gosto ou nao. Sou um sujeito de bom gosto? Sou. Isso contém tanto bom gosto quanto eu acho que tenho dentro de mim mes- mo? Caramba, ndo sei. Estou perdido. A pergunta que vocé realmente teria de fazer é “isso passa a idéia de deferéncia?”. Se realmente passar a idéia de deferéncia, va para a etapa seguinte: “eu gosto disso?”. Existe uma capaci- dade interior que Stanislavski chamava de “o juiz de si pré- prio”, que poderia ser caracterizada como uma certa quantida- de de bom gosto artistico. Isso vai funcionar de qualquer maneira, porque todos nés temos bom gosto. E da natureza do ser humano querer agradar. Todos nés queremos agradar aos outros. Ninguém quer deixar de fazer isso. Nao existe quem ndo queira ter sucesso. O que nés estamos fazendo é tentar obrigar nosso subconsciente a trabalhar por nés, ao simplificar e tornar bem técnica essa tarefa na qual podemos ter sucesso, de modo a nfo precisarmos ficar 4 mercé nem de nosso bom gosto nem das platéias de cinema. Queremos ter um teste que nos permita saber quando nosso trabalho terminou sem ter de apelar para nosso bom gosto. O teste aqui é: “isso passa a idéia de deferéncia?”. Os pés 14 longe, o homem se levanta. Acho que passa. Vamos adiante para a pré- xima seqiiéncia. Qual seria a etapa seguinte & mostrar deferén- cia? Qual seria a primeira pergunta que queremos fazer? ESTUDANTE Qual é 0 superobjetivo? 57 DAVID MAMET MAMET Bom. Qual é a resposta? ESTUDANTE Conquistar o respeito do professor. MAMET De modo que depois de mostrar deferéncia, qual é a proxima seqiiéncia? ESTUDANTE Impressionar. MAMET Isso € um pouco vago. Além de reiterar o superobjetivo. Impressionar, conquistar respeito. Sao semelhantes demais. Uma parte de cada vez. O barco tem de parecer um barco; a vela nao tem de parecer um barco. Facam com que cada parte cum- pra sua fungio, e a finalidade original do todo sera alcangada... como que por magica. Fagam as seqiiéncias servirem a cena, ea cena seré finalizada; fagam as cenas, da mesma maneira, serem 0s alicerces do filme, e 0 filme ser finalizado. Nao tentem obri- gar a seqiiéncia a fazer o servico do todo, nao tentem reiterar a peca na cena. E um pouco como “alguém gostaria de uma xica- ra de café porque eu sou irlandés?”, nao é? A maioria das atua- Ges hoje em dia segue esse modelo. “Fico muito feliz por ver vocé hoje, j4 que como vocé vai descobrir mais tarde, eu come- to assassinatos em massa.” Mais alguém? A préxima seqiiéncia? ESTUDANTE Obter reconhecimento? 58 t : i SOBRE DIRECAO DE CINEMA MAMET Isso também é muito vago. ESTUDANTE Agradar? MAMET Nao da para ser mais vago do que isso. ESTUDANTE Demonstrar afeto? MAMET Ganhar respeito demonstrando afeto? Talvez; o que mais? ESTUDANTE Demonstrar autoconfianca? MAMET Sejam dinamicos, Essas coisas que vocés est3o sugerindo, entendam bem, na verdade poderiam vir mais ou menos a qual- quer momento, e vao nos fazer cair na armadilha de uma circu- laridade mais apropriada A forma épica do que A dramitica. Mas qual seria a proxima coisa essencial a vir depois de mos- trar deferéncia? ESTUDANTE Contar vantagem? 59 DAVID MAMET MAMET Vocé faria isso para ganhar o respeito de alguém? ESTUDANTE Nao. MAMET Vocés podem fazer a pergunta a si mesmos assim: “o que eu gostaria de fazer, no melhor dos mundos possiveis, para ganhar © respeito de alguém?”. E uma questo do que vocé talvez fizes- se em sua imaginacdo mais desvairada, e n&o o que vocé talvez fizesse por estar preso as regras da boa educagao. Nao quere- mos que nosso filme fique preso a isso. Gostarfamos que os nossos filmes exprimissem vigorosamente nossa fantasia. Ha uma outra pergunta que talvez precisemos fazer a esta altura. Poderfamos nos perguntar quando terminaremos para que possamos saber quando o filme estaré concluido. Poderfa- mos continuar tentando ganbar respeito indefinidamente. De modo que precisamos de um final. Sem um final, o problema essencial do tema-base, que é ganhar respeito, pode realmente levar a uma espiral sem fim, que sé seja finalizada por nosso bom gosto. De modo que talvez precisemos de um tema-base com uma meta mais positiva, ou seja, uma meta mais definida do que ganhar respeito. Por exemplo, obter uma recompensa. Sendo a recompensa um sinal simples e fisicamente identificdvel de respeito. Nesse nivel de abstragao, a recompensa poderia ser, por exemplo, o qué? ESTUDANTE Talvez ele quisesse que o professor fizesse um favor para ele. 60

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