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ABSTRACT: Originally writen to present Brazilan arists at a Latin American exhibition planned for New York (whic, in (ct, was never held) this text is a short ‘summary of Brazilian art during the 20th century. Ie seeks (0 describe the shift om (the desire (shared by local artists and cites until the 1950s) to set up a typically Brazilan art, (0 its actual establishment, & process which has been going on for the last 30 years. KEY WORDS: Conternporary Brazilan art Soon com © romantismo aca demico na primeira metade do século passado, a necessidade de criar_no Brasil uma arte tipicamente nacional por mais de cem anos direcionou a produgio de varios artistas locais. multas vezes cerceando suas potencia- lidades criativas. Preocupados em consti- tuir aprioristicamente uma arte brasilei- ra com caracteristicas préprias, varios deles deixaram de dar razdo as suas personalidades ¢ as questdes inerentes & arte para se engajarem naquele pro- grama. Esta preocupagdo com a consti- tuiggo de uma Iconografia_ singular esteve ligada inicialmente as preocupa- ges da elite econémica e intelectual nacional e se manifestou no campo das artes visuais através da producio dos artistas ligacios a antiga Academia Im- perial de Belas Artes do Rio de Janeiro. TADEU CHIARELLI Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional Porto Arte, Porto Alegre v.61. 10, p.15-25, new. 1995, 16 BB tadeu chiareti Como seus colegas escritores, poetas € historiadores, os artistas liga- dos a Academia, comprometidos com a legitimacdo do Estado brasileiro re- centemente liberto de Portugal (1822), produziram pinturas e esculturas ideali- zadas e enaltecedoras do poder impe- rial, da Religido Catélica, do Exército da Marinha nacionais. Quando se afas- tavam desses temas nitidamente ofi- ciais e formalmente relacionados com a arte conservadora européia, normal- mente produziam obras que tentavam dar conta da visualizagdo de uma mito- logia brasileira, através da representa- do - sempre em chave idealizada - de mitos retirados sobretudo da literatura e da poesia romanticas que entao aqui se produzia. Mesmo j4 na segunda metade do século passado, quando os influxos realistas e naturalistas se faziam presen- tes em varias partes do mundo, os artistas ligados & Academia insistiam em perpetuar em seus trabalhos uma imagem idealizada do Brasil, bastante diferente da realidade local, marcada pelo pasado colonial do pais e pelo presente estigmatizado pela opressao imperial e pela escravidao da popula- do negra. Fol contra esta producao artistica altamente comprometida com os inte- esses politicos e ideolégicos do poder imperial que se insurgiram alguns artis- tas e criticos brasileiros no final do sé- culo XIX. Em sua maioria republicanos @ a favor da libertacao dos escravos, eles acreditavam que o Brasil apenas teria uma arte nacional quando os artis- tas deixassem de idealizar a histéria, os mitos e 0 Estado para registrarem - a partir da estética naturalista - a realida- de fisica do pals: a luz, as cores, os elementos topografices, a flora brasileiras. Embora contrérios aos direcio- namentos da Academia Imperial, € Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 importante ressaltar que esses artistas, Por sua vez, mantinham-se interessa- dos igualmente na construgéo de uma arte nacional, singular e tipica. Se seus antecessores transformavam em mitos certos elementos da histéria e da litera- tura nacionais, agora eles transforma- ‘vam em mito a natureza tropical brasi- leira. Tal desejo de constituigio de uma arte brasileira através da captagao do ambiente local no ficard restrito apenas aos artistas da passagem do século XIX para 0 século XX. Ele con- taminard igualmente a produgao da primeira metade deste século e marca- 4 fortemente a producao dos artistas ligados a0 Movimento Moderista iniciado em 1922, tido como introdutor das vanguardas e da modemidade attisticas no Brasil. Sera o desejo de criacéo de uma arte nacional o fator predominante que impediré os modemistas de aderirem 4s formulagdes mais avangadas e de- sestabilizadoras da arte, levantadas por alguns segmentos das _vanguardas histéricas européias. Como pensar na produgao de obras apenas preocupadas com as questées intrinsecas da pintura, por exemplo, se, pairando na mente dos modernistas, existia ainda a neces- sidade de captacdo € tematizacdo da tealidade fisica e humana do pais? Como pensar em romper com a sepa- ragéo entre arte e vida - formulacéo proposta por alguns dadaistas, expres- sionistas e surrealistas - se para os mo- demistas era primordial criar no pais uma iconografia ainda preocupada com © tipico, com o local? Sera justamente pela manuten- 0 desse desejo de criagdo de uma arte nacional que os modernistas brasi- leiros se aproximaréo mais das ten- déncias do Retorno a Ordem europeu - surgidas naquele continente no periodo Da arte nacional brasileira para aarte brasileira internacional Ml 17 entre as duas guerras mundials -, do que das vanguardas mais _radicais. Como se sabe, no contexto do Retorno & Ordem estava previsto, além da su- pressfo das indagacdes estéticas € artisticas mais radicais das vanguardas, a necessidade de retorno ao realismo (mesmo que sintético), e a valorizacao do nacional. Nada mais apropriado aos modemistas, engajados na construcdo de uma arte cujo tema brasileiro era a tonica primo Sem diivida este compromisso marcante na arte brasileira até os anos 40 deste século nao impediu o surgi- mento de alguns valores fundamentals. Na passagem do sécu- lo, Gimbattista Castag- neto (1851-1900) foi um paisagista extrema- mente sensivel, produ- zindo obras de forte apelo psicol6gico, muito comprometidas com as questdes intrinsecas da pintura e completamen- te afastadas de qual- quer compromisso na- clonalista. Mesmo no contexto modemista deste século Oswaldo Goeldi (1895- 1961), Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) e poucos outros se desta- caram pela singularidade de suas poé- ticas e€ pelo descompromisso dos mesmos com aquela necessidade qua- se obrigatéria de, ao fazer arte, mapear as singularidades naturals € socials brasileiras. Esse descom-promisso, no entanto, no os impediu de constitui- rem obras marcadas _profundamente por suas experiéncias como artistas conectacos com a arte internacional, vivendo os varios aspectos contradité- rios de um pais como o Brasil. No entanto, a arte brasileira mais valorizada até o final da Il Grande Guerra foi aquela justamente preocu- pada em caracterizar as peculiaridades locais. Como exemplo poderiam ser citadas as producées de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976) e Candido Por- tinari (1903-1962), artistas com produ- ‘s6es estruturalmente calcadas nos valo- res naturalistas/realistas, apesar do trata- mento formal superficialmente adapta- do aos procedimentos estilisticos do expressionismo e/ou do cubismo his- téricos. Sera a partir dos anos 50 deste século, quando uma parcela consideré- vel da nagdo passa a desejar que o pals ingresse definitivamente na _moderni- dade do século XX, que alguns grupos de artistas iréo. deixando de lado aquela necessi- dade preconcebida de criagéo de uma arte nacional, a favor de uma producdo dispos- ta a se constituir atra- vés de um didlogo direto com as questées da arte contemporanea internacional. © primeiro sinal desta mudanca de direcionamento pode ser percebida nos movimentos ndo-figurativos cons- trutivo e informal surgides ainda naque- la década, muito influenciados pelo impacto que as edigdes das bienais Intemacionais de S40 Paulo causaram no melo attistico brasileiro. Criadas pelo Museu de Arte Modema de Sao Paulo em 1951 as bienais finalmente colocaram © artista local em contato direto com as produgées dos principais artistas internacionais deste século. Até 1951 no Brasil, alguém inte- ressado em estudar e/ou apreciar arte modema e contemporanea, se nao pudesse ir a Europa ou aos Estados Unidos ver de perto os originals, devia Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 18 BB tadeu chiaret se contentar em entrar em contato com a producdo intemacional através de reprodugdes, uma vez que as exposi- g6es de arte modema realizadas no pais até aquela data eram raras e restri- tas a poucos artistas € no publico brasi- leiros que, de repente, puderam se ver diante de obras de artistas fundamen- tals para a constituicao da modemidade no campo das artes visuals. Esta nova situagéo de caréter, digamos, mais cosmopolita, modificou de imediato 0 ambiente artistico local, tomando-o permeavel as novas inda- gacées estéticas que vinham do exte- rior. Como conseqiiéncias iniciais assis- tiu-se a varios artistas com trajetérias aparentemente jé definidas envereda- rem para solugdes formais mais ao gosto do novo momento artistic: ao mesmo tempo, uma nova geracdo comecou a se impor ao circuito arttstico brasileiro (que entao tentava se estrutu- rar em moldes mais profissionais), com formulagdes muito proximas a contem- poraneidade artistica internacional. Tal situagdo mais alargada, me- nos provinciana mas ao mesmo tempo bastante mimética no inicio, aos pou- cos foi dando espaco para que o circul- to incorporasse artistas que, despreo- cupados agora com qualquer formula- 40 particularmente nativista ou inter- nacionalista, passavam a desenvolver poéticas singulares, constituidas num cruzamento proficuo entre suas experi- Encias individuais como artistas brasi ros ou aqui residentes (com tudo 0 que isto significa, sendo o Brasil um pais em busca da modemidade num contexto socio-cultural de Terceiro Mundo), € as novas formulacdes estéticas € artisticas vindas A tona a partir da Segunda Grande Guerra. Neste contexto poderiam ser ci- tadas tanto as obras de artistas imigran- tes como Alfredo Volpi (1896-1988) e Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 Mira Schendel (1919-1988), quanto daqueles nascidos no Brasil, como Iberé Camargo (1914-1994), Helio Olticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1929), Wes- ley Duke Lee (1931) ¢ outros. Parte da produgéo de Mira Schendel - artista sulca radicada no Brasil a partir de 1949 - pode atestar claramente a construcdo de uma poéti- ca estruturada como sintese de um saber estético altamente sofisticado, sensivel e amplificador de certas ques t6es da arte contempordnea internacio- nal, € uma atitude artistica que se aproveita de maneira astuta da preca- riedade dos meios de expressdo para constituir-se enquanto obra. Em seus trabalhos bidimensionais realizados na década de 60 percebe-se a artista re- dimensionando as potencialidades sinta- ticas e seménticas de signos e icones da nossa sociedade (muito preocupada que estava na época com as questdes intersemisticas). Ja com suas Drogui- has, Schendel aparece rearticulando as potencialidades expressivas da matéria, através de sua articulagao sob 0 signo da precariedade. No final de sua traje- toria, a artista finalmente sintetizaria essas suas duas preocupacées funda- mentais, Dentre os movimentos artisticos que se organizaram ao sabor daquela abertura ocorrida nos anos 50, talvez 0 mais instigante tenha siso 0 Neocon- cretismo, uma facgéo do Movimento Concreto brasileiro, grupo de artistas e poetas interessadios nos questionamen- tos formais propostos pelas tendéncias construtivas européias deste século. Fundamentalmente intemaciona- lista mas engajado num processo de absorcao critica de certos postulados canénicos daquelas vanguardas euro- péias, © Neoconcretismo acabou por romper com as mesmas ao fundi-las & Da arte nacional brasileira para a arte brasileira intemacional EJ 19 subjetividade dos artistas que compu- nham © grupo. Tal subjetividade, por sua vez impregnada por uma vivénca fortemente marcada por alguns ele- mentos proprios do ambiente local, fez com que alguns neoconcretos - sobre- tudo aqueles que optaram pela desma- terializacao da obra de arte e/ou pela participagao do espectador no processo artistico - acabassem por adotar como elementos constitutivos de suas produ- ses certas caracteristicas locals até entéo utilizadas na arte produzida no Brasil apenas como temério. A luz, as cores vibrantes do pals, a sensualidade das manifestacdes artis- ticas populares e das relacdes pessoais de certos grupos, etc., todas essas particularidades fisicas © sociais do complexo sistema brasileiro foram corporadas por artistas como H Clticica, Lygia Clark e Lygia Pape, que acabaram constituindo uma arte forte- mente marcada pelo debate artistico e estético internacional dos anos 50/60 €, a0 mesmo tempo, irremediavelmen- te impregnada pelos influxos do ambi- ente fisico e humano brasileiros. Paracoxalmente, entao, parecia que o Brasil s6 comecava a possulr um universo significativo de obras de arte estruturalmente brasileiras quando os neoconcretos, j4 despreocupados com qualquer compromisso exterior de fazer arte nacional, se internacionalizaram de forma radical mas critica, Esta impressdo parece também ter aflorado em algum momento nos componentes do grupo. Mais: com o engajamento cada vez mais intenso em propostas radicais, esses artistas - aparentemente desestabilizadores de- mais para © circuito artistico brasileiro da época - em determinado instante da trajetérla do grupo pareciam querer fundar ndo apenas uma arte brasileira propria e nova baseada na participacao do ptblico mas, inclusive, uma nova sociedade, pautada no coletivo, na ‘comunhio entre artista e publico, entre arte e politica. Um dos trabalhos que talvez melhor simbolize 0 estado de espirito fundante do neoconecretismo € 0 Livro da criagao de Lygia Pape: numa ativi- dace complementar aquela da artista, 0 espectador € convidado a assumir 0 papel demidrgico de construtor do mundo, através da manipulacdo de formas e de cores vibrantes, que rom- pem a estaticidade do espaco metafori co bidimensional, ganhando 0 espacgo real. Se em meados da segunda me- tade dos anos 60 0 Neoconcretismo | havia deixado de existir enquanto mo- vimento articulado, é inegavel que sua influencia libertéria e ingenuamente crente nas possibilidades de transfor- macdo da sociedade através da arte, influenciou substanclalmente - como sera visto - 0 circulto artistico local. As atividades intensas de alguns de seus artistas principais como produtores culturais e orientadores de novos artis- tas, mantiveram vivas as propostas do grupo até meados dos anos 70. Um exemplo tipico da presenga do Neoconcretismo naquela década é a producao de Raimundo Collares (1944- 1986). Nascido no interior do pals e tadicado no Rio de Janeiro a partir de 1965, Collares desenvolvera sua pintu- a a partir de uma sintese entre a apre- ensao fenomenolégica do caos urbano do Rio de Janeiro e um rigor geométri- co futurista € construtivista, filtrado por um saber ja de carater neoconcreto. Na década de 70 envereda para a produ- ¢80 de livros (seus Gibis), onde os ensi namentos absorvidos das propostas formais/comportamentals do Neocon- cretismo atingem um alto grau de so- fisticaggo e lirismo, sem perderem de Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 20 DB tadeu chiarett todo um valor coloristico de derivacao marcadamente popular, ja presentes em suas pinturas iniciais. Por outro lado, € preciso salien- tar que 0 espitito neoconcreto conse- guiu chegar até os anos 70 pelo fato de ter sabido articular-se sabiamente na década anterior com as_tendéncias artisticas internacionais, singularizando no Brasil os influxos da Pop Art norte- americana e do Noveau Realism fran- ces. A Pop Art brasileira parece ter ganho muito do seu cunho radical engajaco, mordaz e critico, nao apenas devido ao clima politico que o Brasil vivia naquele periodo (golpe militar em 1964, perda paulatina das liberdades civis, etc.), mas igualmente pela pre- senga do substrato local do Neocon- cretismo, um filtro ja consistente, reve- lador e ampliador do circuito de arte brasileiro € apto a separar daquelas tendéncias que chegavam, aquilo que melhor poderia ser utilizado no contex- to artistico e social brasileiro. E justamente durante os anos 60 que os artistas Antonio Dias (1944) e Anamaria Maiolino (1942) ingressam na cena artistica brasileira. Maiolino surge com xilogravuras € objetos de forte apelo social, onde altemadamente reflete sobre sua condi- ‘go de mulher e sobre a situacao pol ca que o Brasil atravessava naquele periodo. A partir da década seguinte a ar- tista ind reestruturar sua trajetéria, so- bretudo através de gravuras, onde rearticula os cénones da abstragéo construtiva, introduzindo em seus tra-~ balhos - como fatores desestabilizado- res da coeréncia geométrica -, signos que potencializam os significados de seus trabalhos. Antonio Dias iniciou sua carreira com uma produgao onde igualmente tecia acidos comentarios visuais sobre Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 © esfacelamento da sociedade e do homem brasileiros, vitimas do terror estatal dos anos 60. Depois, a seme- Ihanga de varios de seus colegas (como sera visto), parte para uma indagacao sobre a natureza da arte na sociedade contemporanea, até chegar & producao de trabalhos onde a construgao do proprio suporte assume o significado de um retorno a origem do proprio fazer artistico. Apesar das produgSes singulares desses dois artistas - e que atualmente muito se distancia de seus primeiros trabalhos -, € preciso sallentar que suas bases partem do contexto artistico brasileiro extremamente efervescente dos anos 60, impregnado pelo dialogo entre a realidade artistica local, forte- mente marcada pela experiéncia neo- concreta, e pela presenga das novas figuragSes internacionais. © Neoconcretismo parece nao ter sido substantivo para a arte brasil ra apenas em termos positivos. Se foi importante pela qualidade da producao de seus artistas, pela ressonancia de suas posturas nos trabalhos de seus seguidores € por ter demonstrado ser possivel num pais periférico como o Brasil realizar uma produgdo artistica capaz de ampliar alguns conceitos da arte intemacional, deve-se frisar que ele foi substantivo igualmente pela reago contréria que causou na cena artisti- ca brasileira, jé em meacios dos anos 70. Contra 0 seu cardter ingenua- mente libertario - muitas vezes pueril em algumas de suas manifestacoes participativas -, se insurgiram artistas e criticos, n4o propriamente através de uma reago frontal, como nas querelas grupais das vanguardas historicas, mas através de um outro posicionamento perante a arte o seu circuito. Esses artistas e criticos, através de suas obras € textos, € partinde do Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional principio de que a arte na producdo neoconcreta teria se tornado catartica e excessivamente consumivel, tentaram resgatar de novo para a propria arte o seu caréter de transcendéncla, de mis- tério, um caréter quase que de inco- municabllidade, Se frente a muitos trabalhos neo- concretos 0 espectador era compelido ao tato, A manipulacdo, a transforma- 40, & consumago e - conseqiiente- mente, muitas vezes - ao posterior descaso € esquecimento, frente aos trabalhos de artistas como Waltércio Caldas jr. (1946), José Resende (1945), Luiz Paulo Baravelli (1942), Carlos Al- berto Fajardo (1941), e outros, ele de- via voltar & consicao original daquele que contempla, guardando uma certa distancia fisica e afetiva em relacao a0. objeto de arte, Sem diivida todos esses artistas estavam muito ligados as correntes internacionais dos anos 60/70, como o minimalismo, pés-minimalismo, arte- povera, arte conceitual, etc, No entan- to, € notével como no inicio de suas carreiras eles, além de dialogarem com a arte internacional, dialogam intensa- mente com a tnica heranga artistica contemporanea surgida no pais até entao, o Neoconcretismo. Os primeiros trabalhos de Wal- tércio Caldas Jr., nascido no Rio de Janeiro em 1946, podem exemplificar muito bem este dialogo irénico travado entre © conceito de arte que informava ale e seus colegas, e aquele dos artis- tas que o antecederam. Seu Talco sobre livro ilustrado de H. Matisse, por exemplo, pode ser lido como antitese dos livros de Lygia Pape ¢ Raimundo Collares. Enquanto os dois tltimos instigam a aco do espectador em busca do dominio do objeto através da manipulagao de superficies que se transformam a partir de um arranjo B21 artesanal (marcados pelo lirismo e pela opuléncia de cores e formas), o livro de Caldas Jr. se recusa a qualquer contato, a qualquer possibilidade de vir a ser dominado, mesmo através do olhar. O talco arbitrariamente espalhado sobre as paginas de um livro editado indus- trialmente, veda qualquer frulgao su- postamente pueril do objeto e das ilustragdes que o compdem, criando uma metafora desafiadora e irénica sobre o papel do artista neste século: ele ndo mais da a ver os objetos do mundo através da arte; pelo contrario, ele dé a ver a arte através dos objetos do mundo. Por outro lado, neste debate contundente mas silencioso entre neo- concretos € pés-neoconcretos jé se configura uma situag4o extremamente salutar para a arte brasileira contempo- rnea: em tal debate finalmente encon- tra-se fora de questdo a querela nacio- nal versus intemacional, ou 0 préprio desejo de criagao de uma arte nacional, ainda presente em determinado mo- mento da trajetéria neoconcreta. Aqui j4 n&o Interessa mais pensar, por exemplo, se 0 trabalho de Caldas Jr. é mais ou menos nacional do que o tra- balho de Collares. © que importa € que ambos so realizagdes artisticas dife- renciadas, surgidas de posicionamentos opostos perante a arte, mas possuido- ras de um back-groud comum: a cena artistica brasileira dos anos 50/70, ex- tremamente informada sobre a situacdo artistica internacional, porém ja possui- dora de um filtro local, constituido por ‘obras de forte densidade estética e artistica. Alem das questdes relativas a cena artistica local que envolveram a produgéo inicial de Waltércio Caldas Jr. ea de seus colegas de geracdo, seria Interessante afirmar que elas anuncia- vam também um novo momento da Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 22 B Tadeu Chiarelli arte intemacional, um momento de refiuxo em diregao aos questionamen- tos de suas préprias especificidades, dos limites entre a arte e a estética, a busca de novos significados para praxis artistica na contemporaneidade. No caso brasileiro, tal refluxo parece ter se tornado ainda mais inten- so, motivade pelo recrudescimento da opressao da ditadura militar durante aqueles anos: censura, tortura, assassi- natos e desaparecimentos misteriosos compunham o clima séciopolitico onde iriam atuar os artistas durante os anos 70. Preocupados entaéo com as no- vas formulagdes propostas pela arte intemacional e pelo momento de_profunda regressad_antiatmocra- tica do pais, grande parte dos artistas que emergiram ou se firma- ram naquela década no Brasil investirlam nos questionamentos _con- ceituais da arte e suas articulagdes__possiveis com a cena séciocultu- ral local. Tudo parecia possivel naqueles anos, em termos de arte. Menos, no entanto, manter a viséo positiva e participativa gerada com a experiéncia neoconcreta. Excetuando aqueles artistas que, em meio a crise artistica e social, conti- nuavam pintando, esculpindo e gra- vando (mesmo aqueles que tematiza- vam a miséria, a tortura € o medo que tomavam conta do pais), como se nada pudesse abalar suas crengas na nature- za supostamente imutavel das Belas Artes, talvez fosse possivel juntar os artistas brasileiros mais inquietos do periodo em trés grandes grupos. © primeiro seria aquele que bus- cava alguma maneira de atuar m: efetivamente no campo social local completamente desestabilizado, atra- vés de intervengées pontuais no tecicio urbano ou em sistemas tipicos da so- ciedade de massas. Tais artistas, rom- pendo com os limites entre o artistico € © politico, poderiam numa anilise apressada, ser filiados 4 heranga parti- cipativa, gerada pelos neoconcretos. Engano. Suas atuagdes, longe de pos- suirem o carater positivo das manifes- tages neoconcretas, se dirigiam a desestabilizacdo quase guerrilheira dos aparelhos Ideolégicos de estado. Aqui poderiam ser citados - entre outros - Cildo Meirelles (1948) e suas Insercdes em dreuitos ideolégi- sss cos, Mario _ Ishikawa A snag carr suse prowl = cio de mail art, e as intervencdes urbanas de Artur Barrio (1945). Do segundo gru- po fariam parte aqueles artistas que, partinco igualmente das inaga- 6es sobre os limites entre a arte e a neo- arte, entre a arte e 0 seu circuito, enveredaram pa- ra a investigagao critica da natureza das modalidades artisticas institucionalizadas (pintura, escultura, desenho), e/ou para a investigacao sobre os c6digos de representacao do real. Aqui, além dos ja citados Waltér- cio Caldas Jr, José Resende, Carlos Fajardo e Antonio Dias, poderiam ser lembrados os trabalhos de Carmela Gross (1946), lvens Machado (1942), Anna Bella Geiger (1933). Nelson Leir- ner (1932) e os de Regina Silveira (1939) - produces sempre preocupa- das com a subversao do olhar do es- pectador. Formando o iltimo grupo, ou isolado entre os dois acima citados Porto Arte, Porto Alegre, v.6, 9.10, p-15-25. nov. 1995 Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional estaria Tunga (Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourdo, 1952). Ape- sar de uma produgao impregnada por valores estéticos e artisticos comparti- Ihados por seus colegas, seus trabalhos se constituem a partir sobretucdo do desenvolvimento de uma mitologia singular, baseada em latejos eréticos sensuais. Essas pulsagdes se configu- ram formalmente nos mais diferentes meios, mas sobretudo através de obje- tos e instalacdes realizadas com mate- riais como © chumbo € 0 ouro, ou en- téo de desenhos e pinturas sobre pa- pel, onde seu imaginario tao particular assume quase sempre proporgdes mo- numentais. Tunga vern construindo nos al- timos anos um dos repertérios mais singulares da arte contemporanea. A partir dos anos 80 0 circuito artistico brasileiro passa por grandes transformagdes, conseqiiéncia de uma tentativa de profissionalizagdo definitiva do circuito de arte local e, sem duvida, do perfodo de redemocratizagio do pais. Entre outras transformagies, as- siste-se neste periodo ao processo de consagracado e institucionalizacao. dos artistas de fato comprometidos com a construgéo de poéticas modemas no Brasil € que até entao, oficialmente, nao eram to valorizados. As obras de Di Cavalcanti ¢ Portinari aos poucos vio perdendo de vez 0 terreno como sim- bolos da arte modema local, sendo substituidas pelas produgdes de Goeldi Guignard. Mesmo alguns artistas surgidos j& no contexto renovado dos anos 50 passam por este mesmo pro- cesso: Volpi, Iberé Camargo, Lygia Clark, Helio Oiticica, Sérgio de Camar- go (1930-1990), Amilcar de Castro (1920) € poucos outros sdo hoje pon- tos de referéncia para um segmento importante da critica de arte € para parte da produgao local. 23 Esta nova situag&o seria funda- mentalmente positiva para a arte brasi- leita se muitos nao transformassem aqueles artistas em monstros sagrados, modelos inquestionaveis € tnicos a serem seguidos. Felizmente, no entanto, uma nova geracao surgida nos ultimos anos, parece estar problematizando a adocZo de seus parametros locais. Através de uma atitude menos sectaria e mais generosa perante a producao artistica brasileira como um todo, essa nova geracao nao reconhece como pardmetros para suas produgdes apenas aqueles artistas citados. Numa postura mais alargada - e de acordo com uma tendéncia da arte internacio- nal - reconhecem valores dignos de serem refletidos tanto na produgao neoconcreta e pés-neoconcreta, quanto nas manifestacdes de artistas eruditos locais menos reverenciados, na produ- 4 popular, no passado barroco do periodo colonial brasileiro, etc. Neste territério redefinido - me- los preso a preconceitos modemos, mais confiante na propria tradicao vi sual do pals e, portanto, tendente a ser menos colonizado -, alguns artistas mais jovens vem engendrando suas poéticas na procura de uma sintese entre os diversos repertérios visuals das culturas de massa e/ou popular (brasileira ou nao), da propria tradicaéo moderna brasileira e certas atitucles estéticas € artisticas eruditas. E 0 caso dos trabalhos de Emanuel Nassar, Paulo Pasta (1959), Chico Cunha (1957), Leda Catunda (1961), Ménica Nador (1955), Caetano de Almeida (1964), Beatriz Milhazes (1960) € Iran do E. Santo (1963) - todos artistas que operam no campo bidimensional, definindo uma visualidade posstvel para © Brasil atual. No terreno da producdo tridi- mensional percebe-se igualmente 0 Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995 24 BB tadeu chiarett mesmo empenho, através do intenso diélogo que travam Ana Maria Tavares (1958), Eliane Prolik (1960), Gustavo Rezende (1960) e Sérgio Romagnolo (1957) com o passado remoto e mais recente da arte do pais e toda a tradi¢ao modema e contemporanea intemacional. E neste contexto revigorante transitive dos anos 80 que ira emergir Jac Leimer (1961). Como Catunda, Nador, Almeida e Tavares, Leimer sera profundamente influenciada em sua formacao pela producao de artistas locais ligados aos questionamentos da natureza da arte nos anos 70, Regina Silveira e Julio Plaza (1938), assim como pelos trabalhos de artistas internacio- nais preocupados com a mesma — questao (sobretudo Beuys e Eva Hesse (1936-1970). A esses influxos iniciais a artista juntou uma forte consciéncia_expressiva sobre sua condi¢éo existencial_ como mu- Iher © artista vivenco num pais com tantos problemas estruturais. A partir desta tomada de posi- sd, Jac Leiner comecou o en- gendramento de sua obra retirando, aparentemente, qualquer limite entre a sua vida e a sua produce artistica. A artista se desnuda frente a arte © 0 circuito artistico nacional € intemacio- nal, tormando-os cémplices de suas preocupagées com os problemas sécio- politicos (a série Os cem), do circuito de arte (To and from) e seus vicios (as séries Pulmao e Corpus Delic®. Tal ati- tude, caracteristica da artista, singulari- za toda sua producao. Logicamente os trabalhos de Leimer nao se restringem a emanar sinais apenas das suas idiossincrasias Porto Arte, Porto Alegre, v.6, n.10, p.15-25, nov. 1995, Pessoals e de suas preocupacées. Em seus trabalhos percebe-se ao mesmo tempo uma perversidace e uma ing! taco formal que os transcendem, unindo-os muitas vezes a produgéo de outros artistas brasileiros como Cildo Meirelles e Mira Schendel, por exemplo. Concluinco, pode-se dizer, por- tanto, que esta nova geracdo de artistas - onde devem ser agrupados ainda Nuno Ramos (1960) e Rosa Rend (1962) - vem estabelecendo um didlo- go extremamente proficuo, nao apenas com a arte internacional mas, igual- mente, com a producao artistica brasi- leira pré-existente Se na arte le- vada a efeito no Brasil durante os anos 70, esse didlogo ja havia existido, as razdes de sua existéncla esta- vam ligadas muita vezes - como foi visto =, a uma pura conta- minagéo. ou a uma visio negativa das tendéncias que ime- diatamente Ihe ante- cedia. A partir dos anos 80, porém, os artistas ndo apenas dialogam conscientemente com a arte brasileira do passado, mas reconhecem a legitimidace da mesma e a qualidade de muitos de seus produtores, sejam eles modemos, modemistas, barrocos, eruditos ou populares. Tal reconhecimento representa na verdade um amadurecimento do circuio artistico brasileiro que pela primeira vez - e de maneira critica, hunea ufanista - parece estar passando a pensar a arte internacional levando em conta a contribuicao dos artistas locais que de fato concorrreram para a ampliagéo e 0 aprofundamento de ‘seus conceitos. Uma atitude salutar de Da arte nacional brasileira para aarte brasileira intemacional Hl 25 busca de autonomia e de descoloniza- —definitivamente com o desejo de sho. criagéo de uma arte nacional brasi- E aqui estaria a principal con- _leira, comega a fundar de uma vez tribuiggo desta geracio que, atenta _por todas a arte brasileira internaci- & cena intemacional e rompendo onal. ‘Da arte nacional brasileira para a arte brasilelr internacional Texto elaborado para integrar 0 catdlogo da Exposicao Arte/Art: Latin American Work on Paper. les na Biblioteca Pablica de Nova York. A ExposicZo. que deveria ter com a curadoria de Charles Merewether, Nowa York. A Expt, cue deve ‘TADEU CHIARELLI: Professor de Histéria da Arte no Brasil, do Departamento de Artes ésicas da Escola de Comunicagaes ¢ Artes da USP- roto Arte, Porto Alegre, v.6, 1-10, p. 15-25, nov. 195

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