You are on page 1of 19
Capitulo I INTRODUCAO I-A interferéncia estatal na vida privada 1. Desde tempos imemoriais, o Poder Publico interfere autorita- riamente no agir dos individuos, para controlé-lo e dirigi-lo. Demo- rou, contudo, até que se percebesse a diferenca entre essa atividade e outras manifestacdes estatais. Por isso, o termo Policia parecia ade- puado. i s elas.! Paulatifiamente, desse conceito fo- ram sendo excluidas as ages de manter relagGes internacionais, ad- ministrar a justica e as financas, até que a expresso _acabasse reser- vada As injuncdes sobre a vida privada. No periodo absolutista, Estado-Policia significava um poder ilimi- tadg, valendo-se do Direito para controlar a sociedade, drdenando tar e coagindo, sem sujeitar-se a ele, Mas, com a implantagao do Estado de Direito, novas bases se as- sentaram na relacdo entre autoridade e cidadao. Liberdade e proprie- dade se tornaram direitos subjetivos puiblicos, constituindo um es- pago de autonomia frente @ atuacdo governamental. A consagra¢ao constitucional dos direitos do individuo resultou em severa restrigao a interferéncia estatal, Entretanto, a liberdade e a propriedade, pelo Tato de serem direitos, haveriam de ser regulamentadgs pela lei, ao menos para compatibilizar 9 exercicio de todos os dire oS 2, Essa regulamentacao compreende dois momentos distintos, O primeiro consiste na disciplina do relacionamento entre 0 titu- jar do direito e os outros particulares, Foi o que fez, por exemplo, © Codigo Civil com a propriedade, o que gerou a crenga de que esse 1. Para uma resentha da evolugio do uso da expresso, consultem-se Augustin Gordillo, Teoria General del Derecho Administrativo, pp. 527 a 537, e Clévis Beznos, Po- der de Policia, pp. 1a 17. 10 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR direito seria algo de indole privada. Apesar de traduzir regulamen- taco de direito constitucionalmente assegurado, importando na cria- ¢4o de limites que nao poderiam estar na Constituicao, ninguém vi- ria a dizer que a lei civil limita o direito de propriedade. Generalizou- se a sensacao de que ela apenas o define. O segundo € o da ordenacao da convivéncia entre o particular eo Estado A fixacao dé gabarito maximo para as construc6es urba- Was, a Ser fiscalizado pela Administracao, enseja o estabelecimento de relagdes entre ela e o proprietdrio. Ja aqui se dird que a lei — ¢ a atividade administrativa de aplicdé-la — importa em limitagao do di- reito de propriedade. A afirmacao nao tem sentido juridico: do mes- mo modo que o Cédigo Civil, _a lei apenas define a extensao do direito.? Apesar disso, a expressao limitacio administrativa tem duas razdes de ser. A primeira, historica: como o direito de propriedade jd esta delimitado pela lei civil, qualquer ulterior definicao soara mesmo co- mo limitacdéo. A segunda, mais relevante, visto expressar preocupa- ‘a0 juridica: as linitacées entram em causa quando alguém, sendo ti- tular de certo direito, pretende exercé-lo concretamente; nesse mo- mento, tem de se haver com a Administracao, qué assim parece es- tar limitando _o direito. IL - A nogio “poder de policia’”” 3. A atuacdo administrativa para limitar o direito_a liberdade e a propriedade (ou, com mais precisao cientifica: de definir concreta- Mente seus contorngs) € estudada dentro da nogao de poder de polf- cia? 2. Celso Anténio Bandeira de Mello 0 demonstra: ““Convém desde logo obser- var que nao se deve confundir liberdade e propriedade com direito de liberdade e dircito de propriedade. Estes tiltimos sao 3 ueles, porém, tal como admitidos ‘gmn_am dado sistema normative, Por isso, rigorosamente falando, nao ha limitacoes administrativas ao direito de liberdade e ao dircito de propriedade — é a brilhante ob- Servacao de Alessi — uma vez que estas Sinpleamonizintegn lesmente integram 0 desenho do proprio perfil do direito. Sao elas, na verdade, a fisionomia normativa dele. Ha, isto sim, limi- tages 4 liberdade ¢ & propriedade”” (Elementos de Direite Administrativo, p. 240). 3. A doutrina sobre poder de policia ¢ vasta. Vejam-se, além de outros autores citados no texto: ALEMANHA - Otto Mayer, Derecho Administrative Alemdn, vol. IL, p.3ess.; FRANCA - H. L. Laferrigre, Cours de Droit Public e Administratif, vol. I, p- 368 e ss.; Henry Berthélemy, Traité Elémentaire de Droit Administratif, p. 235 e ss.; Ro- ger Bonnard, Précis Elémentaire de Droit Administratif, p. 397 e ss.; Marcel Waline, Ma: nel Elémentaire de Droit Administratif, p. 240 e ss.; Francis-Paul Bénoit, Le Droit Admi: nistratif Francais, p. 739 e ss.; Georges Vedel, Droit Administratif, p. 779 ¢ ss.; Jean Ri vero, Droit Administratif, p. 450 e ss.; ARGENTINA - Manuel Maria Diez, Derecho Ad- ministrative, vol. IV, p. 17 ¢ ss.; Bartolome Fiorini, Manual de Derecho Administrativo, INTRODUCAO i Ela é terrivelmente problematica, por uma infinidade de motivos. O mais grave deles — que modernamente se quis eliminar, com a ex- clusao da palavra poder, passando-se a referir apenas a policia adii- nistrativa — é seu timbre autoritdrio. Reconhecer a Administracao um. Poder de policia parece signilicar algo além da mera descricdo da fun- 30 de aplicar as leis reguladoras dos direitos, Unico sentido que a ex- Bressdo poderia ter no Estado de Direito. Poder de policia parece ser mais que isso. Um trecho de Otto Mayer o demonstra: “‘O Poder de Policia consiste na agdo da autoridade para fazer cumprir o dever, que se supoe geral, de nao perturbar de modo algum a boa ordem da coisa _ptiblica’’. 7 O poder de policia surge, nessa definicao, como orrelato do dever (nao expresso na lei, mas suposto) de os particu- lares respeitarem Jares respeitarem dado valor, juridico por natureza: a boa ordem da coisa publica. A competéncia para cuidar dele é implicita, parecendo normal que, além de dispor de todos os instrumentas_para fazé-lo, a Administracdo defina com autonomia s ido. Dai a admitir, mesmo inconscientemente, a existéncia de poderes nao previstos em. lei, mas supostos na competéncia para cuidar da boa ordem da coisa publica, é um passo. O grande problema é que nada disso se compa- tibiliza com o principio da legalidade administrativa. Seria inevitavel que, para enquadrar a ciéncia jurfdico-adminis- trativa na realidade do Estado de Direito, fosse proposta a elimina- sao da prépria idéia de poder de policia. A tanto se dedicou Gordil- Io, em paginas inigualaveis.° Seu argumento central, afora a origem viciada do conceito, reside na sua inocuidade, visto isolar algo que, em tudo e por tudo, corresponderia ao exercicio de qualquer funcdo administrativa: a aplicacao_da lei A critica de Gordillo se opés a resposta de que investira contra nogao ultrapassada: bastaria es esclarecer a necessidade de o poder de olicia_traduzir sempre 6 Mas ainda assim vol. II, p. 645 e ss.; Juan Francisco Linares, Derecho Administrativo, p. 421 e ss.; ESPA- NHA Fernando Garrido Falla, Tratao de Derecho Administrativn, vol I p. 159 e 58.5 ITALIA - Renato Alessi, Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Haliano, p. 461 ess.; BRASIL —. Themistocles Brandao Cavalcanti, Curse de Direito Administrative, p. 115 e 5s.; Jos¢ Horacio Meirelles Teixeira, Estudos de Direito Administrativo, vol. L, p. 153 ess.; Clovis Beznos, Poder de Policia; Alvaro Lazzarini e outros, Direito Administrativo da Orden: Piiblica; José Cretella Jr., Curso de Direito Administrativo, p. 521 ¢ ss.; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de Direito Administrativo, p. 253 ss.; Didgenes Gas- patini, Direito Administrativo, p. 98 € ss.; Hely Lopes Meirelles, Direito Administrative Brasileiro, p. 113 e ss.; Celso Anténio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Adminis- trativo, p. 240 e ss. 4. Derecho Administrativo Alemén, Tomo HL, p. 19, g.n. 5. Teorla General del Derecho Administrativo, p. 535 @ ss. 6. Consulte-se 0 prefacio de Celso Anténio Bandeira de Mello ao livro Poder de Policia, de Clovis Beznos, p. X 12 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR permanece a pergunta: porque isolar, empregando expresso reco- nhecidamente perigosa, algo que nAo seria distinto de outras atua- Ges administrativas, por traduzir apenas aplicacao da lei? Aqui a ira de Gordillo parece nao ter motivo: ¢ importante aglu- tinar sob alguma rubrica a atividade administrativa que nao se tra- duza na prestacao de servicos puiblicos. Com essa feicao tem sobre- vivido. Para citar apenas um exemlo: Laubadére, ao tratar das inter- vencdes administrativas, distingue 0 servigo ptiblico de ‘‘outras for- mas de acdo que deixam subsistir a atividade privada, restringindo- se a agir sobre ela’’. Alertando ser impossivel estudar todas elas, op- ta por tratar tao-sé da mais importante, a policia administrativa. 4, As observacées de Gordillo e a conseqiiente proposta de banir o poder de policia correspondem, contudo — um tanto pelo que con- tém, um tanto pelo que nao contém — a um passo de suma impor- tAncia para a ciéncia do direito administrativo. De um lado, fica reconhecido seu perigo. Impossivel fugir a car- ga negativa da palavra. Ela demanda tantos esclarecimentos que nao se compreende porque deix4-la sobreviver. Ainda: quem supée es- tarem afastados os riscos nos dias de hoje nao esta atento a realida- de. Nunca eles foram tao grandes, agora que o Poder Puiblico amplia rapidamente suas funcdes; basta o haver-se atribuido constitucional- mente ao Estado a protecéo dos consumidores (art. 5°, XXXII), da satide (art. 23, Il), do patriménio cultural (art. 23, Ill e IV), do meio ambiente (art. 23, VI e VII), para que se aceitem injuncées de toda ordem sobre a liberdade e a propriedade, impostas sem qualquer fun- damento legal especifico. A tendéncia natural, inclusive pela simpa- tia em torno desses valores, é de esquecer o principio de legalidade. Mas a Constituicao nao se cansa de repetir que a atuago do Estado se dard sempre na forma da lei;? no possivel conflito, decorrente da lacuna legal, entre a protecao daqueles bens e a liberdade, optou por esta, Em suma, o Constituinte aceitou 0 custo da defesa da liberda- de. Um prego caro, com efeito, mas que valia pagar, conhecendo-se as conseqiiéncias de atribuir 4 Administracao poderes indefinidos e, por isso mesmo, ilimitados. E essa crua realidade que o conceito de poder de policia — ainda mais adocgado com a troca da boa ordem da 7. Manuel de Droit Administratif, p. 241. 8. Assim com a defesa do consumidor (art. 5°, XXXII, ‘’o Estado promoverd, na forma da lei, a defesa do consumidor’’) e com a defesa do meio ambiente (art. 225, 12, TH: definir, através de lei, espacos territoriais a serem especialmente protegidos; IV: ‘‘exi- Bit. na forma da let, estudo prévio de impacto ambiental"; VIl: vedadas, na forma da ei, as prdticas que coloquem em risco a fungao ecolégica da fauna e flora; 22: exigit a recuperacao do meio ambiente degradado, na forma da lei; 42: a utilizacao da Floresta AmazOnica e outras far-se-4, na forma da lei, dentro de condigdes que assegurem a pre- servacao do meio ambiente). INTRODUCAO 13 coisa ptiblica por defesa do consumidor, do meio ambiente, do patrimdnio cultural, etc, — teima em obscurecer. Destarte, é forcoso descarté-lo, em busca de outro modo, mais feliz, de designar atividade que, co- mo todo agir administrativo, significa aplicagao da lei, e nada mais que isso. De outro angulo, percebe-se a impossibilidade de prescindir de no¢ao_aglutinadora para tudo aquilo que nao seja prestagao de Services. A solugao soa facil: trocar_o rétulo. Seguindo nessa linha, a dou- trina tem preferido falar em limitacdes administrativas 4 liberdade ¢ 3 propriedade, discretamente omitindo 9 poder de policia. 5. Mas 9 problema nao sé resolve tao facilmente. Se, com a manutencao do poder de policia, quer-se dispor de cate- orfa oposta a servi uiblico, ela é i iciente. O Esta- do dispGe de competéncias para sacrificar direitos, ndo apenas para desenhar-lhes o perfil. Uma delas ¢ a de desapropriar bens, para incorporé-los ao patriménio ptiblico. Mas isso nao constitui grande coisa, eis que ninguém confundiria limitago com essa espécie de de- sapropriacao. Entaéo, parece nao haver inconveniente em continuar a opor poder de policia a servico ptiblico, tratando-se em separado do poder de desapropriar. O problema se complica, porém, ao con- siderarmos outros poderes, também mais intensos que o de definir concretamente os contornos de direitos, mas inconfundiveis com a desapropriacao classica. Surge af uma extensa gama de figuras dis- postas caoticamente: tombamento, servidao, ocupacao temporaria, requisicao e outros mais. O que se consegue é, individualmente, dis- tinguir um do outro. Tem sido impossivel, porém, articular tudo em um sistema. Ha quem proponha, entao, o alargamento da nocao de poder de olicia para abrigar todas as formas de intervencao do Estado na pro- Predade privada, dade priv: inclusive a desapropriagao.? A proposta tem, en- etanto, dois inconvenientes. O primeiro esté em baralhar ainda mais o uso da expréssa9, conferindo extensao gigantesca a algo que nao se sabe 0 que ainda faz na ciéncia do direito administrativo. O se- gundo, em nao resolver dtivida fundamental: existem subcategorias dentro desse grande poder de policia? O que distingue desapropria- ¢ao de limitagao, de servidao, de ocupacao, e dai afora? Correndo paralelamente a tudo isso, vem o incremento das ati- vidades da Administrag3o0, resultante do Estado Social de Direito. 9. Parece ser 0 caso, no Brasil, de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Adminis- trativo, p. 97. 1“ DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR A idéia de poder de policia foi cunhada para um Estado minimo, desinteressado em interferir na economia, voltado sobretudo a im- osicao de limites negativos a liberdade e A propriedade, criando con- dicdes para a convivéncia dos direitos.'° Daf haver-se definido 0 po- der de policia como imposicao ao particular do dever de abstencao, de nao fazer.11 Mas, modernamente, a interferéncia estatal se iten- sificou e mudou de qualidade, por conta da superacao do liberalis- mo classico. O Estado Social, mais do que pretender a harmonizacao dos direitos individuais, impde projetos a serem implementados co- letivamente: o desenvolvimento nacional, a redugao das desigualda- les, a protecao do meio ambiente, a preservacao do patriménio his- térico. De atuagao restrita ao campo microjuridico, o Estado avancou para _o setor do macrojuridico 10. A propésito, consulte-se trecho do administrativista paraguaio Salvador Vil- lagra Maffiodo, onde o poder de policia surge essencialmente como meio de compati- bilizagao do exercicio de direitos: ‘“Enquanto a Constituicdo consagra os direitos e li- berdades, o Direito Administrativo policial os regulamenta e limita. Aquela se apre- senta como teoria das liberdades e este como teoria da ordem. A oposicao é mais aparente que real, porque nao podem existir direitos e liberdades individuais ilimitados, que se destruitiam reciprocamente. De modo que o Direito policial, corretamente entendi- do e executado, pode ser qualificado como defesa da liberdade (Principios de Derecho Ad- ministrativo, p. 190/1). 11. E 0 caso de Celso Anténio Bandeira de Mello, como se vé de sua definicao para a Policia Administrativa: “’a atividade da Administracdo Publica, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral ena forma da lei, a liberdade e a propriedade dos individuos, mediante acdo, ora fis- calizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo covrcitivamente aos particulares um dever de abstengio (non facere) a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interes- ses sociais consagrados no sistema normativo’ (Elementos de Direito Administrativo, p. 252). 12. A distingio é de Eros Grau: ““O que marca definidamente a distingio entre 0s tratamentos micro e macrojuridico ¢ 0 objeto a que se refere a norma ou 0 conjunto de normas juridicas. Assim, alinha-se como objeto do tratamento microjuridico a uni- dade de atividade ¢ de sujeito, ao passo que o tratamento macrojuridico tem como objeto agregados de atividades e de sujeitos’’. A seguir, aplicando os conceitos ao di- reito econémico, explica: “Mantendo-nos na andlise de contetidos econémicos bem definidos, a regulago microjuridica respeita a acao do agente econdmico, unitariamente considerada, nesta ou naquela situagio. Sao microjuridicas, pois, tanto as normas que asseguram ao credor o direito & percepeao do pagamento pelo que Ihe é devido — pro- tecao do direito individual — quanto aquelas que coibem, penalizando-as, a emissa0 de duplicata simulada, simulacao de dividas para fraude & execucdo, a fraude no co- mércio — protegao do interesse social. A regula macrojuridica, por outro lado, volta- se a agregados de acdes econdmicas, de um conjunto de agentes econémicos. Importa- Ihe comportamento econémico global de tais agentes, sendo de natureza macrojuri- dica normas como a do art, 170 da vigente Constituicao Federal, como as que definem condigdes de acesso de empresas ao mercado financeiro ou como as que estabelecem limitacdes de precos. Circunstancialmente, observamos que as normas de cardter ma- crojuridico, em regra, estao voltadas 4 protecao imediata do interesse social” (Elemen- tos de Direito Econdmico, p. 29), INTRODUCAO 15 Diante de um poder de policia com o perfil apontado, onde en- quadrar as novas agGes governamentais, como a voltada a obter o cumprimento da fungao social da propriedade, traduzida na exigén- cia de seu adequado aproveitamento, nao na mera observancia de barreiras negativas? O controle estatal da economia traz outras perplexidades: qual a natureza juridica — usada a expressao no tinico sentido que pode fer em ciéncia, a saber: qual é a localizag&o no sistema? — da interve) ¢40 em instituicao financeira, da imposicao do dever de vender pro’ dutos de primeira necessidade, do tabelamento de precos e de ou- tras tantas medidas? Sera possivel abrigar tudo no eldstico poder de policia? Quando se observa o surgimento de novos ramos, como os di- reitos econdémico, urbanistico, ambiental, agrario, sanitario, todos li- gados, embora nao exclusivamente, ao estudo da acao governamen- tal sobre a vida privada, nota-se que a ciéncia do direito administra- tivo nao tem sabido oferecer uma teoria geral apta a ser aplicada a cada um deles. Vem, por isso, perdendo importancia. De pouco ou nada adiantara 0 estudioso buscar na teoria do direito administrati- vo as categorias de que necessita para compreender os limites e exi- géncias das novas fungGes do Estado. Encontrard uma doutrina que ainda se debate com dificuldades origindrias em torno do poder de policia! O resultado disso, todos conhecemos: o surgimento de teo- rias ad hoc, voltadas apenas aos problemas especificos que enfrentam, e descompromissadas muitas vezes ¢ i drdes que o ireito administrativo ja fixou. A dificuldade de encontrar alguma har- monia entre liberdade de iniciativa econémica, principio da legalida- de e controle estatal de precos, por exemplo, ou entre protegao do patriménio cultural e ambiental e direito de propriedade é indicativo claro e sério dessa insuficiéncia. UI - Um novo enfoque: administragdo ordenadora 6. E preciso enfrentar, sobretudo com muita estratégia, esse es- tado de coisas. Ou se desiste de tratar desses assuntos — e ai tudo 0 que se ter a oferecer seré uma teoria do ato administrativo enquanto categoria puramente formal — ou se admite a necessidade de elabo- rar sistematizacao ampla e nova de toda atividade de regulacao ad- ministrativa da vida privada. Se a opgao for a segunda, sera preciso ter coragem para descar- tar nogdes de hd muito incrustradas em nossa mente — que relaxa- damente as foi deixando ficar — e partir para novos caminhos: novas categorias, nova terminologia. Parece Gbvio que o primeiro pas- 16 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR, so sera enviar para o museu nao sé a expressao poder de policia, como a nogao que recobre. 7. A reconstrucéo da teoria da agao administrativa passa, a nos- so ver, pela identificagao de pelo menos trés grandes setores: a adm: ahr g ca Se chi atseaas fomenboaa ene . nistracao_de gest@o, a _administracao fomentadora e a_administracno ordenadora, O uso da expressao administragao ordenadora nao é novo no Direi- to Administrativo. A doutrina alema, superando 0 arcaismo e aca- nhamento do poder de policia, fala de uma Ordnungsverwaltung ou ordnenden Verwaltung — administracéo ordenadora — contraposta a administrac4o prestacional (Leistungsverwaltung ou leistenden Verwal- tung), que presta servicos aos administrados. ' A administracao de gestao corresponde a funcao de gerir — como agente, como Sujeito ativo — determinadas atividades. Engloba ini cialmente o “‘oferecimento di modidade material fru: vel diretamente pelos administrados’’.*° Em sua dupla modalida prestacao de servicos pa licos (isto é, os reservados ao Estado) e de servicos sociais (atribuidos a ele sem carater de exclusividade, o que elimina a técnica Concessional; sao os casos de educacao e satide), Ao lado dessas, incluem-se o estabelecimento ¢ manutencao de relacdes com os Estados estrangeiros (CF, art. 21, 1 a IV), a emissao de moeda e administracao cambial (CF, art. 21, VIL e VIII), a exploracao de seto- res monopolizados (CF, art. 177), e de atividades econémicas, em re- gime de concorréncia com os particulares (CF, art. 173). Percebe-se a multiplicidade de regimes juridicos aqui envolvidos. A administracdo fomentadora corresponde a funcgag de induzir, mediante estimulos e incentivos — prescindindo, portanto, de ins- trumentos imperativos, cogentes — os particulares a adotarem cer- tos comportamentos.® Ex.: concessao de financiamentos, bolsas de estudos, incentivos fiscais. Por fim, a administracdo ordenadora congrega as operacGes es- tatais de regulaca ivado (e, portanto, ligadas & aquisicao, 13. Nao ha grande novidade nesta triparticao, que ja vem defendida — embora com funca&o mais restrita ¢ terminologia diversa — por Eros Grau, em seu Elementos de Direito Econémico, p. 65. 14. Garcia de Enterria e Fernéndez, Curso de Derecho Administrativo, vol. Il, p. 97. 15. A expressao é de Celso Anténio Bandeira de Mello, Prestagito de Servigos Pii- blicos e Administragio Indireta, p. 20. 16. Fernando Garrido Falla, Tratado de Derecho Administrativo, vol. II, p. 303 e ss.; Manuel Maria Diez, Derecho Administrativo, vol. IV, p. 139 e ss.; Pedro Guilhermo Al- tamira, Curso de Derecho Administrativo, p. 487 e ss.; José Roberto Dromi, Derecho Ad- ministrativo Econémico, vol. II, p. 138 € ss.; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de Direito Administrative, p. 401 e ss. INTRODUCAO 7 exercicio e sacrificio de direitos privados), com o emprego do poder de autoridade. IV - Novidade da administragao ordenadora 8._A substituicéo do poder de policia pela administracio ordenadora nao é mera troca de rdtulos. Claro, hd também a eliminacao de ex- Pressao inconveniente, porque ligada a realidade juridica que nao mais vigora. Porém, o que hd, principalmente, é a substituicaéo da postura Ietodolégica. Desde logo, é importante a questao do rétulo. Nao convém falar em poder de policia porque ele: a) remete a um poder — o de regular autonomamente as atividades privadas — de que a Administracao dis- yunha ant de Direito e que, com sua implantac¢ao, foi transferido para o legislador; b) esta ligada ao modelo do Estado li- beral cldssico, que sé devia interferir na vida privada para reguld-la negativamente, impondo deveres de abstencao, e, atualmente, a CTonstitui¢ao e as leis autorizam outros géneros de imposicao; c) faz supor a existéncia de um poder discriciondrio implicito para interfe- rir na vida privada que, se pode existir em matéria de ordem publica — campo para o qual o conceito foi originalmente cunhado — nao existe em outras, para as quais a doutrina transportou-o acriticamen- te, pela comodidade de seguir usando velhas teorias. 9. Quanto ao problema metodolégico: a doutrina parte do pres- suposto de que a xanint tracao dispde de certa Faculdade, com per- fil diferendado de outzas, a ser designada pelo nome de poder de policia. Hely Lopes Meirelles, p. ex., enunciando os poderes admi- nistrativos, arrola o vinculado, o discriciondrio, o hierarquico, o dis- ciplinar, o regulamentar e o de policia.” A identificacdo da policia administrativa ¢, portanto, resultado da classificacao — boa ou ma, nao importa discuti-lo neste tépico — dos diferentes poderes da Administracdo. Jd a idéia de administracdo ordenadora surge de outra ordem de raciocinio, Como ponto de partida, ela nega a existéncia de uma fa- culdade administrativa, estruturalmente distinta das demais, igada a limitacao dos direitos individuais. O poder de regular originaria- ‘mente os direitos é exclusivamente da lei. As operacdes administra- tivas destinadas a disciplinar a vida privada apresentam-se, 4 seme- anga das outras, como aplicacao de leis. Fundamental, contudo, isolar num conceito todas as atividades administrativas envolvidas com a aquisicao, exercicio e supressao de 17. Direito Administrative Brasileiro, p. 100 e ss. 18 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR direitos privados. E que, como demonstraremos em capitulo préprio, em relacao a elas o principio da legalidade se apresenta mais rigido do que no referente & prestacao de servicos publicos, p. ex. Hé aqui importante novidade: enquanto a nocdo de poder de policia surgiu para realcar o suposto poder de’a Administracao interferir na liber- dade ¢ propriedade, regulando-as em nome da boa ordem da coisa pii- blica, a de ‘administracao ordenadora nasce justamente para nega-lo — e para deixar bem estampada a negativa. 10. Adotado esse fundamento, administracao ord: urge como a projec4o, para o direito administrativo, de uma problematica dg Horie geral do diveite pablico , assim enunciada: em que medida ¢ sob que regime lo interferir na aquisicao, exercicio e ex- tincao dos direitos da vida privada? A andlise aqui é, em primeiro Tugar, dos limites da atividade legislativa (ex.: 0 principio da minima intervenc¢ao estatal impede a instituicao, pela lei, de certos condicio- namentos aos direitos dos particulares). Em segundo, dos limites constitucionais da atividade administrativa (ex.: no sistema brasilei- 10, 0s sacrificios derivam apenas de ato judicial). Portanto, adminis- tragéo ordenadora é a projegao de conceito jurfdico multidisciplinar, envolvendo o direito constitucional, o direito processual e o direito administrativo. A idéia de administrac4o ordenadora resulta da necessidade de o jurista conhecer casuisticamente as atividades governamentais e mostrar como, em rela¢ao a cada uma delas, dévem incidir os princi- pios gerais do direito administrative. Usando a terminologia consa- grada pelos cultores da informatica: ela é mero aplicativo, desenvol- vido com os recursos do sistema operacional ciéncia juridico- administrativa , fora do qual nao pode funcionar.. Nao é uma parte do direito administrativo; € todo ele aplicado a um conjunto de_ativida- Wes estatais. és estatais. 11, Para concluir, convém enfrentar dificuldade, posta pelo di- reito positivo brasileiro, para a eliminacdo do poder de policia. A Carta de 1988, ao indicar, no art. 145, as espécies tributdrias, mencionou as taxas, cobradas ‘‘em razao do exercicio do poder de policia’’. De seu turno, o Cédigo Tributdrio Nacional, apés dispor que as taxas ‘’tém como fato gerador o exercicio regular do poder de policia’’ (art. 77), define este tiltimo como a ‘‘atividade da adminis- tragao publica que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a pratica de ato ou abstencao de fato, em razao de interesse publico concernente a seguranca, & higiene, 4 ordem, aos costumes, a disciplina da producao e do mercado, ao exercicio de ati- vidades econémicas dependentes de concessao ou autorizagao do Po- der Piblico, 4 trangiiilidade ptiblica ou ao respeito a propriedade e aos direitos individuais ou coletivos’’ (art. 78). INTRODUCAO, 19 O exercicio do poder de policia parece ser, portanto, hipdtese de incidéncia tributdria. Dai a necessidade de preservar a nocao. Certo? Nao, completamente errado. O poder de policia, tal qual normalmente definido, engloba, en- tre outras, as faculdades de: a) editar regulamentos em matéria de direito a liberdade e & propriedade; e b) impor sangdes. Contudo, nem um nem outro dao ensejo a cobranca de taxa, segundo o entendimento pacifico de nossa doutrina e jurisprudéncia: de um lado, porque a producao normativa, nao estando referida a qualquer sujeito concre- to, nao pode ser causa do nascimento de obrigacao tributdria e, de outro, porque san¢des nao sao tributos (CTN, art. 3°). Logo, nem to- do manejo do poder de policia propicia a cobranga de taxa. O que permite a imposicao desse tributo é 0 desenvolvimento efe- tivo de atividade estatal: a) fiscalizatéria do exercicio dos direitos pri- vados; ou b) provocada por particular, que pretenda a constituicéo, em seu favor, de certos direitos dependentes de ato administrativo.® A supressao do conceito de poder de policia é irrelevante para nosso direito tributdrio, porque as taxas nao sao derivadas de todo e qual- quer exercicio dele, mas apenas de algumas manifestacdes de autori- dade administrativa, que precisam ser identificadas uma a uma. Nao ha inconveniente, para esse fim — antes ao contrario — em que tais manifestag6es sejam reportadas & administrac4o ordenadora e nao a um problematico poder de policia.? 18. Cf. Régis Fernandes de Oliveira, Taxas de Policia, p. 39 e ss.; Geraldo Ataliba, Hipotese de Incidéncia Tributdria, p. 138; Roque Antonio Carrazza, Curso de Direito Cons- titucional Tributdrio, p. 244 ¢ ss.; Bernardo Ribeiro de Moraes, A Taxa no Sistema Tribte- tario Brasileiro, p. 94; Celso Antonio Bandeira de Mello, Taxa de Policia — Quando cabe — Servico Ptiblico e Exploragia de Atividade Econémica — Regime Tributdrio, in RDT 55168. 19. Tanto isso é verdade que o legislador espanhol definiu as taxas sem fazer recurso ao conceito de poder de policia e construiu hipétese tributdria semelhante A prevista em nosso sistema. Segundo ele, as taxas sao ‘‘tributos cujo fato imponivel consiste na prestacdo de servicos ou na realizacao de atividades em regime de direito publico que se refiram, afetem ou beneficiem os sujeitos passivos, quando concorram as seguintes caracteristicas: a) sejam de solicitagao ou recepgao obrigatoria pelos ad- ministrados; b) néo possam ser prestadas ou realizadas pelo setor privado por impli- carem intervengao na atuagao dos particulares ou qualquer outra manifestacdo do exer- cicio de autoridade, ou porque, em relacdo a ditos servicos, esta estabelecida sua re- serva em favor do setor publico, nos termos das normas vigentes”’ (José Juan Ferreiro Lapatza, Tasas y Presios, in RDT 55/17). Capitulo Ir ADMINISTRACAO ORDENADORA I - Conceito 1, Administracéo ordenadora é a parcela da funcao administrati- va, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para discipli- far, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos parti- culares no campo de atividades que lhes é préprio. Nao se confunde como a regulamentagao legislativa dos direitos e deveres, visto envolver o exercicio de funcio administrativa, Pela mes- ma circunstancia, difere da decisao de conflitos pelo Poder Judiciario. Nao se assemelha 4 disciplina dos vinculos entre a Administra- ao e seus servidores, delegatdrios ou contratados, por atinar 4 orde- nagao do cam , Nao do setor publico; por isso mesmo, desen- volve-se dentro de relacao genérica — nao de relacdo especial — da ministracao com os particulares, Por fim, distingue-se de outras in- terferéncias no campo privado, com a exploracao econémica estatal e 9 fomento, porquanto, de uma parte, objeti: is eee a P a = cicto e perda de direitos pelos particulares (ao contrario da exploracdo econémica estatal, que visa substituir a privada) e, de outra, implica na ulilizagao do poder de a le, tente na al lade de fomento. 2. A exata compreensao da administracéo ordenadora demanda, assim, que fiquem evidenciados seus caracteres fundamentais: a) trata- se de exercicio de funcdo administrativa; b) voltado & organizacdo da vida privada; c) dentro de relacdo genérica; d) com a utilizacao do poder de autoridade. UI - Exercicio de fungao administrativa 3._A administracéo ordenadora é, como a ferminologia revela, atuacao administrativa do Estado, Com isso, difere da ordenacao le- gislativa, porquanto administrar aplicar -- e nao produzir — a lei, ADMINISTRAGAO ORDENADORA 21 bem como da ordenagao judicial, ao operar-se de offcio, sem gerar, como esta, a edi¢&o de atos definitivos, com eficacia de coisa julga- da, para solver conflitos. 4, Os comportamentos dos individuos so sempre disciplinados pelo Direito, de modo direto ou indireto. Dispondo 0 art. 5° da Constituicao, em seu inc. Il, que ninguém sera obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senao em virtu- de de lei, segue-se que a auséncia de norma legal implica na autoriza- ao indireta para a livre atuacao dos particulares. Em caso de conflito, este seré solvido pelo Judiciario, a quem compete a protecao dos di- reitos (CF, art. 5°, XXXV). A Administracao nao cabe qualquer atuacio. No entanto, sao raros hoje em dia os setores nao regulamenta- dos pelo Estado. Cada vez mais a lei se ocupa em discipli fireta- mente as _variadas facetas da vida privada, A lei pode prever ou nao a interferéncia do Executivo em sua aplicagaéo. Em caso positivo, es- taremos diante de normas de direito administrativo (ex.: leis munici- pais sobre constru¢6es urbanas, regras de transito, disciplina dos pre- gos na economia). Na hipstese contraria, as regras serao de direito privado (ex.: normas do Cédigo Civil, tratando dos direitos e obriga- g6es dentro da familia, da propriedade, dos contratos). A administracio ordenadora surge apenas na primeira hipstese. Assim, inexiste setor que lhe pertenca, por natureza. 56 existirg ad- ministragao ordenadora se, quando, como e na medida em que o le- gs lador, ao regulamentar a vida dos individuos, houver cominado Administracao ‘um papel ativo em seu_cumprimento. III - Voitado 4 organizagéo da vida privada 5._A vida social — isto é, o conjunto das acées desenvolvidas na sociedade — é formada pela soma de dois setores, delimitados pela Constituicdo: 0 estatal e o privado. A administracéo ordenadora con- siste na disciplina das aces dos individuos em seu setor proprio de atuacdo (9 campo privado), nao se confundindo com a regulacao a que estejam sujeitos quando atuem no campo estatal.” Como demonstramos em trabalho anterior, excluem-se do cam- 29 privade as atividades que, cabendo ao Estado, nao possam ser lesempenhadas pelos particulares sem ato estatal de delegacao.7 Os soncessiondtios de servico-puiblico, Pp. ex., sujeitam-se a imposicées lerivadas de outro fundamenta, qual seja, a titularidade estatal da atividade que explora. 6. Cumpre indagar se 0 préprig. Estado pode ser sujeito passivo da administracaéo ordenadora. Muito concretamente, pée-se 0 pro- 1. Fundamtentos de Direito Puiblico, pp. 76177. | | 22 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR blema de saber se uma pessoa politica (Uniao, Estado, Municipio, Dis- trito Federal) pode instituir condicionamentos ao direito de proprie- dade titularizado por outra, fiscalizando seu éxercicio. A administracdo ordenadora pressupée a titularidade, por quem aexerce, de autoridade em relacao ao sujeito atingido. No sistema cons- titucional brasileiro, as pessoas politicas sao isGnomas, inexistindo em rincipio supremacia de umas em relacao as outras. No entanto, oPo- der. Dublico freqiientemente desenvolve operacGes que, em seus aspec- tos essenciais, assemelham-se as dos particulares. Se dado ente poli- tico recebeu da Constituicao a incumbéncia de disciplinar as operacoes dos particulares, deve também, por coeréncia, regular idénticas acdes, fuando de autoria de outra pessoa estatal; caso contrario, ficaria im- peaidor ido de implementar o interesse publico que Ihe incumbe velar. O fenémeno, no caso, nao é de supré i i olitica so- bre a outra, mas de mera projecao da autoridade que exerce em relacao a08 Inferesses privados. Dai ser idoneo afirmar que uma pessoa politi- ¢a estara sujeita aos condicionamentos impostos por outra ao desen, volver operacao que, no essencii a i ncie da atividade dos Pparticulares que a esta viltima caiba regular. Se o Estado-membro pretende construir prédio para simples re- Particao publica, deve observar as leis. muunicipais sobre zoneamento e construcao, sujeitando-se a correspondente ‘iscalizagao.” E que, de im Tado, sua edificacdo nao se distingue, nos aspectos essenciais, dos prédios de escritGrios erigidos por particulares e, de outro, o Munici- pio tem competéncia constitucional para regular as construgdes ordi- narias no espaco urbano. As mesmas razées exigem a observancia das regras de transito pelos vefculos ptiblicgs. Mas se a Unido decide a instalagao de usina nuclear ou o Estado a edificagao de presidio, nao devem acatamento a normas municipais de zoneamento e cons- frugao. Nem a usina nuclear nem 0 estabelecimento prisional sao cons- trugdes comuns, submetidas 4 competéncia municipal; apenas as leis federal e estadual, respectivamente, podem regulé-las, inclusive quan- to a localizacao e padroes construtivos, jA que somente a elas é defe- rido disciplinar tais servicos. Nessas hipdteses, a imposicao de nor- mas municipais a Unido e Estados implicaria no intoleravel poder de o Municipio dispor, desde uma posi¢ao hierarquicamente avantaja- da, sobre servicos ptblicos reservados com exclusividade Aqueles. uanto aos sacrificios de direi é distinto. Eles sao instituidos para, nas hipdteses de conflito entre interesse privado e interesse publico, fazer prevalecer este ultimo. Com base no mesmo critério e examinando o problema de um ponto de vista exclusiva- 2. Sobre a sujeigdo ao poder municipal dos terrenos de marinha aforados, cujo dominio direto pertence & Unido, v. Celso Antonio Bandeira de Mello, Terrenos de Ma- inka Aforados e 0 Poder Municipal, in RDP 88/50. ADMINISTRAGAO ORDENADORA 23 mente Idgico, poder-se-ia sustentar a possibilidade de um ente esta- tal, seja qual for, desapropriar bem dominical de outro, para destind-lo a atividade ptiblica. Os bens dominicais, como nao tém destinacao especifica, por Sbvio nao esto afetados ao interesse publico. Logo, sua desapropriacao faria prevalecer um interesse ptiblico — 0 do ex- propriante — sobre outro que, se nao é propriamente privado, dada a existéncia de propriedade piiblica, ao menos se Ihe equipara. Mas nossa lei de desapropriacGes (Decreto-lei 3.365/41) nao segue esse cri- tério, eis que, em seu art. 2°, pardégrafo 2°, permite a expropriacao de bens municipais e estaduais pela Uniao e de bens municipais pe- los Estados, mas nao tolera o inverso, donde a inviabilidade do Mu- nicipio expropriar, por exemplo, terreno de marinha desocupado, para construir hospital. De outro lado, quando a norma permite a desa- propriacao de bens de Municipio por Estado e Unido, e de Estados pela Unido, nao faz caso de esses bens estarem ou nao afetados ao interesse puiblico municipal ou estadual. Donde a conclusao de que, em nosso sistema, a desapropriacao de bens publicos nao deve ser vista como projecao dos poderes da administragao ordenadora, mas como mecanismo,de solucag-de.conilites de interesses entre pessoas Politicas.* Dat a afirmacao de que as pessoas politicas nao impoem ‘sacrificios de direitos umas as outras, no sentido prdprio da expressao. O quanto afirmado, relativamente ao exercicio dos poderes de or- denagao por um ente politico frente a outro, justificam a caracteriza- sao, que fizemos acima, da administracao ordenadora como voltada a organizacao do campo privado de atividades. E que, embora os con- dicionamentos atinjam as atividades desenvolvidas por outras pes- soas politicas, isto $6 ocorre quando elas forem, no essencial, equi- Paraveis as dos particulares. IV - Dentro de relagao genérica 7. A administracdo ordenadora nao se confunde coma disciplina da atuac&o dos particulares no campo estatal. O concessiondrio de servico ptiblico, o servidor, o contratado pela Administracao, 0 indi- viduo que desfruta do direito ao uso especial de bem publico sujeitam- Se_as regras atinentes a esse campo, isto é, sao regidos por normas proprias do direito puiblico. Mas essa afirmacao ainda diz pouco por- que o exercicio de atividade particular também se submete a regras ptiblicas; afinal, uma parte delas tem por objeto justamente a regula- mentacao de atividades privadas. 3. Sobre os delicados problemas propostos pela desapropriacio de bens puiblicos no Brasil, v. Celso Antonio Bandeira de Mello, Desapropriagao de bem puiblico, in RDP 29147; e Sérgio Ferraz, 3 Estudos de Direito, p.3¢5s.; ¢ Desapropringao de bens estaduais, in RDP 30167. 24 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR A diferenga esté em que, quando, por qualquer forma, os parti- culares atuam no campo estatal, estabelecem com a Administracao uma relacdo juridi cifica, em que esta exerce poderes especiais. Quando, ao contrério, atuam no campo privado, submetem-se ape- nas a vinculo genérico com 0 Estado, caracterizado pelo poder deste, através de lei, regulamentar as atividades privadas. Mas, como vi- mos, essa disciplina pode prever ou nao a interferéncia das autorida- des administrativas no cumprimento da lei. Assim, a vinculacao ge- nérica do Estado com os individuos pode ou nao se materializar em vinculagdo genérica entre estes e a Administracao, na dependéncia — @, sobretudo, nos limites — da op¢ao legislativa. Percebe-se a distin- ¢4o: enquanto os poderes da Administracao, nos vinculos especifi- cos com os particulares, lhe sao conaturais e, portanto, tao extensos quanto necessdrio, os poderes genéricos da Administracao frente aos ~ articulares existirao se, quando, como e na medida em que expres- samente previstos em lei. 8. O particular estabelece com a Administracdo vinculos especi- ficos, propiciatérios de poderes administrativos especiais, quando: a) integra-se a seu aparelho burocratico; b) recebe delegacdo de ati- vidade estatal; ¢) contrata com a Administra¢ao; ou d) utiliza servi- 0 _puiblico ou ¢ beneficiado pelo direito ao uso especial de bem publico. O primeiro_género de atuacao do individuo no campo estatal é 0 realizado na condi¢ao de integrante do Estado, como no caso dos servidores publicos. A segunda hipGtese é a da descentralizacdo de servico, através de concessao ou permissao. Por ela, os particulares assumem atividade publica, que desenvolvem por sua prépria con- ta, Os particulares também atuam no campo publico quando contr ‘tados ‘Bio e (0 Estado para o fornecimento de obras, bens ou servicos (ex.. Sérvicos de empreiteiras para a realizacao de obras publicas). Por fim, também ingressam em campo ptiblico quando _usufruem de servico ou de uso especial de bem puiblico.* 4, Embora as vias pitblicas e outros espacos de uso comum do povo (como as pracas, mares, praias ¢ rios) estejam classificados entre os bens publicos, a regulamen- tacao de sua utilizacao ordinaria pelos particulares é matéria de administracao orde- nadora, ao contrério do que ocorre com os bens puiblicos de uso especial (como as re- particdes, as vias férreas, etc,), O uso desses espacos comuns pelos particulares esté essencialmente ligado & liberdade (de ir e vir, de reunigo, etc.). A regulamentacao do uso desses bens é, em tltima andlise, uma definicdo do direito a liberdade. Dai ser freqiiente em doutrina a discussio sobre a existéncia, no caso, de verdadeiro direito de propriedade do Estado. Sobre o tema, Jean-Marie Auby e Pierre Bon, Droit Admi- nistratif des Biens p. 8; Robert Pelloux, Le Probléme du Domaine Public, p. 33 e ss.; Eros Grau, Bens de Uso Comum, in RDP 76/50; Eduardo Vianna Motta, Regime Juridico dos Bens Pablicos, in RDP 5/57. ADMINISTRAGAO ORDENADORA 23 9. A circunstancia de a administragdo ordenadora se desenvol- ver dentro de vinculacao genérica da Administragao com os particu- Jares — e nao de vinculacao especifica, como nas situag6es acima apon- tadas — importa em fundas consegiiéncias juridicas: a) O principio da legalidade, na relacéo genérica, tem aplicacao muito mais intensa, Os poderes da Administracao frente aos parti- Culares, quando atuam no campo privado, sao criagao direta da lei. Lo- go, a Administracdo sé os Sxeisere 3 pre tos em lei, como previs- tos e através dos instrumentos expressamente conferidos. Jd na rela- ¢40 _especifica, entendem-se implicitos para a Administragao pode- res de mando, Hiscalizagao e até de extingao do vinculo, independen- temente de expressa previsao legal. Em outros termos, a lei apenas regulamenta os poderes que a Administracdo necessariamente tem — e que tera, mesmo na omissao da lei. b) Quando desenvolve atividade do Estado, em lugar dele, o par- ticular vincula a responsabilidade deste pelos prejuizos que produ- zir, Quando, ao confrario, explora atividade privada — mesmo sob a administragao ordenadora — os eventuais prejuizos resultantes sao de_sua exclusiva responsabilidade. V - Com a utilizagdo do poder de autoridade 10. A interferéncia da Administragao Publica no campo privado existe em trés modalidades distintas: a) através de estimulos a inicia- tiva privada, para induzi-la em certa direcdo; b) quando assume ati- vidade dos particulares, passando a atuar em substituicao a eles; c) pela ordenacdo de seus comportamentos, através de comandos co- gentes, derivados do poder oie autoridade (administracao ordena- dora). a) O fomento estatal 4 vida privada consiste na concessag de be- neficios aos particulares, de modo a induzir suas acGes em certo sen- ido. Quem nao se dispde a adotar o comportamento pretendido nao é sancionado; apenas deix. ‘ir o beneficio que teria, em ca- Os atos da administragao fomentadora nao se destinam — e ai sua diferenca com os atos constitutivos de direitos privados produzi- dos pela administracao ordenadora — a conferir aos particulares pos- sibilidades de autuacGes que estes j4 nao tenham. O fomento consis- te em prestacdes produzidas pela Administracao — sejam positivas ‘ajuda financeira a cientistas, créditos subsidiados a empresas estra- tégicas) ou negativas (isencdo de impostos) — para tornar mais fdceis ou eficazes atividades que, nao obstante, os individuos sao livres pa- ra _explorar. 26 DIREITO ADMINISTRATIVO ORDENADOR b) A exploracao estatal de atividade particular esté autorizada pelo art. 173 do Texto Constitucional, que define as hipdteses de seu cabi- Mento e seu regime. Nao visa dirigir comportamentos dos particula- Tes, mas suprir a falta daqueles entendidos como necessarios ao de- senvolvimento econdmico e social; o Estado apenas substitui os par- ficulares, passando a atuar em concorréncia com de ¢) Jéa administracdo ordenadora consiste na interferéncia estatal autoritéria sobre a vida privada. Supde o emprego de instrumentos_ com intensidades e finalidades muito variadas, incidindo sobre a es- fera juridica dos particulares em muiltiplas variacdes. O mais evidente deles é a imposic¢ao, através de comandos co- gentes, de padrdes de comporfamento (proibicao de certos atos, de- ver de realizar prestacGes, etc.), cuja inobservancia gera a aplicacdo de sancdes (ex.: perda do direito, multa)_ou a coacao (destruigao de alimentos deteriorados, etc.). Porém, o uso da autoridade surge tam- bém em versao mais sutil. E 0 caso dos atos ampliativos de direito, que conferem sittacdo juridica a que os sujeitos nao teriam acesso sem _a outorga administrativa (ex.: aquisicaéo da cidadania brasileira Por estrangeiros). O cumprimento das condicbes ptevistas na lei nao é dever, mas sionp) les Gnus a serem observados para aquisicao volun- tarig do direito, donde parecer, 4 primeira vista, que, na hipdtese, a Administracao Publica ndo desempenha autoridade. Esta, no en- tanto, existe, traduzida no poder, sem equivalente no direito priva- do, de criar situacdo juridi: neficio de alguém. O que faz dele legitima expressdo da autoridade ptiblica é a circunstancia de a situa- ao juridica ativa que cria naéo se resumir A _possibilidade de cobrar Prestacao da propria Administracdo, mas se exercer sobretudo pe- rante terceiros (ex.: 0 registro de marca, que obriga as Outras empre- SaS a0 respeito da exclusividade). VI - Técnicas da administragéo ordenadora 11. Estabelecido e aclarado o conceito de administracao ordena- dora, cumpre tracar rapido painel dos diversos modog de interven- ¢4o_na vida privada por ela adotados. O primeiro é a criacdo, por via de ato administrativo, de situagao, juridica ativa tipica da vida privada: direito de realizar atividade em ‘geral proibida (ex.: autorizagao de porte de arma) ou reservada a um niimero_limitado de exploradores (ex.: exportacag de café); atribui- $80 de status juridico (ex.: cidadania, personalidade juridica), etc. Es- tadaremos tais figuras sob o rétulo genérico de constituigio de direitos privados por ato administrativo. O segundo volta-se 4 regulacio administrativa do exercicio dos di- reitos titularizados pelos particulares, de modo a definir-lhes o per- ADMINISTRACAO ORDENADORA a7 fil. Aqui, o exame da atividade administrativa deve ter duplo enfo- que. De um lado, cuida-se de identificar as espéci i 6 = espécies de situacdes pas- sivas a que podem ser submetidos os titulares de direitos, as quais denominaremos globalmente de condicionamentos administrativos de di- reitos, com trés espécies: limites do direito (deveres de nag fazer), en- cargos do direito (deveres de fazer) e sujeicoes do direito (deveres de suportar}. De outro, serd preciso conhecer as correlatas competén- Glas da Administracao. Essa categoria corresponde em parte a nogao atual de limitacoes administrativas, ampliada com a teoria dos encar- Gos @ sujeicdes que, conquanto traduzam medidas diversas de impo- sigao do dever de abstencado, cumpre idéntico objetivo: definir 9 4m- bito do _exercicio licito dos direitos. A terceira espécie de interferéncia j4 nao tem como objeto regu- lar_o exercicio dos direitos, compondo-lhes 0 perfil (isto ¢, o Ambito ‘da atuacdo licita de seus titulares), mas sim sacrificd-los. No campo dos sacrificios de direitos — que atingem apenas os direitos patrimo- niais —, ver-se-o duas situacGes: a primeira é a dq sacrificio integral do direito (extincao), a segunda a do sacrificio parcial ou temporatio restricdo). Essa técnica deve ser estudada em confronto com a im- posicao de condicionamentos, para permitir a perfeita delimitagao de ambas, a vista da peculiaridade de seus regimes juridicos, sobretudo no que tange ao dever de indenizar. O conhecimento dessas duas categorias permitiré uma visdo clara de institutos mistos, como o tom- bamento, que por vezes traduz mero condicionamento de direito (ex.: tombamento de obra de arte), por vezes sacrificio de direito (ex.: a maioria dos casos de tombamento de prédios). A quarta modalidade esta ligada 4 imposicao, aos _particulares, de deveres aut6nomos. Os condicionamentos, destinados a definir o Ambito de Tegitima expressao dos direitos, 86 sujeitam os indivi duos que os exercem. Ha contudo, deveres impostos as pessoas en- quanto tais, dos quais estas ndo podem se livrar, nao cogitarem de exercer direitos (ex.: servico militar e eleitoral). Eo que denominamos prestacdes dos particulares em favor da Administracio.> 5. Este ultimo tépico, ainda de escassa importancia no Direito brasileiro, nao vem tratado em capitulo especifico deste livro. A ele fazemos referéncias nos itens relati- vos aos condicionamentos é sacrificios.

You might also like