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© COSAC NAIFY, 200: @ LES EDITIONS DE Coordenagao editorial FLORENCIA FERRARI Projeto grafico RAUL LOUREIRO Ilustragdo da capa PAULO MONTEIRO Revisdo técnica FLORENCIA FERRAI Revisao MARIA BACELLAR 2 reimoressio, 2008 Dados Internacionals (Camara Brasileira do INUIT, 1974 Catalogagao na Publicagdo (CIP) Livro, SP, Brasi antropologia polit Titulo original: La recherches fanthi ‘Tradugdo: Theo Sar Profdclo: Tania St ‘Sao Paulo: Cosac 280 pp. ISBN 978-85-7503-1 1. Antropotosia polit fe governo I. Lima, Tan 08-0705 1971 Estado ~ pesquisas de : Plerre Clastres 9clété contre Etat lage politique ago 2 Lima e Marcio Goldman laity, 2003 2-6 - 2, Indios da América do Sul ~ Politica ja Stolze II. Goldman, Marcio III. Titulo c00-306.2 clair Pree 934 A socfedade contra’ | | Indices para catalogo: | Tanvopstosa at pear Wale Pua evel ari, vrcencnalycom Atendimento a0 profes istematico a 306.2 fo 70, 2 andar SP 4 sor (55 111 3218 1473 Fonte FOURNIER Fapel POLEN SOFT 80 g/m* Impressio RR DON! |ELLEY Tiragem 2.000 Prefacio Por ocasigo de um repente evento destinado a debater o encontro, ou “malencontro”, entre guropeus e amerindios, Ailton Krenak dizia que: Pierre Clastres, depois de conviver um pouco com os nossos parentes Nhandevé e M'bid, concluix gue somos sociedades que naturalmente nos organizamos de uyia maneira contra 9 Estados no tera nenhurc ideo ogia nisso, somos contra naturalmente, assim como a dgua do rio faz 0 sex caminks, nds naturalmente fazemos um caminho gue néo afirma essas instituigdes como findamenzais para a nossa saiide, educagii e felicidade.! As palavras de Krenalt nfo devem ser mal interpretadas: “somos contra naturalmente” no significa que a oposigao ao Estado dependa de alguma natureza, mas sim que|ela se d& com naturalidade, pois depende de uma certa forma de oxgenizaco, on um modo de ser da sociedade indigena, e passa por um desejo cpletivo, E 0 fato de a filosofia politica das socie- dades indigenas apregentar essa dimensZo de intencionalidade, ou de agéncia, nfo significa ue ela possa ser reduzida a algum tipo de ideolo- gia, que, como defini Clastres, é 0 discurso com o qual a sociedade de Estado mascara sus prépsia divisto interna, -al de A sociedade contra o Es- Nao é de surpreender que 2 idéia cent tado tenha sido incorpprada pelo discurso politico de Ailton Krenak. Em 1, Desde os anos 80 Ailton|Krenak se destaca como um dos principais articuladores de ‘um importante movimentd politico indigena de alcance nacional. O povo Krenak vi- ve atualmente em uma pequena terra indigena no médio rio Doce, Minas Gerais. Cf. Ailton Krenak, “O etemnd retorno do encontro”, in Adauto Novaes (org,), 4 ousra margem do Ocidente. Sio Paulo: uiNc-Funarte/ Companhia das Letras, 1999, Pp. 23-31- parte porque 0 proprio Clastres também se inspiron no pensamento das sociedades indigenas, mas também porque a forga de sua obra —o ar de liberdade que nela se respira, e, mais ainda, a atiuude ao mesmo tempo politica epistemolégica que exprime — vem produzindo afecgdes (na acepgio filoséfi ch do termo) em muitos leitores jé hé quase trinta anos. A presente reedigi, com tradugio revista, contribuiré sem déwida para 2 ampliagéo desses efeitos, sobretudo porque acrescida da tradugdo inédita de uma rica entrevista com 0 autor. Esta , com efeito, uma obra de antropologia quase finica em sua capacidade de interessar a todo mundo, desde pessoas ilusires da Filosofia edo movimento politico indigena, como Gilles Deleuze ou Ailton Krenak, até sucessives geragbes de estudantes que buscam aquele pensamento novo que a antropolo gena. Bqueag sociedades indi por si mesma int Nao quer sa promete a partir de um didlogo com o pensamento indi- sto examinada neste livro, a da constituigao politica das nas (como o proprio autor observa nas paginas finais) € leressante e ndo esté reservada aos especialistas. mos com isso sugerir, é claro, a existéncia de qualquer unanimidade em torno da obra de Clastres. Dizemos simplesmente que seu livro tem deriamos deixat espirito de épo destacados por eusentes de sex outros a irritag him admirdvel poder de produzir afecgBes, ¢ no po- delembrar que a “trajet6ria solitiria”, a “indiferenga 20 12” eo “desdém pelos importantes e tagarelas”* — tragos LLefort para caracterizar 0 autor —, no estando de todo estilo, despertam em alguns leitores o entusiasmo, ¢ em io. “Articuladh com a antropologia das sociedades amazénicas, com 2 antropologia pt pertence, contd itica e com a filosofia politica, a obra de Clastres nao do, a nenhum desses dominios enquanto especialidades. Ciéncia ndmade, como ditiam talvez Deleuze e Guattari,* ela parece, 2. CE, Claude Lefort, “L’Ocuvre de Clastres”, in M, Abensour (org,), L'Esprit des lis sauvages — Pierre Clastres ou une nouvelle anthropologie politique (Paris: Seuil, 1987), PP- 183-2 3. Entendida como uma forma de tratar a ciéncia, a ciéncia némade se opde & cién- cia répia. Enquasto esta se caracteriza por teoremas e coastantes, aquela depende > 8 Preficio antes, ocupar espaco intersticial de um triedro imagindrio formado por 0, capturar por nenhum deles. esses trés planos, sem dejxar-se, no ent Falar, assim, de uma insetodo da obra de Clastres em qualquer dessas sub- do, Preferimos imaginar que essa obra se apre- senta antes de tudo comojuma intervengdo, entendida tanto no sentido psi- canalitico do termo, quanto naquele, nietescheano, da intempestividade, isto 6, da irrupgo do acontecimento em uma cena aparentemente bem ordenada que ele vem perturbar. Comecemos pelo miais simples. 4 sociedade contra o Estado, editado originalmente em 1974, [retine dez artigos publicados a partir de 1962 (quando Clastres tinha 2B anos), acrescidos de um capitulo final escrito especialmente para o livro e que a ele dé seu tftulo. Sublinhemos também que sua espinha dorsal provém do deslocamento de trés desses artigos de sua posigio relativa na série cronolégica. Com isso, “Copérnico e os sel- deuma critica & obra do filéso- m longo ensaig escrito a pai m Lapierre publicado originalmente em 1969, faz vagens”, fo politico Jean- as vezes de introdug&o dd volume. E anuncia desde o inicio sue tese cen- tral: a auséncia do Estado nas chamadias sociedades primitivas nao deriva, como se costuma imaginar, de seu baixo nivel de desenvolvimento ou de sua suposta incompletude, mas de uma atitude ativa de recusa do Estado, enquanto poder coercitivo separado da sociedade. “Contra o Estado”, portanto, mais que “sem Estado”. O livro adquire ent4o uma organizagdo temética relativamente ex- plicita: quatro capitulos spbre organizacdo social, trés sobre linguagem, dois de Filosofia politica €, finalmente, uma conclusio. Esquema muito es anuncia a que se segue, aproximativo, é claro, jé que cada uma das p: ena medida em que quasq todos os capitulos abordam mais de um desses temas. Em especiel, “Troce ¢ poder: filosofia da chefia indigena” [cap. 2], P eizo texto publicado por Clastres, jé anunciava o tema a ser por ele > de problemas de fluxos e suas varlagdes contingentes, manifestando um esforgo de tornar o pensamento independente do modelo do Estado. Cf. Gilles Deleuze ¢ Félix Guattari, Mil Platés (Sap Paulo: Editora 34, [1980] 1997). perseguido por muito tempo: em que condigdes a vida social indigena pode desenrolar-se fora das relagées de poder coercitivo? O autor analisa aqui a chefia, ingtituicao politica dos indios da América do Sul tropical, abordando-a sol} 0 aspecto do paradoxo que apresenta ao Ocidente: 0 fato de que o chefe indigena é a um s6 tempo chefe e homem destituido de poder de coergao. As organizagdes cronolégica e tematica é preciso acrescentar um elemento ainda tais importante: entre o segundo e terceiro capitulos, de alam-se os periodos de tra- um lado, e 0 resthnte da obra, de outro, in balho de campo do autor no Paraguai. Primeiro, junto aos Guayaki, entre 1963 € 1964; em seguida, pesquisas mais custas, em 1965 € 1966, junto aos Guarani, e por fim entre os Chulupi, no Chaco paraguaio, em 1966 1968. Essa experféncia de campo esté na base nfo apenas de quatro dos capitulos deste volume como de outros artigos e das trés obras de Clastres publicadas em 19172, 1974 € 1992.4 Se desde 0 dois artigos escritos antes da experiéncia de campo a direcdo do entdo|jovem filésofo francés j4 parece tracada — a opgo pela antropologia da sociedades indigenas sul-americanas —, 0 projeto do autor nao era, pof outro lado, tornar-se apenas americanista. Jé o subtitu- lo de A sociedade bontra o Estado apzesenta a obra como antropologia poli- tica,S e “Copérnigo e os selvagens”, sitzado como introdugdo, ambiciona operar justamente a revolugo que deveria conduzir 2 “uma antropologia politica geral”, a lima perspectiva capaz de produair um discurso adequa- do ao ser das socledades indigenas. A antropologia politica, como se sabe, tem fama de ser uma espe- Pp f > a 4, Clastres realizoit também uma pesquisa junto aos Yanomami, na Venezuela, entre 1970 € 1971, 1, uma répida visita aos Guarani, em Sao Paulo, em 1974. (Sobre a carreira e as pesquisas de Clastres, cf. Abensour, op. cit.) 5: “Pesquisas de antropologia politica” servird também como titulo da coletinea péstuma dos escritos de Clastres publicada em 1980 (Argueologia da violéncia, no Brasil). Da mesma forma, o subtitulo do volume reunindo 0s ensaios apresentados em 1982 num coléquio consagrado A sua obra sera “Pierre Clastres ou uma nova antropologia politida”. 10 Preféicio f i f f AER ERR Pe SEI AACR TT EN cializagdo tardia da disciplina, mais precisamente datavel do inicio da década de 1940 com os tr dades africanas, principal sbalhos de antropélogos britanicos sobre socie~ Imente equelas — como os Nuer, estudados por Evans-Pritchard, e os Tallensi, por Meyer Fortes — dotadas de uma estru- ura social segmentar composta por grupos de descendéncia ou linhagens. Mas a idéia de que a politica é um objeto antropolégico tardio é no mini mo duvidosa e nfo deveria distorcer nossa compreensio do nascimento € desenvolvimento da disci da antropologia politica ambiclo parece realmente suas questbes: 1] Que é 0 poder politico? isto 2] Como e por qu poder politico coercitivo! O fato é que a que Jina. Nem tampouco daquilo que seria a tarefa peral proposta por Clastres, antropologia cuja ample quando observamos a magnitude de que éa sociedade? se passa do poder politico ndo-coercitive 20 Isto é: 0 que 6a hist6ria? 10 do poder encontra-se no cerne da propria constituigdo do pensamento antropolégico, exprimindo-se antes de tudo por meio de um grande politicas e mais evoluidas visor que separa as sociedades proptiamente — baseades na associago contratual entre indi- -viduos livres vivendo sobre um territ6rio e consentindo em transferir sua soberania, sob a forma de representagéo, para um poder central, o Estado — daquelas sociedades, an a partir de sears previam de sangue e que, na aus autoridade de forma dir antropologia, a oposigo srazus € © contrato coinci cades sem Estado e socies Encontramo-nos aq] lado, extrair 0 poder politi tar do poder politico a ani mento do politico (no se que a antropologia se ocuy relagdes de parentesco. E aicas, selvagens ou primitivas, que se articulam lente attibuidos a grupos definidos por relagdes incia de todo poder centralizado, exercem sua 12, Situada na raiz da propria constituigo da lproposta por Henry Maine desde 1861 entre 0 je em todos os pontos com aquela entre socie- lades com Estado. ante de um duplo ato que pretendeu, 10 de uma parte das sociedades, e, de outro, afas- yropologia entZo nascente. E a partir desse isola- tido de delimitago, afastamento e obliteragio) ard das sociedades sem Estado, articuladas por do parentesco, através das mediagdes sucessivas n : E ET da exogamia e do totemismo, que ela constituiré seu segundo grande campo de investigacdo, a religido. E é ainda do parentesco, com a mediaclo da exogamia, da troca e da reciprocidade, que a economia finalmente viré se decantar como mais um objeto passivel de investigagio antropolégica. Finalmente, co: ‘ n as linhagens segmentares —na medida em que estas pude- ram ser tratadag como uma forma de conjugar os lagos de sangue do paren- tesco e os vinculos territoriais que caracterizam o Estado —a antropologia estava pronta pera incluir a politica como mais um dominio de andlise. Realizada|pelos afticanistas britanicos nas décadas de 30 ¢ 40, incluso consistiu basicamente na subs ssa tituigto da abordagem diacrdnica e institucional adptada pelos evolucionistas por uma perspectiva sincrénica e sistmica. Isso significa, por um lado, que @ oposig&o entre sociedades com e sem Estatlo permanece no niicleo da reflexo, exprimindo no mais estagios, mas thes sociais; por outro lado, que a auséncia de um érgio especifico de e cicio do poder politico indica que este se encontra mais ou menos diluido em um sistema social dado, o sistema segmentar das li- nhagens. As um terceiro que tipo de organi , 20s dois modelos isolados por Maine, acrescentava-se ie, embora desprovido de aparelho estatal, contaria com um izacHo especifica capaz de exercer as mesmas fungbes do Estado, ou seja,|a manuteng&o da ordem e do equilibrio sociais. Um mo- delo juridico das relagdes de poder continua, portanto, a ser central. No entantp, por mais colado ao evolucionismo que possa est ° modelo sistémigo do estrutural-funcionalismo britanico aceitaré a exis- téncia de sociedades politicas que desconhecem o Estado, visto que o poli- tico, enquanto tura. Mas, mes que as linhagens possuem fungées pol! ali , descentrarg a sociedade em relagdo ao contrato e 20 i fingSo, pode estar distribuido por uma determinada estru- njo descentrando a politica em relago ao Estado (uma vez cas) — como o evolucionismo, viduo —, esse modelo a recentrou na idéia de um sistema social relativamente auténomo (como o evolucipnismo recentrara a politica no Estado). 6. Sobre todos esses pontos ef. Adi Transformations of| an Illusion (Londzes/ Nova Yor 12 Prefiicio Kuper, The Invention of Primitive Society: coutledge, 1988). No final dos anos 5 por sua vez, objeto de in aparente énfase no confit sistemas sociais, substitu} eno inicio dos 60, esse modelo sistémico seré, meras criticas, e, a partir de Gluckman (com sua to) ¢ Leach (com a afirmago da irrealidade dos ‘dos pelas interagbes entre individuos), a antro- pologia politica se afastard cada vez. mais de uma defini¢do substantivista de seu objeto (Estado, linhagens, qualquer érgo ou sistema onde o poder i qualg possa estar ancorado) pa 0 poder, como um aspect um descentramento, port recentramento também ( Sem falar no abort} dade, nem no fato de quy tudo, a principal di a buscar uma definigdo formalista: a politica, ou lo ou dimensio de qualquer relac&o social. Mais pnto (do poder em relago ao Estado), e mais um nos individuos e suas interagBes e transages). cido jogo da oposig&o entre individuo e socie~ oraa politica é muito pouee coisa, ora é quase culdade que emerge desse brevissimo exame do campo da antropologia politica é a seguinte. Quando se trata de socie~ dadies com Estado, a poli intervergio humana, o ica é definida como o dominio por exceléncia da como sendo essa propria intervenco; mas, quando se trata de sociedades sem Estado, é definida ora como uma espé- cie de espaco neutro go agéncia humana, ora cow puramente individuais, s sio propriamente politi Sugeriamos acima politica visada por Clast nde antropologia. Ent divisor que funda a disci Mais precisamente, Clas sempre foi, dominagio pt 7. Por ocasifio de uma home “paradoxo da antropclogia” ernado por leis ¢ principios situados além da ho o nome conferido a intengdes e intervengSes sm que se teconhega a existéncia de uma dimen- da vida social. |que a revolugio copernicana da antropologia es exprimia um desejo de recriaglo da propria 5 por isso um desejo de tomar posse do grande lina para fazé-lo funcionar de um outro modo. es reconheceu nesse grande divisor aquilo que lética, introduzindo assim no coragfo da antro- 7 pologia a questo do poder. agem a Claude Lévi-Strauss, Clastres reflete sobre 0 saber originado do grande divisor e meio possivel de superé-lo. A condigao de una tal superagao estaria na conversio de “um discurso sobre as civilizagées primiti fas” em “um diélogo com elas”. Cf. Clastres, 1968. 3 “Se teimnenaaet essere aes ee Foi desse modo que Clastres inventou um uso afirmativo da nogdo de sociedade primitiva, liberando-a de toda escala de complexidade e confe- rindo-lhe uma mos, as sociedddes primitivas foram caracterizadas em te Estado; péde~ tio ou retar gualidade politica por assim dizer absoluta. Como observa- nos de falta de ioné- oxa tomar essa falza como expresso do caréter en atdrio de seu desenvolvimento, ora reencontrar, sob a falta, as fungbes do Estado ausente sendo efetuadas pelo conjunto da estrutura social. A questi osta por Clastres a esse discurso é a seguinte: até que Bs Bi T ponto restringir a reflexio & problemética da manutengo da ordem, da coesio e dos mecanismos de controle nfo manifestaria a adogo do ponto de vista do Estado pela prépria antropologia? Esta nfo estaria assim con- denada a encar: exista como m¢ Foi assim como necessidade antecipadamente dada o que talvez 56 \do de operacio do pz6prio Estado? também que, recusando 0 modelo juridico da politica e do Estado, Clastzes focalizou @ chefia, buscando, a um s6 tempo, problema- tizar o modelo da sociedade primitiva, e apreender a flosofia politica partic exprime, isto é, dade primitiva. \Contestando as concluses de Lévi-Strauss 6 la zeciprocidade em sua capacidade de dar conta por s z que ela 0 tratamento especifico da questo do poder pela socie- sua breve reflexio sobre a chefia Nambikwara, Clastres demonstrou que a relagio da sociedade indigena com a instituigo politica nfo poderia ser reduzida a reciprocidade, Bem ao contrério, essa institui¢do destaca-se muito mais como um nédulo que desvia mulheres, bens e palavras de sue fangdo de comunicaglo uma vez que a via que cada um desses termos percorre, entre o chefe e grupo, é unidirecionada. Nessa ditego, torna-se necessério pensar o proprio Estado a partir de uma perspectiva que seja a de uma antropologia politica geral, isto & capaz de levar itiva. conta o ponto de vista politico da sociedade p' E é dessa perspettiva que se torna posstvel criar um vineulo légico novo entre a sociedade primitiva e a so rada do poder, dade de Estado. Se a chefia esté sepa- 2 sociedade primitiva é 0 verdadeiro iugar do poder, 0 Estado se apresenta como poder separado do corpo social, como divisao entre os que mandam e os que obedec 14 Prefécio Em outras pelavras, 0 Estado 62 expresso de uma constituigdo politi- ca mais fundamental, a divisto ou a separagio do poder, ao mesmo tempo em que a sociedade primiti 1a se define como sociedade indivisa —indivisto que é uma prética politica sta, simultaneamente um modo de funcionamen- to da maquina social e desejo coletivo ou intencionalidade sociolégica® Pensamos, pois, que b intervencdo fundamental de Clastres reside justamente na tentativa de centrar a antropologia politica no poder, ¢ articulé-la ao por meio reflexio orientada pelas observéveis no conjunto 4 ie uma teoria dos tipos sociais mas de uma elagdes diferenciais de constituiggo politica s sociedades humanas. £ com essa orientagdo que, em anélises sobre temas etnogréficos Giversos, como as falas d chefe on 08 situais de iniciago, Clastres, em lugar do velho problema da representagio do poder, focaliza aquele de seu exercicio. E se o podet, em diversas passagens deste livro, define-se como forga que cria e sust menos de forgas centrifug, Guay: esto irredutiveis a todo m a guerra, a fala dl .nta um espaco coletivo, ele nfo se acompanha , ou contra-poderes — 0 cento dos cagadores = profetas —, que criam um espaco de errancia delo juridico. Como jé observara Michel Fou- cault A sociedade contra o Estado oferece nada menos que uma nova con- cepgio do poder como te! primado da regra e da proi Mesmo tendo optadi lidade & antropologia po! intervengio do aut 8. Poder-se-ia indagar por quy sociedades como um elemen nidade, & que um tal relativis gia pela questio do Estado assungao do ponto de vista di poder coe baseado em normas e sangGe: 9. Michel Foucault, “Les Mail (@aris: Gallimard, 1994), pp. oe o tratam ologia, pronta a emancipar a antropologia do bigdo. pot explicitar alguns pontos que dio origina geral de Pierre Clastres, pensamos certamente sepercutiz menos ali do que na antropologia Clastres no encara a auséncia de Estado em certas, jo a mais da diversidade cultural inerente & huma- hno manifesta muito mais a indiferenga da antropolo- fades primitivas, assim como @ lo que a das socie Estado. Ou seja, a pressuposigdo de que s6 existe to do problema por meio de um modelo juridico les du pouvoir” [1981], in Dits et écrits 17, 1980-1988 82-201, b3] ALL EES TES das sociedades i dessa producdo| digenas da América do Sul tropical. Abordar as relagdes antropoldgica nas duas tiltimas décadas com a obra de Clastres, nZo é dontudo tarefa simples, e seria demasiadamente ambicioso tentar fazé-lo a sociedades é sen} em compreensii i. E que 0 corpus etnogréfico hoje disponivel sobre essas ivelmente maior (nfo s6 em extensio mas principalmente ) do que o existente na época de Clastres. Para disso ofe- recer uma imagem sucinta, eis o que Lévi-Strauss declarava em 19932 Hai quinze pesquisado manifesta répida ben mente em sobre as so t6ria pré- ep. tages pode princfpios Na década de 6 as sociedades arp ue inte anos, uma explosto sustentada pelo ardor e o zelo dos ces agita os estudos amazbnices. Como toda explosto, ela se lor wna ruptura com ume estado anverior e por uma expanstio além de seu ponto de origem. Assim foram postas sucessiva- tausa bom niimero de idéias consideradas como adguiridas iedades amarinicas ¢ outras relativas @ pré-historia, a his colombiana das Américas. Pressentimos que essas agi do atingir 2 prépria anzropologia, ¢ abalar alguns de seus parecem mais bem estabelecidos." |, quando Clastres comesou a publicar, a literatura sobre azbnicas passava a ser dorninada pela ecologia cultural criada por Julian Steward, editor do monumental Handbook of South Americar India a oferecer um p| Sul. O problema de uma das nog De acordo com! préticas de subsi essas sociedades biente natural ho} mente a formes sociedades e, dai |, em sete volumes, publicado entre 1946 € 1950, dedicado pnorama geral das sociedades indigenas da América do é que anova proposta de Steward continuava a depender ies mais pobres da doutrina evolucionista, a de edapearao. me téncia (egriculmira idnerante, caga e coleta) adotadas por o perfil so. 2 da Amaz6nia por cle esbogado, as lseriam, por um lado, uma resposta adaptative a um am- til e pobre em recursos ¢, por outro, dasiam origem unica Jais simples — daf a fragmentago que se observa nessas também, suas relagbes de hostilidade recfproca. xo. Claude Lévi-Strauss, “Un Autre regard”. L’Homme, 126-128, 1993, pp. 7-10. 136 Preftcio k Fiel ao pr sociopolitica das sociedades ix |, de 1963, uma critica pioneira 2o retrato sociolégico exogamia” cap. 3] desenhado por Steward. no corresponde a imagi guerreira, pois a dispersa noms oculta um sistema| comunidades, e se alime: como um “meio da aliang argumentagéo do autor, teoria dos sistemas de | equivocos emogréficos, presente uma regra mecés mecdnica de residéncia; mento dos primos eruzad Esse estudo repres timaveis, pois, verdade nio invalidam as valiosas denadas ali estabelecidas| gica desenvolvida até hi sociedade indigena & es filosofia social, a revela gestio da alteridade, que| anélises emogréficas aed cago das identidades ec Clastres sustenta ta uma dimensio diacrénic estrutura, Isso, nfo no mas porque, ali, a estrutd por exemplo, 3s sociedad ca dessas sociedades apre insubmissas & totelizagio sistema, desigualmente re cipio pol ico-epistemolégico da auto-determinagao adigenas, Clastres faz, em “Independéncia rocura demonstrar que a sociologia indigena m do atomismo sociolégico e da hostilidade territorial de comunidades politicamente autd- social mais amplo que integra, pelo menos, trés ta de relagdes de casamento intercomunitérias ls politica” (grifo do autor). £ verdadeiro que a plém de exprimir ume tentativa de aclimatar a zbnia, esté baseada em certos inhagem & A: 1omo as suposiges de que a exogamia local re- ica e seja acompanhada de uma regra também 1a de que haveria uma coincidéncia entre casa~ los ¢ exogamia local. ata, contudo, uma contribuicdo das mais ines- ja dita, as imprecisGes etnograficas de Clastres pistas que ele aponta. Com efeito, certas coor- tém orientado boa parte da pesquisa antropolé- je na regio: primeiro, a recusa em reduzir a Ja da comunidade local e, depois, no que toca & fo capital da presenca de formas complexas de mais tarde se converteram em objeto central de nadas acerca dos sistemas indigenas de codifi- ras ¢ das relagdes de alteridade. Inbéin que as sociedades da Floresta apresentam cludivel quando se prevende compreender sua Intido Sbvio de que toda sociedade tem hist6ria, ra nfo 6 apreensivel na sincronia (como sucede, Js j@ e bororo do Brasil Central). O que a dindmi- Senta de mais singular é que so em certo sentido JnerOnica, apresentando antes uma “tendéncia 20 lizada em extensio profundidade” conforme se wy eR SEEPS YM OEE ID gases passa de uma sociedade a outra e de um momento a outro de sua vida, Sis tema, enfim, np qual as forges centripetas ¢ centrifuges que fundam sua am sua consisténcia interna variam de acordo com “as existéncia e determ cicunstncias ¢oncreias — ecoldgicas, demogréfices, religiosas”. De zesto, como Clastres também cuidou de ressaltar, as forgas centrifuges que fazem obstrugio & consolidacéo do sistema operam igualmente no interior de cada comunidade —b que remete a um aspecto crucial de seu pensamento: a dis- tingdo entre forgas centripetas e centrffugas no é absoluta mas relative & dimensio do speius que esti sendo considerada. Sendo assim, a propria chefia, que representa as forgas de agregasio que fundam cada comu- nidade, pode representar forgas de dispersio no interior do campo social mais abrangente formado pelas relagbes intercomunitérias, Se escolliemos nos deter aqui em “Independéncia e exogamia” é porque, apeser da fragilidade de sua base etmogréfica, af se antecipam algumas das hipéteses mais fecundas do autor, as quais tém orientado, diceta ou indifetamente, a pesquisa sobre as sociedades amazinicas das ltimas décadas. Vale lembrat que as questes examinadas neste artigo de 1963 so retomadas e completadas em “Arqueologia da violéncia”, de ro77 mesmo ano em que, com apenas 43 anos de idade, Clastres morreu em um acidente automobilistico. Desde estdo a antropologia das sociedades da América do Sul tropi- cal se alterou fadicalmente. E, se é verdadeiro que quase todos os espe- cialistes sfio hdje sensiveis a pobreza relativa da base etnogréfica wtilizada a / por Clastres ha sustentaglo de muites de suas hipéteses, dificilmente deixatia de saltar 20s olhos daquele que o relesse a profundidade e fecun- didade de suad intuigdes, de modo que, com acerto, tez-se-ia a impressio de que sua obfa defini quase todo o programa de investigagdo america nista desenvolyido nas décades de 80 90."! © postulado segundo o qual as a1. Cf. Marco Anténio Gongalves, “A Woman Between Two Man and a Man : The Production of Jealousy end the Predation of Sociality Joanna O. & Alan P. in Native Between Two Women: amongst the Paresi Indians of Mato Grosso (Brazil)”, (eds.). The Anthropology of Love and Anger: The Aesthetics of Convivis Amazonia (Lontizes/Nova York: Routledge, 2000), pp. 235-5- 18 Prefécio sociedades indigenas det} proj jeto social encontra: im o controle de seu ambiente natural e de seu se no fundamento de numerosas pesquisas recentes que exploram, dé um ponto de vista etografico, as relagdes com 2 natureza e as filosofias ociais indigenas. Se nos fosse, pois, permitido explorar a imagem utilizada por Lévi-Strauss, dirfamos que a tnica obra capaz de representar o: amazbnicos é A sociedade! abrir uma excego em no} emr 0 corido, er 1964, transfo: mas ocidentel. Preparacas por| anunciavam que a Rez A evocagao do nom -elagSo a possiveis ant 0 da antropologia co: comegos da explosio que agita os estudos contra o Estado. je de Lévi-Strauss nos obriga, para concluir, 2 sa recusa em ituar o pensamento de Clastres lecessores e sucessores. A publicagao de O crue mou no apenas o cempo da anélise dos mitos no um todo e, talvez, o do proprio pensamento O pensamento selvagem, de 1962, a8 Mizolégicas jo nflo representa a obra suprema de uma humanidade finalmente realizada mas, no maximo, o produto de uma cul- tara, particular que, recu do, absorvendo ¢ eliminando outras formas de pensar, afirmava e ostentdva sua suposta superioridade. Contra tamanha presungdo, Lévi-Strauss afirmou a existéncia do pensamento selvagem, estrutura universal subjal aquela propria do Ociden: de Li vinculos que desde a cida exguew a chamada civiliza pensar nfo é uma operaga uma © empreendimento évi-Strauss. Focaliza indissoci al e constitut ente a qualquer forma de pensar, inclusive fe que denominamos Razo. le Clasires apresenta certa similaridade com o Estado, nfo a Razfio — mas conhecemos os le grega ligam os dois pilares sobre os quais se Zo ocidental. E a recusa das outras formas de meramente intelectual; ela se acompanha de ca propria Razio: Descobrimos no prbprig espirito de nossa civilizagio, e coextensiva d sua histéria, a-viginkanga fa violéncia e da Razéo, com a segunda néio che- gando a estabelecer sets reino a no ser azravés da primeira. A Razéo ocidental remete & violéncia como d sua condigGo e ao seu meio, pois sudo aguilo que néo é le prépria encontra-se em “estado de pecado” e cai entéto no campo intuporedvel do desatino. E é segundo essa dupla 19 a SN ete A Sheds nal face do Ocidente, sua face compleca, que deve se articular a questiio de sua relagaa com as culturas primitivas.!2 Essa fala tGo cortante faz-nos lembrar que a Pierre Clastres deve- mos a compreensio de que qualque: entropologia é politica, e que a criti- ca A universalidade do ponto de vista do Estado e da RazZo nfo conduz necessariamente a um naturalismo. Afirmar que es sociedades indigenas da América do Sul tropical sto sociedades contra o Estado nfo é pecar por romantismg, voluntarismo, metafisica ou idealismo filos6ficos. Pode ser, bem pelo cgntrério, construir uma antropologia politica especifica. Tania Stole Lima e Marcio Goldman 32, Clastres, 1968, p. 34. 20 Prefiicio CO E OS |SELVAGENS Capitulo : COPERNI Copérnico e os selvagens* On disois & Socrates que quelgu ‘un ne s'estoit aucunement amendé en son voyage: Je croy bien, dit-il, ils estoit emporeé avecques soy. Montaigne mente a propésito do poder?/Um fragmento de Para ali do bere do inal [1886] comega assim: “Se 6 verdade que em todas as épocas, desde que os homens existem, houve cambém is, comunidades, tribos, nacdes, do grupos humanos (associagbes sexu: igrejes, estados) e seraprelum grande niimero de homens obede: a um pequeno niimero de|chefes; se, conseqiientemente, a obediéncia €aquilo que foi por mais tempo melhor exercido e cultivado entre os homens, temos o direito de presumir que em regra geral cada um de 16s possui em si mesmo a necessidade inata de obedecer, como uma espécie de consciéneia formal que ordena: “Farés isso sem discutir; privar-te-ds daquilo sem reclamar; em suma, é um ‘tu fards’”. Pouco preocupado, como sempre, com o verdadeiro e com o falso em seus sarcasmos, Nietzsche, entretanto, isola 4 sua maneira e circunscreve exatamente um campo de reflex4o que, outrora confiado apenas ao pensamento especulativo, se encontra hd cerca de duas décadas sub- metido aos esforgos de uma pesquisa de vocago propriamente cien- tifica. Queremos aludir aovéspaco do oliticoyem cuio cet 2 p89 ho paper cu coloca a sua questo: temas novos, & 0 @ poder aiitropologia social, de éta~ dos cada vez mais numerosos. Que a emologia s6 se tenha inte- ressado tardiamente pela dimensio politica das sociedades arcaicas — entretanto 0 seu objeto preferencial — eis o que, alids, nfio é estranho 4 propria problemética do| poder, como tentaremos demonstrar: é * Inicialmente publicado em Crisigue, n. 270, nov. 1969. 23 de um modo esponténeo, inerente a nossa cultura e reender as relacdes politicas tal antes um ind ito tradicional, de a portanto mi como elas se tecem em outras culturas. Mas 0 atraso se recupera e as lacunas se preenchem; existe agora uma quantidade suficiente de textos e descrigdes para que se possa falar de uma antropologia politica, mensurar seus resultados e refletir sobre a natureza do poder, sobre suas origens, enfim, sobre as transformagdes que a his- t6ria lhe impde segundo os tipos de sociedade onde ele se exerce. Projeto ambicioso, mas tarefa necesséria realizada pela notavel obra de Jean-Willi [Ensaio sobre o fundamento do poder polftico].! Trata-se de u: mm Lapierte: Hssai sur le fondement du pouvoir politique esforgo muito digno de inteesse & medida que em primeiro luger encontra-se teunida e explorada uma massa de informag6es relativa no s6 4s sogiedades humanes, mas também as espécies animais so- ciais, e ainda porque o autor é um fildsofo cuja reflexio se exerce sobre os datos fornecidos pelas modernas disciplinas que so a “sociologia animal” e a etnologia. Estd em causa aqui a questo do poder politico e, muito legit. mamente( Lapier® se pergunta antes de tudo se esse fato hu responde a Lina necessidade vital, se ele se desenvolve a partir de um enraizamenta biolégico, se, em outros termos, o poder encontra o seu lugar de nascimento ea sua razo de ser na natureza e nfo na cultura. Ora, ao termho de uma discuss&o paciente ¢ erudita sobre os mais recentes traalhos de biologia animal, discussfo nada académica aliés, se bem|que se possa prever-lhe o resultado, a resposta é clara: os adquiridos sobre os fendmenos “O exame critico dos conhecim sociais entre i regulagzo so embrionéria,|de poder politico. ais e especialmente sobre o seu processo de auto- nos mostrou a austacia de qualquer forma, mesmo (p. 222), Tendo desbravado esse campo e assegurado que a pesquisa no precisard ésforcar-se por esse 1. Jean-William Lapierre, Zssai sur le fondement due pouvoir politique (Publications de la Faculté des Lettres d’ Aix-en-Provence, Editions Ophrys, 1968). 24 Copérmico ¢ 05 selvagens lado, o autor volta-se para as ciéncias da cultura e da histéria, a fim de interrogar — segao que, investigagiio— [por seu tamanho, é a mais importante da sua as formas ‘arcaicas’ do poder politico nas sociedades humanas”. As reflexdes que se seguem encontraram seu impulso mais particularmente n: ao poder entre os selva leitura dessas paginas consagradas, dir-se-4, fens. leque das sociedades consideradas é impressionante; sufi- cientemente aberto em ‘odo caso para tirar do leitor exigente qual- quer divida eventual quanto ao cardter exaustivo da amostragem, jé que a andlise se faz s Américas, na Oceania, pleta, pela sua variedade geogréfica e tipolégica, daquilo que o cer de diferencas em comparagfo mundo “pr com o horizonte nfo-ar poder politico em nossa seriedade que requer 0 E facil imaginar qu possuem em comum a si imitivo” poflia bre exemplos tomados na Africa, nas trés ibéria etc, Em suma, uma coleta quase com- caico, sobre o qual se desenha a figura do itura. Isso prova o alcance do debate ea xame de sua conduta. ¢ essas dezenas de sociedades “arcaicas” s6 amples determinagao de seu arcaismo, deter- minagiio negativa — corpo indica Lapierre — estabelecida pela au- séncia de escrita e pela arcaicas podem ento nenhuma se assemelha que tornaria desintere: introduzir um minimo mitir a-comparagao ent queLapierre, mais ou propostas pela antropo cinco grandes tipos “pa poder politico é mais de momia dita de subsisténcia. As sociedades diferir profundamente entre si. De fato, outra e estamos longe da triste repeticfo yantes todos os selvagens. Cumpre portanto le ordem nessa multiplicidade a fim de per- le as unidades que a compéem, e épor-isso menos aceitando as cléssicas{ classificagdes gia anglo-saxOnia para a Africa, percebe tindo das sociedades arcaicas nas quais 0 envolvido para chegar finalmente aquelas que quase ndo apresentam, ou mesmo no apresentam, poder pro- priamente politico” (p. tivas em uma tipologia b tidade” de poder politic 29). Ordenam-se entZo as culturas primi- seada em suma na maior ou menor “quan- que cada uma delas oferece & observacio, 25 ereareeseay quantidadelessa que pode tender a zero, “...certos agrupamentos humanos, em condigdes de vida determinadas que lhes permitiam subsistir emt pequenas ‘sociedades fechadas’, puderam prescindir de poder politico” (p. 525). Reflitamos sobre o proprio principio dessa classificaglo. Qual é © seu critério? Como se define aquilo que, presente em maior ou menor quantidade, permite a designagio de tal lugar a tal sociedade? Ou, em outfos termos, o que se entende, mesmo a titulo provisério, por poder pplitico? A questo é, vamos admiti-lo, de import&ncia, jé pSe separar sociedades sem poder e que, no intervalo que se sociedades dom poder, deveriam simultaneamente ter lugar a essén- cia e o funda nto do poder. Ora, seguindo as minuciosas andlises de Lapierre, nfo se tem a impressZo de assistir a uma ruptura, a uma descontinuidlade, a um salto radical que, arrancando os grupos hu- é manos de sua estagnacao pré-politica, os transformasse em sociedade civil, Pode-ge dizer ento que, entre as sociedades de sinal + e aque- las de sinall., a passagem é progressiva, continua e da ordem da quantidade?| Se assim é, a propria possibilidade de classificar socie- dades desaparece, pois entre os dois extremos — sociedades com Esta- do e sociedades sem poder — figurard a infinidade de graus inter- mediérios, fazendo, no maximo, de cada sociedade particular uma classe do sistema. & aliés ao que chegaria todo projeto taxonémico desse tipo, 8 medida que se aprimora o conhecimento das sociedades arcaicas e qhe se desvendam melhor as suas diferenges. Por con- seguinte, tanto num caso como no outro, na hipétese da desconti- nuidade entre nfio-poder e poder ow naquela da continuidade, parece clazo que nehhuma classificagSo das sociedades empfricas nos possa esclarecer sobre a natureza do poder politico ou sobre as circunstiin- cias do seu surgimento, e que o enigma persiste em seu mistério. “O podpr se realiza numa relagio social caracteristica: comando- obediéncia.” (p. 44) Daf resulta de saida que as sociedades onde nfo se observa essa|relagdo essencial so sociedades sem poder. Voltaremos a isso. O que convém ressaltar primeiramente é o tradicionalismo 26 Copérnico ¢ of selvagens eke icbitas dessa concepg#o que exptime com bastante fidelidade o espitito da pesquisa emolégica: a saber, « certeza jamais posta em diivida de que 0 poder politico se dé somente em uma relago que se resolve, defini- nma relagdo de coere&o. De sorte que sobre esse ponto, tivamente, entre Nietzsche, Max Weber (0 poder de Estado como monopélio do uso legitimo da violéncia) ou aetnologia contempor tesco € mais proximo do que parece e as linguagens pouco se difezem a partir de um mesmo fundo: a verdade e o ser do poder consi violéncia e nao se pode pensar no poder sem o seu predicado, a yio- Iéncia. Talvez seja efetivamente assim, caso em que a etnologia no é culpada de aceitar sem discussdo 0 que o Ocidente pensa desde sem- rar-se disso e verificar no inea} o paren- pre. Mas é necessario precisamente asse seu préprio terreno —o das sociedades arcaicas — se, quando nfo ha coerc&o oui violéncia, nfo se pode falar de poder. © que ocorre com 0g fndios da América? Sabe-se, por um lado, que com excegio das altas culturas do México, da América Central e dos Andes todas as sociedades indigenas sio arcaicas? elas ignoram a escrita e “subsistem” do ponto de vista econémico. Por outro lado, todas, ou quase todas, séo dirigidas por lideres, por chefes e, caracte ristica decisiva digna de chamar a atengfo, nenhum desses caciques possui “poder”. Encontraino-nos ent confrontados com um enor me conjunto de sociedades nas quais os detentores do que alhutes seg .0°** chamaria poder sdo de fato destitufdos de poder, onde o politico se de- °°‘ termina como campo fora de toda coergio e de toda vicléncia, fora aco hierérquica, onde, em uma palavra, no se dé iferenga do néricanas come uni de toda subord# uma relago de comando-obe ncia. Eis agrande di mundo indigena e 0 que permite faler das tribos a verso homoggneo, apesar tla extrema variedade de culturas que af se movimentam. Ent&o, conforme o critério adotado por Lapierre, 0 Novo Mundo estaria em sua quase totalidade no campo pré-politico, isto 6, no diltimo grupo de sua tipologia, aquele que retine as socie- dades onde “o poder politico tende a zero”. No entanto, nao € esse 0 caso, uma vez que exemplos americanos assinalam a classificacao em 27 i i i i 1 i questo, eR apa sstb & que hé sociedades indigenss incluidas em todos os tipos e que poucas dentre elas pertencem justamente 20 diltimo tipo, que deveri normalmente agrupé-les todas. Existe af um certo mal- entendid i se encontram em certas sociedades Jo, pois das duas umi chefias n&9-impotentes, isto 6, chefes que, 20 darem uma ordem, véem-na ser executada, ou isso no existe. A experiéncia direta do _ terreno, 2s|monografias dos pesquisedores eas mais entigas crbnicas do deixamh ddvida nenbuma sobre isso: s® existe alguma coisa com- ao funci yey’? & decidir que os ¢ qués for uma alial estranha aum indio, éaidéia de dar uma ordem ou deter ler, exceto em circunstincias muito especiais como em uma guerseira. Como & que, nesse C280, OS jroquesedfiguram. a lado das realezas africanas? Pode-se aproximar 0 ia rudi- euibo da Liga dos Jzoqueses de “um Estado a a5 jé claramente constituido”? Bois se “o politico concerne mento da sociedade global” (p- 41) ¢S© “ExerCet um poder ara todo urn agrapamento” (p. 44), eto no se pode dizer ngiienta sachems que compunkam 0 Grande Conselho iso assem um Estado: @ Liga ndo era uma sociedade global, mas ca politica de cinco sociedades plobais que C= as cinco trie bos iroquesas. A questo do poder entze os iroqueses deve ent&o se colocar, nfo no plano da Liga, mas no das tribos: e nesse nivel nfo ha déwida,| resto d si os sachems n&o ram seguramente mais poderosos que 0 = chefes indigenas. As tipologias pritfinicas das sociedades » do talven pertinentes para o continente neBFOs elas nfo “sevis de modelo para a América, pois— repitemo-lo— entre iroqués ¢0 lider do menor bando ndmaade, no existe dife- renga de natureza. Indiquemos todavia que, S& @ confederagio iro- quesa suscita, com razo, 0 interesse dos especialistas, houve alhures ensaio} os Cup As quest4o menos notaveis porque descontinuos, de ligas tribais entre uaranlwo. Brasile do Paragual, entre outros. observagdes precedentes sao uma tentativa de colocar em a forma tradicional da problematica do poder: nao n0s éevi- dente queccoergio? bordinacO constituem @ esséncia do poder 28 Copérnica ¢ 0s selvagens E f t politico semore «em quale lugar. De sorte que se abre uma alter- nativa: ou o conceito cl: ele pensa, e nesse caso é necessétio ¢ lugar onde se encontras dond-lo ou transformé- sobre a atitude mental qi da. E, em vista disso, o assinalar o caminho. Consideremos prineiramente os(eritézios do : ; de subsisténcia. Nada hd que dizer sobre o cia de escrita e economi primeizo, pois se trata d escrita ou nao a conhece| pensagHio menos assege ent necessério, encontrando- ssico de poder é adequado & realidade que oder no e ele dé conta do nlo- 1u ento inadequado, e é necessario aban- io. Mas € conveniente antes se interrogar 1 permite que essa concepgao seja elabora- réptio vocabulério da etnologia pode a um dado de fato: uma sociedade conhece a A pertinéncia do segundo parece em com- urpda, O que é de fato “subsistir”? 4 viver na 1o equilibrio entre necessidacles alimentares Jma sociedade com economia de subsistén- ia seus membros apenas com o estritamente se assim 4 merc do menor acidente natural (seca, inundagio ete.), jf que a diminuigaio dos recursos se traduzizia mecanicamente pela im| outros termos, as socie sua existéncia € um co: sio incapayes de produgir isso, cultural. Nada di primitiva, e ao mesmo centemente falar de grug s “primeizas sociedad agricultores “neoliticos ort somente que um bom essa questo de imp 2. Marshall Sahlins, “La Prem abundancia]. Les Temps Mode! 3. Sobre os problemas que epi ossibilidade de alimentar todos. Ou, em fades arcaicas ndo vivem, mas sobrevivem, ate intermindvel contra a fome, pois elas -cedentes, por caréncia tecnolégica e, além mais tenaz que essa visio da sociedade lempo nada de mais falso. Se pudemos re- los de cagadores-coletores paleoliticos como de ebundncia”,? ¢ que nfo seria dos 23 N&o podemos nos estender aqui sobre incia decisiv para a etnologia. Indicamos Intimero dessas sociedades arcaicas “com {are société d’ebondance” [A primeira sociedade da fnes, out. 1968. sentam uma definigdo do neclitico, f. cap. 11, infra 29 spmpaserccmer———$ mam 8 economia de gubsisténcia”, na América do Sul por exemplo, pro- duzia uma quantidade de excedente alimentar muitas vezes equiva- Jente 4 massa pecesséria 20 consumo anual da comunidade: produgdo capaz, portanto, de satisfazer duplamente as necessidades, ov de ali- mentar uma populagdo duas vezes mais numerosa Isso, evidente- mente, nfo significa que 2s sociedades arcaicas no sejam arcaicas; trata-se simplesmente de enfatizar a vaidede “cientifica” do conceito de economia de subsisténcia que traduz muito mais as atitudes e hébitos dos observadores ocidentais diante das sociedades primitivas que 2 realidade econ6mica sobre 2 qual epousam essas culturas, Em todo 0 caso, nao é pelo fato de que sua economia fosse de subsistén- cia que as sopiedades arcaicas “sobreviveram em estado de extremo subdesenvolyimento até hoje” (p. 225). Parece-nos mesmo que, open do século XIX, iletrado nesse sentidd, é antes o proletariado ¢ esubalimentado, que se deveria qualificar de arcaico. Na realidade, a idéia de economia de subsisténcia provém do campo ideolégico do Ocidente mdderno, e de forma alguma do arsenal conceptual de uma cifncia, E é paradoxal ver a emologia, ela propria, vitime de uma mistificag&o| to grosseira, e tanto mais temivel quanto contribuiu para orientar a estratégia das nagSes industriais com relagfio 20 mundo dito subdesenvolvido. Mas tudo isso, poder-se-4 retrucar, tem pouco @ Ver com 0 co. Ao contrério: a mesma perspectiva que como “homens vivendo penosamente em problema di dot economia de subsisténcia, faz fals desenvolvimento técni- stado de s o sentido e o valor do discurso co...” (p. 349) determ sobre o politico ¢ o poder. Familiar porque sempre 0 encon- faraili tro entre o Ocidente ¢ os selvagens serviu para repetir sobre eles 0 mesmo diseurso. Como testemunko, citemos por exemplo 0 que diziam os primeios descobridores do Brasil a respeito dos indios “Tupinambét “gentes sem 6, sem lei, sem zei”, Seus mburuvicha,Seus | chefes, nfo possufam com efeito nenhum “poder”. O que haveria de [Bais estranho, para pessoas saldas de sociedades onde a autoridade 30 Copérnico elas selvagens ssn culminava nas monarquias absolutes da Franga, de Portugal ou da Espanha? Tratava-se de barbaros que nfo viviam em sociedade poli- ciada, A inquietude e @ irritaglo de se encontrar em presenga do anormal desapareciam, 20 contrério, no México de Montezuma ou no Peru dos Incas. Ali os conquistadores respiravam um ar habitual para eles o mais t6nico Klos ares, o das hierarquias, da coercio, em uma palavra, do verdadeiro poder. Ora, observa-se uma notével continuidade entre este|discurso sem nuangas, ingénuo, selvagem, como se poderia dizer, e aquele dos sébios ou pesquisadores moder- nos. O julgamento € 0 Inesmo se enunciado em termos mais deli- cados, ¢ encontramos sob a pena de Lapierre numerosas expresses conformes a percepcSo mais corrente do poder politico nas socie- dades primitivas. Exemplos: “Os ‘chefes’ trobriandeses ou tikopias nao detém uma poténcia social e um poder econémico muito desen- volvides, contrastando cpm um poder propriamente politico deveras “Nenhum povo nilota péde elevar- embriondrio?” (p. 284). Ou entd se ao nivel das organizactes politicas centralizadas dos grandes reinos bantos” (p. 365). E ainda: “A sociedade lobi ndo fot porcionar uma organizagio politica” (p. 435, nota 134).4 Que signifi- ca de fato esse tipo de vocabulério onde os termos “embrionério”, capay de se pro- “nascente”, “pouco desenvolvido” aparecem com freqiiéncia? Nao se trata certamente de comprar briga com 0 autor, pois sabemos bem que essa linguagem é a da prépria antropologia. Tentamos aceitar aquilo que se poderia chamar de arqueologia dessa linguagem e do saber que se acredita sutja dai e perguntamo-nos: o que essa lin-(ove!~ guagem diz exatamente e partir de que lugar diz ela o que diz? Constatamos que a idéia de economia de subsisténcia gostaria de ser um julgamento d@ fato, mas envolve 20 mesmo tempo um : avalia- julgamento de valor sobze as sociedades assim qualificada: go que destréi imediatamnente a objetividade em que ela pretende fixar-se. O mesmo preconeeito — pois afinal trata-se disso — perverte Es Pr EI 4. Gifos nossos. 3 ‘aera nenee se ¢ leva ao frakasso o esforco para julgar o poder politico nessas mes- mas sociedaties. © modelo ao qual ele se refere e a unidade que 0 mede so cojsstituidos a priori pela idéia que a civilizago ocidental desenvolvey| e formou do poder. Nossa cultura, desde as suas ori- gens, pensa » poder politico em termos de relagées hierarquizadas e autoritérias He comando-obediéncia. Toda forma, real ou possivel, de poder é pprtanto redutivel a essa relagdo privilegiada que exprime a priori a sud esséncia. Se a redugio nao é possivel, € que nos encon- tramos aquém do politico: a falta da relago comando-obediéncia implica jaso|facto 2 falta de poder politico. Por isso, existem no s6 sociedades sem Estado, nas também sociedades sem poder. Ter-se-4 desde hé muito reconhecido o adversirio sempre vivaz, 0 obstéculo permanentefnente presente na pesq “mo-que medfatiza todo olhar sobre as diferengas para identificd-las e finalmente siste em dei a antropolégica, 0 emocensris- Iboli-las. H4 uma espécie de ritual emolégico que con- unciar com vigor os riscos dessa atitude: a intengio é louvavel, mrs nem sempre impede que os etndlogos, mais ou menos tranqitilamehte ou mais ou menos distraidamente, sueumbam diante dele. Sem Lapierre, é poder-se-ia sista consig« oetnocentritmo ocidental Yo seu homélogo“p fivida o.etnocentrismo} como frisa muito justamente la coisa melhor distribuida do mundo: toda cultura é, ica em sua relago narci- dizer, por definigdo etnocént mesma. Entretanto, uma diferenca considerdvel separa mitivo”; 0 selvagem de qualquer tribo indigena ou australiana julga que a sua culture & superior a t discurso cies no element: sob muitos que 0 seu pseudodiscurso cientifico se deteriora rapidai verdadeira melifluas al lugar capa slo desprovidas de poder politico por no oferecerem nada de seme 32 Copérnico € tras sem se preocupar em exercer sobre elas um he quanto a etnologia pretende situar-se de chofre da universalidade sem se dar conta de que permanece idade, € ente spectos solidamente instalada em sua particula deologia. (Isso reduz & sua justa dimensio algumas firmagdes sobre a civilizagdo ocidental como o tinico de produzir etndlogos.) Decidir que algumas cultura: 5s selvagens Ihante 20 que a nossa apresenta no é ume proposigio clentifica: E antes denota-se af, no fim das contas, uma certa pobreza do conceito? n entrave superfi : O etnocentrismo nao é portanto u1 cages c#m mais consegiiéncias do que se reflexdo e as suas imp poderia crer. Ele nao pode deixar subsistir as diferengas (cada uma por si) em sua neutralidade, mas quer compreendé-las como dife- rengas detezminadas a partir do que é mais familiar, o poder tal como cle é experimentado e pensado na cultura ocidental. O evolucionis- mo, velho compadre do etnocentrismo, nao est4 longe. A atitude nesse nivel é dupla: primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou menor proximidade que o seu tipo de poder mantém com © nosso; em seguida afirmar explicitamente (como outrore) ou e tre todas essas 38, abandonado a antropologia implicitamente (como| agora) uma continuidade diversas formas de poder, Por ter, apés Rob no pode mais (go menos quanto & questo do politico) exprimir-se 20 de outra parte é muito forte a ten- em termos sociolégicos.| Mas co! tag&o de continuar a pensar segundo o mesmo esquema, recorre-se a metéforas dioldgicas. Dai o vocabulério acima levantade: embric- nétio, nascente, pouco desenvolvido etc. Ha apenas meio século, 0 modelo perfeito que todas as culturas tentavam realizar, através da Bet tor em ciéncias fisicas).|Isso sem diivida se pensa ainda, mas em todo era o adulto ocidental so de espirito e letrado (talvez dou- caso nfo se diz mais. Entretanto, se a linguagem mudou, o discurso permaneceu 0 mesmo, Pois o que é um poder embrionério senfo 0 que poderia ¢ deveria desenvolyer-se até 0 estado adulto? B qual é esse estado adulto do quel se descobrem, aqui e ali, as premissas em- | brionérias? 8, nfo ida, 0 poder com 0 qual o etnélogo esté acostumado, o da cultura que produz etnélogos, o Ocidente. E por que esses fetos cultuzais do poder esto sempre destinados a perecer? | Por que as sociedades que os concebem abortam regularmente? Essa fraqueza congénita prende-se evidentemente ao seu arcaismo, ao seu 5 subdesenvolvimento, aa fato de nao serem o Ocidente. As sociedades 33 arcaicas seriain assim axolotles sociolégica’ incapazes de ascender, sem ajuda exterior, ao estado adulto normal, © biologismo\da expresso ndo é senfo a méscara furtivada velha convicdio ocidental, muitas vezes partilhada realmente pela etnologia, ou a0 menos por muitos dos seus praticantes, de que a his- t6ria tem um| sentido tinico, de que as sociedades sem poder s30 a imagem daquilo que nflo somos mais e de que a nossa cultura é para elas a imagem do que é necessério ser. E nfo s6 0 nosso sistema de poder é considezado o melhor, mas chega-se mesmo a atribuir as sociededes arcaicas uma certeza andloga. Pois dizer que “nenhum povo nilota péde elevar-se ao nivel de organizag&o politica centrali- 0 fo zada dos grandes reinos bantos”, ou que “a sociedade lobi 2 organizacdo politica”, é em um senti- capaz de se proporcionar do afirmar um esforgo da pazte desses povos para se darem um ver- dadeiro poder politico. Que sentido teria dizer que os indios Sioux nfo conseguiram realizar 0 que os Astecas alcangaram, ou que os incapazes de se elevar ao nivel politico dos Incas? A arquelogia dh linguagem antropolégicaynos conduziria, e sem ter de cavar muito win solo no fim das contas bastante drido, a descobrir um. parentesco se¢reto da ideologia com a etnologia, esta ultima, se = tomarmos cuidado, destinada a debater-se no mesmo pantano lama- cento que a sociologia e psicclogia. < Epossivel uma antropologia politi considerada a torrente sempre crescente da literatura consagrada 20 problema do 9 Jo chama e atencdo é constazar-se Poder-se-ia duvidar, se af a dissolugio g se esperava encontré a se cré Sperber em todos os niveis das socie- fo no campo do politico, t todos os dades arcaicas, Tudo cai desde entai subgrupos e uni (gr des de p: 9 etc.) que constituem uma s ciedade fo do investidos, com ou sem motivo, de uma significacao_ p< Iitica, a S qual acaba por abranger todo|o espaco do social e perder conseqtientemente a sua especificidade, Pois, se 0 politico existe em toda a parte, ele nfo existe 34 Copérnico eos stlvagens = em lugar nenhum. Alié é de se perguntar se no se procura dizer ae as sociedades arcaicas nflo sfo verdadeiras socie- justamente isto: dacles,jé que no so sodiedades politicas. Em suma, teriamos 0 direito de dectetar que(o poder politico ndo é pens4vel| visto que é aniquila- do no ato mesmo em que é apreendido, Entretanto, nada impede que Se suponha que a emoldgia s6 se coloca os problemas que ela pode i : resolver. B entio necessério perguntar-sexém que conidig6és 0 poder i £ politico pensdvell)Se 4 antropologia vacila, é porque estd no fundo i E de um impasse, e cumpr¢ portanto mudar de rota. O caminho onde ela j e se perde é 0 mais ffcil, aquele que se pode tomar cegamente, aquele i é que é indicado pelo nosso préprio mundo cultural, nfo enquanto ele | . se desdobra no universal, mas enquanto se revel tdo particular como 4 qualquer outro. A condigdo renunclar, ascesicamente, digamos, & undo arcaico, concepedo que, em ¢ concepgio exérica do a ffico andlise, determina macigamente o discuzso pretensamente cien ndo. A candic#o sera nesse caso, a decisio de levar ivas, sob todos os seus enfim a sério 0 homem das 50: aspectos e em todas as suas dimensbes; inclusive sob o Angulo do politico, mesmo e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como negacio do que ele|é no mundo ocidental. E necessério aceitar a idéia de que a negacHo nfo significa um nada, e de que, quando o espelho nfo nos devolve a nossa imagem, isso nfo prova que nfo haja nada que observar. De maneira mais simples: assim como a nossa cul- tura acabou por reconhecer que o homem primitivo nfio é uma crian- ¢a, mas, individualmente, um adulto, assim ela progrediré um pouco se lhe reconhecer uma maturidade coletiva equivalente. Os povos sem esctita nZo sio ent&o menos adultos que as dades letradas. Sua histéria é to profunda quanto a nossa e, a . iedades pris racismo, nag ha por que julgé-los incapazes de refletir 2 sobre a sua prépria experféncia e de dar a seus problemas as solugdes : apropriadas. E exatamente por isso que ndo nos poderfamos con- tentar em enunciar que nas sociedades onde nfo se observa a relacio de comando-obediéncia (isto é, nas sociedades sem poder politico), Zo ser por 35 * vide do grupp como projeto coletivo se mantém através do controle social imediatd, imediatamente qualificado de apolitico. O que pre- cisamente se latende por isso? Qual é o referente politico que pet mite, por opdsigio, falar de apolitico? Mas, precisamente, af no existe o politigo uma vez que se trata de sociedades sem poder: como entdo podemds falar de apolitico? Ou bem o politico esté presente, mesmo nessa} sociedades, ou bem a expresstio de controle social imediato apolitico é em si contraditéria e de quelquer modo tau tol6gica: o que ela nos ensina efetivamente sobre as sociedades as quais € aplicalla? E, que rigoz poss CLowie’de qua nas sociedades sem poder politico existe , a explicacdo de Tio-oficial 4 opinizo ptiblica”? Dizfamos nbs, se tudo é politico, nada é poittidos mas, se em alguma parte existe o apolitico, é que alhures existe terla mesmo 40 politico! No méximo, uma sociedade apolitica nao gar na esfera da cultura, mas deveria ser mais seu h colocada junth das sociedades animais regidas pelas relagbes naturais de dominacaq-submissio. Talver. epteja af a dificuldade da refle: é impossivel ‘0 cléssica sobre o poder: ensar 0 apolitico sem 0 politico, o controle social ime- diato sem a thediagdo, em uma palavra, a sociedade sem o poder. O obstéculo epiptemolégico que a “pol: mento ultrapé mo cultural ex6tica das si sobre encontra real o podef a partir da certeza de que a sua forma verda Pi ologia” nfo soube até o mo- =, nbs acreditamos t8-lo descoberto no etnocentris- pensamento ocidental, ele mesmo ligado a ume visto is. Se nos obstinamos em refle ciedades nZo-ocident fazer dessa Hzada na nossa cultura, se persistimos forma a medifla de todas as outras, até mesmo 0 seu télos, ento segu- ramente renynciamos & coeréncia do discurso, e deixamos a ciéncia degradar-se séria. Mas d etnolégico, « m opinio, A cincia do homem talvez nfo seja neces- sde que qu o convém mostrarmos um pouco de respeito 2s cultu- ‘ramos constitui-la e articular o discurso cas arcaicas ¢|nos interrogarmos sobre a validade de categorias como aquelas de 36 Copérnico ¢ lonomia de subsisténcia ou de controle social imediato. selvagens TRE RTS sone nants F r pees ‘Ao nfo efetuar esse trabalho eritico, arriscamo-nos primeiramente a deixar escepar 0 real § descriggo segundo a & ciolégico e, em seguida a descaminhar 2 pré- : chegamos assica, segundo as sociedadss ou seus observadores, 2 encontrar o politico em todo lugar ou a nfo encontré-io em parte alguma, ca, ilustra perfeitament de falar de sociedade definir o estatuto do do acima, das sociedades indigenas da Améri- 2, assizn o cremos, a impossibilidade que existe sem poder politico. Nao & aqui o lugar de politico nesse tipo de culturas. Limitar-nos- emos a recusar a evidéncia etnocentrista de que 0 limite do poder éa coergéo, além ou aquém do qual nada mais haveria; que o poder existe de fato (ndo s6 na Américe, mas em muitas outras culturas primitivas) totalmente|separado da violéncia e exterior a toda hierar- guia; que, em consecii dades com poder e sociedades ser: idade com o: C universal, imanente a co! *lacos de sangue” ou dois modes principais: TaQO poder politi do-ob: mente incia) nfo caso particu em certas culturas, tal ralmente). No exi jar essa modalidad giar essa modalidade réncia e o principio de dades, arcaicas ou nfo, so Itiplos sentidos, mesmo se rével e se devernos desvendar Isso nos leva a dizer que: partir as sociedades em dois grupos: socie- 108 20 contrério (em poder. Julg: dados da etnografia) que o poder politico social (quer o social seja determinado pelos elas classes sociais), mas que ele se realiza de poder coercitivoxpoder nao-coercitivo. 0 como coergao (ou como relagSo de coman- modelo do poder verdadeiro, mas simples- na tealizaglo conereta do poder politico al (snas ela nflo € a tinica, na lar, somo a ociden’ ‘ma taz&o cie fica para privile- ‘e poder a fim de fazer dela 0 ponto de refe- explicagdo de outras modalidades diferentes. (Mesmo nes sociedades onde a instituico politica est ausente (por éxemplo, onde nao existem chefes), mesmo aio politico est pre- sente, mesmo af se coloca a questo do poder: nfo no sentido en- 7 ganoso que incitaria a querer dar conta de uma auséncia impossivel, mas ao contrfirio no sentido de que, talvez misteriosamente, alguma coisa existe ng auséncia. Se 0 poder politico niio é uma necessidade inerente a natureza humana, isto é, a0 homem como ser natural (e nisso Nietzsche se engana), em troca ele é uma necessidade inerente a vida sociall Podemos pensar o politico sem a violéncia, mas no podemos pensar o social sem o politico; em outros termos, nfo hA sociedades sem poder. E por isso que, de certa maneira, poderfamos pula de Bertrand de Jouvenel, “A retomar por|nossa conta a for: rece ter sido a criadora don social”, e simultanes- autoridade ngs p' te a ott exre, Pois se, mente subscrpver integralme: como nés 0 pensamos, 0 politico est no proprio coracio do social, tido em que é encarado por De Jouvenel, isso n&io é certamente 10 ser emente ao “ascen- para quem o|campo do politico se reduz aparer: dente pessoal” de fortes personalidades. N30 se poderia ser mais ingenuamente (trata-se realmente de ingenuidade?) emocentrista. As obsetvag&es precedentes abrem a perspectiva para se situar a tese de Lapierre, cuja exposi¢&o se apresenta na quarta parte da obra: “O poder chica procede da inovacdo social” (p. 529) ¢ a poder politico se desenvolve proporcionalmente & importfncia da nd inovagZo’ social, & intensidade do seu ritmo, a a alcance” (p. G21). A demonstragio, apoiada sobre ite e ndio podemos senfo afir plos, parece-ros rigorosa e conv ises e as conclusdes do autor. Com a nossa concordAncia com as at uma resi rigfolen poder politico do cx: aquele que procede da inovagSo social, 6 0 poder que, de nossa parte, a tese de denominamos coercitivo. Queremos dizer com isso qu Lapierre concerne as sociedades onde se observa a relagio de coman- do-obediéncia, mas no as outras: que, por exemplo, nio se pode evi- dentemente falar das sociedades ind{genas como sociedades onde 0 s, a ino- poder politica proceda da inovago social. Em outros tex vaso social é talvez o fandamento do poder coercitivo, mes ceria mente no é o fundamento do poder n3o-coercitivo, 2 menos que se 38 Copérnico eos shagens | b L lecida (o que é in poss da tese de Lapierre vel) que s6 existe poder coercitivo. O aleance itado 2 certo tipo de sociedade, a uma moda- fica implicitamente tico. Ela nos cho social, no existe poder pi dé entretanto um ensinamento precioso: a saber, que o poder politico como coergHo ou com isto 4, das sociedade: mudanga, da historici sociedades seguado ur CAb-coercitivo sio_as der politicg” er bem diferente daquela que identifica socieda E, pois, da coer: qu progrema, uma vez qu mento. Daf resul co poder nao-ccereiti forma mais virulenta: poder p quisemos apenas dize fat6rias e em que con: inir a tarefa de ul de regional, tarefa que se (DO queéo pod 2) Como e por qu poder politico coerciti Nés nos limitarey cua grande culeura ef esse caminho, se é qu observa que “a verdade violéncia 6 2 marca das sociedades Aisséricas, que trazem em si 2 causa da inovagio, da , poderfamos dispor as diversas ade. E assi novetiag as sociedades com poder politic sociedades sem histbri ciedades com jvoMo as sociedadey, histbricas.) Disposigao mplicada pela reflexio atual sobre 0 poder, dades sem historia. les s 0 e nfo do politico que a inovacdo é 0 funda- za.a metade do poder eso rre s6 real o trabalho de Lapi & questdo do fundamento ia brevemente, e de lpor que existe poder politico? Por que existe ico em lugar de nada? Nao pzetendemos dar a resposta, ag respostas anteriores nfo sfo satis- boa resposta é possivel. & em suma antropologia politica gerale ndo mais detalha em duas grandes interrogagdes: + politico? Isto é: 0 que éa sociedade? ese passa do poder politico n&o-coercitivo ao ro? Isto que é a historia? Marx e Engels, apesar de mos @ constatar qu nolégica, jamais dirigiram reflexfo para mulatam claramente a questo. Lapierre do mankismo é que no existiria poder polft co se no houvesse cdnflitos entre as forgas sociais”. E sem diivida uma verdade, mas valida somente para as sociedades onde forcas sociais est¥io em conflito, Que no se possa compreender o poder 39 como violéntia (e sua forma tiltima: o Estado centralizado) sem o conflito social, é indiscutivel. Mas, e quando se trata de sociedades sem conflito,|aquelas onde reina o “comunismo primitivo”? E pode o marxismo dar conta (caso em que ele seca com efeito ume teoria universal da|sociedade e da histéria e portanto da antropologia) a 4 historicidade e da nlo-coez¢lo & dessa passagem da nfio-hist violéncia? Qhal foi o primeiro moto: do movimento histéri nento vez conviessp procuré-lo precisamente no que, s sociedades ar- caicas, se dis 2, no politico mesmo. Dever-se-ia Zo invert heim (ou refo a dife renga absolute di nquento raiz do sox inaugural de aento e de toda hist6ria, o desdobramento original comp matriz de todas as diferencas? _i da revolucio copernicanddque se trata. Nesse sentido é que, até o presente, e sob alguns aspectos, a etnologia deixoy ras e, poder-se-ia primitives gigarem em tomo da civilizagéo ocident dizer, em um inovimento centripet 0, Que uma mudanga completa de perspectivas beja necess4rla (na medida em que se tenha reaimente de enunciar spbre as sociedades are: sere nfo ao spr da nossa) é 0 que nos parece d a antropologla politica. Hia se choos c da evidéncia natural onde ela e: pods: sdo\“heliocéstrica? ela genharia talvez a éncia, do nosso. O caminho de sua de pensamen continua a del vata coaver- elhor compreensio do mundo dos outros e, em conseq! conversio lhe é de resto indicado por um pensamento da nosse época de Lévie que soube leyar a sério o dos selvagens: a obra de Cla Strauss nos pyova a retidao da dilig&ncia pela amplitude (talvez ainda 40 Copérniso ¢ osbelvagens insuspeita) de suas conquistas e nos obriga a ir mais longe. E tempo ustamente, uma eoredisam assegure: 0 seu pretensiio cor estatuto cient ¢ elas chamam de filosofia, E, de f2to, 2! incia para descze- ‘as trata-se de outra coisa, eéde pen samento que procura-be fazer saix. Seria entéo 0 caso de dizer que ver cuias ou sistemas de parentesco. temer que, sob o nome de Hlosofi, seja simplesmente o prépri cidncie e pensamento ge excluem mutuamente, e que a ciéncia se edi- fica a paitis do nfo-pdasado, ou mesmo do antipensamento? As san- ces, oxa enfraquecidas, ora decididas, que os militantes da “ciéncia” proferem de todos os Jados parecem estar de acordo com isso. Mas € preciso nesse caso sdber zeconhecer a que conduz essa frenética vyocagic 20 antipensamhento: sob a capa da “ciéncia”, das banelidades endimentos menos ing&nuos, ela leva direta- seé que afesta de todo saber e de toda alegri que afasta de todo seber e de toda alegri meros fatigante descet que subir, op nsamento no entanto n&o pen- sa lealmente senfo comtra a corrente? 4

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