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Documentario recente brasileiro ea politica das imagens Cezar Migliorin O documentirio contemporaneo é o nome de uma multiplicidade, de algo indefinivel, de uma imagem que é atte e que nao é, que é afetada e transforma o real, que é fundamentalmente aquela imagem que no cinema se liberou de uma identidade. Se digo documentario nao sei do que falo, pelo menos no exatamente, mas ao mesmo tempo ele existe ¢ insiste, se transformando a cada filme. O que a principio pode ser um problema é, na verdade, o grande trunfo do documentario. Lembremos de Agamben quando diz que o Estado —e eu pensaria nos poderes — nao sabe agir quando as reivindicacSes vém de um lugar sem identidade, ou melhor, os poderes sabem lidar com as teivindicagSes que partem de um lugar definido. O lugar do documentario € esse lugar de indefinigao, inapreensivel. Dito de outra maneira: todo poder sabe lidar com o que ele sabe nomeat. Todo poder sabe administrar as reivindicagdes daqueles que ele pode reconhecer como sujeitos de direito, mesmo que seja para dizer que eles nao tém dircito — ainda, agora, aqui. O documentario hoje éo0 nome de uma liberdade no cinema. Seria tentador inventar outro nome para essa entrada definitiva na indiscernibilidade desse cinema, porque, convenhamos, 0 nome documentario nao é 14 grande coisa, tao impregnado ele esta de um regime de imagens em que a representacao eta o Unico problema a ser considerado, o que certamente nao € 0 caso da produgao contemporanea. O que nao significa que o desafio de apre- sentar 0 outro, de forjar encontros e pensamentos com o desconhecido das vidas e das imagens nao seja o que move o melhor desse cinema. * 10 O documentario, urgentemente; esse poderia ser outro titulo para este livro. Nao € pouca coisa 0 que acontece no pais quando identificamos um grande interesse pelo documentirio presente nas politicas publicas, nas publicacées, nos festivais, entre os jovens e nas miltiplas estéticas que essa producio apresenta. Nao é pouca coisa. Mais do que falar sobre 0 documentario, esse interesse parece se pautar por uma aten¢cao a esses modos de estar no mundo e de inventar mundos ¢, ao mesmo: tempo, compartilhar essas invengGes. O documentario nao é 0 que diz ou mostra 0 que existe, mas o que inventa a existéncia com o que existe. “Retocar o real com o teal”, como dizia Bresson. Atravessa 0 documentario um interesse pelo humano. O que esse. homem comum faz, como aquela mulher ganha a vida, como conta sew passado, como mobiliza a palavra e enfrenta os podetes, como exerce © poder, como afirma sua inteligéncia, como ocupa os espagos, como formula o futuro ou se livra do presente. O documentario que nos inte- ressa € essa arte no humano. Mas, como arte, nao lhe interessam apenas suas possibilidades de apresentar ou esctever os sujeitos, mas também suas capacidades produtivas. A busca de uma maneira de abordar o mundo, de estar em contato com outras vidas e outros espacos nunca esteve tao proxima de um proble- ma estético, de uma reflexio sobre os modos de operar essa aproximagao, esses enconttos entre cenas. Cena do realizador, cena do filmado, cena do espectador, cada cena dialogando com miultiplas heterogéneas forgas. Os artigos presentes neste livro sao agdes que enfatizam determinadas vibragées ou apenas as mantém em movimento. Na escrita e nas escolhas dos filmes, na atencio que dedicam a este ou aquele gesto, a este ou aquele filmado, vao delineando um universo de crengas no documentatio e no real, forjando, com os filmes, o mundo em que vivemos. Ao reunirmos artigos com miltiplas abordagens do documentirio temos consciéncia da heterogeneidade deste livro; entretanto, essa aparente fragmentacio é fruto, actedito, do momento que vive 0 documentatio brasileiro. Filmes complexos que ensejam abordagens teéricas diver- sas, todas atentas 4s suas condicdes de possibilidade e as escrituras ali forjadas. Pensar € também opetar por montagem, aproximar eventos, fatos, fragmentos, imagens e sons, possibilidade de uma memoria se tornar um acontecimento. Assim, € 0 pensamento que se esboga em um livro que reune estudos apoiados em bases teéricas e abordagens distintas. Entretanto, ha um norte em todo o livro: trabalhamos com filmes brasileiros recentes. Os textos, evidentemente, sio aut6nomos, esctitos por ensaistas e pesquisadores diferentes, mas 0 contato entre eles nfo é nada desprezivel. Nas proximas paginas 0 leitor poder percorrer alguns dos mais importantes conceitos inventados pata se trabalhar com o documen- tario contemporaneo; porque assim ele demanda, poder4 acompanhar algumas andlises minuciosas e artigos mais amplos, imbuidos de um esforco de sintese. Muitos dos mais importantes documentarios brasi- leitos aparecem neste livro: Jogo de cena (2008), de Eduardo Coutinho; Estamira (2004), de Marcos Prado; Juézo (2008), de Maria Augusta Ramos; Santiago (2006) e Entreatos (2004), de Joao Salles; Pan-Cinema permanente (2008) e Preto e branco (2004), de Carlos Nader; Man. Road. River. (2004), de Marcelvs L.; Landscape theory (2003), de Roberto Bellini; Do outro lado do rio (2004), de Lucas Bambozzi, Rua de méo dupla (2003), de Cao Guimaries; A pessoa é para 0 que nasce (2003), de Roberto Berli- ner; Vocagao do poder (2005), de Eduardo Escotel ¢ José Joffily; Utopia e barbarie (2005), de Silvio Tendler; Acidente (2006), de Pablo Lobato ¢ Cao Guimaries; Encrnzilbada aprazivel (2007), de Ruy Vasconcelos, entre outros. Da mesma forma, esta inttodugao também opera por montagem. Se aqui dedicarei algumas paginas para falar de capitalismo, modos de subjetivacao contempordneos, formas de poder ou espetacularizagao do eu, nao é pata chegar a conclusdes fechadas sobre a atual fase do documentario, mas por necessidade e intui¢gio; é preciso aproximar interessado ¢ os miltiplos modos de constitu ‘ Bo mundo con- temporaneo. Sujeitos comuns, banais, eventualmente espetacularizados em relacao com os mais diversos podetes. Arriscaria ainda: uma leitura atenta dos artigos que aqui coloca- mos em contato torna possivel um diagnéstico do mundo atual. Sem esse contexto € impossivel pensar o documentério contemporaneo, parecem nos dizer, com frequéncia, estes pensadores. Esse contex- to que fala de poder, midia, Brasil, subjetividade e capitalismo esta constantemente atravessando os filmes. O documentirio esta colado 4 politica e, por isso, € aqui frequentemente pensado como operador no real. As vezes é pteciso um olhar atento, delicado, para o cotidia- no, pois ali se insinuam as diferencas, uma outra pratica de consumo, de relagao com as imagens. Dizer, por exemplo, que o capitalismo é essencialmente homogeneizador do desejo € ignorar a micropolitica em que estao engajados os sujeitos nas suas relacdes cotidianas com as imagens ou com o consumo. No cotidiane se esboca a imaginacio sobre si e sobre 0 outro. Estat com o outro, tornar visfvel um modo de vida sem fazer com que essa aptoximacio se confunda com um modo de gestiio da vida do outro, um modo de inventariar mais uma excentricidade, eis 0 desafio do documentirio. Como estar com esses outros sem que eles sejam parte de uma unidade que religa suas singularidades de mancira homogeneizante, em torno de linhas consensuais: 0 louco, o s4bio, o pobre talentoso etc. Nesse sentido, veremos como diversos filmes esto atentos as vidas que escapatam 4 funcionalizacao. Nao se trata apenas da escolha dos personagens, mas de uma abordagem que se distancia do idealismo ou do discurso acabado para estar com os corpos, com os gestos, com as falas, em frequente deriva. Jogo de cena é, provavelmente, o filme mais presente nestas paginas. O filme de Eduardo Coutinho coloca énfase na dimensio coletiva das falas, algo que j4 vinha acontecendo em Faijicio Master (2002), Santo forte (1999) ou Babilénia 2000 (2000), mas que nesse filme ganha contornos comoventes. O texto é dito por alguém, mas ao mesmo tempo que é dito faz a pessoa desaparecer como individuo para ser uma ponte para a prépria linguagem. Uma enunciaciio sem proptiedade. Ris a dimensio coletiva da linguagem, uma luz que Coutinho langa sobre seus outros filmes recentes. A fala sai de “um” e se torna “infinita”; do “um” ao “miltiplo” com um corte. Nesse gesto, a fala nao pertence a mais ninguém e, ao mesmo tempo, pertence atodo mundo. Eo que acontece quando percebemos que duas mulheres contam a mesma histéria como o mesmo grau de envolyimento. Maneira explicita de destruir as fronteiras entre 0 individual e 0 coletivo. E nio sei mais quem é Fernanda ou Andréa, Matilia ou... A “prisio” de Coutinho aqui ganhou asas ¢ se liberou, nem por isso deixou de ser um dispositivo. Eis uma das mais fortes dimensées politicas dessas imagens. Momento em que o filme nos apresenta o que ha de mais singular circulando de maneira destegrada pela comunidade. Mas no sao apenas as falas e entrevistas que citculam. Depois de abrir 0 século com a entrevista pautando o documentirio brasileiro, o siléncio é uma reagao, como Claudia Mesquita nos lembra em seu artigo. Ao mesmo tempo, ao incorporar 0 encontto, operacio fundamental no cinema de Jean Rouch nos 1950, 0 documentario contempordneo com frequéncia duvidou dele também. Até que ponto o encontro nao € apenas um jogo, um conexionismo desprovido das tensées lentas ¢ a longo prazo? Quanto de desafio pessoal € o que move o encontro? No lugar da presenga do outro, da relacio e da imaginagio, inseparavel do estar junto, o encontro nao pode se tornar apenas um desafio de perfor- mance? Uma ansiedade em instaurar a transformagao j4 com o filme. Eis 0 risco, e mais uma tens’o: que o documentirio nfo se confunda com © audiovisual que coloca o espectador no lugar daquele que julga seo tealizadot € os filmados esto se saindo bem diante do tisco do encontro, mobilizacio fundamental dos reality shows, - Muitos dos mais relevantes filmes recentes, como sabemos, foram fundados nessa disposigao pata o encontro. Acompanhamos nos Ultimos anos uma série de dispositivos, entrevistas ¢ invengSes de situagdes em que nfo havia uma roteitizacao possivel, em que o docu- mentario se colocava sob 0 “risco do real”, como escteveu Comolli. Esse risco permitia marcar a diferenga e a contraposi¢ao entre cena € roteito. Oposigio construida por Comolli para que possamos pensar a partir da presenca ou nao de um operador externo. Ou seja, a cena € o lugar da negociacio das representagdes em que os sujeitos operam, enquanto 0 roteiro aparece como uma operacao exterior as tensdes da cena, colocando o espectador nao como um eventual personagem ativo da cena, mas como um consumidor do quadro acabado. No ro- teiro, o sujeito encontra seu papel j4 desenhado, sabe como deve atuar pata que a ordem narrativa funcione, enquanto a cena € politica. O sujeito na cena tem o seu papel a definir, ou seja, ele tem a definir sua fungio na polis, a forma como sua palavra vai operar ¢ transformar. Ora, Comolli escreve, entio, em Ver e poder. “O imperativo do ‘como filmar’ (...) coloca-se como a mais violenta necessidade: nao mais como fazer o filme, mas como fazer para que haja filme.” O filme aqui nao é apenas uma sequéncia de imagens que tem uma determinada duracio, isso aparece quando sc faz um filme, mas pata que haja filme é preciso que a cena se reconstitua, que o espectador seja transportado para a instabilidade do encontro entte sujeitos politicos, operando na polis no apenas executando um roteiro que servita pata o consumo. Se a copresenga dos elementos que compdem uma cena nao é necessaria e, pelo contrario, deve ser domada, é a cena que se torna inutil. Se a imagem que me chega perdeu toda poténcia de contigio de outras imagens € outtos sujeitos, é a propria cena que tende ao desapareci- mento. A retirada, neste caso, é da politica mesmo. O tisco do real, trabalhado por Comolli pata caracterizar o encon- tro e largamente utilizado por nés, criticos ¢ pesquisadores, no pode, 15 entretanto, se reduzir a um elogio ao conexionismo, como se qualquer corpo a corpo com o real regido pelo acaso trouxesse a dimensao desse risco do real. Da mesma maneira, antes do corpo a corpo, ha 0 risco das imagens. Também ai esto em jogo as indeterminaces e descontroles, o imprevisto e o improvavel, ou seja, a poténcia aconte- cimental. O documentirio se faz sob 0 risco das imagens, com ou sem roteiro ou dispositivos, sozinho ou com outros corpos; as imagens tém a poténcia de se desdobrarem em mundos desconhecidos, irredutiveis a programacio. Para o documentatista, um dos tiscos dessa politica dos encon- tros reside no papel preponderante que o acaso assume na selecio dos encontros no momento em que o realizador est de safda. A saida do realizador, sua impossibilidade de enunciar de fora pode se configurat como uma nova transcendéncia, a do acaso. No lugar da Vox de Deus, a Vox do Acaso. A saida do realizador do filme se faz com tal intensidade que o filme € tomado nio mais por uma individuacio coletiva, ou seja, pela copresenga criativa de varios sujeitos, mas pelo esvaziamento da cena ¢ das tensGes a ela inerentes. Sem o filme, sobram 0 jogo e as tegras. His outro risco com que se depara um cinema politico baseado no encontro; conexionista. Ou seja, nem a entrevista/conversa, nem 0 dispositivo, nem o filme de busca traziam em si qualquer garantia e, além disso, sero vistos com desconfianga por aqueles que comecam a duvidar do proprio conexionismo como possibilidade politica para o documentirio. Coloca-se no problema do encontto a questio de até aonde ir, que distancia manter em relagio ao outro, que garantias prever no dispositi- vo. Volto a Coutinho e seu mais recente filme, Moscow (2009). Uma das mais importantes formas de o documentirio mobilizar o espectador 0 modo como ele compartilha a possibilidade de ele nao se fazer, no se realizar, de 0 encontro nao se efetivar, de o dispositive nao funcionar, de © petsonagem nao “render” — triste expresso. Depois de varios filmes 16 em que 0 risco da prépria existéncia do filme mobilizava o espectadot, mas em que algo se atualizava, a no¢ao mesma de fabulacio — tao uti- lizada pata pensarmos a obra de Coutinho — implica uma atualizacio; uma organizagio da meméria e dos eventos que inventam um mundo, uma pessoa, inexistente até entao. Em Moscon, a concentracao parece se deslocar de maneira incisiva para a individuagio, para o coletivo, pata o que faz passagem entre as atualizacdes. A diferenga é, antes de tudo, uma vibraco que ainda nao tomou corpo. O que nos mobiliza nos documentarios fundados na fabulacao, no desejo de fabulagao, nos acontecimentos de linguagem é a passagem entre atualidades que fazem sentit a multiplicidade, ou seja, entre individuos que dao a ver as possibi- lidades de ctiag4o que os ultrapassa. O outro se propagando no filme, o outro se inventando com o filme e com a meméria. Se na fabulacao haa passagem entre singularidades que se fazem coletivas na medida em que se transformam como parte de um devir coletivo, entendo que em Moscow ha uma concentracio no que ainda nao achou a singularidade onde se desdobrar. Pois Mascon, e nao apenas, parece ja set um desdobramento contemporaneo de uma pratica que nao para de se colocar 4 ptova. Notas Flanantes (2008), de Clarissa Campolina, Sébado a Noite (2007), de Ivo Lopes, ou Encruzilhada aprazivel (2007) de Ruy Vasconcelos, se juntam a Moston ao forcarem o limite, desconfiarem do dispositivo e mesmo do encontro € praticamente evitarem que algo realmente se atualize. Sio filmes que se colocam sob o tisco da nao-atualizagao, seja dos perso- nagens, dos discursos ou de um espaco. O interesse do documentirio esta em sustentar o “entre atualizagdes”, a individuagio, a virtualidade, aquilo que ainda nao pertence a x ou ay, mas que vibra est4 a ponto de se atualizar. Nesses casos, filmes muito estranhos e curiosos, é como se essa vibracao fosse o filme todo, na caréncia de algo que se solidifique, para o qual possamos tranquilamente apontar. Sao filmes que parecem estar ainda na vibra¢ao, sem o encontro (ainda), como se tivéssemos chegado cedo demais. Desde Rouch nos interessamos pelo documentirio 17 - fundado nessa atualizacio do ser. O sujeito, no filme, produz uma fala até entio desconhecida, constrdi uma ideia, transforma sua memoria, inventa um corpo. Vemos e nos encantamos com filmados em vias de desaparecimento, no como sujeitos, mas como identidades. Como se a imagem fosse apenas um clario fugidio de um ser que aparece e de- saparece para que continuemos com tudo que esta para além e aquém dele. Eis o lugar em que o espectador se insere. No desequilibrio e no risco de nada se atualizar. Coutinho e Comolli se aproximam, Coutinho na angustia de nfo saber se ha filme enquanto filma — 4s vezes nem enquanto monta. Comolli ao dizer que o problema € como fazer para que haja filme. Ora, e se nada se atualizar, ¢ se 0 real nao deixar a sua vibragio € poténcia, ¢ se nao vier 4 superficie aquilo que se atualiza em diregao a mil mundos possiveis? Seria essa suspensio radical, esses filmes silenciosos e dispersos, uma feacio a inflacionada presenga do homem ordinario na imagem, na televisio e no documentatio? Homem ordinario esse que tio raramente aparece fora dos polos que o colocam entre exemplo—E:stamira (2004), de Matcos Prado — ou puro grito, tio frequente no jornalismo. Ser exemplo ouum grito é sempre uma construgao exterior, uma fabricagao discursiva e estética; o papel do documentitio é recolocat esses sujeitos na politica, © que niio se faz sem escritura, sem tensio e dissenso — entre as proptias imagens —, sem paciéncia de todas as partes. O exemplo co grito (Ranciére, 1995) so velhos conhecidos, a politica é a diferenga; 0 wn qualquer que pode aparecer de qualquer lugar e fazer diferenca na polis. O personagem exemplar deve atender as necessidades que nao lhe pettencem, o persona- gem que gtita, que reclama, pode tet sua demanda aceita, como discurso, mas se enquadra no préprio discurso que avisa que sua demanda no pode ainda ser atendida. Nos dois casos, na excentricidade ou na nulidade, nao h comunidade possivel, nao h4 conexfo, tensio. Pensat o outro como singular é colocd-lo como presente na pols, alguém que nao é exemplar, mas faz diferenca na comunidade, por vezes simplesmente porque nele 18 passa um mundo que nao é igual sem ele — microesteticamente falando. O singular nao é o exemplar, nem o que sente diferente do outro ele é justamente o que faz vibtar — sem isolamento — um mundo na sua dife- renga, eis o interesse da singularidade no cinema documentirio. Mas, como vimos, nao podemos nos fiat em um elogio incondi- cional do encontro e da conexio entre os miltiplos atores que fazem a cena documental. Conectar, se colocar em relacao com 0 outto, procurar coimplicacées, confrontagdes com o espaco coletivo; agao no lugar da contemplacio, a experiéncia para alargar o saber, os gestos, as atitudes, os conhecimentos, dinamizar as criagdes e as conexées, possibilitando a vivéncia de fendmenos inéditos, “o cineasta como conector”. Enfim, so exemplos em que a critica ao isolamento do artista, que enseja uma territorializacao do set e do mundo, encontra, no elogio a proposigéo contraria — conex4o, “estar junto”, improviso, escuta € experiéncia com a diferenca —, os caminhos pata um processo de individuacao do espectador e do documentarista que forjam um outro mundo sem isola- mento. Entretanto, com sabemos, é 0 proprio lugar do capitalismo e de diversos poderes contemporaneos que, a0 estabelecer um lugar ctitico em relacao 4 disciplina, passa a operat buscando a experiéncia e a co- nexio. A experiéncia, a producio subjetiva, o elogio ao conexionismo nao est&o separados de um paradoxo préprio as formas como a vida € suas poténcias estéticas, conexionistas ¢ afetivas interessam os mais diversos poderes. Foi a propria expansao do capitalismo que demandou uma ruptuta com padrdes de conduta normatizados. Como escteveu Vladimir Safatle, com base em uma leitura de O anti-Edipo, de Deleuze e Guattati, “o capitalismo nao procura mais impor contetdos normativos privilegiados, mas socializar 0 desejo por meio de sua desterritorializagao violenta, da fragilizagao de seus prdprios cédigos, da flexibilizagao das identidades que ele mesmo produz”. Se efetivamente estamos em uma sociedade de controle que en- seja transformagées radicais na forma como a vida é demandada pelos poderes, nao apenas o corpo da disciplina ou a gestio da populacio na biopolitica, mas uma liberacao de potencialidades de invengao sub- jetivas que gerara novos produtos e consumidores capazes de fazer, inventat e reinventat o — e no — capitalismo hedonista, pds-disciplinar, n&o-normatizador, decodificador dos fluxos sociais ¢ subjetivos, seria © préptio roteito — essa mio invisivel fora das tensdes cotidianas e subjetivas, como colocado por Comolli — que nao operaria mais nos destinos do capitalismo. Nossas vidas sao demandas fora do roteiro, e talvez no exista maior motivo de angtstia do que a exigéncia de sair do roteiro, Se ha uma dicotomia entre a cena como 0 espaco do acon- tecimento — esse encontro entre varios em que algo se produz — e 0 roteiro como a ordem que carece de acontecimento, despotencializada, nao podemos simplesmente adetir a uma tomada de posi¢iio sem levar em considera¢’o que é préprio ao capitalismo contemporanco uma apropriacao da invengao subjetiva individual e coletiva; alias, mais do que uma apropriacao: o capitalismo contemporaneo é a atualizacao de uma poténcia dos sujeitos e do capital. Poténcia de invencio (e captura) de mundo sensivel. “Uma produgio que nao se faz sem uma produgio de mundo que é 0 prdprio acontecimento entre os sujeitos e seus processos subjetivos e as forcas do capitalismo. Uma empresa nfo cria um objeto (mercadoria), mas o mundo onde 0 objeto existe”, escreve Lazzarato ao discutir as “revolugGes do capitalismo”. E nés completarfamos: esse mundo é feito com a participagao e o engajamento dos sujeitos, nao necessatiamente privilegiados, pelo funcionamento do capitalismo. Eis seu efeito simbélico. Lazzarato completa afirmando que na sociedade de controle a questio é efetuar os mundos. Podemos dizer, assim, que a guerra econdmica do capitalismo é uma guerra sensivel, uma disputa que se dé na virtualidade, no acontecimento. E nessa disputa sem fora que o documentitio encontra ¢ tensiona o capitalismo. A luta € paradoxal e sem inimigos localizaveis. Toda percep¢io foucaultiana de poder — em sua dimensio produtiva e micropolitica — 20 parece mais atual do que nunca. Ne momento em que as disputas se dao no nivel das produgées subjetivadas, nao mais por molde — “seja isso ou aquilo” —, mas por modulagae — “seja isso, mas invente algo” —, 0 documentario é um projeto polities € estético inserido no interior desse paradoxo, j4 que interessado no Outro, nas trocas, nas diferen¢as e no desconhecido. Em algum momento esse fluxo de producao subjetiva, de formas de ser e habitar o mundo, deve set interrompido pelo capital para que ele possa ser funcionalizado. Fluxo e corte, yelocidade ¢ estagnagio — essas duplas andam juntas no capitalismo. Mas imaginar e inventar o real € um meio sem fim, definigao mesma da politica (Agamben, 2002). O documentario nao opera interrompendo © fluxo, sua velocidade é infinita e anacrénica. Em seu artigo, André Franca recoloca a sempre necessaria pergunta: por que fazer documentario? Certamente nao ha uma resposta unica, mas se o documentério insiste, urgentemente, é porque o teal esta sendo inventado, com imaginagio e ficcio, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferen¢a no mundo, porque os recortes do que é visivel e do que é dizivel dependem da nossa forga de imaginacao e de invencao do real. Porque diante da dor do outto nao ha retake. Rouch — sempre ele — percebera pela antropologia algo de que o cinema iria se apropriar de maneira indelével: a realidade € inseparavel da imaginagao. Ficcionalizar e viver a realidade, sonhat e carregar sacos no porto de Abidjan (Ex, um negro, 1958) sao partes de uma mesma vida que o documentario nao pode negligenciar. “Fazendo de conta, ficamos mais perto da realidade”, diz Rouch. Fazer de conta nos filmes de Rouch nao era apenas um agenciamento para fazer parecer verdadeiro 0 que era falso, nao se trata de encenar pata o filme o que na vida acontece coti- 21 dianamente, mas de fazer da cena a possibilidade de um acontecimento, fazer da encenagao uma diferenga com o ja conhecido. Ficcionalizar j4 é em si mudanga, e nao mimese realista, o que vemos com toda clareza na mimese irénica do mundo inglés feita pelos Houka, em Gana, no filme Os mestres loucos (1955). Uma pratica renovada em documentérios recentes como 0 ptéprio Jogo de cena, mas também em Avenida Brasilia formosa (2009), de Gabriel Mascato, no brilhante Aquele men querido més de agosto (2008), do portugués Miguel Gomes, ¢ na trilogia do também portugués Pedro Costa, O quarto de Vanda (2000), Ossos (1997) e Juventude em marcha (2006). Uma das nogdes que permitem abordar essa relacio reflexiva e inventiva com o real no documentario contemporaneo é a de ensaio. Estava claro que o documentario se distanciava de uma cientificidade e de uma possibilidade de pura objetividade em telacao ao seus objetos. Estava claro que os tealizadores se faziam presentes ao falarem na pri- meira pessoa, ao forjarem montagens de imagens com encadeamentos que passavam pelos desejos, historias e contextos do filme e do teali- zador. Entretanto, estava claro também que havia nesse lugar reflexivo dos filmes um desejo de outro: outras instituigdes, outras vidas, outros ritmos, sons ¢ histérias — 0 teatro, o indio, o cotidiano de uma pequena cidade . O ensaista estranha e conecta, estranha e observa, estranha e se interroga, sempre no limite do fracasso. André Brasil reflete sobre essa forma ensaio com base em quatro videos que transitam entre o documentitio e 0 universo das artes. Em seu artigo, mais do que uma anilise das obras ou uma reflexio sobre a forma ensaio, o autor mimetiza a caracteristica que mais lhe interessa nas obras, um cetto movimento do pensamento que nfo cessa de se diferenciar de si mesmo. Utopia politica na imanéncia, como escreveram Deleuze e Guattari: “O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito.” Nesse sentido, interessam-nos os filmes que nao renunciam a um desvendar da historia e do outro, mas se propdem a fazé-lo de maneira fluida, incerta, ficcional, esburacada. Seres sem limites claros, sem palavras precisas, mas que precisam de palavras; sem imagens ou espacos precisos, mas que se ensaiam com as imagens. Por vezes € com atores que se chega nas invengGes com o real, outras vezes na recep¢ao do acaso ou na insisténcia dos tempos. No artigo “A camera licida”, José Carlos Avellar escolhe dois filmes paradigmaticos dessa rela¢io entre fabulacao das pessoas que viveram a historia e atuagio de atores que, de maneiras distintas, nos dao a ver ainda outras formas de estar no mundo, além daquela que interpretam, pata depois fazé-los dialogar com um filme de ficgio, Mutum, de Sandra Kogut. O texto entra, assim, no prdprio processo dos filmes. Adorno nos diz que “o ensaio nao quer procutar o eterno no transitério, nem destil4-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitdrio”. E Comolli lembra que “o movimento do mundo nfo se interrompe para que o documentarista possa lapidar seu sistema de escrita”. O homem ordinario do documentario, por mais banal que seja, nao esta na rua, a disposigao de uma narrativa fechada e bem-acabada. O documentiario ensafstico se dispde ao risco dos movimentos que sao proprtios as vidas. Movimentos por vezes minimamente perceptiveis, fagulhas de desejo € de tesio, vontades de vida presentes em um gesto, em uma fala confusa — Andarilho (2006), Acidente (2006), As vilas volantes, O verbo contra 0 vento (2005) Jogo de cena (2008), Do outro lado do rio (2004), Man. Road. River. (2004). Eis a complexidade com a qual 0 ensaio se permite um contato. Complexidade do pensamento que se aventura no sem-limite das vidas. O complexo nao demanda a profundidade, confusao que a busca da objetividade e do pensamento dedutivo arraigou no pensamento com- plexo. A profundidade frequentemente traz a limpeza que subtrai o set. A complexidade do ensaio é frequentemente de superficie, operando em extensio, por montagem. A montagem: possibilidade de multiplicar e fazer coexistirem velocidades e vetores antagOnicos, a velocidade da queda livre que leva Carapiru— Serras da Desordem (2006), de Andréa'Tonacci, ao centro do capitalismo que continua a demandar energias arcaicas, 4 velocidade da flutuagio de Carapiru entre linguas que ele desconhece ¢ deriva no consenso do “é bom”. Acordo ¢ desacordo em uma mesma frase/gesto. Dispatidade de vetores: do individuo e suas profundezas, do indio para o mundo e suas supetficies. A instabilidade dos enunciados do ensaio nio se faz em detrimento nem da profundidade, nem da extensio em supetficie. Nesses filmes ¢ ensaios que aqui nos interessam, junto 4s vidas ha 0 préprio trabalho das imagens. Sao essas também que os documentirios poem a trabalho. Mas, quando é que as imagens param de trabalhar? Primeiramente quando ela é tudo o que se pode ver ou dizer sobre um evento, quando ela da conta de todo dizivel, quando ela nao tem mais nada a esconder e passa a opetar em um tal nivel de transparéncia que nada resta — uma hipertransparéncia. Essa falta de trabalho aparece de maneira premente nas imagens mais ligadas a um certo cinismo do capita- lismo, aquele que nao esconde mais seus objetivos outrora inconfessaveis. Cinismo que aparece no cerne da democracia liberal contemporanea, em que nfo ha mais nada a ser desmascarado, mais nada a set denunciado, apenas um acordo consensual entre a légica capitalista e o poder politico. As dentincias de corrupgio ¢ manipulagio servem antes como forma de exercer a falta consciéncia esclarecida (Sloterdijk) da midia. Como nos Jembram Deleuze ¢ Guattari, “no capitalismo, tudo é racional, menos 0 capital”. Racionalizar o capital é parte da operago mais cinica que envolve as imagens. A publicidade incorporou sua critica ou 0 voyeurismo das emiss6es televisivas que visam a moldar os participantes, como 0 quadro “Mudanga geral”, apresentado no programa Fantdstito, da Rede Globo, em 2009. Nestes casos, a adequacio absoluta entre o fim e os meios elimina a imagem como trabalho que demanda o espectador, uma vez que tudo 0 que ha a sentir e dizer ja esta dito na imagem e na sua perfeita adequacao; mesmo que o fim seja perverso, nada precisa ser escondido. A imagem para de trabalhar quando, por outro lado, nao ha mais nada para ver. Quando ela no se liga mais com nada. Quando ela € apenas uma apari¢ao que perdeu o evento. Uma publicidade de um carro que anda a 200 km por hora e que petdeu a poluicao e o engarra- famento da Linha Amarela. Uma mie que perdeu o filho com a queda de um barraco. Seu choro para as cameras do jornalismo nao apresenta qualquer distancia em relagio ao cliché do que € 0 bartaco cait com a chuva, no Rio de Janeiro ou em Bangladesh. A imagem para de trabalhar quando o grito nao se liga com o contexto, s6 nessa abertura é possivel fazer diferenca na polis. E sé na possibilidade de 0 grito se conectar a outras imagens € outros eventos que a imagem passa a existir. A democracia liberal, a face administrativa do capitalismo con- temporaneo, nos acostumou 4 universalidade dos direitos; entretanto, dentro de seus principios, a presenga da voz e das reivindicagdes dos excluidos e explorados aparece no momento em que esto organizados € como minoria — numericamente falando —, uma minoria que deve ter a paciéncia e a continuidade das lutas ininterruptas e lentas. Como tepresentacoes efetivas, sao irrelevantes na polis. Pois no documentiario que nos interessa, quando se aproxima daquele que nao tem uma parte que faca diferenca na polis, é de outra democracia que se trata: urgente € estética, op6e resisténcia nas formas como ocupa e inventa 0 tempo € o espaco. Imagens e sons operando resisténcias no nivel mesmo da linguagem, resisténcia as m4quinas de apaziguamento politico dos con- flitos estéticos operadas, principalmente, pela grande midia. Compartilhar, urgentemente, um lugar para uma presenga estética de outra ordem, que atromba o dizivel, que inventa sensiveis e faz o pensamento nao caber nele mesmo, eis 0 que nos parecem fazer as do- bras das imagens — Ju/zo, Jogo de cena, a reencenagio Serras da Desordem, e circulagao nao individual do texto ¢ da estética — Acidente, Jogo de cena —, a atenc4o ao tempo e aos pequenos gestos do cotidiano — Excruzilhada aprazivel, Man. Road. River —, as reflexes sobre 0 poder — Santiago. Nes- sas invengGes estéticas reside o documentario como for¢a politica que nao teivindica nem a indignacao do espectador, nem a culpa, mas uma 25 participacao com um trabalho que nfo se faz sem a inadequacao entre © narrado e a narracao. Fazer as imagens trabalharem, ver duas vezes, dobrar a imagem para que 0 texto, 0 evento nao sejam mais a histétia de um individuo, mas para que ela passe a set compartilhada e engaje miiltiplas subjetividades em suas diferencas.

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