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Memoria NO TEPT: DOS FUNDAMENTOS CIENTIFICOS AS IMPLICACOES TERAPEUTICAS ‘0s tiltimos anos, as terapias cognitivo- Nevers tém se beneficiado dos conhecimentos acerca do funcio- namento da meméria, desenvolvidos na esfera da Psicologia Cognitiva (Segal, Lau & Rokke, 1999). Embora 0 estudo das relagées entre varidveis emocionais e a meméria constitua-se num tépico recente, atualmente existe uma significativa gama de evidéncias apontando para o papel exercido por esta fungio cognitiva na etiologia e/ou perpetuagao de uma série de transtornos mentais, como Depres- sao (Pergher, Stein & Wainer, 2004), Transtorno de Ansiedade Generalizada (Friedman, Thayer & Borkovec, 2000), Transtomno de Panico (Coles & Heimberg, 2002), Fobia Social (Amir et al., 2001), entre outros (Williams et al., 1997). O conhecimento do funcionamento da memoria em tais transtornos, por parte do terapeuta cognitivo, possibilita-Ihe 0 desenvolvimento de uma conceitualizagio de caso mais ampla e robusta, favorecendo a implementagao de estratégias psicoterapicas pontuais, eficazes € teoricamente fundamentadas (Wainer, Pergher & Piccoloto, 2004). ‘Mesmo que sejam inegdveis os ganhos obti- dos a partir da integragdo de conhecimentos sobre o funcionamento da meméria no ambito da tera- pia cognitiva, € freqiiente que este topico nao receba atengdo significativa na literatura que abor- daa terapéutica dos principais transtornos mentais. Tal afirmagao, contudo, nao é verdadeira quando se fala no tratamento do Transtorno de Estresse P6s-Traumatico (TEPT). Dentre os transtornos Giovanni Kuckarte Pergher Rodrigo Grassi-Oliveira Lilian Milnitsky Stein psiquidtricos conhecidos, nenhum apresenta sintomas especificos de meméria como o TEPT. A importancia de tais sintomas é pronunciada a ponto de estes constitufrem-se em um dos critérios diagndsticos para o transtorno. Conforme definido pelo critério B do DSM-IV-TR, “o evento traumitico € persistentemente revivido em uma (ou mais) das seguintes maneiras” (APA, 2000/2002, p. 452). O manual descreve cinco maneiras pelas quais 0 evento traumitico pode ser revivido (recordagdes, sonhos, atitudes determinadas por sensagdes de revivéncia, softimento psicolégico diante de estimulos relacionados ao trauma e reatividade fisiolégica aumentada perante indicios que simbolizam ou lembram a situagio trauméti- ca), sendo que todas elas envolvem, pelo menos em algum nivel, mecanismos de funcionamento da meméria traumatica. No dmbito da terapia cognitiva, praticamente todas as propostas de abor- dagem do TEPT envolvem, pelo menos em algum. nivel, um trabalho com as memérias trauméticas do paciente (Harvey, Bryant & Tarrier, 2003), jus- tificando a necessidade de os clinicos possufrem um adequado conhecimento sobre funcionamento mneménico nesta psicopatologia (Knapp & Caminha, 2003). Uma compreensio acerca do funcionamento da meméria é indissocidvel de um entendimento de suas falhas, também conhecidas como “peca- dos” (Schacter, 2001). Segundo Schacter (2001), as imperfeigdes de nossa meméria podem ser agrupadas em sete categorias: transitoriedade, Meméria no TET: dos fundamentos cientificos as implicacées terapéuticas distragdo, bloqueio, atribuicao errada, sugestiona- bilidade, distorgdo e persisténcia. Estes pecados podem ser divididos em dois grandes grupos: os pecados da omissao e os pecados do cometimento. No primeiro grupo, composto pelos pecados da transitoriedade, distracdo e bloqueio, encontram-se as falhas relacionadas ao esquecimento. Tais falhas se referem a uma incapacidade para recordarmos de acontecimentos ou idéias, mesmo que lancemos mio de esforgo voluntério. O segundo grupo, englobando os pecados da atribuigdo errada, suges- tionabilidade, distorgao e persisténcia, faz referéncia 40s processos em que a meméria peca pelo excesso: ou lembramos de algo que nao aconteceu — fenémeno conhecido como falsas memérias — ou entdo ndio somos capazes de esquecer aquilo que gostarfamos. Tendo em vista a proposta do presente capitulo em discutir a meméria no TEPT, debatere- mos especialmente sobre o pecado da persisténcia, © qual diz respeito ao ndo-esquecimento de infor- mages ou eventos dolorosos. Embora os pecados sejam significativamente distintos entre si, existe uma caracteristica que os unifica: todos eles ocorrem no sentido de favore- cera adaptagiio do Homem em seu ambiente. Nossa meméria nos prega uma série de pegas - mas isso nao acontece por acaso. Todas as falhas da memoria podem ser pensadas como subprodutos indeseja- veis de um processo adaptativo. Com o pecado da persisténcia nao é diferente, de modo que uma compreensio deste cardter adaptativo da memé6ria & central para compreendermos de que maneira ela se apresenta em quadros de TEPT. Assim, ao lon- go deste capitulo, apresentaremos uma série de caracteristicas “patolégicas” das memérias trau- miiticas, explicitando qual seu papel no sentido de promover a adaptagao. Trés grandes t6picos sero abordados no pre- sente capitulo. Em primeiro lugar, iniciaremos com uma discussio antiga, porém sem respostas defi- nitivas: a memoria para eventos emocionais é melhor ou pior? Colocando de forma diferente, a meméria traumatica é mais precisa, robusta completa em relagéo as demais lembrangas do individuo? Em seguida, discorreremos sobre os mecanismos envolvidos na mais marcante caracterfstica da meméria no TEPT — os flashbacks. Por fim, explanaremos sobre outro fenémeno da meméria de individuos traumatizados: a supergeneralizagao. ‘Antes de comecarmos a discutir os temas pro- postos, colocaremos algumas definigées concei- tuais que sero utilizadas ao longo do capitulo, a fim de que o leitor possa familiarizar-se com al- guns termos comumente empregados na literatura acerca da memoria. Atualmente, é amplamente aceita a existéncia de uma diferenciagdo no que tange ao contetido da meméria. Basicamente, existem dois tipos de meméria: declarativa e proce- dural (Izquierdo, 2002). A meméria procedural refere-se A aprendizagem de habilidades motoras, cognitivas e sensoriais, bem como sua manifesta- do nas mais diversas situagdes. Saber dirigir um carro e jogar futebol so exemplos desse tipo de meméria. As memérias procedurais possuem um caréter eminentemente nio-declarativo, ou seja, nao podem ser expressas em palavras. Por essa razao, sto consideradas um conhecimento do tipo “saber como”. A meméria declarativa, por sua vez, faz referéncia aquelas lembrangas que podemos colocar em palavras, constituindo-se num conhe- cimento do tipo “saber que”. Dentre as memérias declarativas, existe uma distingo entre meméria semintica e episédica (autobiogréfica). A primei- ra armazena conhecimentos gerais sobre o mundo, incluindo fatos, conceitos ¢ vocabulério (por exem- plo, saber que Brasilia € a capital do Brasil, conhecer os critérios diagnésticos do TEPT). A. segunda é responsével pelas lembrangas que pos- suimos a respeito de nossa prépria vida, ocorridas ‘em um tempo e local especfficos (por exemplo, 0 dia do nosso casamento, a festa de aniversdrio de um amigo, etc). No presente capitulo, nossa énfase recairé sobre estas tiltimas, quais sejam, as memérias declarativas autobiogrdficas. A Memoria é Melhor para Eventos Traumaticos? A emogio melhora ou piora a memsria? Esta uma pergunta que ha muito intriga pesquisadotes, psicoterapeutas e profissionais da area forense 106 Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Milnitsky Stein Glones, 1999). Para ilustrar a controvérsia em tor- no deste tema, consideremos dois exemplos. O primeiro deles provém de uma enquete realizada por Kassin, Ellsworth e Smith (1989). Em sua pes- quisa, os autores solicitaram a 63 especialistas na rea da Psicologia do Testemunho (a maioria de- les com titulos de Ph.D.) para avaliarem seu grau de concordéncia quanto a uma série de 21 afirma- des relativas ao seu campo de atuagdo. Duas des- tas sentengas siio de especial interesse para a pre- sente discussao. A primeira fazia a seguinte afir- magio: “niveis muito altos de estresse prejudicam, a acurécia do depoimento da testemunha”. Para os que responderam a esta sentenga, a maioria apre- sentou respostas de concordancia, indicando que as evidéncias que apoiavam a afirmago eram fa- vordveis (42%), geralmente confidveis (37%) ou entdio muito confidveis (5%). ‘A segunda sentenga, a qual sugeria que “teste- munhas t¢m mais dificuldade para lembrarem de eventos violentos que ndo-violentos”, também teve altos indices de aceitago. Para esta afirmagilo, de acordo com a opinido dos especialistas, as evidén- cias comprobat6rias eram favordveis (40%), geralmente confiéveis (23%) ou muito confidveis (4%). Podemos perceber, a partir dos resultados obtidos por Kassin, Ellsworth e Smith (1989), que 0s especialistas consultados se mostravam incli- nados a idéia de que ha um prejutzo da meméria para eventos traumaticos. Por outro lado, uma série de respeitados neuro- cientistas, psiquiatras e psic6logos cognitivos no compartilha desta opinido. Shobe e Kihlstrom (1997), por exemplo, afirmaram que “a maioria das evidéncias de laboratério indica que a meméria € mais provavelmente favorecida do que prejudicada por altos niveis de emogio e estresse, de tal modo que as memérias para o trauma so distintivas, du- raveis e facilmente recuperadas” (p.74). Em resumo, as evidéncias dispontveis até o momento sugerem que questionar “a emogao melhora a meméria?” seria mais ou menos como perguntar “vocé jé parou de bater na sua mae”, ou seja, independentemente da resposta que vocé der, vocé est comprometido. Desta forma, com 0 conhecimento que se possui atualmente, a Gnica resposta coerente para esta pergunta €: “depende”. ‘A questo da melhora ou piora da meméria para eventos altamente emocionais nao pode ser abor- dada, procurando-se por respostas universais. Para compreendermos as complexas interagées entre emogiio e meméria, é preciso que conside- remos as particularidades dos achados obtidos nos estudos que se propéem a investigar esta questo. Fatores como o significado do evento para a pes- soa, suas crengas prévias, as reagdes emocionais desencadeadas (e sua intensidade), os processos de compreensao, 0 foco de atengo e as ages to- madas na ocasido do evento tém sido concebidos ‘como importantes varidveis para a investigagao do fendémeno (Stein, Wade & Lidwag, 1997). De maneira semelhante, é preciso que conhegamos as limitagSes inerentes as pesquisas que buscam elucidar 0 t6pico antes de aceitarmos conclusdes definitivas. Didaticamente falando, podemos pensar na existéncia de duas grandes linhas de investigago que abordam a meméria traumatica: estudos de la- boratério e estudos ecolégicos. Nos primeiros, os pesquisadores procuram reproduzir, em um am- biente controlado, as condigGes estressantes as quais os individuos seriam submetidos em uma situagdo natural. O procedimento basico geralmente consiste na apresentagiio de materiais como filmes / fotos com cenas fortes, mtisicas ansiogénicas e histérias catastréficas para individuos saudveis, sendo sua meméria posteriormente testada para estes materiais, A grande vantagem desse tipo de estudo é que os pesquisadores possuem um amplo controle sobre as condigdes experimentais. Isso lhes possibilita, por exemplo, comparar com objetividade as respostas dadas pelos participantes nos testes de memoria com os materiais originalmente apresentados. Por outro lado, em fungdo de questdes éticas Sbvias, nio se pode criar em laboratério eventos altamente es- tressantes (traumatizantes), 0 que traz dividas quanto & possibilidade de se estender os achados obtidos em tais estudos de laboratério as situagdes reais de trauma. Na segunda linha de investigagdo — pesquisas ecolégicas — 0 foco reside no estudo da meméria de individuos que efetivamente vivenciaram um trauma. Neste caso, os pesquisadores tém uma maior garantia de que esto se aproximando do 107 Memeéria no TEPT: dos fundamentos cientificos as implicag6es terapéuticas distragdo, bloqueio, atribuigdo errada, sugestiona- bilidade, distorgao e persisténcia. Estes pecados podem ser divididos em dois grandes grupos: os pecados da omissiio e os pecados do cometimento. No primeiro grupo, composto pelos pecados da transitoriedade, distraco e bloqueio, encontram-se as falhas relacionadas ao esquecimento. Tais falhas se referem a uma incapacidade para recordarmos de acontecimentos ou idéias, mesmo que lancemos mao de esforgo voluntario. O segundo grupo, englobando os pecados da atribuigdo errada, suges- tionabilidade, distoreao e persisténcia, faz referencia ‘a0 processos em que a mem@ria peca pelo excesso: ou lembramos de algo que nao aconteceu ~ fendmeno conhecido como falsas memérias — ou entio no somos capazes de esquecer aquilo que gostarfamos. Tendo em vista a proposta do presente capitulo em discutir a meméria no TEPT, debatere- mos especialmente sobre o pecado da persisténcia, ‘© qual diz respeito ao ndo-esquecimento, de infor- mages ou eventos dolorosos. Embora os pecados sejam significativamente distintos entre si, existe uma caracteristica que os unifica: todos eles ocorrem no sentido de favore- cera adaptacdo do Homem em seu ambiente. Nossa meméria nos prega uma série de pecas — mas isso nao acontece por acaso. Todas as falhas da meméria podem ser pensadas como subprodutos indesejé- veis de um processo adaptative. Com o pecado da persisténcia nao é diferente, de modo que uma compreenso deste carter adaptativo da memsria é central para compreendermos de que maneira ela se apresenta em quadros de TEPT. Assim, ao lon- go deste capitulo, apresentaremos uma série de caracteristicas “patolégicas” das memérias trau- maticas, explicitando qual seu papel no sentido de promover a adaptagio. Trés grandes t6picos serdo abordados no pre- sente capitulo, Em primeiro lugar, iniciaremos com uma discusso antiga, porém sem respostas defi- nitivas: a memoria para eventos emocionais melhor ou pior? Colocando de forma diferente, a meméria traumatica é mais precisa, robusta completa em relagdo as demais lembrangas do individuo? Em seguida, discorreremos sobre os mecanismos envolvidos na mais marcante caracteristica da meméria no TEPT — os flashbacks. Por fim, explanaremos sobre outro fenémeno da meméria de individuos traumatizados: a supergeneralizagao. Antes de comegarmos a discutir os temas pro- postos, colocaremos algumas definigdes concei- tuais que sero utilizadas ao longo do capitulo, a fim de que o leitor possa familiarizar-se com al- guns termos comumente empregados na literatura acerca da meméria. Atualmente, é amplamente aceita a existéncia de uma diferenciagdo no que tange ao contetido da meméria. Basicamente, existem dois tipos de memGria: declarativa e proce- dural (Izquierdo, 2002). A meméria procedural refere-se A aprendizagem de habilidades motoras, cognitivas e sensoriais, bem como sua manifesta- go nas mais diversas situagdes. Saber dirigir um carro e jogar futebol so exemplos desse tipo de meméria, As memérias procedurais possuem um cardter eminentemente nio-declarativo, ou seja, no podem ser expressas em palavras. Por essa razo, so consideradas um conhecimento do tipo “saber como ‘A meméria declarativa, por sua vez, faz referéncia Aquelas lembrangas que podemos colocar em palavras, constituindo-se num conhe- cimento do tipo “saber que”. Dentre as memérias declarativas, existe uma distingdo entre meméria seméntica e epis6dica (autobiogréfica). A primei- ra armazena conhecimentos gerais sobre o mundo, incluindo fatos, conceitos e vocabulétio (por exem- plo, saber que Brasflia é a capital do Brasil, conhecer os critérios diagnésticos do TEPT). A segunda é responsdvel pelas lembrangas que pos- suimos a respeito de nossa prépria vida, ocorridas em um tempo e local especfficos (por exemplo, 0 dia do nosso casamento, a festa de aniversério de um amigo, etc). No presente capftulo, nossa énfase recairé sobre estas tiltimas, quais sejam, as memérias declarativas autobiogréficas. A Memoria é Melhor para Eventos Traumaticos? ‘Aemogao melhora ou piora a meméria? Esta é uma pergunta que hd muito intriga pesquisadores, psicoterapeutas e profissionais da area forense 106 Meméria no TEPT: dos fundamentos cientificos as implicacées terapéuticas fendmeno tal qual ele ocorre naturalmente, pois muitas das observagées realizadas nesse ambito nio sao verificadas nos estudos de laboratério. Contudo, esta linha de investigagao depara-se com alguns problemas que lhe so inerentes: se os pes- quisadores nao tiveram acesso A situagao tal qual experenciada pelo sujeito, como vao avaliar a coeréncia e acurdcia de seu relato? Além disso, como comparar a memoria de pessoas que passa- ram por situagées significativamente distintas? Em resumo, a maioria dos estudos sobre a meméria para traumas apresenta algum déficit: falta de controle ou falta de realismo. Trata-se, portanto, de uma area rodeada de desafios meto- dolégicos (Jones, 1999). Ainda dentro das limita- ges dessas pesquisas, é importante ressaltar que muitas nao consideram 0 papel dos fatores neurobiolégicos envolvidos na meméria traumé- tica, restringindo a compreensio deste fenémeno aos seus aspectos cognitivos. Embora a literatura acerca dos efeitos de for- tes emogdes sobre a meméria esteja cercada de desencontros, alguns consensos parecem estar comegando a emergir. Talvez 0 mais importante deles refira-se & observagio de que as lembrangas sobre o trauma so melhores para detalhes centrais e piores para detalhes periféricos (Schooler & Eich, 2000). Em outras palavras, a esséncia da experién- cia traumtica é bem retida na meméria, ao passo que outros pormenores so lembrados com maior dificuldade (Christianson & Engelberg, 1999). Nesse sentido, a meméria para eventos emocionais €, a0 mesmo tempo, acurada e inacurada (Stein & Omstein, 1997). Um fenémeno relacionado aos diferentes efei- tos do estresse sobre a lembranga de detalhes centrais e periféricos é conhecido como “focaliza- do na arma”. Tal fenémeno € manifestado tipica- mente em situag6es nas quais a vitima é capaz de Jembrar com detalhes a arma utilizada pelo crimi- noso, porém é incapaz de recordar as caracteristi- cas de sua fisionomia, ou entio, outros aspectos da situagdo (Jones, 1999). Embora comum, trata- se de um fato intrigante ~ se a pessoa vivenciou a situagio como um todo, como podem alguns deta- hes ficar retidos de forma tao vivida ao passo que outros caem no esquecimento? Para responder a esta pergunta, é preciso que nos reportemos as trés etapas do processo de mem@ria: codificacdo, armazenamento e recu- peragio. Na codificagio, o individuo traduz as in- formacdes advindas do ambiente numa linguagem que possa ser compreendida por seu sistema cognitivo. E como se a pessoa colocasse rétulos nas informagées, de modo que possa resgaté-las posteriormente, Na segunda etapa, 0 armazena- mento, os contetidos codificados ficam retidos, esperando para ser acessados. Por fim, na recupe- ragao, ha uma busca pelo material armazenado (Neufeld & Stein, 2001). De especial interesse para compreendermos as lembrangas para situagdes traumiticas sfio os me- canismos de codificagao. Por se tratar da primeira etapa no processo de memoria, a codificagao deter- minard, em grande parte, aquelas informagées que serdo futuramente lembradas e aquelas que serio esquecidas (Schacter, 2001). O processo de codificagao nao acontece sem um custo, ele precisa de “combustivel”. Quanto mais desse combustivel 0 individuo disponibilizar, maior seré a saliéncia e acessibilidade das memérias armazenadas. Em uma situacio altamente estressante, como um assalto, seqilestro ou estupro, a atengao do individuo volta-se com intensidade para aquilo que representa uma ameaga eminente a sua sobrevi- véncia. Neste caso, todos os seus recursos cogni- tivos sdo investidos no processamento de uma quantidade restrita de aspectos da situagao, dei- xando de lado uma série de outros. Assim, pode- mos entender o fenémeno da “focalizagéo na arma” como um reflexo da atengo macigamente investi- da nos aspectos potencialmente letais da situagdo, no disponibilizando recursos suficientes para uma codificagio mais ampla e coerente da cena (Christianson & Engelberg, 1997). O papel fundamental da atenco é crucial no processamento das memérias e possui correlatos neurobioldgicos. Ainda que nao percebamos que algo é alvo da nossa atengao, s6 ha lugar para a passagem de informagdo da meméria de curto pra- zo para a de longo prazo, se nao houver distrago da atengdo. Apesar de muitos outros neurotrans- missores influenciarem ou estarem ligados aos mecanismos de consolidagéo das memérias de lon- 108 Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Miinitsky Stein ga duragao, como a adrenalina (LeDoux & Muller, 1997; Yehuda, 1998), a noradrenalina desempe- nha um importante papel nesta consolidagao, por meio da ativagiio dos mecanismos atencionais. Essa ativagdo noradrenérgica predispoe 0 indivfduo para selecionar 0 material a ser memorizado, assim como para desenvolver a an- siedade (Bremner ef al., 1996; Charney, Deutch, Krystal, Southwick & Davis, 1993). A ativagaio da amigdala, se exagerada, produz hiperconsolidacio das mem@rias traumaticas (Yehuda, 1998). Por sua vez a amigdala, apés estimulagao da noradrenalina, induz a produgio de dopamina que vem reforcar os mecanismos de atengo no material ameagador (Charney et al., 1993). Suspeita-se que é 0 cortisol a mola de todo este complexo sistema. O conhecimento dos processos de codificagio também nos auxilia a compreender outros fendmenos, tais como a “amnésia psicogénica”. Amnésia psicogénica é um termo usualmente utili- zado para designar uma incapacidade do individuo para lembrar de pontos relevantes da cena traumd- tica (néio em virtude de um déficit orginico evi- dente). Embora ainda ndo sejam completamente elucidados os mecanismos envolvidos neste fenémeno, uma hipstese bastante razoavel é a de que a pessoa nao se lembra daqueles aspectos que nio foi capaz de codificar adequadamente no momento em que vivenciou o evento Golier & Yehuda, 2002). Nesta perspectiva, a amnésia psicogénica nao se daria em fungéio de um proces- so inconsciente de repressiio de memérias traumé- ticas, mas, sim, pela ndo-disponibilidade de recursos cognitivos para codificar a situago de forma abrangente, nao fragmentada, A atengdo macigamente voltada para detalhes especificos da situagio traz outras conseqiiéncias indesejaveis: 0 individuo pode nao ter recursos suficientes para avaliar que alguns aspectos altamen- te ameagadores do trauma nao sio verdadeiros. Considere, por exemplo, uma vitima de estupro que passou a considerar-se altamente ndo atrativa apés sofrer a moléstia, durante a qual o estuprador repetidamente afirmava que ela era feia e gorda. Nessa situagdo, a indisponibilidade de recursos pro- vocados pela ansiedade e horror intensos a impediu de julgar que as afirmag6es caluniosas do estuprador 109 faziam parte de sua estratégia para manipulé-la e bumilhd-la, Com isso, todas as ofensas ouvidas du- rante o evento foram aceitas e incorporadas como verdadeiras (Ehlers & Clark, 2000). Voltando 3 questzio sobre a melhora ou piora das lembrangas para eventos traumiticos, é inte- ressante compreender os efeitos do estresse sobre a meméria a partir de uma relagio curvilinea, nao- linear (Brewin, 2001). Segundo esta relagio, 0 aumento dos niveis de estresse contribuiria para a melhoria da meméria até um certo patamar. Pas- sando deste ponto, os efeitos prejudiciais se intensificariam, provocando uma piora nas lem- brancas, possivelmente relacionada a sua fragmen- tagdo. Essa capacidade das emogdes de melhorar ou piorar a meméria declarativa ¢ mediada pela amigdala. Quando a amfgdala se torna ativa, por exemplo, quando hé liberagao de cortisol, ACTH e adrenalina (horménios do estresse), conexdes anatmicas dela ao c6rtex podem facilitar 0 pro- cessamento de quaisquer estimulos que sejam apre- sentados. Adicionalmente, conexdes anatOmicas da amigdala com o hipocampo poderiam influenciar diretamente a meméria declarativa. Assim, quanto mais ativa a amigdala no momento do aprendiza- do, maior a intensidade da meméria armazenada para aquelas memérias declarativas que apresen- tam contetido emocional (McIntyre et al., 2003). Por outro lado, quando esse sistema & sobre- carregado, distorgdes de meméria podem ocorrer, por exemplo, Payne ef al, (2002) observaram que apés propiciarem uma situaco estressante para alguns individuos esses apresentavam maiores indices de falsas memérias quando comparados a um grupo-controle. Assim, ha consideraveis evi- déncias de que o estresse e ativagdes neuroendo- crinolégicas (amfgdala, hipocampo e glicocorticéi- des) relacionadas podem melhorar ou prejudicar a performance de memérias contextuais eepis6dicas, dependendo de variéveis como intensidade, tem- po e vulnerabilidade prévia do individuo aos horménios hipofisérios (Henson et al., 1999; Lupien ef al., 1998) Conforme apontado anteriormente, é carae- terfstica de quadros de TEPT uma incapacidade para esquecer embrangas dolorosas relacionadas ao trauma, Tratando-se de recordagdes que trazem ‘Meméria no TEPT: dos fundamentos cientificos as implicacbes terapéuticas sofrimento emocional, haveria alguma vantagem para manté-las sempre prontamente acessfveis na meméria? Por que elas no passam pelo proceso normal de esquecimento, tal como ocorre com as demais memérias do dia-a-dia? Existem bons motivos para acreditar que uma lembranga favorecida para situagdes trauméticas possui um cardter adaptativo. E interessante, em termos evolutivos, que o indivéduo possua memsérias bastante vividas acerca do evento trauméatico, uma vez que isso diminui sua predisposigao a enfrenta- lonovamente. Uma lembranga bem “agucada” para eventos emocionais, portanto, € importante para a sobrevivencia das espécies, pois ajuda a prevenir novos contatos com situagdes ameagadoras (Quevedo, Feier, Agostinho, Martins, & Roesler, 2003). Para eventos cotidianos, por outro lado, no éessencial que ocorra uma reteng’o mais duradou- ra, na medida em que no haveria nenhuma vantagem adaptativa em armazenar trivialidades por longos periodos (Pergher & Stein, 2003), Nesse sentido, cabe ressaltar a influéncia indi- retamente exercida pela meméria sobre alguns fenémenos verificados em quadros pés-traumiticos. Considere, por exemplo, as avaliagdes de individuos traumatizados acerca da periculosidade das situagdes e de sua possibilidade de controle sobre elas. Em quadros de TEPT, nao é raro observar que os pacien- tes tendem a superestimar os riscos oferecidos por uma ampla gama de circunstancias, bem como a subestimar as pr6prias capacidades para lidar com elas (Ursano, 2002). Sendo a realizagao de tais avaliagdes de responsabilidade outra habilidade cognitiva —julgamento e tomada de deciso—o que teria a meméria a ver com isso? Desde 0 inicio da década de 1970, com os estudos realizados por Tversky e Kanheman, se tem conhecimento de que os julgamentos que realizamos eas decisdes que tomamos esto sujeitos a vieses € tendenciosidades (Tversky & Kanheman, 1971). A partir de suas pesquisas, Tversky e Kanheman per- ceberam que as pessoas langam mio de diferentes estratégias para reduzir 0 esforgo cognitivo necessé- rio para execugo de tarefas que exijam avaliagX de possibilidades ¢ a tomada de decisdes. Tais estratégias, denominadas heurfsticas, funciona como uma espécie de “atalho mental”, permitindo que julgamentos sejam efetuados com um menor ‘empenho possivel (Gilovich, Griffin & Kahneman, 2000; Sternberg, 1996/2000). De especial interesse para nossa discussao é um atalho chamado heuristica da disponibilidade. A heuristica da disponibilidade faz-se presente quando fazemos julgamentos com base em quiio facilmente conseguimos recuperar elementos significativos para avaliagdo do fenémeno em questio (Tversky & Kanheman, 1973). No caso em que so avaliadas nossas capacidades para enfrentar uma situago ou quando sio julgados os riscos oferecidos por determinada circunstincia. esta heurfstica pode levar a vieses significativos. Conforme apontado anteriormente, é comum, observar que muitos aspectos da experiéneia tr mética encontram-se prontamente acessiveis na meméria. Assim, quando da avaliagao de probabi- lidades (e. g., chances de ser violentado ao sair na Tua), individuos traumatizados so particularmen- te tendenciosos em fungao da vivacidade de deter- minadas lembrangas, as quais os levam a acreditar que eventos pouco provaveis constituem-se num risco iminente. Temos, portanto, um erro de julga- mento derivado de um viés mnem@nico: a proba- bilidade de ocorréncia do fendmeno é estimada a partir da saliéneia dos tragos de meméria, e nao com base na real freqiiéncia em que ele é verifica- do (Williams et al., 1997) Flashbacks Talvez o fenémeno mais evidente da meméria traumitica sejam os flashbacks, os quais parecem constituir-se em uma caracterfstica distintiva do TEPT (Reynolds & Brewin, 1998). Segundo o DSM- IV-TR, flashback é definido como a “recorréncia de uma recordagdo, sensago ou experiéneia perceptiva do passado” (APA, 2000/2002, p. 769). Na percep- ¢Go de muitos pacientes traumatizados, este € 0 sintoma mais temido do transtorno. O cardter extremamente aversivo dos flashbacks esté relacionado a uma de suas caracteristicas mais marcantes: a impressio de que o evento traum estd acontecendo novamente, em vez de estar loca- lizado no passado. Num processo de busca “normal” ico uo Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Milnitsky Stein na meméria, as informagées recuperadas so clara- mente percebidas como fazendo parte do passado do individuo. Durante os flashbacks, contudo, nao hd uma diferenciago entre passado e presente, tra- zendo ao individuo contfnuas experiéncias de revi- véncia da situagao traumatic. Em outras palavras, nao hd consciéncia de que se tratam de lembrangas. ‘As memérias recuperadas durante os flashbacks parecem congeladas no tempo, estando desprovi- das de informagées relativas ao contexto espacial temporal (Brewin, 2001). Além disso, os flashbacks usualmente sao frag- mentados e extremamente ricos em detalhes sensoriais. Tais detalhes podem ser de qualquer modalidade sensorial (até mesmo sensagdes corporais), embora sejam predominantemente vi suais. Este aspecto é em parte respons4vel pela narrativa muitas vezes desorganizada que os pacien- tes tém a respeito da situagdo traumatica, na medida em que informagdes quase que exclusivamente sensoriais sfio recuperadas de forma desconexa, desprovida de significado ou coeréncia temporal/ espacial. Relacionado ao cardter sensorial dos flashbacks esté 0 fendmeno do “afeto sem tecordagéio”, no qual os pacientes revivenciam emoges relacionadas ao evento traumitico sem quaisquer lembrangas explicitas a respeito (Clark,1999). Outra caracteristica dos flashbacks 6 a de que eles nao advém de um processo de busca volunté- rio da memoria. Em vez disso, os flashbacks sio disparados pelas pistas provenientes do ambiente, elas internas ou externas ao individuo, Trata- se de outro aspecto distintivo da memoria traumati- ca: seu caréter intrusivo e involuntario. Infelizmente, ‘a quantidade de estimulos ambientais capazes de funcionar como gatilhos aos flashbacks pode aumentar por um processo de pareamento. Nesse processo de pareamento, estimulos inicialmente neutros (nao relacionados diretamente ao trauma) sdio emparelhados com aqueles capazes de disparar lembrangas intrusivas (Caminha, 2004). Considere 0 seguinte exemplo: uma paciente foi abordada por dois homens ao descer em uma parada de 6nibus, sendo conduzida a uma ruela proxima e entdo violentada e estuprada. Apés esse evento, passou a evitar utilizar transportes puibli- cos, pois, ao aproximar-se das paradas de Onibus, era freqiientemente atormentada por terriveis flashbacks. Num momento posterior, ao caminhar em um parque, foi novamente tomada por recordacdes angustiantes. Tais lembrangas possi- velmente foram desencadeadas pela presenga de uma parada no local, sem que a paciente tivesse consciéneia disso. Nessa situagiio, um estimulo inicialmente neutro (parque) foi emparelhado com as sensagées aflitivas relacionadas ao trauma. Como conseqiiéncia, a paciente passou a evitar andar em parques também, uma vez que estes acabavam por disparar flashbacks dolorosos. Nao parecem existir limites quanto & quan- tidade de pareamentos. Assim, € formada uma ampla rede de elementos potencialmente desen- cadeadores de revivéneias do trauma, trazendo a muitos pacientes a sensacao de estarem presos a0 passado, impondo uma série de limitagdes as suas atividades cotidianas. Em n{vel tedrico, uma importante questo que se coloca é: existe um tinico ou miltiplos sistemas de meméria envolvidos nas lembrangas “normais” e nos flashbacks’) Atualmente, as evidéncias pare- cem apontar para a segunda hipotese, qual seja, de que existem diferentes sistemas de representagio da meméria traumatica (Brewin & Holmes, 2003). Os modernos modelos teéricos que buscam explicar a meméria no TEPT langam mao da idéia de que existem distintas representagdes da memoria traumatica. Especificamente falando, 0 modelo da representagao dual (Brewin, Dalgleish & Joseph, 1996) e 0 modelo cognitivo de Ehlers e Clark (2000) propdem a existéncia de dois sistemas de meméria diferenciados para a representago do evento traumdtico, Estes dois modelos apresentam muitas semelhangas em termos de suas explicagdes sobre o funcionamento da memsria no TEPT. Para 0s fins do presente capitulo, optamos por discutir © modelo da representago dual, tendo em vista que sua énfase recai sobre os aspectos mneménicos envolvidos no TEPT. A proposta do modelo da representacao dual é a de que as lembrangas do trauma de pacientes com TEPT refletem a operacdo de dois tipos de meméria: a “Meméria Verbalmente Acessivel” (MVA) ea “Meméria Situacionalmente Acessivel” Meméria no TEPT: dos fundamentos cientificos as implicagdes terapéuticas (MSA). Cada um destes sistemas possui caracteris- ticas e propriedades singulares. De maneira seme- Ihante, a recuperagdo de informagdes armazena- das em cada um destes tipos de mem6ria tem dife- rentes implicagdes. As particularidades de cada sistema sero discutidas em seguida. Osistema da Mem6ria Situacionalmente Acessi- vel (MSA) é aquele responsavel pelos flashbacks. Ele contém informagées obtidas a partir de um pro- cessamento superficial (i. €., desprovido de significado) da cena traumitica. O sistema MSA codifica e armazena material eminentemente sensorial, no utilizando qualquer tipo de cédigo verbal. Em fungao desta caracteristica, tais memérias sio dificeis de ser comunicadas para outras pesso- as. Quando a narrativa do paciente sobre a situagao traumatica baseia-se fundamentalmente em mem6- rias do sistema MSA, seu relato torna-se desorgani- zado e fragmentado, uma vez que este sistema nao contém informagées contextuais coerentes da situagdo traumatica (Brewin, 2001). A inabilidade do sistema MSA em codificar 0 contexto temporal e espacial est relacionada com carter intrusivo dos flashbacks. Uma vez que no hé discriminago entre ameagas atuais e passadas, quaisquer pistas relevantes podem funcionar como gatilho para ativaciio das lembrangas armazenadas. Em outras patavras, os individuos nao tém controle sobre 0 processo de recuperagdo das memérias contidas nesse sistema. Como consequiéncia, os pa- cientes acabam por evitar pessoas, lugares, assuntos e sensagdes no intuito de evitarem a recuperagao das dolorosas memérias traumaticas (Golier & Yehuda, 2002). O sistema MSA também armazena informa- des sobre as sensagdes corporais e emogdes experienciadas pelo individuo durante a situagao traumética. Este sistema, contudo, nao contém to- das as emoges relacionadas ao evento. Ele é fundamentalmente responsdvel pelo armazena- mento daquelas emogées sentidas quando da vivéncia do trauma, tais como medo, horror e de- sespero (Hellawell & Brewin, 2002). As lembran- ‘gas que fazem referéncia a emogdes geradas pos- teriormente, como culpa e vergonha, tendem a ser processadas pelo sistema da Meméria Verbalmen- te Acessivel (MVA). O sistema MVA possui duas caracteristicas fundamentais que o diferenciam do sistema MS. (1) a integraco com outras memérias autobiogréfi- cas e (2) a possibilidade de recuperagio voluntéria ‘quando requerido. Subjacente a estas caracteristicas esti a propriedade deste sistema de requerer um nivel de processamento cognitive mais aprofundado, Infelizmente, esse sistema nao € privilegiado duran- te uma situagdo traumatica, uma vez que o medo e horror intensos usualmente experimentados pelo individuo limitam seus recursos cognitivos disponi- veis, desfavorecendo uma codificagao elaborada do evento (Halligan, Clarck & Ehlers, 2002). As memérias MVA, por interagirem como resto do conhecimento autobiografico do individuo, pos- sibilitam que o trauma seja enquadrado dentro de um contexto pessoal mais amplo, incluindo passa- do, presente e futuro. Assim, quando a narrativa do sujeito sobre a situagao traumatica é baseada fundamentalmente nestas mem6rias, seu relato tor- na-se mais ordenado e coeso, Além disso, a codificagao do contexto temporal e espacial favo- rece uma perspectiva de continuidade na vida do individuo, de modo que a recuperaco das lembran- ‘cas contidas nesse sistema nao traz ao paciente uma sensagao de estar preso ao passado (Brewin, 2001b). Os contetidos armazenados no sistema MVA também fazem referéncia a emogées presentes no momento do trauma, contudo nao estio restritos a estas. EmogGes desenvolvidas posteriormente, como culpa e vergonha, refletem o processamento das conseqiiéncias e implicagées do evento trau- matico para a vida do individuo, o que é possivel ‘gragas a operac6es realizadas no Ambito do sistema MVA. Nesse sentido, esse sistema permite 0 pro- cessamento do significado da situagao. As memérias do sistema MVA, ao contrdrio da- quelas do sistema MSA, so representadas por um cédigo verbal. Isso possibilita que tais lembrangas sejam recuperadas a partir de um processo volunté- rio e intencional, passfvel de ser comunicado para outras pessoas. Em outras palavras, 0 individuo pode langar mao de um proceso estratégico e consciente de busca, no estando suscetivel & recuperagao involuntaria eliciada por estimulos ambientais relacionados ao trauma. Esta caracteristica do sistema MVA € essencial no processo de psicoterapia, uma ue Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Milnitsky Stein ‘vez que uma parte significativa do tratamento envolve um treinamento para que o paciente desenvolva estratégias de controle sobre a recuperagiio das lem- brangas traumiticas, Se a situagdo traumitica é representada tanto pelo sistema MSA quanto pelo sistema MVA, 0 que faz com que 0 individuo apresente respostas patolgicas apés a vivéneia do trauma? A Teoria da Representagio Dual (Brewin, Dagleish & Joseph, 1996) sugere que 0 desenvolvimento de sintomas mal adaptativos esté relacionado com uma maior proeminéncia e acessibilidade do material contido no sistema MSA. Assim, a idéia subjacente ao modelo é a de que as respostas pato- légicas desenvolvidas apés 0 evento (por exem- plo, revivéncia da situacdo traumatica) advém de uma dissociagdo entre as mem@rias eminentemente sensoriais relativas ao trauma e 0 sistema normal da mem@ria autobiogréfica do paciente. Embora aparentemente incapacitantes, os flashbacks, advindos da operagiio do sistema MSA, tém 0 objetivo primeiro de promover adaptactio. Em circunstancias normais, sua finalidade seria a de transferir informag@es contidas no sistema MSA. para o sistema MVA, enquadrando, assim, as lem- brangas dolorosas no contexto da vida do individuo (Brewin, 2001b). Idealmente, esse processo deve- ria ocorrer nos primeiros momentos apés a vivéncia da situagiio, encerrando apés a integrago das mem6rias. Assim, quando o sistema MVA funciona adequadamente, uma de suas importantes fungdes consiste em inibir a ativa das lembrangas contidas no sistema MSA, prevenindo o apareci- mento dos flashbacks. No TEPT, contudo, dois fatores parecem blo- quear esse processo de transferéncia entre os siste- mas: (1) a grande discrepancia entre os contetidos armazenados nos sistemas MVA e MSA e (2) a evitagdo dos flashbacks em decorréncia de seu cardter extremamente aversivo, ou seja, uma ten- tativa do individuo de nao entrar em contato com suas lembrangas dolorosas. Desta forma, hd uma perpetuacdio das memérias intrusivas, uma vez que o sistema MVA encontra-se incapacitado para inibir as lembrangas contidas no sistema MSA. Sob a perspectiva da Teoria da Representagao Dual, por- tanto, a recuperagdo do transtorno esté relacionada ug reintegrago das memérias trauméticas dissociadas s outras lembrangas autobiogréficas do individuo (Brewin, 2001a). O modelo da representacdo dual apresenta compatibilidade com os achados advindos das neurociéncias. Em relagao a isso cabe lembrar do conceito de conectividade, proposto por Donald Hebb (1949). Ele propés que diferentes grupamentos neuronais devem trabalhar juntos para representar a informacdo. Sem essa integrago nao haveria como perceber, significar e inferir ossiveis eventos traumaticos”. Esse conceito é um dos prinefpios-chave das teorias neurobiolégi- cas sobre sistemas neurais de memoria. Tais teorias explicam que a meméria seria amplamente distri- buida entre sitios distintos de areas encefilicas, mas que areas especificas armazenariam diferentes aspectos de um todo. Desta forma, regides com fungdes especializadas contribuiriam de um modo diferente para 0 armazenamento de memérias completas. Os estudos psicoldgicos da linha do processa- mento de informagdes mostram que a tendéncia do ser humano é de sempre estabelecer relagdes entre duas ou mais coisas, elaborando e reestru- turando seus modelos mentais ¢ suas estruturas cognitivas. Na determinagdo das redes neurais somente uma parte € especificada pelos genes, outra pode ser criada e modificada pelo exercicio da interago com 0 meio e convivéncia cultural, durante toda a vida do individuo (Squire e Kandel, 2003). Assim, a forma como avaliamos a informa- cao — sentimentos negativos ou positives a um estimulo — é, em grande parte, processada por estruturas encefélicas geneticamente determinadas, porém sao moduladas pelo ambiente de forma nao- declarativa. ‘Temos prazeres e aversdes herdadas, tais como preferéncia por doces e aversio por objetos grandes e de contornos imprecisos que se aproximam rapidamente. Todavia, temos também prazeres € desprazeres que resultam de experiéncias prévias, (Squire e Kandel, 2003). Um rapaz pode gostar do cheiro de alfazema porque lembra sua avé Ihe pe- gando no colo quando crianga ou ficar assustado com o som de uma derrapagem de carro, pois, no ano passado, acidentou-se apés seu carro derrapar Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Milnitsky Stein vez que uma parte significativa do tratamento envolve um treinamento para que © paciente desenvolva estratégias de controle sobre a recuperagiio das lem- brangas traumaticas. Se a situagdo traumdtica é representada tanto pelo sistema MSA quanto pelo sistema MVA, 0 que faz com que o individuo apresente respostas patol6gicas apés a vivéncia do trauma? A Teoria da Representagao Dual (Brewin, Dagleish & Joseph, 1996) sugere que o desenvolvimento de sintomas mal adaptativos est4 relacionado com uma maior proeminéncia e acessibilidade do material contido no sistema MSA. Assim, a idéia subjacente ao modelo é a de que as respostas pato- I6gicas desenvolvidas apés 0 evento (por exem- plo, revivéncia da situago traumatica) advém de uma dissociagZo entre as mem6rias eminentemente sensoriais relativas ao trauma e o sistema normal da meméria autobiogrifica do paciente Embora aparentemente incapacitantes, os flashbacks, advindos da opetagao do sistema MSA, tém 0 objetivo primeiro de promover adaptacao. Em circunstancias normais, sua finalidade seria a de transferir informagdes contidas no sistema MSA. para o sistema MVA, enguadrando, assim, as lem- brangas dolorosas no contexto da vida do individuo (Brewin, 2001b). Idealmente, esse processo deve- ria ocorrer nos primeiros momentos apés a vivencia da situagdo, encerrando apés a integragao das memérias. Assim, quando o sistema MVA funciona adequadamente, uma de suas importantes fungdes consiste em inibir a ativaciio das lembrangas contidas no sistema MSA, prevenindo o apareci- mento dos flashbacks. No TEPT, contudo, dois fatores parecem blo- quear esse processo de transferéncia entre os siste- mas: (1) a grande discrepancia entre os contetidos armazenados nos sistemas MVA e MSA e (2) a evitagiio dos flashbacks em decorréncia de seu cardter extremamente aversivo, ou seja, uma ten- tativa do individuo de nao entrar em contato com suas lembrangas dolorosas. Desta forma, ha uma perpetuacdio das memsrias intrusivas, uma vez que o sistema MVA encontra-se incapacitado para inibir as lembrangas contidas no sistema MSA. Sob a perspectiva da Teoria da Representagdo Dual, por- tanto, a recuperagio do transtorno esté relacionada ug AreintegracZo das memsrias trauméticas dissociadas as outras lembrangas autobiogrificas do individuo (Brewin, 2001a) © modelo da representagio dual apresenta compatibilidade com os achados advindos das neurociéncias. Em relagio a isso cabe lembrar do conceito de conectividade, proposto por Donald Hebb (1949). Ele propds que diferentes grupamentos neuronais devem trabalhar juntos para representar a informagao. Sem essa integragio no haveria como perceber, significar e inferir “possiveis eventos traumaticos”. Esse conceito ¢ um dos prinefpios-chave das teorias neurobioldgi- cas sobre sistemas neurais de meméria. Tais teorias explicam que a meméria seria amplamente distri- buida entre sitios distintos de dreas encefillicas, mas que dreas especificas armazenariam diferentes aspectos de um todo. Desta forma, regides com fungGes especializadas contribuiriam de um modo diferente para o armazenamento de memérias completas. Os estudos psicoldgicos da linha do processa- mento de informagdes mostram que a tendéncia do ser humano € de sempre estabelecer relagdes entre duas ou mais coisas, elaborando e reestru- turando seus modelos mentais e suas estruturas cognitivas, Na determinagdo das redes neurais somente uma parte é especificada pelos genes, outra pode ser criada e modificada pelo exercicio da interagao com o meio e convivéncia cultural, durante toda a vida do individuo (Squire e Kandel, 2003). Assim, a forma como avaliamos a informa- g&o — sentimentos negativos ou positivos a um estfmulo ~ é, em grande parte, processada por estruturas encefiilicas geneticamente determinadas, porém so moduladas pelo ambiente de forma declarativa. Temos prazeres e aversdes herdadas, tais como preferéncia por doces e aversdo por objetos grandes e de contornos imprecisos que se aproximam rapidamente. Todavia, temos também prazeres € desprazeres que resultam de experigncias prévias (Squire e Kandel, 2003). Um rapaz pode gostar do cheiro de alfazema porque lembra sua av6 Ihe pe- gando no colo quando crianga ou ficar assustado com 0 som de uma derrapagem de carro, pois, no ano passado, acidentou-se ap6s seu carro derrapar Meméria no TEPT: de na estrada. Esses sentimentos aprendidos de prazer e desprazer funcionam independentemente de quaisquer memérias declarativas conscientes que possamos ter de experiéncias prévias. No caso do acidente, imaginamos que daqui a 30 anos o rapaz se lembre perfeitamente do que ocorreu (memaéria declarativa), esta informagio vai depender do hi- pocampo e das estruturas neurais relacionadas. Por outro lado, independentemente e em para- lelo com a meméria declarativa consciente, ele pode sentir-se diferente em relagio a viagens de carro, ou talvez nao goste de dirigir, ou sinta-se muito apreensivo quando tem de entrar em um carro. A expresso desses sentimentos acerca de dirigir relaciona-se com a funcdo da amigdala, A amigdala parece estar no eixo de um sistema neural que forma a base das memsrias ndo-declarativas envolvendo eventos emocionais, tanto positivos quanto negativos. Talvez 0 armazenamento do componente emocional das memérias seja armazenado na amigdala e ndo no hipocampo (Pare, 2003; Quevedo ef al., 2003). O sentimento do rapaz acerca de dirigir é uma memiéria porque foi baseado na experiéncia, porém é armazenado independentemente e em paralelo. Verifica-se que uma resposta emocional a um estimulo pode se dar antes deste estfmulo ser reconhecido conscientemente. © rapaz pode nao se lembrar do acidente, porém manter-se com medo de dirigir, e quando ouvir um som de derrapagem de- sencadear uma resposta emocional desagradavel, sem dar-se conta da origem narrativa destas sensagdes. Quando ocorre uma emogdo de cunho traumd- tico, uma resposta de hiperexcitabilidade auto- némica é desencadeada correspondente a essa emogio. As caracteristicas fisicas dessa resposta vio ficar memorizadas e vaio influenciar posterior- mente, inconscientemente, a tomada de decisio (Damasio, 1996) ¢ as futuras emogdes (LeDoux & Muller,1997), como um marcador somatico (Damasio, 1996). Nos individuos com TEPT, quando ocorrem estados de hiperexcitabilidade autonémica semelhantes aquele marcador somético, ou mesmo ativagdes cognitivas (Damsio chamou espirais “como se”), estes vao set ativados como se estivessem revivendo a ex- periéncia traumdtica. O acionamento das memérias fundamentos cientificos as implicacdes terapéuticas traumdticas desencadeadas pela ativ amigdaliana, independentemente das memérias explicitas da situagdo traumatica — as quais sio hipocampo-dependentes — pode explicar os flashbacks e os fendmenos dissociativos. O Fenémeno da Supergeneralizacgao Uma importante abordagem no estudo da meméria no TEPT busca investigar a capacidade de individuos traumatizados para recuperar lem- brangas autobiogrificas especificas. Desenvolvi- da inicialmente por Williams e Broadbent (1986), esta linha de investigagao surgiu no Ambito dos estudos sobre os efeitos do humor sobre a meméria. Williams e Broadbent (1986) utilizaram um pro- cedimento no qual era solicitado que os partici- pantes lembrassem de eventos/situagdes espe- cificas de sua histéria de vida relacionados com algumas palavras-est{mulo apresentadas (por exemplo, “feliz”, “culpa”), Este procedimento, denominado teste da meméria autobiogrdfica (TMA), foi aplicado em pacientes suicidas (2 maioria com diagnéstico de depressiio maior) eem individuos-controle. Os resultados do estudo indicaram que 0 grupo-controle teve maior facili- dade para recordar memérias especificas (por exemplo, “meu primeiro encontro com minha namorada”). O grupo formado pelos pacientes suicidas, por outro lado, enfrentou dificuldades nessa tarefa, e suas respostas tendiam a referir-se a categorias de eventos (por exemplo, “jantares roméanticos”), nao a situagdes especfficas. Tais resultados, replicados em estudos poste- riores (Williams & Dritschel, 1988; Evans, Williams, O’Loughlin & Howells, 1992), sugerem que individuos deprimidos/suicidas apresentam uma tendéncia de processar a meméria de forma supergeneralizada, Em outras palavras, essas pes- soas recuperam seu passado de maneira genérica, inespecifica e difusa, sendo incapazes de lembrar de experiéncias mais pontuais. E como se suas hist6rias de vida fossem vistas de modo nebuloso, nas quais nada € percebido com precisao e nitidez. ng. Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Os achados relativos 4 incapacidade de recuperar memérias especfficas nao foram obser- vados apenas em pesquisas com individuos depri- midos/suicidas. InvestigagGes envolvendo veteranos de guerra (McNally, Lasko, Macklin & Pitman, 1995; Mcnally, Litz, Prassas, Shin & Weathers, 1994), mulheres com histéria de abuso na infancia (Kuyken & Brewin, 1995), bem como sobreviventes de acidentes automobilisticos (Harvey, Bryant & Dang, 1998) encontraram resultados semelhantes. De maneira geral, tais estudos evidenciaram que individuos que desenvolveram respostas patol6gicas apésa vivencia de situagSes traumatizantes também apresentam uma propensaio a processar a meméria numestilo supergeneralizado. Tomados em conjunto, os achados destas pesquisas indicam que a supergeneralizagaio é uma importante caracteristica da mem6ria no TEPT. E interessante apontar que o fendmeno da supergeneralizagéo nao foi observado de maneira consistente quando foram investigados outros transtornos psiquidtricos. Estudos que utilizaram o TMA para investigar a qualidade da ‘meméria em outras psicopatologias, como trans- torno de ansiedade generalizada (Burke & Mathews, 1992) e transtorno obsessivo- compulsivo (Wilhelm, McNally, Baer & Florin, 1997) nao detectaram com sistematicidade uma propens&o a recuperagio de memérias inespecfficas, a ndo ser que houvesse sintomas depressivos co-mérbidos (Wessel, Meeren, Peeters, Arntz & Merckelbach, 2001). Qual seria a razio para a especificidade da observagao do fenémeno da supergeneralizagao nos transtornos depressivos e quadros de TEPT? A hipétese que aparece de maneira mais consistente na literatura sugere que um mecanismo de evitactio de memérias dolorosas esteja envolvido em ambos 0s transtornos. Esta hipotese é baseada na idéia de que nossa memoria € hierarquicamente organizada (Norman & Bobrow, 1979). Segundo esta perspectiva, quando procuramos por uma informagao em particular, acessamos primeiramente uma representagao genérica, a qual engloba um conjunto de eventos. E-como se fosse uma categoria, cujo acesso inicial funciona como uma espécie de indice que nos Grassi-Oliveira e Lilian Militsky Stein auxilia a encontrar informagdes mais detalh Numa situag%o normal, o processo de bus avanga em seguida, e partimos para niveis mais. especificos, nos quais dados mais pontuais podem: ser obtidos. Em individuos que vivenciaram situagdes de vida dificeis, contudo, este processo de recuperacio pode estar comprometido. Para algumas pessoas - especialmente aquelas mais sensiveis — a lembran- ¢a de especificidades relativas a situagdes desa- gradaveis € acompanhada por um significative softimento psicolégico. Se este sofrimento mos- trar-se demasiado intenso, 0 individuo pode de- senvolver mecanismos para minimizé-lo. Nesse sentido, uma estratégia bastante I6gica seria limi- tar 0 acesso & meméria, restringindo-se a recupe- ragdo apenas de representagdes genéricas/categ6- ricas, sem entrar no nivel da especificidade. As evidéncias dispontveis até o momento sugerem que este mecanismo efetivamente ocorre com pacien- tes deprimidos e traumatizados: o processo de bus- ca de informagdes tende a ser prematuramente abortado, dando origem a um estilo de processa- mento mneménico supergeneralizado (Swales, Williams & Wood, 2001). A utilizagdo dessa estratégia tem um prego, pois ndo sdo apenas os eventos negativos que passam a ser processados desta maneira mais abrangente, genérica. A incapacidade de recuperar memérias especfficas passa a constituir-se num estilo mais abrangente de funcionamento mnem@nico, o qual traz consigo uma série de implicagées indesejéveis (Healy & Williams, 1999). Mais uma vez, nos deparamos com prejui- zos no funcionamento da meméria desencadea- dos por um processo originalmente designado para promover a adaptagao. Para os fins do presente capitulo, discutire- mos duas implicagdes particularmente in- capacitantes da supergeneralizagio, quais sejam (1) déficits nas habilidades de resolugao de problemas e (2) uma abreviaciio na perspectiva de futuro. Cabe ressaltar que estes so sintomas observados tanto em quadros de depressio como de TEPT, reforgando a idéia de que existe algum mecanismo mneménico semelhante nestas psicopatologias (McNally, 1998). 15 ‘Memeéria no TEPT: dos fund No Ambito da Psicologia Cognitiva, esforgos tém sido realizados na geragao de modelos explicativos que auxiliem na compreenstio dos mecanismos psicolégi- cos envolvidos no processo de resolugdo de proble- mas. Um destes modelos (Bransford & Stein, 1993; Stemberg, 1996/2000) sugere que o ciclo de resolugdo de problemas envolve sete etapas, quais sejam: 1) iden- tificacdio do problema; 2) definigao do problema; 3) construgaio de uma estratégia para resolugao do pro- blema; 4) organizagdo de informagao sobre 0 proble- ma; 5) alocagao de recursos; 6) monitorizagio da resolugio do problema e 7) avaliagdo da resolugio do problema. Os processos mnem@nicos desempenham seu mais importante papel nas primeiras etapas dociclo, referentes & definicdo do problema e formulagao de estratégias (Evans ef al., 1992). Desta forma, se os mecanismos de codificagao e recuperagao de meméria, envolvidos nestas etapas iniciais, mostrarem-se enviesadbos, é razodvel supor que todo resto do ciclo de resolugdo de problemas acaba comprometido. Goddard, Dritschel e Burton (1996) investi- o entre a recuperagdio de mem6ri ea inefetividade das solugdes ofereci- des por participantes deprimidos em uma tarefa de resolugao de problemas. Em linhas gerais, seus resultados indicaram que a habilidade para recuperar memérias especificas estava positivamente relacionada com a performance no procedimento de solugdo de problemas utilizado. Em nivel teori- co, estes achados sugerem que a disponibilidade de um “banco de dados”, com informagées precisas ¢ detalhadas, constitui-se em um importante componente para a producdo de solugGes efetivas aos problemas apresentados. Os experimentos de Goddard et al. (1996), cabe ressaltar, ndo envolveram a participagdo de individuos traumati- zados, de modo que ainda ha uma caréncia de evi- déncias empiricas sustendo a existéncia de uma relacdo entre a supergeneralizaciio e os déficits de resolugdo de problemas em quadros de TEPT. Limitagées.A parte, é interessante considerar- mos o valor heurfstico de se pensar nessa associa- cdo entre estratégias de resolugo de problemas ineficientes e um estilo de processamento mne- ménico supergeneralizado em pacientes com "TEPT, uma vez que dela decorrem implicagGes tera- yentos cientificos as goes terapéuticas péuticas relevantes. Tendo em mente a existéncia dessa relagdo, um importante componente da abor- dagem em resolugdio de problemas consisteem auxiliar o paciente a recuperar lembrangas especfficas que possam fornecer informagdes titeis para o enfrentamento da situagdo em questo (Pollock & Williams, 2001). Além de comprometer a eficiéncia das habili- dades de resolugao de problemas, a propensio a processar'a meméria de maneira supergeneralizada interfere nas perspectivas que o individuo tem acerca de seu prdprio futuro, Atualmente, nao restam dtividas de que nossa meméria nao se constitui apenas num armazenador passivo de experiéncias passadas. Ela desempenha papel cen- tral na construgao de nossas projegdes acerca do futuro, na medida em que disponibiliza uma pla- taforma sobre a qual estas so edificadas. Em ou- tras palavras, aquilo que esperamos por vir possui {ntima relacéio com o que ja experienciamos, uma vez que as memérias a respeito de nosso proprio passado constituem-se num fundamento para ela- borarmos uma visdo de nosso futuro (Tulving & Lepage, 2000). ‘Tendo em perspectiva esta intima relagdo entre passado e futuro, parece legitimo presumir que a qualidade com que o primeiro é visto determinaré a qualidade com que o segundo € construfdo. Es- pecificamente falando, se o passado é recuperado, de forma nebulosa, inespecifica e difusa, as concepgGes sobre o futuro também possuirdo estas caracteristicas. Nesse sentido, podemos entender que a supergeneralizagao contribui significativa- mente para os sintomas de percepgao de futuro abreviado, caracterfstico de quadros de TEPT (McNally et al., 1995). A hipétese de que as memérias autobiografi- cas supergeneralizadas dificultam na elaboragio de cendrios futuros foi testada por Williams, Ellis, Tyers, Healy, Rose e Macleod (1996). Em uma série de trés experimentos, os autores compararam o desempenho de individuos com histéria de tentativa de suicidio com individuos- controles em dois tipos de testes. O primeiro de- les era o Teste de Meméria Autobiografica (TMA), havendo apenas algumas modificagées experimentais dependendo do experimento. O 6 Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Grassi-Oliveira e Lilian Milnitsky Stein segundo, utilizado para investigagao da imaginagao de cendrios futuros, envolvia os mesmos prinefpios gerais do TMA, porém os participantes deveriam utilizar as palavras-estimulo para figurarem eventos vindouros, que ainda nao haviam acontecido com eles. Conforme o esperado, 0s resultados indicaram que, quanto mais genéricas eram as memérias autobiografi- cas recuperadas pelos participantes, menos especfficos eram os cendrios futuros imaginados. Os resultados também apontaram que tais cenarios poderiam tornar-se mais especificos se os participantes fossem estimulados a buscar por lembrangas episdicas mais detalhadas (Williams etal., 1996). Tomados em conjunto, estes achados trazem evidéncias empiticas de que projegdes pre- cisas acerca do futuro dependem da recuperagio de memérias autobiograficas especificas. Os achados experimentais, relativos & associa- cdo entre a qualidade da recuperagio do passado e as perspectivas futuras trazem consigo implicages terapéuticas. Em primeiro lugar, o terapeuta deve ter ciéncia de que eventuais sentimentos de deses- peranga por parte de seu paciente podem estar calcados num estilo de processamento mnemé6nico supergeneralizado. A desesperanga, de acordo com a teorizagdo cognitiva, est relacionada com uma visio negativa de futuro (Beck, Rush, Shaw & Emery, 1979/1997). jim, na medida em que a supergeneralizagdo limita oportunidades para estruturarem-se perspectivas concretas sobre 0 fu- turo, abrem-se as portas para instauragdo da de- sesperanga. O clinico, portanto, deve estar prepa- rado para langar mao de estratégias que visem estimular a especificidade quando das discussdes que envolvam planos/expectativas sobre o futuro (para outros detalhes veja a “terapia anamnésica” — Williams, 1992). O conhecimento acerca da supergeneralizagao traz contribuigdes para a implementagao de outras estratégias psicoterdpicas. No tratamento do TEPT, um elemento essencial envolve a reestruturagio cognitiva, numa tentativa de modificar os esquemas disfuncionais da pessoa traumatizada. Para tanto, o exame de evidéncias é uma técnica sistematicamente empregada, na qual a dupla te- rapéutica Ianga-se na busca por indicios incompativeis com as crengas desadaptativas do pa- ciente (Harvey, Bryant & Tarrier, 2003). No proceso de busca de evidéncias, ha uma pro- funda dependéncia da meméria do paciente, pois € nela que esto armazenadas todas as informagdes que poderiam ser utilizadas como “provas” contrétias as suas crencas mal adaptativas. Nesse sentido, 0 terapeuta deve estar atento para 0 fato de que a ten- déncia a recuperar memérias genéricas pode constituir-se num poderoso obstéculo na busca de evidéncias nao comprobatérias. As razdes para isso so 6bvias: se o individuo é incapaz de lembrar um exemplo especifico que nao dé sustentagao as suas arraigadas crengas, ndo existem motivos para questionar sua validade e necessidade. Com isso, as tendenciosidades no processamento das informagées sdo perpetuadas (Williams, 1996). Consideragées Finais A memoria humana é uma fungdo complexa, cuja estrutura e funcionamento tém intrigado pes- quisadores desde 0 momento em que estes se pro- puseram a investigé-la. Os estudos pioneiros sobre a meméria, conduzidos no ambito da Psicologia Cognitiva a partir de meados na década de 1950, concentraram-se na compreensio de sua estrutura/ funcionamento em condigdes normais. Desta ma- neira, fatores como a emocionalidade dos materiais utilizados e presenca de psicopatologias entre os participantes eram consideradas fontes de confusio, nao como varidveis de interesse. De forma seme- Ihante, a integragdo das investigacdes psicolégicas com achados advindos das neurociéncias mostrava- se bastante restrita. Como conseqiiéncia, durante muitos anos os profissionais da satide mental de- pararam-se com um quadro de caréncia de pesqui- sas e teorias s6lidas envolvendo as relagGes entre emogo e meméria (Eysenck, & Keane 1989/ 1994). Era como se houvesse uma espécie de segregacdo: de um lado, os pesquisadores; de ou- tro, os psicoterapeutas. Embora a Psicologia Cognitiva e a Terapia Cognitiva tenham surgido com forca no mesmo pais (EUA) e expandido de forma significativa mais ou menos na mesma época (anos 1960), seus ‘Meméria no TEPT: das fundamentos cientificos as implicacbes terapéuticas desenvolvimentos iniciais ocorreram em paralelo. De maneira geral, as integrag6es entre pesquisa bsica e psicoterapia, quando ocorriam, eram ape- nas discretas. Esta cisdo entre as éreas, contudo, certamente no ocorreu por acaso. Objetivos di- ferenciados de pesquisadores e psicoterapeutas ob- viamente contribuiram para que houvesse uma reduzida comunicagio entre eles. Ao passo que 0s psicélogos cognitivos estavam funda- mentalmente interessados em compreender 0 funcionamento “normal” dos processos cognitivos humanos, os terapeutas cognitivos concentravam seus esforcos no desenvolvimento de estratégias psicoterdpicas voltadas para o tratamento efetivo dos transtornos mentais e outros problemas afins, (Wainer, Pergher & Piccoloto, 2004). Entretanto, os objetivos diferenciados nao foram 08 tinicos responsaveis pela ndo-integracio entre Psicologia e Terapia Cognitiva, Quando um pesqui- sador engaja-se na tarefa de realizar estudos de interface, é inevitével que se depare com uma série de desafios conceituais e metodolégicos, o que pode oferecer grandes empecilhos para a condugio de investigagdes integrativas. Adicionalmente, a falta de consensos na literatura freqiientemente leva a desencontros e a obtengiio de achados contradit6rios, 0s quais muitas vezes parecem dificeis de conciliar (ones, 1999). Dificuldades a parte, o panorama de fragmen- tagdo entre pesquisa e psicoterapia tem se modi- ficado nos tiltimos anos. A medida que foram colhidos os frutos da integragao entre as dreas — Referéncias Bibliograficas American Psychiatric Association. (2002). Manual diagnéstico e estatistico dos transtornos mentais (4 ed. - revisada), Porto Alegre: Artes Médicas. Original publicado em 2000, AMIR, N., COLES, M.E., BRIGIDI, B.,FOA, E.B. (2001). The effect of practice on recall of emotional information in individuals with generalized social phobia. Journal of Abnormal Psychology, 110(1), 76-82. BECK, A.T., Rush, A. J., Shaw, B. F., & Emery, G. (1997). Terapia cognitiva da depressao. Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1979). modelos psicopatolégicos empiricamente fundamentados, técnicas psicoterdpicas mais pon- tuais, especificagao dos mecanismos responsaveis pela mudanga terapéutica, entre outros ~ 0 de- senvolvimento de esiudos de interface foi ganhando novo vigor. Especificamente no que tange A meméria, é crescente a quantidade de evidéncias mostrando que seus vieses sio relevantes para a etiologia e/ou perpetuacao de alguns transtornos mentais. Embora 0 conhecimento dos mecanismos mneménicos envolvidos em uma série de psicopa- tologias seja significativo para geraciio de modelos explicativos mais robustos, possivelmente nao exista outro transtorno em que a importancia da meméria seja to pronunciada como no TEPT. O papel na meméria no TEPT é tio significativo a ponto de este ser considerado, por alguns autores, fundamentalmente um transtorno dos circuitos da meméria (Sullivan & Gorman, 2002). As influéncias diretas e indiretas exercidas pela meméria sobre a sintomatologia do TEPT ainda carecem de um entendimento mais amploe aprofundado. Para tanto, é fundamental que to- dos os interessados se engajem na busca por uma maior comunicacio e integragdo entre co- nhecimentos construfdos nas diferentes dreas de investigagio. A medida que pesquisadores e psicoterapeutas unirem-se em prol de um objetivo comum, muitos avangos na compreensio ¢ trata- mento do TEPT serio alcangados (Leskin, Kaloupek, & Keane, 1998). BRANSFORD, J. D., & STEIN, B.S. (1993). The ideal problem solver: A guide for improving thinking, learn- ing and creativity. (2.ed.).New York: W. H. Freeman. BREMNERJ.D., KRYSTAL, J, H., SOUTHWICK, S.,M, & CHARNEY, D. S. (1996). Noradrenergic mechanisms in stress and anxiety: Il, Clinical studies. Synapse. 23/1), 39.51 BREWIN, C. R. (2001a). Memory processes in post- traumatic stress disorder. International Review of Psychiatry, 13, 159-163. BREWIN, C. R. (2001b). A cognitive neuroscience account of posttraumatic stress disorder and its treat- ment, Behaviour Research and Therapy, 39, 373-393. 8 Giovanni Kuckartz Pergher, Rodrigo Gra: BREWIN, C.R., DAGLEISH, T,, & JOSEPH, S. (1996). dual representation theory of post traumatic stress disorder. Psychology Review, 103(4), 670-686. 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