You are on page 1of 4
LIVROS ) RESENHA FRIA ITACA No romance Sato/lep, de Vitor Ramil, o retorno a origem é, antes de tudo, um retorno ao trauma z t por Eduardo Sterz alter Benjamin, num ensaio bastante conhecido, distingue os dois modelos fundamentais do narrador tradicional: © primeiro seria o camponés sedentario, que permaneceu toda a vida em determinado lugar ¢ estd a par de todas.as suas historias: 0 segundo, o mari- nheiro mercante, que vagou pelo mundo e, 20 retornar, conta do que viu e viveu nas lonjuras. Embora, como nota o mesmo Benjamin, j4 a narrativa medieval, a0 produzir-se paradigmaticamente na convivéncia de mes- tres sedentarios e aprendizes errantes, combinasse am- has as figuras de narrador, foi o romance — forma por exceléncia, desde seus inicios, da narrativa em crise, ou, antes, e dito com maior precisio, da crise da narrativi- dade ~ que complicou de vez as coisas. Se buscaissemos isolar as duas figuras ideais do narrador moderno (que, nascido com o romance, se imps também ao conto € A novela, e mesmo A poesia narrati- vale, na medida em que ai haja um narrador implicito, ao drama e a0 cinema), chegariamos, talvez, a dois personagens complexos, desassosse- gados: 0 primeiro, aquele que, ten- do persistido em certo lugar (como © camponés da narrativa tradicio- nal), vai, porém, muito além dessa limitada localizagio fisica por meio da imaginagao exacerbada, ou me- diante, ainda, um raciocinio infinito que, com freqiiéncia, confina com a loucura; 0 segundo, aquele que regressa do mundo (como o mari- nheiro}, mas, em ver de relarar suas, aventuras estrangeiras, transforma as tenses da volta ~ com sua dialé- tica intrangiila de reconhecimento © auto-reconhecimento, de desco- nnhecimento e autodesconhecimento —em matéria da narrativa. £ uma engenhosa imbricagio dessas duas possibilidades de nar- ago que fornece, por assim dizer, ‘a estrutura do romance Satolep, de Vitor Ramil. O personagem prin- cipal, que faz também as vezes de narrador, é um fot6grafo que, “de- pois de haver habitado casas de muias cidades e paises”, retorna a Narrador personagem visita dife- rentes casas pelo mundo e depois retorna a sua cidade natal sua Satolep natal (num percurso se- melhante ao do proprio autor, que voltou Pelotas de sua infincia de- pois de alguns anos vivendo no Rio de Janeiro ~¢ talvez seja supérfluo frisar que Satolep, o nome da ci- dade imaginaria, € palindromo de Pelotas). © regresso do fotografo se a na data de seu trigésimo aniver- sirio, Conforme registra, seus pais € irmao mais velho ainda moram na cidade, mas ele, sem explicagio, evita encontré-los. Para no ser identificado e conduzido a familia, apresenta-se aos amigos que vai fa- zendo com um nome provavelmen- te falso, Selbor. O grupo de amigos inclui alguns dos principais nomes da cultura pelotense (digo, sato- lepense) e, mais amplamente, sul- rio-grandense das primeiras déca- das do século 20: antes de qualquer outro, o escritor Jodo Simées Lopes Neto, autor de Contos gauchescos © Lendas do sul, livros de exce- cio, decisivos na constitu regionalismo moderno brasileiro, mas ainda hoje menos lidos do que merecem, apesar de suas numero- sas reedigdes; e também 0 cineasta Francisco Santos, diretor de alguns dos primeiros filmes de ficcio roda- dos no Brasil, € 0 poeta e jornalista Lobo da Costa. Outras figuras, me- nos historicamente determindveis, atravessam 0 caminho de Selbor, seja o Cubano (viajante com quem 6 fotégrafo se encontra no trem, ainda antes de chegar a Satolep, no qual se pode descobrir uma refe- réncia obliqua a Alejo Carpentier), seja © Compositor (vizinho do pro- tagonista, amigo de Simdes Lopes Neto}, seja Calvero (cémico in- glés que visita a cidade, alusivo a Chaplin, por meio do nome de seu papel em Luzes da ribalta). Pelas conversas de Selhor com tais perso- nagens, assim como pelas mengées a suas obras ou idéias, a narrativa vai deixando aflorar, aqui e ali, todo um submerso breviario estético co- mum ao autor e, supostamente, Aqueles precursores, espécie de re- proposigao ficcional de argumentos que Vitor Ramil jé elaborara teori- camente em outros de seus escritos, entre os quais se destaca A estética do frio, publicado em edigao bilin- giie portugués-francés em 2004, Em Satolep, essa estética se deixa sinte- tizar numa frase do Cubano, pro- ferida quando a cidade despontava no horizonte: “O frio geometriza as coisas”. Em suma, se o regresso de Selbor ao Sul comportava uma bus- cca algo indeterminada — busca pela “alma” perdida, segundo os termos em que ela € tentativamente enun- ciada ainda nas paginas iniciais -, essa busca se resolve na construgéo de uma poética, que atende sobre- 2 pi 7 etn Pee oe) As historias da geragdo que disse nee conformismo UCR colaboracGes inéditas Chico Buarque, Edu Lobo, AFT eel UL ee cd) LTLu COMMU MLC Lem est] Rodrigues, Tarik de Souza, Jamari Franga, V PRON y) A ZAHAR ree ergo ‘eer zaharcom br/ 1968 LIVROS ) RESENHA tudo ao imperative langado por um enigmatico personagem ao fot6gra- fo: “Aprenda a ver”. Este personagem é crucial, ndo 86 pela sentenga que orienta e mes- mo expande, dali por diante, a bus- ca de Selbor. Se, na tipologia dos narradores modernos, Selbor cor- responde ao dramatizador das ten- sées do retorno, surge agora 0 até entao secreto deuteragonista que vem ocupar a posi¢ao do imagina- dor ilimitado. Trata-se de um rapaz que, como Selbor ha alguns anos, esté deixando Satolep, rumo a0 Norte. Contratado pelo pai do ra- paz, Selbor faz a tiltima fotografia da familia reunida em frente ao so- brado em que viviam. Concluida a sesso, Selbor pega carona no carro com que 0 motorista deixard o me- nino na estagao ferrovidria. Acaba descendo também na estacio, para forografi-la, e, depois que o rapaz embarca, constata que ele esquece- ra uma pasta cheia de papéis. Sem conseguir devolver a pasta ao ra- paz, termina, por acaso, lendo a pri- meira das varias folhas nela guarda- das. Para seu espanto, identifica 0 proprio nome entre as palavras ali grafadas. De inicio, temendo a in- discrigao, Selbor reluta em ler o ma- terial que tem em maos, mas acaba cedendo a curiosidade. A primeira pagina, assombrosamente, relata os acontecimentos daquela tarde, inclusive a sessio fotogrfica, em- bora tivesse sido escrita pelo rapaz antes que ocorressem. Logo Sclbor perceberd que as folhas consistem todas em antecipacdes textuais de fotografias que ele ainda faria. A vertigem que, compreensivelmente, assalta Selbor contagia, em alguma medida, o romance, conferindo um sentido abissal a alrernancia, esta- belecida desde as primeiras paginas de Satolep, entre os trechos narra- dos pelo protagonista, impressos, como de praxe, em tinta preta so- bre o papel branco, e os fragmentos de prosa eliptica e fulgurante, im- pressos em negativo e ladeados por 2 fotografias antigas, de autoria di- bia (aqui, atribuidas a Selbor), que Vitor Ramil encontrou num Alb de Pelotas publicado em 1922. Curiosamente, Satolep compar- tilha com dois livros especialmente relevantes da ficgio brasileira con- temporanea ~ As horas podres, de Jeronimo Teixeira, e A histévia dos ossos, de Alberto Martins ~ uma série de caracterfsticas. A mais evidente, a narragao dividida em dois planos, revezados nas obras de Ramil e Teixeira, consecutivos na de Martins, e, em todas elas, antes em choque que em harmo- nia um com 0 outro. E mais pro- fundas: o tema do retorno a cidade que se deixara para tras; a visio dessa cidade como uma potencial ruina (“Seguem minhas visdes de Satolep em ruinas”, diz.a primeira frase do romance de Ramil); ¢ tudo confluindo numa narrativa da ori- gem da escrita a partir do trauma. Porque uma tremenda constatagio & comum aos narradores dos trés li- vros: todo retorno a origem revela- se, ao fim, um retorno ao trauma; na origem das coisas, esta menos a fonte trangiila de que emanaria © ser do que uma catastrofe 0} ginaria (¢ isto talvez valha ainda mais para as obras de arte do que para os homens). Ninguém retorna para 0 titero, mas para o desabri- go. Daf que uma espécie de refro, dito pelo Cubano a Selbor, atraves- se Satolep: “Nascer leva tempo”. A predominante positividade que 0 Jugar de origem parecia ter até ago- ra na estética do frio é levado em Satolep ao seu dialeticamente ne- cessirio momento negativo. Se, nas obras de Kafka e Musil, Claudio Magris divisou “uma odisséia sem fraca”, na qual o herdi esta aco- metido de “um eterno nomadis- mo” que o leva sempre em diregio a “novas constelagoes ¢ interpre tages do ser”, em Satolep discer- ne-se, ao longe, a possibilidade de uma ftaca amida e fria, que jamais esta dada de uma vez por todas, mas tem de ser construida, na arte como na loucura, a partir de ruinas e fantasmas. 8 sata Vitor Ramil Eottora Cosacnatty 7 99,90 - 268 pags, Eduardo Sterzi ¢ doutor em Teoria © Historia Literéria pela Unicamp e atualmente realiza pesquisa de pés-doutorado na USP (0 QUE ESTOU LENDO PEDRO HERZ - presidente da Livraria Cultura *Estou lendo O conto do amor, escrito por Contardo Calligaris (psicanalista italiano radicado no Brasil ha vas décadas), langado no comego deste ano pela editora Companhia das Letras. Este seu primero romance, apesar dele [6 ter reunido seus principais artigos escrtos para o jornal Folha as S.Paufo, em live publicado também em 2008. Ainda estou no camago da minha leltura, mas ja é possivel percsber que @ endlise psicolégica dos personagens continua sondo uma tematica importante para narrativa de Caligaris.” ROBERTO POMPEU DE TOLEDO - eseritor @ colunista da revista VEJA 5 “Eu costume ler romances & noite, & tarde Ivros que tenham relag&o com algum artigo que eu estou pu- r blicando, e jornais ¢ revistas pela manna, Posso falar que o romance que eu ralie que me impressionou recentemente fol O som @ a firia, do norta-americano Willam Faulkner, So tras imaos qua naam um capitulo cada um. No primeire 0 imo com deficiéncla mental discorre sobre vérios tomas sem légica renhuma, © segundo 6 tratado por um imo suicida ¢ ultimo retne todos os temas tratados pelos ‘outros. Esse romance faz parte do grupo que eu considero 9 melhor da iteratura mundial.” WELINGTON ANDRADE - professor de Técnica de Redagao da Faculdade Casper Libero “Estou lendo Os ratos, do eseritor gaucho Dyanéio Machado. Trata-se da historia de um nomem que sai pela cidade onde mora (Porto Alegre, no inicio do século 20) em busca de dinheiro para pagar a conta Go leitero. A partir desta trama aparentemente banal, Dyonélio (1895-1986) — que também ea psiquiatra, jornalista 9 miltante do POS - explora uma expressiva fusdo entre as sondagens psicolégica social, traduzida em uma prosa que prima pela concis4o, Vale destacar que a racente edigo da Planeta traz Lum preciose posticio escrito por Davi Arigucci un"

You might also like