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A passagem acima apóia a definição oferecida pelos autores estudados que, cada
um em seus termos, definem a literatura como a arte do uso das palavras.
A respeito das funções da literatura, podemos nos apoiar em Antonio Candido. O
autor de A Literatura e a Formação do Homem (1972) uma grande função para a literatura –
a função humanizadora – que pode ser desmembrada em três funções integradas: a função
psicológica, a função formadora e a função social.
A primeira dessas funções, e a mais rica e enriquecedora, segundo o autor, se deve
à capacidade e à necessidade que todo ser humano tem de fantasiar. Mas, lembra o autor,
as fantasias expressas pela literatura sempre têm base na realidade. E é através de sua
conexão reconhecida pelo leitor com o mundo real que a literatura exerce sua segunda
função, que é a formadora. Embora esse não seja seu objetivo principal, a literatura acaba
atuando como um instrumento educativo, uma vez que “prega” valores e ideologias de uma
realidade imaginada. Já a terceira e última função colocada por Candido se refere à
identificação do leitor e de seu universo experiencial com o que é representado na obra
literária. Esta função, por ele denominada função social, possibilita ao indivíduo o
reconhecimento da realidade que o cerca quando transposta para o mundo ficcional.
Podemos perceber, com a leitura das obras adotadas pelas professoras, que
nenhum dos autores considera a função humanizadora da literatura por inteiro. Ora a ênfase
recai sobre a função formadora, ora sobre a função social. A função psicológica – talvez
dado o caráter preparatório das obras, é o que recebe a menor ênfase.
Nos textos estudados, a abordagem para o estudo e a descrição da História da
Literatura é isolacionista. Segundo os autores, a literatura faz parte do universo cultural de
um povo, mas estabelece com outras manifestações culturais relações que são apenas
eventuais. Nenhum dos textos apresenta ou sugere a noção de literatura como um
polissistema integrado de manifestações culturais (OLINTO, 2003), em que os diferentes
sistemas se influenciam mutuamente. A exceção a essa forma de abordar a literatura talvez
seja, e apenas em parte, o manual de Cereja e Magalhães (1998), em que o autor afirma
que a literatura participa das transformações da sociedade em contato com outras
manifestações culturais.
A estrutura dos quatro textos eleitos pelas professoras se assemelha. Há, em todos
eles uma breve apresentação do livro seguido de um sumário dos capítulos. Há, a seguir,
um ou dois capítulos introdutórios que apresentam os conceitos-chave de literatura, de estilo
e de período literários, as definições e os critérios utilizados para delimitar os períodos
literários. Os demais capítulos são dedicados a uma exploração mais detalhada de cada um
dos períodos literários. Uma das obras (FARACO, 1998) complementa sua história da
literatura brasileira com um apêndice sobre a História da Literatura Portuguesa em períodos.
O foco de todas as narrativas são os períodos literários. Esses períodos são
apresentados linearmente, em ordem cronológica, do mais distante ao mais recente. É ao
redor dos períodos literários que os demais elementos das narrativas historiográficas são
organizados: os estilos da época e os recursos expressivos de cada estilo (FARACO;
MOURA, 1998), as relações entre a literatura e outras manifestações culturais (CEREJA;
MAGALHÃES, 1998), os principais autores e obras de cada período e o contexto em que
essas obras surgiram (NICOLA, 1999).
Como a abordagem da narrativa está centrada nos períodos literários, as obras e os
autores são sempre localizados temporalmente, mas nem sempre espacialmente. Nessas
obras, o contexto histórico, social, religioso, econômico, político e artístico estão ali
colocados como uma espécie de “pano de fundo”, um fundamento explicativo para o estilo
de cada um dos períodos literários. Por outro lado, as obras e os autores mencionados
também estão ali para ilustrar as características de cada período. É como se os períodos
literários fossem o herói de uma narrativa linear, com início, desenvolvimento e finalização,
como coloca Perkins (1999). Apenas Nicola (1999) foge a essa estrutura, e seu texto utiliza
uma abordagem quase hipertextual em uma tentativa de quebrar a linearidade da narrativa.
Outro aspecto relevante dessas narrativas é que elas se apresentam, via de regra,
como conclusivas e fechadas. O texto de Faraco e Moura (1999) se estrutura em sub-títulos,
cada um finalizado por uma conclusão. A narrativa de Gonzaga (2004) é permeado por
quadros-síntese, e cada capítulo é finalizado por um resumo. Há muitas verdades
assumidas ao longo de todos os textos, e em nenhum momento os autores se colocam
como tendo as assumido. Tudo ocorre como se essas fossem verdades universais, totais,
perenes. Os autores parecem não estar cientes – ou não querer que os leitores o estejam
de que todo dado apresentado em uma história da literatura é sempre uma interpretação de
recortes feitos na realidade, uma interpretação necessariamente realizada à luz de um
referencial teórico explícito ou implícito que apóiam as escolhas e os arranjos de cada
historiador (SCHMIDT, 1996).
Apenas dois livros – o de Cereja e Magalhães (1998) e o de Gonzaga (2004) –
apresentam indicações de leituras e pesquisas adicionais que os leitores podem realizar
para se aprofundar no período abordado, sugerindo, mesmo que indiretamente, que seus
textos não são completos em si mesmos, e que há abertura para investigações mais
profundas. Os demais procedem como se a leitura daquele material esgotasse o que pode
ser conhecido sobre a literatura daquele período.
A interpretação historiográfica dos textos, seja ela feita vertical ou horizontalmente,
pode nos levar a uma reflexão mais ampla a respeito da concepção de história portada por
cada um dos autores e das repercussões dessa concepção no tipo de narrativa da História
da Literatura Brasileira produzido, referendado pelas professoras e, por conseguinte,
percebido pelos alunos.
Os materiais estudados, e o modo seus conteúdos são organizados, refletem uma
concepção evolucionista da História da Literatura, em que cada momento da história parece
preparar o próximo e se esgotar assim que o anterior lhe abriu espaço. Os autores narram a
história como se o velho devesse deixar de existir para dar lugar ao novo, e como se
diferentes estilos e formas literárias não pudessem coexistir. A única exceção é Faraco e
Moura (1999), que apresentam no final de cada capítulo uma seção denominada
“Permanência”, que traz textos contemporâneos que usam o estilo da época estudada, o
que rompe com a periodização linear e estanque.
O tom dos textos é, acima de tudo, didático. A linguagem de cada um dos autores é
técnica, quase seca, uma linguagem que busca a neutralidade e a universalidade. Nenhum
dos autores assume posições ou emite juízos abertamente. Gonzaga (2004) faz uso de
adjetivos para qualificar certas obras e certos autores, mas não chega a assumir suas
opiniões como pessoais. Não há uma perspectiva subjetivista na construção dessas
narrativas.
Surpreendentemente, dada essa não-subjetividade, apenas dois dos autores, Nicola
(1999) e Gonzaga (2004), permeiam seu texto com referências a outros autores e teóricos
da Literatura Brasileira. Os demais narram a história como se fossem seus autores.
A literatura, nessas obras, é abordada como uma disciplina – com um conjunto de
conteúdos, uma linguagem e uma metodologia próprios – que deve ser dominada pelos
alunos como um campo de conhecimentos de uma área científica. A literatura é algo que se
aprende e ensina. Acima de tudo, a literatura é passível de avaliação e de classificação.
Minha trajetória até a sala de aula, no papel de professora de literatura começou pela
paixão pelos textos. E textos de qualquer tipo, de contos de fada a enciclopédias, de
fotonovelas a compêndios de física. É como leitora apaixonada, e educadora que se tornou
professora de Literatura que me questiono: É mesmo necessário contar essa História da
Literatura para nossos estudantes? Ou é possível pensarmos o ensino de literatura no
ensino médio de uma maneira alternativa? Será que o ensino da literatura apoiado em
manuais e cursos de Literatura como os estudados neste trabalho forma os leitores
previstos no Parâmetros Curriculares Nacionais? Ou devemos com urgência iniciar um
trabalho de desconstrução e reconstrução da metodologia do ensino da literatura? Como um
ensino não-tradicional de literatura poderia se estruturar, e que tipos de materiais poderiam
ser desenvolvidos para ele?
O presente trabalho descreve os resultados da primeira etapa de uma pesquisa que
deverá se tornar uma investigação mais ampla a respeito das práticas de ensino da
literatura nas instituições de ensino médio, seguida de uma proposta alternativa tanto para o
ensino de literatura quanto para a formação de professores para essa prática. Uma
investigação deste tipo – a construção de uma metodologia de ensino da literatura com base
nas nova teorias da historiografia – pode tornar possível conhecer os resultados dessa
prática não-tradicional e compará-los com os resultados das práticas tradicionais, tanto na
formação de leitores quanto no sucesso dos estudantes nos exames de literatura nos
concursos vestibulares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: São Paulo:
Atual, 1998.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Literatura brasileira. 16. ed. São Paulo,
Ática, 1999.
NICOLA, José de. Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 15. ed. São Paulo,
Scipione, 1999.