You are on page 1of 46
Revista Criticn de Cigneias Sociais n° 1 Junho 1978 Boaventura de Sousa Santos DA SOCIOLOGIA DA CIENCIA A POLITICA CIENTIFICA* Chegados aqui, que ligdes nos cabe tirar deste circuito para o problems da responssbilidade actual do loge filo- sofico perante uma téenica cua efcéca the denuncia 0 vasto ‘das sans significagies, solddo das suas cvidéncias, © a impotéwcia do seu poder de dialogar sum mundo onde a0 ‘acordo dos espirits se substitu a direerdo das conscitncias pela administrapdo das coisas? (Victor Matos © $4, A dimensto técnica do homem) A Constituigio Politica de 1976 estabelece as grandes linhas do projecto nacional de desenvolvimento social ¢ determina expressa- ‘mente que a politica cientifica ¢ tecnolégica deve colocar-se ao servigo desse projecto. Diz o art. 77 n.® 2: «A politica cientifica e tecno- ‘6gica tem por finalidade o fomento da investigacio fundamental e da © © presente trabalho —originalmente publicado com ligesas alteraobes no ns LIV de BIBLOS (Miscelinia de homenayem a0 Prof. Victor Matos e SA) 6.0 primeira de uma série de artigos sobre © mesmo tema publicar em mimeros subseauentes da Revista Critiea de Cifncias Socials, Tive ocisiio de discutir rmuitas das idelas aqui expandidas com os membros do grupo de Ciencias Sociais dds Faculdade de Economia de Coimbra, sobretudo com agueles que comigo leccio- nam ou leceionaram a cadeira de Introducto ts Citncias Socials: Drs. Carlos Lea castre Costa, Carlos Fortuna, Jacques Houart, Rogério Leitfo, Fernando Ruivo € José Veign Torres, Agradeso também os comentirios do Dr. Madursira Pinto. tl investigagio aplicada, com preferéncia pelos dominios que interessem a0 desenvolvimento do pais tendo em vista a progressiva libertagdo de dependéncias externas, no ambito da cooperagio e do intercimbio com todos os povost. A luta por uma tal politica cientifica deve ser a preocupaglo central de todos os cientistas portugueses interessados na realizagao do projecto de sociedade socialista consagrado na Cons- timuigio. E por se dever tratar de uma luta esclarecida, torna-se neces- sitio tomar consciéncia dos obsticulos a vencer. Alguns desses obstéculos comprometem 0 projecto nacional no seu todo, que, convém lembri-to, é o projecto de «um Estado demo- critico baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos ¢ liberdades fundamentais ¢ no pluralismo de expressio ¢ ‘organizagio politica democraticas, que tem por objective assegurar a transigdo para o socialismo mediante a criagko de condigBes para 0 exercicio democratico do poder pelas classes trabalhadoras» (art. 2 da Constituicio). Nao é dificil descortinar os obsticulos & instaurago de um projecto de sociedade socialista no contexto de relagées internacionais ainda dominadas pelo modo de producéo capi- talista ¢, sobretudo, num pais integrado num bloco politico-militar em que a defesa da democracia € identificada com a defesa do capitalism. Outros obsticulos sto especificos do dominio cultural © cien- tifico a sua elucidacio, que constitui o tema principal deste trabalho, hhi-de resultar da andlise sociolégica da pritica cientifica internacional. ‘A sociologia critica da cigncia aqui proposta parte do principio de que a cigncia contemportinea deve ser analisada no contexto s6cio- -econémico-politico do mundo contemporineo ¢, portanto, no con- texto dialéctico do imperialism e do nacionalismo. Pode parecer estranho que se levante a questio do imperialismo ¢ do nacionalismo a propésito da ciéncia, O imperialismo envolve ‘um sistema de relagdes internacionais caracterizado pela dominacio econémica ¢ politica de paises centrais (avangados, edesenvolvidoss) sobre os paises periféricos (jatrasadost, ésubdesenvolvidos:). O nacio- nalismo, movimento politico ¢ ideolégico dos iiltimos duzentos anos, envolve a exaltacéo dos valores nacionais (contrapostos aos estran- geiros), a lealdade ao Estado-Nagio e, por vezes, a reacgo anti-impe- Tialista. A cincia parece nada ter a ver nem com um nem com outro. © conhecimento cientifico & habitado pelo mais puro espirito univer- 12 salista, a ruptura das barreiras nacionais é feita em nome de uma comu- nidade universal onde no hé dominadores nem dominados. Por isso, a ciéncia & o factor internacionalista por exceléncia do mundo contemporineo, Entre muitas outras provas, basta constatar como, por sobre lutas politicas e guerras internacionais (frias ou quentes), 0s cientistas dos varios paises so capazes de se sentar & mesa do iilogo € da cooperagio, ¢ em igualdade. Procurarei demonstrar neste trabalho que esta ideia do inter- nacionalismo universalista ¢ igualitirio da ciéncia falseia 0 modo dominante da prética cientifica, quer a nivel interno, quer a nivel internacional. Trata-se de uma ideologia que visa constituir a ciéncia em aparelho de legitimaglo das ordens interna e internacional insti- tuldas. A pritica cientifica contemporinea, isto é, a ciéncia enquanto sistema dominante de produgio, distribuigio e consumo de conhe- ‘mentos cientificos reproduz e reforga, no seu dominio especifice, a estrutura de dominago econdmica ¢ politica, quer no plano interno, quer no plano internacional. A discussio ¢ definigdo de uma politica cientifica em Portugal € tarefat urgente pois dela depende a neutralizagdo do perigo da adho- cracia que tem rondado as decisdes (¢ as indecisdes) sobre as inicia- tivas culturais ¢ cientificas tornadas politicamente vidveis no segui- mento da revolugio de 25 de Abril de 1974. Esta tarefa pressupde, no entanto, a clucidagio das dimensdes do ecompromisso social» da citncia. Essa andlise prévia, que releva da sociologia da citncia, constitui objecto do presente trabalho. A sociologia da ciéncia € uma disciplina de formagdo recente. Constitui-se na década de 40 € no seu desenvolvimento distingo duas fuses ou linhas: uma, que se inicia na década de 40 e € dominada pela obra de Robert Merton; outra, que tem infcio nos iltimos anos da década de 60 e 6 dominada pela obra de Thomas Kuhn, ainda que em meu entender a teoria de Kuhn s6 possa frutificar plenamente no seio da teoria social de Marx. No texto que se segue analisam-se sucessivamente as duas fases ou linhas. B (© PARADIGMA DE MERTON A concepsio da citncia como sistema social ¢ como sub-sistema do sistema social global é relativamente recente. No entanto, a and- lise sociolégica do conhecimento cientifico surge muito antes € remonta 4 obra de Marx, sendo objecto de uma disciplina, a socio- Jogia do conhecimento, que teve um grande desenvolvimento na Europa nas primeiras trés décadas do nosso século, Embora possa conceber-se a sociologia da ciéncia como um ramo especial da socio- logia do conhecimento®, o facto € que nfo hi continuidade entre os estudos feitos na Europa até a década de 30 ¢ os que se iniciam na América nos finais da mesma década, Facto tanto mais surpreendente quanto & certo nfo poder atribuir-se A ignorincia dos sociélogos americanos sobre o trabalho realizado na Europa, uma vez que Merton estava perfeitamente ao corrente dele *. A explicagio para esta descon- tinuidade tem de procurar-se a outro nivel, a0 nivel do contexto social e intelectual em que surge a primeira fase da sociologia da ciéncia, o que, alids, servird também para explicar por que razdo na segunda fase se tentam recuperar algumas das linhas de investigaso desenvolvidas ou sugeridas pela sociologia do conhecimento. A sociologia da cigncia surgiu nos Estados Unidos da América no momento em que a «posigio socialy da ciéncia se caracterizava, a nivel interno, por uma reacgio difusa mas cada vez mais intensa de hostilidade contra a ciéncia e suas aplicagSes e, a nivel internacional, pela politizagio da ciéncia levada a cabo pelo nacional-socialismo na Alemanha. © desenvolvimento do capitalismo americano acarre- tara um dramitico desenvolvimento tecnolégico cujas consequéncias sociais se comecavam a sentit com violéncia, No dominio da pro- dugio, a introdugio maciga da tecnologia provocava o desemprego tecnolégico, a descontinuidade de emprego, mudanga de trabalho, obsolescéncia das aptiddes e, enfim, alteragdes importantes no quoti- diano dos operirios, 0 que fazia desencadear a revolta da classe ope- Neste sentido, Robert Merton, Social Theory and Social Structure, New York, Free Press, 1968, p. 585. Merton, op. cit, tereeira parte. 14 réria através dos seus organismos de classe. Por outro lado, a ligago da cigncia & méquina da guerra, que a quimica tinha iniciado j4 na primeira guerra mundial, tornava-se cada vez mais intima com a Preparagio ¢ produgio de instrumentos militares, armas, explosivos ¢ demais equipamento, cuja capacidade destrutiva era a medida da rentabilidade do investimento tecnolégico neles aplicado. Apesar da apatia dos cientistas americanos neste periodo (anterior a Hiroshima) perante a sprostituigdo da ciéncia para objectivos de guerra’, gerava-se ‘um movimento social humanitério anti-ciéncia e, mais do que isso, um sentimento difuso de revolta contra a ciéncia‘, A ideologia da f€ na cigncia, que o século x1x transportara aos pincaros da aceitagdo social, comecava a receber os primeiros golpes significativos. Os resultados da aplicago da ciéncia impediam que o progresso cientifico continuasse a ser considerado incondicionalmente bom. Criavam-se as condigdes para perguntar pelas fungdes sociais da ciéncia, ‘A nivel internacional, procedia-se na Alemanha, desde 1933, ‘a uma politica de aviltamento da ciéncia, da submissdo desta aos objec tivos sociais e politicos do nazismo. Os critérios da validade cien- tifica e da competéncia profissional cram substituidos pelos da pureza racial ¢ da lealdade politica. Néo s6 eram expulsos os cientistas judeus, como proibida a colaboragdo com eles, como até proibida a aceitagio ou defesa das suas teorias®. No estrangeiro, esperava-se que desta degradante manipulagdo da ciéncia resultasse a curto prazo a decadéncia da cigncia na Alemanha, mas os nazis, longe de conce- berem a sua politica cientifica como de ataque & ciéncia, baseavam-na na necessidade de separat o trigo do joio e assim permitit um desen- volvimento da ciéncia em total harmonia com o projecto politico do Tereeiro Reich. + Merton, op. cit. 598 #8, Em 1932 fundou-se 0 Cambridge Scientists’ Anti-War Movement, que foi o beso politio € cientifco dos wvethos»cientstas do movimento dos anos 60. oi particularmente activo em selvar cientstasjudeus do jugo nazi e mais tarde, durante a guerra, em melhorar a proteccio civil contra os atagues abreos. Vide H. Rose e S. Rose, ‘The Radicalization of Sciences in R. Mili- band e J. Savile (orgs.), The Socialist Register 1972, London, Merlin Press, 1972, p. 110. (0 grande fsico W. Heisenberg foi considerado judeu branco (isto é eriano perigoso porque amigo de judeus) apenas por ter persistido na opiniio de que a ‘eoria da relatividade de Einstein consttuia uma base séria de iavestigacio. Vide Merton, op. cits p. 592 15 Neste contexto interno ¢ internacional —a que se deve acres- centar 0 medo latente ¢ sempre presente por parte da classe dominante de que o agravamento dos conifitos sociais conduzisse & propagagio do sistema social ja entio consolidado na Unio Sovigtica — impu- nha-se, como tarefa fundamental, definir as condigdes da méxima funcionalidade da ciéncia, isto & as condigdes em que esta deveria ser praticada a fim de evitar os abusos que se comecavam a notar na sociedade americana, mesmo que para isso fosse necessitia a inter- vengio estatal, sem no entanto cair no esmagamento da sutonomia da ciéncia, como acontecia nos estados totalitérios. A enumeracio dessas condigSes revelaria forgosamente que, embora a ciéncia pudesse coexistir com diferentes estruturas sociais, era nas sociedades liberais, € democraticas que podia atingir méximo desenvolvimento *. E esta tarefa que a sociologia fancionalista americana — que jé ha muito fizera a sua sopelo de classe»— imple a si mesma pela mio de ‘Merton. # dbvio que, para a realizacio desta tarefa, a sociologia do conhe- cimento nada tinha a contribuir. Em primeiro lugar, a sociologia do conhecimento, que tinha em Marx, Durkheim, Max Scheler ¢ Karl Mannheim os seus mais importantes cultores, desenvolvera linhas de investigagio € chegara a conclusdes que por vezes colidiam com a concepgo dominante de ciéncia também partilhada pela sociologia americana, a concepgiio positivista. Partindo da ideia geral de que 0 conhecimento (no seu mais amplo sentido) € socialmente condicionado, a sociologia do conhecimento tivera por objecto trés questdes principais: a definigdo da base ou factor social condicionante; tipo de condicionamento; extensio do condicionamento consoante os tipos do conhecimento, © tratamento destas questies, e sobretudo da hima, conduzira por vezes ao resultado de se admitir 0 condi- cionamento social, nilo s6 dos contetidos teéricos da cifncia, como das préprias condigdes teéricas ¢ metodolégicas € critérios de vali- dade inerentes ao processo cientifico. Isso significava um choque frontal com a concepgio positivista em cujos termos a ciéacia era tum sistema de conhecimento dotado dos mecanismos internos para © Merton, op. cit p. 606: sSefence develops in various social structures, to be sure, bur which provide an institutional context for the fullest measure of evelopment?» 16 validagéo dos resultados e orientagio do desenvolvimento’, Em segundo lugar, a sociologia do conhecimento debatera-se sempre ‘com 0 perigo do relativismo, de que o exemplo mais dramitico € a ‘obra de Mannheim. A transformagéo da verdade numa questiio de consenso dava azo & manipulagio politica, ¢ isso mesmo fora jé reco- hecido ¢ aproveitado pelos ide6logos nazis*. Em terceito lugar, as investigagdes levadas a cabo na Europa eram tipicamente curopeias: demasiado vagas ¢ abstractas, sem grande respeito pela validagio empirica, confundindo intuigées com comprovagées de facto, enfim, obra de «global theorists» preocupados com uma visio aérea da rea- lidade social. Ao contrétio, a sociologia da ciéncia queria constituir ‘um objecto muito mais definido e limitado, proceder & sua investi- {gagiio seguindo rigorosamente os cinones da cigncia ¢ aspirar a teorias de médio alcance °. Por Ultimo, a sociologia do conhecimento era produto de uma velha Europa profundamente fracturada por graves conflitos sociais em que 0 desmascaramento ideolbgico do inimigo constituia uma forma de luta importante — uma situacto social muito diferente daquela que se queria ver vigorar nos Estados Unidos. + Foi o predominio da concepeto positivista que levou ao isolamento uma das primeizastentativas de analsaro impacto da sociedade na citncia sob uma pers pectiva marssta, e que foi a obra de Bernal (vide, por exemplo, The Social Fonction of Science, London, Routledge and Kegan Paul, 1939). Pode mestno consisera-se ‘Bemal como o fundador da veitacia da ciénciar, una disciplina integrada, incluindo 4 sociologia, « histori, a psicologa, et., e tendo por objecto o estudo da ciéncia. ‘A denominagio tinha sido cunhada trés anos antes por Ossowski e Ossowsla, Die ‘Wissenschaft der Wissenschatt» in Orgaxon (Vars6via), 1936, T. Cf. aeeritica de Mannhcim neste sentido feta por Merton, op. cit P-543 ss. 9» Gf. o paratelo que Merton estabelece entre 2 sociologia do conhecimento © 0 que, segundo este specialist, era a sua correspondente ameticana, a sociologia da comunicagio (op, ct. p. 493 8). Entre as diferengas apontadas resslta que, enguanto a socflogia europeia trata temas da mivima significncia cujo tratamento feontudo nfo pode ir além da investigaclo especulativa (dirk o sociGlogo europeu: We don't know that what we say is true, but i s ot least significant), a sociologia americia trata de temas de muito menor signfictneia mas que, por sere mensu riveis, permitem uma investigasio rigorosa ¢ conciusGes verdadeiras (itd 0 s0ci6- logo americano: “We don't know that what we say is particularly significant, but it is at east true’). Menciono esta diferenga por me parecer adequada, apesar do seu pre-juizo positivista, © por ter alids um escopo mais emplo que © da socio- lgia do conhecimento, 17 © contraste com a sociologia do conhecimento serviu para definir em grandes linhas as orientagies tedricas ¢ metodolégicas da socio- logia da ciéncia mertoniana. © trabalho em que Merton define com mais preciso 0 objecto da sociologia da ciéncia data de 1942 e inti- tula-se «Science and Democratic Social Orders”, Tendo reconhe- ‘cido que uma das fraquezas da sociologia do conhecimento fora ter ‘um objecto indefinido ¢ imenso (todas as formas de conhecimento), ‘Merton comega por definir os quatro sentidos mais comuns do termo ciéncia: (1) um conjunto de métodos caracteristicos por meio dos quais o conhecimento € avaliado; (2) um stock do conhecimento acumulado resultante da aplicaglo dos métodos; (3) um conjunto de valores culturais ¢ normas que presidem as actividades consideradas cientificas; (4) uma qualquer combinagio dos sentidos anteriores ™. Destes quatro sentidos, Merton escolhe o terceiro e acrescenta que no setdo objective de andlise sociolégica, nem os métodos, aem 0 ccontetido substantivo da ciéncia, Assim se estabelece 0 critério de delimitagio do objecto da sociologia da cincia desta fase. A socio- logia da cigncia pode estudar, no s6 a estrutura cultural da ciéncia, ‘como 0 impacto da sociedade na ctiagio dos focos de interesse, na selecglo dos problemas, no rio do desenvolvimento, etc... Os ctitérios de validade © as demais condigdes tedricas e metodol6gicas serdo objecto da filosofia da cincia ou da teoria da ciéncia, mas nunca da sociologia da ciéncia. Do ponto de vista da perspectiva positivista fem que esta divisio do trabalho intelectual assenta pode dizer-se que ppertence sociologia da ciéncia o estudo daquilo que na ciéncia nio & cientifico. ‘Merton enumera entio o conjunto de normas que em seu entender constituem 0 ethos cientific, isto é, 0 complexo de valores ¢ normas de tom afectivo considerados vinculativos pelos homens de cigncia As violagdes destes valores ou normas so punidas com a indignagio moral, Os quatro grandes conjuntos de valores so: universalismo, comunismo, desinteresse, cepticismo organizado. O universalismo 2 GE. Merton, op. city p. 604 58. 11 Note-se como neste clanco definitério Merton deixa de fora uma acepsio ‘rucialmente importante para a 2 fase da sociologia da ciéncia: a cigncia como sistema de produsio de conhecimentos. CE Merton, op. cit, p. 605. 18 baseia-se no caricter impessoal da ciéncia: a accitasdo ou rejeigio de uma teoria nfo depende das qualidades pessoais ou sociais do seu autor. O comunismo: as conquistas da citncia sio produto da cola- boragdo social ¢ sio propriedade de todos; ¢ certo que por vezes hd Iutas sobre a prioridade das descobertas, como por exemplo a ‘élebre controvérsia entre Newton e Leibniz sobre o cilculo diferencia, ‘mas isso estimula a cooperacio competitiva entre os cientistas niio pe em causa 0 principio da socializagao do conhecimento cien~ fico, Desinteresse: quaisquer que sejam as motivagées pessoais os cientistas, a instituigo cientifica ¢ orientada pelo valor do desin- teresse ¢ assim premeia todos aqueles que aderem a esse valor; a auséncia quase total de fraude, o que nio acontece nas outras pro- fissbes, resulta de a investigagio cientifica de cada um estar sujeita ao escrutinio de todos. Cepticismo organizado: o cientista submete a discussio e pie em questio principios ou ideias seguidos por rotina ou pela forga de uma qualquer autoridade; o cientista suspende o seu jutzo antes de observar detalhada ¢ rigorosamente. Estas normas so simultaneamente morais ¢ téenicas. O seu desrespeito conduz a que, para além da indignagéo moral, a ciéncia entre num processo de disfungéo cumulativa até a0 colapso. $6 a sociedade liberal democrética torna possivel a smixima realizagio estes valores. Os desvios que por vezes se cometem, e que Merton nifo deixa de reconhecer *, ou nifo sto significatives, ou silo sohiveis dentro do sistema. Numa apreciagio critica desta teoria ressalta desde logo o facto de se tratar de uma teoria normativa que pouco ou nada diz sobre & 1 Bm 1952, Bemard Barber, um dos discipuios de Merton, substitei eomue rismoy por scomunalismos (canmunality) devido as conotagies politicas e ideali= sicas da expressio originalmente usaca por Merton. Estévamos em pleno meCar- thismo ¢ esta mudanca terminolégica constitui em si um documento para a secio- logia ds citnctas soviais. Cr. Leslie Sklar, Organized Knowledge, London, Paladin, 1973, p. 112 ss. Por exemplo, Merton (op. cit.,p-612) econhece que o comuntsme enguanto tion cientfica ¢ incompativel com « definicéo da tecnologia como propriedade privada na economia capicalista. Uma voz que a patente dava (e dé) tanto 0 diteto ‘49 Uso como ao aio uso, muitos cientstas, ineluindo Einstein, foram levados a ppatenteat 0 seu trabalho a fim de garantir © seu acesso uo publico. Merton consi= ddera, no entanto, que nem por isto se deve advogar o socialism para garentic & realizagio deste valor, como fax, por exemplo, Bernal 19 pratica cientifica real. Num momento em que a ciéncia entrava em rocesso acelerado de industriaizagio e os cientistas se transformavam ‘em trabalhadores assalariados ao servigo do complexo militar-indus- ‘rial entio emergente, a pritica cientifica dominante orientava-se ja ‘numa direcgo totalmente contréria a pressuposta pela normatividade ‘mertonians, a ponto de retirar a esta tiltima o sentido conformador da praxis ¢ de a transformar em pura ideologia de legitimagio. No ‘entanto, tal prética € contabilizada na teoria de Merton enquanto mero idesvior a uma notmatividade inquestionada no seu todo € cuja validade € até afirmada pelo acto de violagio. A eloquéncia ‘icita do normativismo que habita sempre 0 funcionalismo trans- forma-se aqui em cloquéncia expressa. Apesar de ter tido 0 mérito de despertar o interesse pela inves- tigaio da ciéncia, a teoria de Merton foi responsivel pela niio proble~ matizagio de dreas de pesquisa que hoje, de outro ponto de vista, se revelam crucialmente importantes. A concepgio positivista da cigncia que subjaz A sociologia de Merton tornou esta incapaz de conceber de modo diferente a ciéncia enquanto objecto de investigacao sociolgica®, Deu-se como que uma inversio epistemolégica por A Slosofa da citncia deste perlodo ¢ dominada pelo empitiisme Ligioo laborado a partir do circulo de Viena ¢ depois desenvolvido em miltiplas variantes, como a do método hipotético-dedutivo de Karl Popper [The Logie of Scientific Discovery, New Yorky Basic Books, 1959 (1934)], Esta corrent flosfica parte do principio da validagio (ou da refutasio) absoluta do conhesimento por meio do todo cientitice constituide segundo © modelo da Isgica matemética. ‘uma Alistingdo total entre © contexto da justiticagio (Reichenbach) ou da refutagio (Popper), por um lado, e 0 contexto da descoberta, por outro. © primero define validade e, portanto, a verdade do conhecimento adquirido segundo es condigBes 1gias ¢epistemoldgicas internas & propre citnciee consttai o dominio da teori da cidncia. O contexto da descoberta €irelevante do ponto de vista da teoria da ciéncia, pois que, dizendo respeito a ginese das ideias e sendo determinado por factores socioligicos ¢ psicoligicos, mio € susceptivel de reconstrusio légica. Eo dominio 4a sociologia e da psicologia. A divisto do trabalho entre a sociologia da eidncia e a teoria da cigncia estabelecida por Merton tem aqui as suas raizes. Dai que na segunda fase da sociologia da citneia a ruptura com esta divisto do trebalho implique 1 ruptura com o positiviamo légico. Por outro lado, o normativismo que j& detes- ‘tdmos em Merton & inerente o positivismo ldgico, pois do que se trata no & de ana lisar a prtica cientiiea mas antes de estabelecer o conjunto de normas e idexis cnistemolégicas « que o cientista deve aspirar. O positivism ligico, que mantém ‘quase © monop6lio da filosofia da eléncia até aos anos 60, representa a consciénc 20 via da qual 0 objecto real constituiu o seu préprio objecto teérico ™. Ennem a isso obstou o esforgo de Merton para ndo cair nas armadilhas epistemolégicas em que tinha caido a sociologia do conhecimento, O que também demonstra que a divisio do trabalho entre a sociologia da cigncia e a teoria da cincia € menos uma divis4o externa que uma divisio interna, E no é por fiat do cientista que assim deixa de ser. Pode pois concluir-se que as condigies teéricas que produziram a etransparéncia analiticay a juzante do cientista foram as mesmas que produziram a opacidade a montante. Mas as condigbes tedricas juntaram-se condigdes sociolégicas de maior relevo. As cifncias, fisicas € naturais, que constituem objecto central da sociologia da cigacia neste perfodo, desenvolveram desde o século xvi uma reté- rica de legitimago que passou pelo menos por trés fases. Numa primeira fase, tiveram que demonstrar a sua utilidade a fim de pode- rem obter apoio piblico, como bem demonstra a criagio da Royal Society pot Carlos IT em 1660 ¢ em geral a cringio e a actividade das academias de ciéncias a partir do século xvmt. Uma vez provada essa utilidade pela crescente ligagio da ciéncia 4 técnica, © progresso cientifico pode passar a justificar-se nos seus préprios termos, iden- st6rica dominante do processo cientificainiciada no séeulo XVI. Ao sfirmar que co livro da natureza esti escrito em caracteres geométricoss, Galileu cri simulta- _neamente as condigées para o conhecimento cientific sce modelado segundo o conhe- cimento da natureza © para este ser construida segundo a légica da matemitica, Talvez por isso também a sciologia do conhecimento tenbe sempre recuado perante as citncias naturas, apesar da sua orientaclo anti-positvista, Em Mannheim, © condicionamento social destas (Seinggebundenkeit) € reduzido a0 minimo, & deter- lo da direcefo da investigacio. Mas o prépeio Mannheim nto deixa de repe- tidamente denunciar 0 ¢postivismo moderno» por ter aderido a um ideal de citacia fe de verdade que esloca fora do dominio cientfico todo 0 conhecimento no quan- tificivel e no mensurivel (Ideolagy and Utopia, New York, Harcourt, Brace and World, s.d.,p- 165, 290 ss. O original alemio data de 1929/31 ¢ & primeira edicio em inglés ¢ de 1936). Sobre as relagbes entre a sociologia do conhecimento © a8 citncias naturals, ef, por exemplo, R. G. A. Dolby, «The Sociology of Knowledge {in Natural Sciencev in B. Barnes (ors), Sociology of Science Penguin, 1972, p. 30055, © Pecer Weingart (org.), Wisenchaftsosilogie 1, Fischer Verlag, 1972, p. 28. 2% Para uma discussfo em Portugal da questio do object, cf. A. Sedas Nunes, Quesdes proliminares sobre as citnias sociais, Lishou, GIS, 1972, ¢ Ferreira de Almeida e Madureira Pinto, A Inwestigards nas Giénciar Sociais, Lisboa, Pre senga, 1976, 21 tificando-se com 0 progresso tout court, ¢ assim se entrou na segunda fase, a fase da autonomia da cigncia que veio a atingit 0 seu pleno desenvolvimento no século x1x. A partir da década de 30 do nosso século, a industrializagdo da citncia ¢ as consequéncias por vezes nefastas do progresso tecnolégico comecaram a minar de varios modos © principio da autonomia, o progresso cientifico deixou de poder ser considerado intrinsecamente benéfico ¢ a ciéncia voltou a ter de justificar-se pela sua utilidade e pelas condigdes em que tal utilidade pode ser garantida sem efeitos negativos. Esta constitui a terceira fase e € nela que se encontram as ciéncias fisicas ¢ naturais quando surge a sociologia da ciéncia. Pode pois parecer surpreendente como ‘Merton tenta fazer 0 curto circuito des duas tiltimas fases, transfor- ‘mando 2 autonomia em condicio de utilidade. ‘Talvez tudo se explique se tivermos em mente que a sociologia vinha trilhando nos tltimos quarenta anos o mesmo processo hist6rico de legitimacio, fazendo-o no entanto com um certo atraso em relacéo fs cigncias fisicas ¢ maturais. Na década de 40 a sociologia emergia entamente da primeira fase € comegava a poder justificar-se autono- mamente, sendo disso refiexo o proceso de expansio ¢ instituciona- lizagdo por que passava®, A constituicdo da ciéncia enquanto objecto de andlise sociolégica reflecte este satrasor da sociologia em relagio as citncias fisicas e naturais ¢ o interesse da sociologia no seu proprio desenvolvimento enquanto ciéncia. A cifncia-sujeito procura na cigncia-objecto o retrato de familia que mais Ihe convém, ¢ esse € 0 retrato da autonomia, ‘Compreende-se assim o interesse na ignordncia (e até uma certa uta pelo esquecimento) de todos os temas susceptiveis de desestabi- lizar © processo de organizagio e institucionalizagio em curso. Talvez por isso também tenha Merton contribuido para a sobrevalorizacio da especificidade institucional da ciéncia ao considerar serem-the inaplicdveis as teorias sociolégices até entfo elaboradas sobre outros tipos de instituigdes. Qualquer das normas que constitui a ética cientifica dramatiza a diferenca da actividade e da profissto cien- tifica em relagio as demais actividades € profissies. * Falo de autonomia enquanto retérica de legitimagio, Como tal surge ‘80 momento em que se consoida a unido da sociologia com os interesses da classe dominant, 22 ‘Mas por deiris da teoria de Merton nfo esté apenas um projecto profissional. Esti também um projecto social ¢ politico ao servigo do qual sfo postos a ciéncia em geral e a sociologia em particular. ‘A concepsiio da pritica cientifica como desvio recuperdvel pelo sistema visa transformar a ética cientifiea da sociedade liberal avangada em ética universal, retirando assim do seu contexto sociolégico a norma- tividade instituida —_um procedimento «pouco sociol6gicos ¢ sobre~ ‘tudo pouco condizente, quer com a norma do cepticismo organizado, quer com a do desinteresse. A sociologia funcionalista demarca-se frontalmente em telagio as tentativas isoladas da sociologia marxista, como a de Bernal, para as quais a industrializagio da ciéncia na sociedade capitalista conduz a que a pritica cientifica reflicta com intensidade cada vez maior os conflitos e as contradigles gerados no seio deste modo de produgdo". Isto é, 0 capitalismo nfo provoca édesvior na pratica cientifica uma vez que, ele & constitutive dessa pritica ¢ por isso a transformagio desta pressupée a transformagio do capitalismo e a sua substituigio pelo socialismo, A investigagdo sociolégica da ciéncia dos anos 50 do principio da década de 60 é balizada pelas concepgées de Merton, tanto no dominio da sociologia da ciéncia, como no da teoria da sociedade. Quanto & iiltima, a distinglo entre fungdes manifestas ¢ latentes da acgio humana, que subjaz a todas as andlises de Merton", é utilizada para demonstrar como certos comportamentos manifestamente sirra~ cionaiso (por exemplo, a excessiva concorréncia entre 0s cientistas © a luta pela prioridade) desempenham a fungio latente de promover desenvolvimento cientifico, a socializacio dos cientistas nas normas da citncia, e deste modo contribuem para a autonomia da ciéncia € para a sua seguranga institucional. Dentro dos limites deste tipo de teorizacdo, as variagdes so muitas ¢ por vezes interessantes, Recor rendo @ teoria funcionalista de Homans (0 comportamento como 1 Alem da obra, The Social Function of Science, jd mencionada (vide nota 2), ch, «Science Industey and Society in the 19th Centurys ia Contauras TH (1953) © Science in History, Watts, 1985. Néo & possivel hoje partilhar do optimismo {de Bernal que via na planificacKo da citncia do tipo da que se faziaento na URSS, ‘ condigio nesessiriae suiclente para garancr © progresso inconuicional da ciéncia a0 servigo do povo. 19 “GE, Merton, op. cits p. 735s, 2 troca), Hagstrom considera que a ciéncia esté organizada segundo a teoria da troca. Os trabalhos cientificos (a que nés também chama- ‘mos econtribuigSes*) sto diidivas (gifts) dos cientistas que a ciéncia retribui (recard) com o reconhecimento profissional, Esta retribuigio constitui um estimulo motivacional para novas contribuigdes ¢ assim se encadeia um sistema de reciprocidade cumulativa de que tanto 0 cientista como a ciéncia beneficiam *. As investigagdes desta fase subjaz uma concepgio herdica da cigncia que, enquanto estrutura mitica, tem 0 seu correspondente epistemol6gico no positivismo empiricista. © conhecimento cientifico caminha por um tapete vermelho que s6 se estende para as glérias da civilizagio ¢ da cultura, © seu ritmo e direceio podem ser condicio- nados por factores externos, sociais ¢ culturais, mas cada passo que da, di-o por determinagio interna dos scus métodos, sem pressupostos. A sociologia da cigncia € assim essencialmente apologética da ciéncia € do seu modo de produgio dominant na sociedade capitalista A cxaltagéo da autonomia da ciéncia acaba sempre na apologia da livre concorténcia e da igualdade de oportunidades entre os cientistas, € portanto, na apologia da sociedade liberal, qualquer que seja a extensiio dos adesviosy a que a pritica cientifica esté sujeita nesta sociedade. I ‘A CRISE Na década de 60, uma tal concepgio de ciéncia tornou-se insus- tentivel. A industrializagio da cigncia, que pretendia significar o climax da concepgio herdica da ciéncia, foi, no entanto, realizada de tal modo que o sentido da intervengo da ciéncia ao nivel da produsio ideolégica acabou por entrar em conflito insandvel com o sentido da sua intervengdo ao nivel da producdo material. Hste proceso, que é © Cf. W. O. Hagstrom, «Gift-Giving as an Organizing Principle in Science» in Barnes (org), op. cit p. 105 ss. Ci, ainda S. Cole © J. Cole, «Scientific Output and Recognition: A Study in the Operation ofthe Reward System in Sciencey in American Sociological Review 32 (1967), 377-90. 24 particularmente nitido nas sociedades capitalistas, nio deixou de mani- festar-se nas sociedades socialistas de Estado do Leste Europeu a partir do momento em que as prioridades cientificas ¢, portanto, o sen- tido da industrializagio, passaram a set estabelecidas por entidades burocriticas auto-perpetuaveis. O compromisso da ciéncia com o modo de produgio material acarretou o seu compromisso com o sistema social ¢, portanto, 2 sua corresponsabilizagio na ctiagio © gestio das contradigdes € conflitos dele emergentes (e nele recorrentes) suas repercussdes, quer a nivel interno, quer a nivel internacional. So estas as condigies objectivas da crise da ciéncia que hoje se vive. As suas manifestagdes, que nfo cabe aqui analisar em por- menor, sio perceptiveis sobretudo a0 nivel das aplicagies da ciéncia da organizagio da ciéncia — afinal, as duas faces da industrializacio a cifncia, Em ambos 0s casos trata-se de processos que, como obser- vvimos jf, eram visiveis nas décadas de 30/40, quando se iniciou a primeira fase da sociologia da ciéncia, ¢ que ndo cessaram de se expandir nos anos seguintes. No que respeita as aplicagies da cigncia, ressalta desde logo a ligago da ciéncia a maquina de guerra. As bombas de Hiroshima € Nagasaki foram o salto qualitativo, mas as condigSes em que se deram (€ sobretudo 0 modo como estas foram reconstrufdas ideologicamente) tornou ainda verosimil a ideia de uma ligagdo fortuita. Foi isso, aliés, 0 que permitiu a alguns (no muitos) fisicos nucleares lavar as mos no vaso cristalino da ciéncia pura e de as limpar & toatha alvi- nitente do progresso cientifico. No entanto, a maquina da guerra, longe de esmorecer, transformou-se nos anos seguintes numa indis- tria florescente ¢ a ciéncia, sobretudo a que se designs hoje por big science, colocou-se zelosamente a0 seu servigo. Os Estados Unidos gastam em investigagao ¢ desenvolvimento (ID) * mais do que qual- quer pais do mundo em qualquer das trés grandes dreas estabelecidas, pela OCDE: (1) ID atémica, espacial ¢ de defesa; (2) TD economica- mente motivada; (3) ID para o bem estar e viria (na qual se incluem investigages no dominio da saiide, alcoolismo, etc.)*. Em 1966 0 2% Desenvolvimento significa em geral os gastos feitos na aplicagio dos resul- tados da investigapto dirigida quer a introdugio de novos materiais,equipamentos, produtos, sistemas, processos quer ao aperfeicoamento dos jd existentes. CL. Sklar op. cit. p. 19. 2 investimento do governo americano em ID foi assim distribuido: (1) —87%5 2) —3%5 (3) — 10% ®. Isto & quase 90% dos gastos piiblicos em TD foram dispendidos na érea geral da defesa e tal desi- quilibrio no foi significativamente corrigido até agora. Durante muito tempo a fisica teve o melhor quinhio nos investimentos pabli- cos, mas tal situago vem-se alterando nos anos mais recentes. Tal como a fisica se desenvolveu tremendamente nos anos 50 ¢ 60 a0 servigo da produgdo de armas para a guerra nuclear, também agora a biologia, considerada ja ciéncia de ponta e a receber apoio estatal considerdvel, esté a entrar em fase de boom ao servigo da produgio de armas para a guerra bioldgica (bacteriolégica), jé testada no Vietnam, € que, segundo os estrategas militares, tem sobre a guerra nuclear a vantagem de ser mais limpa, isto 6 mais mortifera e de efeito mais locatizado. A flor deste processo tem-se vindo a reconhecer um pouco por toda a parte que Hiroshima ¢ Nagasaki nfo foram acidentes, foram antes as primeiras afirmagiies dramiticas de um processo suis- ceptivel de produzir outros vacidentess, cada vez menos acidentais € cada ver. mais destrutivos. A ciéncia ¢ a tecnologia tém-se vindo a revelar as duas faces de um proceso hist6rico em que os interesses militares € 05 interesses econémicos vio convergindo até & quase indistingdo. ‘Ao nivel das aplicagies industriais, a crise revela-se, quer na reacgdo piiblica A degradacéo ¢ destruicio do meio ambiente pro- vocada pelas tecnologias depredatérias, quer nos conflitos sociais resultantes da nova divisio internacional do trabalho produzido pelas, empresas multinacionais. Nos tiltimos anos a estratégia destas empre- sas tem-se orientado segundo um de dois esquemas. Se as anilises do marketing prevéem um trend niio muito duradouro para uma certa linha de produgio, a tendéncia & para a relocagdo das unidades de ® Dados do Committee for Science Policy citados por Sklair 0p. cit, p. 20. 4H Segundo nlimeros mais recontes e segundo outta clasificaslo dos gastos o governo americano em ID, 76% foram para defesa © espago; muito atris vém, entre outros: sade 7,3%; recursos naturais ¢ ambiente, 4.9%; hubitagio e plani- ‘eacio urbana, 0,3%j.. Semethante padrfo segue 0 governo federal alemo: 33,1% para o desenvolvimento de novas teenologiss (por exemplo, investigagio nuclear), investigagio espacial, processamento de dados, etc.; 1,2% para «questies sociais saides;0,9% para habitaeio, transportes. Cf. Weingart T, p. 18. 26 produgio, transferindo-as do centro para a periferia, Sem exigirem grandes gastos infracstruturais, os paises subdesenvolvides oferecem mio de obra barata e sestabilidade politicas (0 que quase sempre significa ditadura e repressio da classe operiria). A transferéncia de tecnologia que este esquema envolve € feita em termos que maxi- mizam a dependéncia estrutural do Terceiro Mundo em relagio aos paises capitalistas avangados. As implicagdes dessa transferéncia, que s6 agora comegam a ser sistematicamente analisadas *, vio desde a expoliagio alargada do Terceiro Mundo ao esmagamento da ciéncia e tecnologia periféricas sob a invasto da cigncia e tecnologia centrais. Se, 20 contririo, 0 trend é duradouro, as multinacionais esto hoje a optar cada vez mais pela robotizagio da produgiio, isto é pela auto- magio. Este esquema, que envolve grandes investimentos em ID que precisamente por isso sofreu um lento desenvolvimento na ultima década, esti agora em vias de atingir uma expansio insuspeitada, © que pode estar também relacionado com o facto de a sestabilidade politica dos paises periféricos ser cada vez mais problemética, em virtude da forga crescente daqueles que nesses paises lutam contra 0 imperialismo. © desemprego estrutural que a automacio provocard nos paises centrais pode nfo significar uma crise grave, mas vai certamente provocar transformagées profundas *. ‘Mas, como jé disse, a contestaglo da ciéncia ¢ a consequente crise a partir dos anos 60 tem uma outra face, a organizagio da ciéncia, também ela concomitante da industrializagio da ciéncia, A inte~ grado da cigncia no complexo militar-industrial, ¢ portanto a sua conversio em forca produtiva, possibititou 0 crescimento exponencial da cigncia e produziu profiundas alteragGes na organizacio do trabalho cientifico. Segundo Price, 80 a 90% dos cientistas de todos os tem- os vivem nos nossos dias**. Ainda segundo a mesma fonte, pode calcular-se que mimero de cientistas € engenheiros duplica cada % Para o caso portugués, cf. J. M. Rolo, -Transferéncias de tecnologia ¢ dependéneia extrutural portuguesa: resultados de um inquésitor in Andlise Sociat (1975), p. 213 s2.5 idem, “Modalidades de tecnologia importada em Portugals in Anite Social (1976), 9. 541 ss. 1 “Sobre os robots ¢ a producio nesta nova fase, Cf. David Chidakel, The ‘New Robots: Can They Do Your Job? in Science forthe People (Nov. 1975), p-6 55 4H Gitado por Weingart I, p. 16. 27 dez ou quinze anos, o que levou Sklair a comentar que num futuro nfo muito distante seremos todos cientistas ¢ engenheiros®. As universidades, que durante muito tempo detiveram 0 monopélio da investigago cientifica, perderam-no em favor dos governos ¢ da indistria. Na Europa foi sobretudo notéria a criagio de grandes, laborat6rios ¢ centros de investigacio subsidiados pelo Estado, enquanto nos Estados Unidos o governo seguiu a politica de contratar com as universidades ¢ com as grandes empresas a investigagio (quase sem- pre do dominio militar). Entre as consequéncias deste proceso podemos salientar as que se referem as transformagies nas condigies do trabalho cientifico. A esmagadora maioria dos cientistas foi sub- metida a um processo de proletarizagio no interior dos laboratétios € centros de investigacio. Expropriados dos meios de produgio, assaram a estar dependentes de um chefe mais ou menos invisfvel, édono» dos métodos, das teotias, dos projectos, ¢ dos equipamentos. A ideologia liberal da autonomia da ciéncia transformou-se em cari- catura amarga aos olhos dos trabalhadores cientificos. Ao processo de proletarizago apenas escaparam os «donos», os cientistas de pres- tigio cujo elitismo este processo potenciou. Entre as elites ¢ 0 cientista- -soldado raso cavou-se um abismo, estabeleceu-se uma estratificagio social, € a comunidade cientifica passou a distribuir as suas dédivas segundo a posicio do cientista na escala de estratificagio. A distri- buigio de reconhecimento ¢ de prestigio tornou-se estruturalmente desigual ¢ passou a processar-se segundo aquilo a que Merton cha- ‘mou, noutro contexto, 0 efeito de Sio Mateus (sporque a todo aquele que tem, seré dado e dado em abundancia; ao passo que ao que nio tem, ainda o que tem Ihe seri tirador Mt. XXV, 29). A situagio dos cientistas nos laborat6rios das inckistrias tornou-se particularmente penosa dadas as presses no sentido da rentabilidade industrial da investigagio®. Em vez do scomunismo» de Merton, a norma passou a ser o segredo (seguido da patente) e em geral a comunicacio entre GE. Skis, op. cit p. 45. Num trabalho mais recente (1960) Price afere 2 dindmica desenvolvimentista da ciéncia nas suas relagées com a tecnologia. CL. Derek Price, ‘Science and Technology: Distinetions and Interrelationships+ fn Barnes (org.), 0p. cits p. 166 ss. 2 Entre muitos outros, cf. 8. Cotgrovee S. Box, Science Industry and Society, London, Allen and Unwinn, 1970; Sklar, op. city p. 74 € ss.5 161 ss 28 os cientistas tornou-se cada vez mais dificil em consequéncia da explosio da produgio. Da comunicagéo formal passou-se & comuni- cago informal no seio de pequenos grupos de cientistas funcionando como «invisible collegess. A investigagio capital-intensiva tornow imposstvel o livre acesso a0 equipamento — a caricatura da igualdade de oportunidades Nao é de espantar que nestas condigies a crise da alienagio se tenha instalado no interior dos quarteis generais da ciéncia, provo- cando revoltas, desergies, contestagies, objecydes de consciéncia demasiado numerosas para poderem ser ocultadas ou langadas no pantano da perturbagio psiquica. Ao contritio, a radicalizagdo dos cientistas organizou-se em miiltiplas formas, deu origem a varios movimentos e revistas (uns de tendéncia liberal, outros de tendéncia marxista) € tem hoje uma audiéncia significativa®, sits © PARADIGMA DE KUHN (E DE MARX) Esta crise, que continua aliés debaixo dos mossos olltos (tio debaixo que por vezes a no vemos), assumiu tamanha gravidade que teve forgosamente de produzir um abalo (ainda que com atraso) nas concepgbes filoséficas ¢ sociolégicas da ciéncia, herdadas do periodo anterior ¢ ainda dominantes. A violtacia das transformagdes a0 nivel quer das aplicagdes quer da organizagio da cigncia levou 59 Deve atentarse em que 0 diagnéstico da crise & jd wm afastamento da concepsio postivista da cidncia © $6 ¢ possivel através dele. Uma vez que se mio ponha em causa o caricter absoluto da validacio interns dos processos cognitives, ‘todas estas transformagSes da pritica clentfica podem ser consideradas funcionais para o progresso da citncia, E isso mesmo foi feito pela sociofogia funcionalista ‘a0 considera, por exemplo, que « polarizacto entre os cientstas de ete eos cientstas plebeus era funcional, ums vez que libertava os grandes cientistas do trabalho de rotina e o8 colacava em posiglo éptima para conduzir a investigasfo inovadora arriscada. 31 CE. Rose € Rose, op. cit. Um dos grupos mais signifcativos € Scientists sand Engineers for Social and Political Action que publica a revista Science for she People. Al se tém feito as dentincias mais esclarecidas da ciéncia capitalists 2 4 por o problema do conteiido da cifncia, A especifica configuragio do contexto sociolégico em que 0 conhecimento cientifico passara a set produzido tinha que se reflectir neste, independentemente do ‘estatuto epistemoligico do conhecimento cientificy produzido nou- tro qualquer contexto. Para esta intuigio ser teoricamente articulével foram, no entanto, necessétio uma nova filosofia ¢ uma nova sociologia da cigncia. Os fundamentos de uma e de outra so langados na obra de Thomas Kuhn que, por isso mesmo, considero inspiradora da segunda fase da sociologia da ciéncia, cuja discussio agora se inicia. Antes disso, porém, & necessério ter em conta um facto que os sociélogos tendem a esquecer. E que o desmantelamento da concepsio herdica € posi- tivista da citncia a0 nivel da sociologia nfl seria possivel se tal desman- telamento ndo se desse também, ¢ concomitantemente, no scio da sociologia. A crise da cincia nos anos 60 é também a crise da socio- logia, E pode adiantar-se mesmo que a compreensio sociolégica da crise da ciéncia nfo é possivel sem a experiéncia cientifica da crise da sociologia. ‘A marginalizagéo a que foram submetidas as ciéncias sociais no principio do século xx, em contraste com o investimento piblico ¢ privado no progresso das ciéncias fisicas € naturais, se por um lado retardou o seu desenvolvimento, por outro lado permitiu-lhes manter ‘uma certa autonomia politica, © que se manifestou no impeto critico com que frequentemente investiram contra o sistema de dominactio ™. Esta situagio foi-se alterando no petiodo entre as duas guerras mun- diais a medida que as ciéncias sociais foram recebendo o apoio pablico necessirio a uma ampla institucionalizacio académica, um proceso particularmente notério nos Estados Unidos. A Segunda Guerra mundial foi o campo privilegiado para a aplicago dos conhecimentos cientifico-sociais & preparacdo militar, & guerra psicolégica, & espio- ‘agem ¢ & contra-espionagem. Assim se desenvolveram rapidamente as tecnologias sociais apoiadss pelo aparelho do Estado. Depois da guerra, 0 investimento piblico ¢ privado nfo mais foi regateado © as cincias sociais (e a sociologia em especial) entraram em fase de boom ¢ de triunfalismo, mau grado as vozes dissonantes (C. W. Mills, por exemplo, e quase exemplo tinico). Chr. Sedas Nunes, op. cite v.25 30 Os movimentos sociais dos anos 60 — as revoltas das minorias €tnicas, dos estudantes, dos reclusos, dos guctos urbanos, bem como as greves — vieram colocar sob uma luz diferente o papel das ciéncias sociais na ereforma sociale. Os grandes problemas sociais persistiam € até se agravavam a despeito dos vultuosos recursos dispendidos nas citncias sociais com vista a0 seu diagnéstico € solucio. Os apolo- getas do sistema social de dominagio ainda tentaram interpretar este impasse como demonstracio da insuficifncia dos métodos ¢ das teorias e, portanto, como justificago para novos investimentos. ‘Mas a corrente da contestagio do processo no seu todo adquiria novas forgas dentro ¢ fora da scomunidade cientificar, Foi-se tor- nando claro que as ciéncias sociais tinham entrado num pacto social com as classes dominantes nos termos do qual o desenvolvimento cientifico-téenico scria conquistado pelo prego da neutralizacio politica, da cooptagio. Os instrumentos tedricos ¢ metodol6gicos tinham sido desenvolvidos para colocar o sistema de dominagio fora do horizonte problemético ¢ assim converter todos os problemas sociais em puasles com mais ou menos pegas mas sempre em nimero limitado © segundo as definigées pré-estabelecidas. Nestas condigées, a sociolo- gia tornava-se incapaz de propor alternativas reais e solugdes auténticas ara 0s problemas que entio emergiam com toda a violéncia®. A utilizagio das cigncias sociais na contra-revolucto ao servigo do imperialismo (da antropologia, na Asia, sobretudo durante a guerra do Vietnam; e da sociologia, na América Latina, bem demonstrada no projecto Camelot) veio aprofundar a crise. Muitos cientistas sociais abandonaram o trabalho académico © organizaram-se em grupos ¢ movimentos do tipo daqueles que antes tinham reunido clentistas fisicos ¢ naturais, como acima se referiu. Dada a «maior proximidadey (pelo objecto) das ciéncias sociais aos problemas sociais, foi possivel aos cientistas sociais (com maior ficilidade que aos cien- tistas naturais) colocarem 0s seus conhecimentos, e portanto @ mesina cigncia, ao servigo da resolugdo desses problemas que invariavel- % Para uma ertica acerba da sociologia académica funcionaista, cf. Alvin Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology, New York, Equinox Bocks, 1970. A alterativa proposta por Gouldner & de tal mancira frouxa que pode ser consi= erada um documento para a sociologia da sociologia, pois que elucids bem 0 impasse em que o funcionslisme coloca os seus cultores, mesmo quando ees se revoltam contra cle 3 ‘mente afligiam as comunidades pobres, os desempregados, as mino- tias étnicas, a classe operiria. Seleccionando os problemas segundo a sua orientacéo politica € a sua especializagio, estes cientistas politi- zaram-se ¢ radicalizaram-se enquanto cidadios, e nfo enquanto cien- tistas dado que continuaram a usar da mesma ciéncia, ainda que com @ preocupaglo de climinar a distingio, antes axiomitica, entre pro- bblemas sociais e problemas sociolégicos. Em consequéncia disto, € semelhantemente ao que acontecera com os cientistas fisicos € naturais, a participago praxistica dos cientistas sociais acabou por ser aceite € reconhecida pela sua dimensio técnica, 0 que tornon possivel a sua progressiva cooptagio por parte do Estado e demais instiwuigdes interessadas na solugio desses problemas sociais segundo as definigdes mais adequadas & estabilidade do sistema de dominagio, Dado o cardcter pré-paradigmético das ciéncias sociais, a eclosio da crise ofereceu no entanto aos cientistas sociais uma possibilidade que os cientistas fisicos e naturais pensavam estar-Ihes vedada, a possi bilidade de se politizarem simultaneamente como cidadios ¢ como cientistas, Para isso, foi necessério revelar a muitos uma ruptura que sempre existira no seio das ciéncias sociais mas que fora escamo- teado nos titimos trinta anos pelas forgas dominantes na écomunidade cientifica» académica, sobretudo americana, A ruptura entre o mar- xismo ¢ 0 funcionalismo *. A sociologia cléssica desenvolveu-se a par- tir de Durkheim com um sinal positivista e anti-socialista, Paralela- mente a cla, ¢ reflectindo a luta de classes nas sociedades capitalistas, desenvolveu-se, a partir da obra de Marx, uma sociologia marxista. ‘A institucionalizagdo académica da sociologia, isto é, a entrada desta nas universidades, conduziu (como niio podia deixar de set) & vopgiior pela sociologia clissica. Nos Estados Unidos, onde progressivamente se foi localizando a vanguarda do progresso cientifico-social, a socio- logia clissica ¢ a tradigo curopeia (canalizada sobretudo por Max Weber) veio a ter um desenvolvimento notivel, tanto teérico como sistemitico, no que passou a constituir a sociologia funcionalista *, % Para a discusslo sobre a conllitualidade interna das citncise sociais, vide © excelente trabalho de Sedas Nunes, if citado, p. 35 88 * A investigacle mais inovadora dentro desta correate fol conduzida por ‘Merton, embora a grande sintese tebrica pertenca aT. Parsons [Ths Structure of Social Action, 2 vols., New York, Free Press, 1968 (1937); The Social Systom, New York, Free Press, 1964 (1951) 32 A sociologia marxista, que tivera nos Estados Unidos um certo flores- cimento nas primeiras décadas do nosso século, foi rapidamente asfixiada. A imigracio, durante o nazismo, dos fildsofos e sociélogos alemies judeus, muitos deles marxistas (obretudo os da escola de Frankfurt), veio possibilitar o ressurgimento da sociologia marxista, ‘Mas as condigSes da guerra fria no pés-guerra, o meCarthismo € as, condigdes teéricas criadas por uma sociologia funcionalista pujante ¢ arrogante néo permitiram que a alternativa marxista se impusesse. Com a crise dos anos 60 a situagio intelectual alterou-se profun- damente. © descrédito do funcionalismo tornou possivel 0 desen- volvimento, mesmo ao nivel das universidades, dos estudos marxistas. Os clissicos voltaram a ser lidos ¢ tentou-se recuperar a tradigao da sociologia marxista europea, sobretudo da Franca ¢ também da Inglaterra. Assistiu-se entio a um comércio internacional de ideias susceptivel de deixar perplexo o olho desatento: enquanto a Europa Gobretudo a Franga ea Alemanha Federal) passou a absorver avida- mente a sociologia funcionalista americana, os Estados Unidos pro- curaram a todo 0 transe pér-se a par da sociologia marxista europcia. Este processo, ainda em curso, esti no entanto a alterar-se, pelo menos nos Estados Unidos. Desde 1973 que a sociologia marxista tem vindo a receber ordem de despejo das universidades ¢ dos centros de investigagio mais prestigiados, O refiigio nas universidades de segunda ou terceira categoria é uma solugio meramente transitéria pois estas esto muitas vezes instaladas em comunidades pouco tole- antes com red scientists (ou pinkos). O desemprego ou a cooptacéo so a altemativa. E preciso notar que a sociologia marxista, embora possibilite a politizagdo do cientista enquanto cientista, exige que ela se estenda ao cientista enquanto cidadio. As condigdes politico- -sociais (nfo s6 nos Estados Unidos) tornam, no entanto, parti- cularmente dificil uma politizagdo plena, Dai que a alternativa da sociologia marxista apareca por vezes desenraizada de um process de transformagio social global e nessa medida seja mais reflexo da crise do que uma forga para a sua superagdo. Nem s6 a ruptura & sinal da crise nas citncias sociais; 6-0 também e sobretudo a (in) solu- do da ruptura. Foi no contexto da dupla crise da ciéncia e da sociologia que se inicion a segunda fase dos estudos de sociotogia da cifncia, uma fase caracterizada por uma critica sistemética e mais ou menos profunda 33 da concepgio herdica da cigncia. O mesmo contexto explica porque & que a critica € auto-critica, E assim no surpreende que os estudos de sociologia da ciéncia nesta fase tenham surgido ao mesmo tempo que os estudos de sociologia da sociologia®*. A construglo teérica que inspira e orienta os estudos desta fase parte, como dissemos, de Thomas Kuhn, em especial da obra intitulada The Structure of Scien- tific Revolutions", uma obra de importéncia fulcral cujas implicagdes sociolégicas nao foram ainda sistematicamente exploradas. ‘A teoria central de Kuhn é que o conhecimento cientifico nfo eresce de modo cumulativo e continuo. Ao contratio, esse cresci- mento é descontinuo ¢ opera por saltos qualitativos, que, por sua vez, no se podem justificar em fungdo de critérios internos de validagao do conhecimento cientifico. A sua justificagio reside em factores psicolégicos e sociolégicos ¢ sobretudo na comunidade cientifica enquanto sistema de organizagio do trabalho cientifico. Os saltos qualitativos tém lugar nos perfodos de desenvolvimento da ciéncia fem que sio postos em causa ¢ substituldes os principios, teorias ¢ conceitos bésicos em que se funda a ciéncia até ento produzida e que constituem o que Kuhn chama sparadigma», O desenvolvimento da ciéncia madura processa-se assim em duas fases, a fase da ciéncia normal e a fase da cigncia revoluciondria, % Por exemplo, L. Reynolds J. Reynolds (orgs.), The Sociology of Sociology, New York, McKay 1970; R, W. Friedrchs, A Sociolagy of Secilogy, New York, Free Press, 1972 (1970). YT, Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago, University of Chicago Press, 1962, A traducio francesa (Flammarion) ¢ da 2 ediedo aumentada de 1970, A importincia de Kuhn assenta menos na sua originalidade do que no sea esforgo de sintese e na sua capacidade para dar (lego polémico a ideas j& presentes rat obras de outros autores. No preficio a The Structure, Kuhn no deiza de reconhecer « grande influéncia que sobre ele exerceu A. Koyré, sobretudo em Ler Poudes galiléennes, 3 vols., Paris, 1939. 'No seguimtento da discuss4o.com os seus erticos, Kun alterou sucessivamente sua teoria em aspectos mais ou menos marginas ¢, em meu entender, nem sempre ‘no melhor sentido. Por isso me reporto ao seu pensamento original e, nos pardgrafos ‘ue se seguem, cito livremente da sua obra. Para uma discussio actuaizada das aleragSes propostas por Kubin (ou por ele aceites), vide W. Diederich (org), Theorion der Wisenschaftrgechichte Frankfurt, Surkamp Verlag, 1974; uma visto completa dda discussfo de Kuhn com os seus crtioos encontra-se em T, Lakatos e A. Musgrave (otgs.), Crticim and the Growth of Knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1970, 34 A ciéncia normal &2 ciéncia dos periodos em que o paradigma & unani- memente aceite pela comunidade cientifica. © paradigma estabelece simultaneamente o sentido do limite e o limite do sentido e, consequen- temente, o trabalho dos cientistas dirige-se & resolucio dos problemas € 8 eliminagdo de incongruéncias segundo os esquemas conceituais, tebricos e metodolégicos universalmente aceites. Estes, alis, presi- dem tanto a definigio dos problemas como a organizacio das estra- tégias de resolugo. Os problemas cientificos transformam-se em puzsles, enigmas com um mimero limitado de pegas que 0 cientista — qual jogador de xadrez — vai pacientemente movendo até encontrar a solugio final. lids, a solugio final, tal como no enigma, & conhecida antecipadamente, apenas se desconhecendo os pormenores do seu conteiido e do processo para a atingir. Deste modo, o paradigma que 0 cientista adquiriu durante a sua formagio profissional forne- ce-Ihe as regras do jogo, descreve-the as pegas com que deve jogar € indica-the a natureza do resultado a atingir. Se o cientista falha, como ¢ natural que aconteca nas primeiras tentativas, tal facto é atri- buido A sua impreparagio ou inépcia, As regras fornecidas pelo paradigma no podem ser postas em causa, pois que sem clas no existiria sequer o enigma. Assim, 0 trabalho do cientista exprime ‘uma adesio muito profunda ao paradigma. A crenga é de que os pto- bblemas fandamentais foram todos resolvidos pelo paradigma e de uma vez para sempre. Uma adesio deste tipo niio pode ser abalada levianamente. De resto, a pritica quotidiana da comunidade cientifica reforga essa adesto a todo o momento, A experiencia mostra que, em quase todos 0s casos, os esforgos reiterados do ciemtista, indivi- dualmente ou em grupo, conduzem & solugio, dentro do paradigma, dos problemas mais dificeis. Por isso também nao admira que os cientistas resistam & mudanca do paradigma. O que eles defendem nessa resistencia € afinal o seu eeay of life profissional ‘Mas decurso da ciéncia normal nfo € feito 36 de éxitos, pois, se tal fosse 0 caso, nfo eram possiveis as inovactes profundas que tém tido Iugar ao longo do desenvolvimento cientifico, Ao cientista «normal? pode suceder que o problema de que se ocupa, nfo s6 nio tenha solugio no ambito das regras em vigor, como tal facto nilo possa ser imputado A impreparagio ou inépcia do investigador. Esta expe- rigncia pode em certo momento ser partilhada por outros cientistas pode suceder, além disso, que por cada problema resolvido ou por co cada incongruéncia eliminada outros surjam em maior nimero ¢ de maior complexidade ou de impossivel solugdo. O feito cumulative deste processo pode ser tal que a certa altura se entre numa fase de crise. Incapaz de the dar solusio, o paradigma existente comega a revelar-se como a fonte iltima dos problemas ¢ das incongruéncias, € 0 universo cientifico que Ihe corresponde converte-se a pouco ¢ pouco num complexo sistema de erros onde nada pode ser pensado correc- tamente. Jé outro paradigma se desenha no horizonte cientifico © © processo em que ele surge e se impie constitui a revolugio cientifica ea cigncia que se faz a0 servigo deste objectivo a ciéncia revolu- ciondtia. © novo paradigma redefine os problemas ¢ as incongrutncias até entio insoliveis € dé-thes uma solugdo convincente ¢ € nessa base que se vai impondo 4 comunidade cientifica. Mas a substituigio do paradigma nio é répida. O periodo de crise revoluciondria em que © velho © 0 novo paradigma se defrontam ¢ entram em concorténcia pode ser bastante longo, Uma vez que cada um dos paradigmas estabelece as condigoes de cientificidade do conhecimento produzido rno seu Ambito, as provas cruciais aduzidas em favor do novo para- digma podem facilmente ser consideradas ridicules, triviais ow insu- ficientes pelos defensores do velho paradigma. O didlogo entre os

You might also like