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Pillosofle Meer rel Criell I] BIBLIOTECA: UNICAMPOS CAPITULO $A ONTOLOGIA CON TEMPORANEA i A ontologia contemporanea Aheranga kantiana Apés a solugio kantiana para o problema da metatisica, esta no mais retornou a antiga concepgio de conheeimento da realidade cm Si, mas caminhou no sentido inaugurado por Kant, conhecide como idealismo, Por que idealismo? Vimos que Filosofia (na Amigitidade. na Wade Média ¢ na Modernidade) era realist isto é, partia da airmagdo de que a realidade oo Ser existem em si mesmos € que, enguan- © tais, podem ser conheeidos pela nize hue mana, Vimos também que o realismo ekissico ou moderne introduira uma mudanga no rete lismo antigo © medieval. pois exigira que, an- tes de iniciar uma investigacdo metafisiea da realidade, fosse respondida a questao: “Pode- nos conhecer a realidade? Em outras palavras, exigira que a teoria do conhecimento antevedesse a metafisieu, Vi- mos. a seguir, 0 resultado dessa exigéncia: David Hume demonstrando que 0 contetido da metatisiea so apenas nossas idéias © que es- las so nomes gerais atribuidos aos haibitos psi- coldgicos de associat os dados da sensigao ¢ da percepeao. O sentimento subjetivo ou psi- colégico de regularidad constineia ¢ fre- aiincia de nossas impresses so transforma- dos em entidades metatisieas que. na verda- de, nao existem. Kant compictou a trajetoria moderna, mas com duas inovagdes fundamentais: em primei- ro lugar, transtormou a propria teoria do co- nhecimento em metalisica, ao afirmar que esta investiga as condigdes gerais da objetividade, isto & do conhecimento universal ¢ necessirio dos fendmenos e, em segundo lugar. demons- trou que 0 sujeito do conhecimento nao é, como pensara Hume. 0 sujeito psicoldgico individ al, mas uma estrutura universal, idéntiea para todos os seres humanos em todos os tempos ¢ lugares, que éa razdo, como faculdadea priori de conhecer ou 0 Sujeito Transcendental, Nunca saberemos o que é ¢ como é a reati- dade em si mesma, separada e independente de nds. Conhecemos apenas a realidadle como anizada pelo sujeito do conhecimento segundo ay formas do espago & do tempo ¢ segundo os conceitos do entendi- mento, A realidade conhecivel e conhevida ¢ aguckt posta pela objetividade estahelecida pela ravio ou pelo Sujeito Transcendental © que € a objetividade? © que € fendme- 0? O que € a realidade enquanto objeto ou fenémeno? E a realidade estruturada pelas idéias produzidas pelo sujeito. Por isso a metafisica se torna idealista ou um idea- fismo. © conhecimento nao vem das coisas para a consciéneia, mas vem das idéiay di. conseiéneia para as coisas. A historia du metafisica foi sempre o waba- Iho filosifico para responder a duas pergun- tas; O que € aquilo que existe? Como pode- mos conhecer aquilo que existe? Duas foram ay respostas: realista, cujo exemple mais aca- bado foi a metafisica de Aristoteles ou © estu- do do “Ser enquanto Ser”; e a idealista, cujo exemplo mais acahado foi a eritica® da razio tedrica e pritiea de Kant meno, isto & ory Acontribuicaéo da fenomenologia de Husserl Quando estudamos a teoria do conhecimen- to, vimos que 0 filosofo aiemao Husserl trou- ‘Kant. conn jal vimos, enaprega palasr eafiew ma sen= lo de condigiio de possibilidads, A critiew da raza & 0 estudio das eondigdes de possibilidade do eonheeimentoe dhs aos moral 235 Pyh a seh UNIDADE 6 -AMETAFISICA hae Xe, no inicio do nosso século, uma nova abor- dagem do conhecimento a que deu 0 nome de fenomenologia. Essa abordagem, como veremos agora, teve consequéncias para a metafisic: Segundo Husserl, a fenomenologia esti en- carregada, entre outras, de trés tarefas princi- pais: separat psicologia e filosofia, manter privilégio do sujeito do conhecimento ou cons- cigncia reflexiva diamte dos objetos e ampli- ar/renovar 0 conceito de fendmeno. Separagao entre psicologia e filosofia No final do século XIX e no inicio do séen- lo. XX, muitos pensadores julgaram que a psi cologia tomaria o lugar da teoria do conheci- mento ¢ da légiea e, portanto, da Filosofia Na opinido deles. a ciéncia positiva do psiquismo seria suficiente para explicar as causas das formas de conhecimento ¢ das de- monstragdes, sem necessidade de investiga- Ges filosdfieas Husserl, porém, veio demonstrar o equivo- co de tal opiniao. A psicologia, diz ele, como toda ¢ qual- quer ciéncia, estuda © explica fatos obser- vaveis, mas no pode oferecer os fundamen- tos de tais estudos ¢ explicagdes, pois esses cabem 2 Filosofia. A psicologia explica, por meio de observa- gGes e de relagdes causais, fatos mentais & comportamentais, isto 6 os mecanismes fisi- 0s, fisioldgicos e psiquicos que nos fazem ler sensagées, percepedes, lembrangas. pen- samentos ou que nos permitem realizar acdes pelas quais nos adaptamos ao meio ambiente. A Filosofia, porém, difere da psicologia, por- que investiga 0 que 0 fisico, 0 fisiologico, 0 psiquico. 6 comportamental. Em outras pala- vras, nao explica fatos mentais ¢ de compor- tamento, mas desereve as esséneius da vida fisica ¢ psiquica. Tomemos um exemplo. Quando um psicdlogo estuda a percepyi 236 procura distinguir dois tipos de fatos: os fatos, extemos observaveis, a que dai o nome de esti mulos (luz, calor, cor, forma dos objetos, dis laneia, ete.), € 0s fatos inte mos indirctamente observiiveis, a que dd o nome de respostas. Di- vide 0 fato perceptivo em estimulos externos ¢ internos (@ que acontece no sistema nervoso ¢ no cérebro) e em respostas internas e externas {as operagdes do sistema nervaso ¢ 0 ato sen- sorial de sentir ou perceber alguma coisa). Quando um filésofo estuda a percepgao, pro- cede de modo muito diferente. Comega per- guntando: “O que é a percepgao?”, diferente- mente do psicdlogo, que parte da pergunta “Como acontece uma percepgiio?”, O que € « percepgao? Antes de mais nada, ¢ um modo de nossa conseiéncia relacionar-se com © mundo exterior pela mediagiio de nos- so corpo. Em segundo lugar, € um certo modo dea consciéncia relacionar-se com as coisas, quando as roma como realidades qualitativas (cor, sabor, odor, tamanho, forma, distancias, agradaveis, desagradaveis, dotadas de fisio- nomia € de sentido, belas, feias, diferentes umas das outras, partes de uma paisagem, tic.). A percepedo & uma vivencia. Em tercei- ro lugar, essa vivéncia é uma forma de conhe- cimento dotada de estrutura: hi 0 ato de per- ceber (pela consciéneia) e ha o correlate per- cebido (a coisa externa); a caraeteristica prin- cipal do percebido é a de oferecer-se por fa- ces, por perfis ou perspectivas, como algo in- terminayel, que nossos sentidos nunca podem apanhar de uma s6 vez e de modo total O que € a percepgao? Ou, em outras pala- vras, qual é a esséneia da percepcao? E uma vivéncia da conseiéncia, um ato, cujo correlate dio qualidudes percebidas pela mediagao de nosso corpo: é um modo de estarmos no mun- do ¢ de nos relacionarmos com a presenca day coisas diante de nés. é um modo diferente, por ‘exemplo, da vivéncia imaginativa, da vivéncia reflexiva, ete. A psicologia nos diz que hd percepcao e nos oferece uma explicagdo causal para ela, mas. 9 pode nos dizer o que é a percepcao, pois para isso precisaria conhecer a esséncia da pr6- pria conseiéncia, Manutengdo do privilégio do sujeito do conhecimento Conservando-se fiel & tradigdo moderna ¢ kantiana, Husset] privilegia a consciéncia re- fiexiva ou 0 sujeito do conhecimento, isto é afirma que as esséncias descritas pela Filoso- fia sdo produzidas ou constitufdas pela cons- cigncia, enquanto um poder para dar signifi- cagdo a realidade. A consciéneia de que fala 0 fildsofo nao é evidentemente, aquela de que fala o psicélogo. Para este, a consciéncia ¢ o nome dado a um Conjunto de fatos externos € internos observi- veis e explicados causalmente. A consciéncia a que se tefere 0 fildsofo € 0 sujeito do conhe- cimento, como estrutura ¢ atividade universal ¢ necessaria do saber, E a Consciéncia Trans- cendental ou 0 Sujeito Transcendental. Qual € 0 poder da consciéncia reflexiva? O de constituir ou eriar as esséncias, pois estas nada mais sdo de que as significagdes produ- zidas pela consciéncia, enquanto um poder universal de doacao de sentide ao mundo. A consciéncia nao é uma coisa entre as coi- sas. ndo & um fato observavel, nem é, como maginava a metafisica, uma substancia pen- ‘ante ou uma alma, entidade espiritual. A consciéncia € uma pura atividade, 0 ato de constituir esséneias ou significagdes, dando sentido ao mundo das coisas. Est mundo como significagio — so o correlato da consciéneia, aquilo que & visado por ela € dela recebe sentido. Nao sendo uma coisa nem uma substincia, mas puro ato, a cons- cigncia ¢ uma forma: é sempre conseiénei de. © set ou esséncia da consciéneia é o de ser sempre consciéneia de, a que Husserl dé o nome de intencionalidade. A consciéneia ¢ um ato intencional ¢ sua esséncia € a intencionalidade, ou 0 ato de v sar as coisas, dando-thes significagao. O mun- do ou a realidade é 0 correlato imencional da CAPITULO 4. A ONTOLOGIA CONTEMPORANEA consciéneia. Assim, por exemplo, perceber & © alo intencional da consciéneia, o percebido € 0 seu correlato intencional e a percepgao é a unidade interna ¢ necesséria entre 0 ato ¢ 0 correlato, entre o perceber e 0 percebido, E por esse motivo que. conhecendo a estrutura intencional ou a esséncia da consciéncia, se pode conhecer a esséneia da percepgdo (ou dat imaginagdio, da meméria, da reflexdo, ete.). Amplia¢do/renovacao do conceito de fenémeno Desde Kant, fendmeno indicava aquilo que, do mundo extemno, se oferece ao sujeito do conhecimento, sob as estruturas cognitivas da consciéncia (isto €, sob as formas do espaco ¢ do tempo e sob os conecitos do entendimen- to), No entanto, o fildsofo Hegel ampliou o conceito de fendmeno, atirmando que wdo o que aparece s6 pode aparecer para uma cons- cigncia e que a propria conscigneia mostra-se a si mesma no conhecimento de si, sendo ela propria um fendmeno. Por isso, foi Hegel o primeiro a usar a palavra fenomenologia, para com ela indicar o conhecimento que a consei- éncia tem de si mesma através dos demais fe- nomenos que the aparecem. Husserl mantém 0 conceito kantiano ¢ hegeliano, mas amplia ainda mais a nogao de fenémeno. Para compreendermos essa ampli- agdo precisamos considerar a eritica que en- dereca a Kant e a Hegel. Kant equivocou-se uo distinguir fendmeno ¢ noumeno, pois, com essa distingdio, manteve a velhia idgia metafisica da realidade em si ou do “Ser enquanto Ser", mesmo que dissesse que no a podiamos conhecer, Hegel, por sta vez, aboliu a diferenga entre a conseiéncia eo mun- do, porque dissera que este nada mais é do que 0 modo como a consciéncia se torna as prépri- as coisas, tomna-se mundo ela mesma, tudo sen- do fenémeno: fendmeno interior —a conscién- cia — e fenémeno exterior — 0 mundo como mianifestagio da consciéncia nas coisas. Contra Kant, Husserl afirma que nao ha 237 NIDADE 6 A METAFISICA noumeno, nao hé a “coisa em si” incognoset- vel. Tudo que o existe ¢ fendmeno ¢ s6 exis- tem fenémenos. Fendmeno é a presenga real de coisas reais diante da conscigneia; € aquilo que se apresenta diretamente, “em pessoa “em carne © osso”, & conscigneit: Contra Hegel, Husserl afirma que a consei- éncia possui uma esséncia diferente das es- séneias dos fenémenos, pois ela ¢ doadora de sentido as coisas ¢ estas silo receptoras de sen= tido, A consciéncia nfio se encarna nas coisas, nao se Lorna as prprias coisas, mas da signi- ficagio a elas, permanecendo diferente delas. O que é 0 fendmeno? F a esséncia, O que é a esséncia? E a significagao ou o sentido de um ser, sua idéia, seu eidos, A Fi- losofia & a descrigZo da esséncia da conseién- cia (de seus atox e cortelatos) e das essncias das coisas. Porisso, a Filosofia ¢ uma eidética — descrigiio do eidos ou das esséncias. Como o cides ou esséncia & 6 fendmeno, a Filosofia uma fenomenologia, Os fendmenos ou esséncias Fendmieno no sao apenas as coisas materi- ais que percebemas, imaginamos ow lembra- mos cotidianamente, porque so parte de no sa vida, Também nao so, como supunha Kant, apenas as coisas naturais, estudadas pelas ¢ €ncias da Natureza (fisica, quimica, biologia, wstronomia, geologia, ete), Fendmeno so tam- bem coisas puramente ideais ou idealidades, isto é, coisas que existem apenats no pensamen- to, como os entes estudados pela matemd (figuras geométricas, ntimeros, operagies al gébricas, conceitos como igualdade, diferen- Ga, identidade, ete.) e pela I6giea (como os con- ceitos de universalidade, particularidade, inci vidualidade, necessidade, contradigao, etc.) Além das coisas materiais, naturais ¢ ide- ais, também sao fendmenos as coisas criadas pela ago e pela prdtica humanas (técnicas, artes, instituigdes sociais e politicas, crengas religiosas, valores morais, etc.), Em outras pa- 238 lavras, 0s resultados da vida ¢ da ago huma- has — aquilo que chamamos de Cultura — siio fendmenos, isto é. signiticagdes ou essén- clas que aparecem & consciéncia e que sido. constitufdas pela propria consciéncia. A fenomenologia € a descrigio de todos os fendmenos, ou eidos ou esséncias, ou signiti- cagdo de todas estas realidades: materiais, na turais, ideais, culturais. Ao ampliar o conceito de fendmeno, Huser] propos que a Filosofia distinguisse diferentes lipos de esséncias ou fendmenos e que con derasse cada um deles como manifestando um tipo de realidade diferente, um tipo de ser di- ferente. Falou, assim, em regides do ser: a re- gido Consciéneia, a regio Natureza, a regiio Matematica, a regido Arte, a tegiao Histéria, a regido Religitio, a regio Politica, a regitio Erica, ete, Propds que a Filosofia investigasse as esséncias préprias desses seres ou desses entes, criando ontologias regionais. Com essa proposta, Husserl fuzia com que a metatisica do “Ser enquamto Ser” ea meta- fisica das substancias (Deus, alma, mundo; in finito, pensante, extensa) eedessem lugar ao estudo do ser diferenciado em entes dotados de esséncias proprias e irredutfveis uns aos ou- tros. Esse estudo seria a ontologia sob a for ma de ontologias regionais 5 Vimos que a pakavra ontologia deriva do participio presente do verbo einai (ser), isto . de on (ente) e enta (entes), dos quais ven o substantivo £0 on: o Ser. 0 fildsofo alemio Heidegger propoe distin- guir duas palavras: Ontico e ontoldgico. Ontico se refere A estrutura e A esséncia prd- pria de um ente, aquilo que ele é em si mes- mo, sua identidade, sua diferenga em face de ‘outros entes, suas relagdes com outros entes, Ontolégico se refere ao estudo filosdtice dos entes, 2 investigagio dos conceitos que nos permitam conhecer e¢ determinar pelo pensa- Ontico e ontolégico A nova ontologia: nem realismo, nem idealismo Fil6sofos que vieram apés Husserl e adota- ram suas idéias desenvolveram a nova onto- logia, Entre esses fildsofos, dois merecem es- pecial destaque: 0 alemio Martin Heidegger © 0 Trancés Maurice Merleau-Ponty. Ambos ‘modificaram varias das idéias de Huser! ¢ es- forgaram-se para liberar « ontologia do velho problema deixado pela metafisica, qual seja. o dilema do realismo e do idealismo, dilema que Husserl resolvera em favor do idealismo pelo papel preponderant que dera a conscién- cia ou ao sujeito do conhecimente. Qual o dilema posto pelo realismo e pelo idealismo? Orealismo afirma que, se eliminarmos © su- jello ou a consciéneia, restam as coisas em si mevmas, a tealidade verdadeira, o ser em si 0 idealismo, ao contrério, afirma que se el minarmoy as coisas ou 0 nOumeno, resta a cons- cidneia ou 0 sujeito que, através das operagdes do conhecimento, poe a realidade, 0 objeto. Heidegger ¢ Merleau-Ponty afirmam que as duas posigdes esto equivocadas ¢ que sto “er- ros gémeos”, cabendo a nova ontologia super los, isto é, resolver o problema Herdclito- Parménides, Platao-Aristoteles, medievais & modernos, Kant ¢ Husserl. Como resotver um problema milenar como esse e que , afinal, a propria historia da metafisica e da ontologia? Dizem os dois fil6sofos: se eliminarmos a conscigncia, ndo sobra nada, pois as coisas existem para nds, isto é para uma conscién- cia que as percebe, imagina, que delas se lem- bra, melas pensa, que as transforma pelo tra- balho, ete. Se eliminarmos ats coisas, também no resta nada, pois nao podemos viver sem o mundo nem fora dele; nao somos os criadores do mundo ¢ sim seus habitantes. Damos sentido ao mundo, transformamos as coisas. criamos utensilios, obras de arte, instituigdes sociais, mas nao criamos o pré- prio mundo, Sem a consciéncia, ndo hé mun- do para nds, Sem o mundo, ndo temos como: conhecer nem agir. Um mundo sem nés sera. tudo quanto se queira, menos o que entende- ‘mos por realidade. Uma consciéncia sem o mundo seré tudo quanto se queira, menos consciéncia humana. A nova ontologia parte da afirmago de que estamos no mundo ¢ de que o mundo é mais velho do que nés (isto é, nao esperou o sujei- to do conhecimento para existir). mas, simul- taneamente. de que somos cupazes de dar sen- tido ao mundo, conheeg-lo ¢ transformé-lo, Niio somos uma consciéneia reflexive pura, mas uma consciéncia encarnada num corpo. Nosso corpo no é apenas uma coisa natural. tal como a fisica, a biologia e a psicologia o estudam, mas € um corpo humana, isto é, ha- bitado e animado por uma consciéncia. Nao somos pensamento puro, pois somos um cor- po, Nao somos uma coisa natural, pois somos. uma consciéncia. O mundo nao é um conjunto de coisas e fa- tos estudados pelas ciéncias segundo retagdes de causa e efeito e leis naturais. Além do mun- do como conjunto racional de fatos cien cos, hé © mundo como lugar onde viveros com 0s outros e rodeados pelas coisas, um mundo qualitative de cores, sons, adores, fi- guras, fisionomias, obstaculos, um mundo: afetivo de pessoas, lugares, lembrangas, pro- messas, esperangas, confitos, lutas, Somos seres temporais — nascemes e te- mos conscigneia da morte, Somos seres inter- subjetivos — vivemos na companhia dos ou- tos, Somos seres culturais — eriamos a lin- guagem, 0 trabalho, a sociedade, a religiio, a politica, a ética, as artes e as técnicas, 1 filo- sofia e as eigncias O que é, pois, a realidade? E justamente a existéncia do mundo material, natural, ideal, cultural e a nossa existéncia nele. A realidade € 0 campo formado por seres ou entes dife- renciados € relacionados entre si, que possu- em sentido em si mesmos ¢ que também rece- bem de nds outros e novos sentidos. A reali- dade ou o Ser nio é 0 Objeto-Coisa, sem a 241 UNIDADE 5A METAFISICA, consciéncia. Mas, também, ndo € 0 Sujeito- Consciéncia, sem as coisas ¢ os outros, A rea lidade ou o Ser € 0 cruzamento e a diferencia- sho entre o sensivel o intcligivel, entre 0 material-natural e 0 ideal-cultural, entre o qualitativo © © quantitativo, entre 0 fato eo sentido, entre o psiquico e o corporal, etc. O que estuda a ontologia’? Os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciéncias. ¢ depois que se tornaram enigmaticos para nos- sa vida cotidiana. Em outras palavras, os en- tes ou os seres antes de serem transformados em conceitos das ciéncias e depois que nossa experiéncia cotidiana sofreu © espanto, a ad- miragiio e 0 estranhamento de que eles sejam como nos parecem ser, ou no sejam o que nos parecem ser. A ontologia estuda as esséneias antes que sejam fatos da ciéneia explicativae depois que se tormaram estranhas para nds, Digo, por exemplo, “Vejo esta casa verme- Iha, proxima da azul”. A ontologia indaga: 0 que & ver, qual « esséncia da visio? O que & uma casa ou qual a esséncia da habitacio? Que 6 vermelho ou azul ou qual & a esséncia da cor? Que € ver cores? O que é a cor? Pergunto, por exemplo, “Que horas so?” A ontologia indaga: O que € 0 tempo? Qual a esséneia da temporalidade? Pedro fala: “A cidade jd estd perto”. A on- tologia indaga: O que é 0 espaco? Qual é a esséncia da espacialidade? Que é perto ¢ lon- ge? Que € distancia? Anténio diz a Paulo: “Aquelas duas arvores siio idénticus, mas a terecira é diferente”. A “ontologia indaga: O que é identidade” E a di- ferenga? O que é “duas” e “terceira? Ou seja, © que 60 numero? Ana me diz: “Ouvi uma miisica belissima, ndo essa coisa feia que oe’ est escutando™ A ontologia indaga: © que é a beleza e a feiti- ra? Existem 0 belo em sie 0 feio em si, ou beleza ou feitira so avaliagdes e valores que atribuimos as coisas? O que é um valor? Cecilia conta a Joana; “Pedro realizou um ato generoso, protegendo a crianga, mas Eugénia foi egoista ao nao ajudé-lo”. A onto- logia indaga: O que é a generosidade ou 0 ego- smo? Existem em si e por si mesmos ou sio avaliagées que fazemos das agdes humanas? O que é um valor? Como se observa, a ontologia investiga a esséncia ou sentido do ente fisico ou natural, do ente psiquico, Iégico, matemitico, estéti- co, ético, temporal, espacial, etc. Investiga as diferengas ¢ as relagdes entre eles, seu modo proprio de existir, sus origem, sua finalidade, O que é 0 mundo? O que é 0 eu ou a conscién- cia? O que € 0 corpo? O que & 6 outro? O que € 0 espago-tempo? O que & a linguagem? O que € 0 trabalho? A religido? A arte? A socie- dade’? A histéria? A morte? O infinito? Bis as questées da ontologia Recupera-se, assim, a velha questao filos6li- ca: “O que € isto que ¢?", mas acrescida de nova questo: “Para quem é isto que €?”. Volta-se, pois, a buscar 0 10 on, o Ser ou a esséncia das coisas, dos atos, dos valores humanos, da vida e da monte, do infinito e do finito. A pergunta “O que ¢ isto que €2" refere-se ao modo de ser dos entes naturais, artificiais, ideais ¢ huma- nos; a pergunta “Para quem é isto que &?” refe- re-se ao sentido ou A significagiio desses entes Tomemos um exempto para nos ajudar a compreender 0 modo de pensar da ontologia, Acompanhemos, brevemente, 0 estudo de Merleau-Ponty sobre a esséncia ou o ser do tempo ea esséncia ou ser do nosso corpo. O que € 0 tempo’ Estamos acostumados a considerar 0 tempo como uma linha reta, feita da sucesso de ins- tantes, ou como uma sucessiio de “agoras” — um “agora” que ja foi € © passado, 0 “agora” que esta sendo é © presente, um “agora” que vird é o futuro, A metafisica realista usa, fregiientemente. a imagem do rio para representar © tempo comp algo que passa sem cessar: a nascente é © passado, 0 lugar onde me encontro é 0 pre- sente, a foz € 0 futuro. Ha dois enganos nessa imagem. Em primeiro lugar, trata-se uma ima- gem espacial para referir-se ao que é tempo- 242 CAPITULO, A ONTOLOGIA CONTEMPORANEA ral, isto €, pretende explicar a esséncia do tem- po (0 escoamento) usando a esséncia do espa- 0 (a sucesstio de pontos). Em segundo lugar, a imagem do rio nao corresponde 0 escoa- ‘mento do tempo. Para que comespondesse, pre- cisaria estar invertida, pois a gua que esta na nascente € aquela que ainda no passou pelo Jugar onde estou e, portanto, ela & para min, © futuro € nao o passado; a dgua que esté na foz 6 aquela que ja passou pelo lugar onde estou e. portanto, para mim, & 0 pasado e nao o futuro, Tentando evitar os enganos do realismo, a metafisica idealista dird que o tempo é a for- ma do sentido interno, isto é, uma forma cria- dda pelo sujeito do conhecimento ou pela cons- éneia reflexiva para organizar a experiéncia subjetiva da sucessdo, O tempo nao existe. mas € uma idealidade produzida pela razio, um conceito subjetive para estruturar 0 que & ex- perimentado como sucessivo. Um novo engano acaba de ser cometido. Se © tempo for uma forma ou um conceito pro- duzido pela consciéncia reflexiva ou pelo su- {eilo para organizar a sucessao, no haverd sus cessiio a organizar, pois a consciéneia reflexi- va ou © sujeito do conhecimento opera sem- pre ¢ exclusivamente com o que & atual, com © que esté dado presentemente ao pensamen- to, Para a reflexio s6 existe a simultaneidade © a sucesso se reduz a uma experiéncia psi- colégica ou empirica, ao sentimento de que hg um “antes” © um “depois”, tais: palavras indicando 0 modo como nos referimos a lem- brancas © expectativay pessoais. Indaguemos, porém, o que é vivenciar pro- prio tempo. Quando vivencio o meu presente, ele se apresenta como uma situagio na qual sinto, fago, digo, penso coisas, atuo de varias ma- eiras ¢ tenho experiéneia de uma situagao aberta, isto é na qual muitas coisas sio possi veis pura mim, muitas coisas podem aconte- cer, Quando rememoro meu pasado, pereebo que entre ele € © meu presente ha uma dife- renga: quando ele era 0 meu presente, tam- bém estava aberto a muitas possibilidades, mas somente algumas se realizaram. Por isso, 0 passado lembrado nao ¢ uma situagio aberta como © presente, mas fechada, terminada, Assim, meu pasado nio é simplesmente 0 que veio antes do meu presente, mas algo qualita- tivamente diferente do presente: este & aber- to, aquele, fechado. Quando imagino meu futuro, antevejo, a partir das possibilidades abertas em meu pre sete, como seria se certas possibilidades se coneretizarem € se outras no se realizarem. Meu futuro nao é simplesmente que vem depois do meu presente, mas algo qualitati- vamente diferente do presente: & o que pode- rd ser, se as aberturas do meu presente se con- cretizarem e, portant, se 0 que, hoje, esti aberto ou em suspenso, estiver, amanha, fe- chado e realizado, Meu passado e meu futuro nunca sao os mes- mos, Cada vez que me lembro do meu passa- do, eu 0 fago a partir do meu presente €,a cada vez, este & diferente, fazendo-me recordar de maneiras diversay 0 que passou. Cada vez que imagino meu futuro, eu o fago a partir de meu presente, que, sendo sempre diferente, imagi- nna diferentemente o futuro. Nao revivo 0 pas- sudo, mas 0 tememoro tal como sou hoje em meu presente, Nao vivo meu futuro, mas 0 ima- gino tal como sou hoje em meu presente. O presente € uma contrago temporal que arran- ca 0 passado do esquecimento e abre o futuro para © possivel. O passado e o futuro si dila- lagdes temporais, distensdes do presente. Que ¢ lembrar? E captar no continuo tempo- ral uma diferenga real entre o que estou viven- do no presente € 0 que estou vivenciando do passado, Que & esquecer? E perder a fisiono- mia ou o relevo de um momento do passaido. ‘Que ¢ esperar? E buscar no continuo temporal uma diferenga possivel entre © que estou vie vendo ¢ o que estou vivenciando do futuro, O que € 0 tempo? Em primeiro lugar, & um escos terno ¢ extern, um fluir continuo, que vai produzindo diferencas dentro de si mesmo. Em segundo lugar, € uma contragao e uma unento in- 243, ode si mesmo, um juntar-se a si mes- mo € consigo mesmo (na lembranga) ¢ um expandir-se a si mesmo e consigo mesmo (na. esperanga). O tempo é a produgao da identi- dade ¢ da diferenca consigo mesmo e, nesse sentido, € uma dimensio do meu ser (ndo estou no tempo, mas sou temporal) © uma dimensdo de todos os entes (nao esto no tempo, mas siio temporais) tempo nao € um receptiiculo de instante: niio € uma linha de momentos sucessivos, nao € a distancia entre um “agora”, um “antes” um “depois”, mas € 0 movimento interno dos entes para reunirem-se consigo mesmos (0 pre- sente como centro que busca 0 passado eo futuro) e para se difereneiarem de si mesmos (o presente como diferenca qualitativa em face do passado e do futuro). O Ser & tempo. © que é nosso corpo? Quail sua esséncia? A fisica diré que é um agregado de atomos, uma certa massa e energia, que funciona de acordo com as leis gerais da Natureza. A qui- mica dird que 6 feito de moléculas de agua, oxigénio, carbono, de enzimas e proteinas, funcionando como qualquer outro corpo qui- mico. A biologia dird que € um organismo vivo, um individuo membro de uma espécie (animal, mamifero, vertebrado. bipede). capaz de adaptar-se ao meio ambiente por operagdes. ¢ fungdes internas, dotado de um esdigo ge- nético hereditario, que se reprodur sexualmen- te. A psicologia dird que é um feixe de carne, masculos, ossos, que formam aparelhos recep- tores de estimulos externos ¢ intemnos © apa- relhos emissores de resposts internas @ ex- temas a tais estimulos, eapaz de ter compor- tamentos observiveis. Todas essas respostas dizem que nosso cor- po é uma coisa entre as coisas, uma maquina receptiva e ativa que pode ser explicada por relagdes de causa e efeito, suas opera observiiveis direta ou indiretamente — poden- do ser examinado em seus minimos detalhes nos laboratérias, classificado © conhecide, Nosso corpo, como qualquer coisa, € um ob- jeto de conhecimento, 24a UNIDADE 6 A METORIBSIDALO 4 - A ONTOLOGIA CONTEMPORANEA, Porém, seri isso 0 corpo que € nosso? Meu corpo é um ser visivel no meio dos outros seves visiveis, mas que tem a peculia~ ridade de ser um visivel vidente: vejo, além de ser vista, Nao 6 isso, Posso me ver, sou visivel para mim mesma. E posso me ver vendo. ‘Meu corpo um ser téetil como os outros corpos, podendo ser tocado, Mas também tem © poder de tocar, é tocante; ¢ é eapaz de to- car-se, como quando minha mao direita toca a esquerda ¢ j4 nao sabemos quem toca & quem & tocado Meu corpo € sonore como outros corpos, como os cristais e os metais; pode ser ouvi- do. Mas tem o poder de ouvir, Mais do que isso, pode fazer-se ouvir e pode ouvir-se quando emite sons. Do fundo da garganta, passando pela lingua € pelos dentes, com os movimentos de meus libios transformo a sonoridade em sentido, dizendo palayras. Ougo-me falando © ougo quem me fala. Sou sonora para mim mesma, Meu corpo estende a mao ¢ toca outra mao. em outro corpo, vé um olhar, pereebe uma fi- sionomia, escuta uma outra vor: sei que diane te den esté um corpo que € meu outro, um outro humano habitado por consciéneia e eu o sei porque me fala e, como eu, seu corpo pro- duz palavras, sentido. Visivel-vidente, tictil-tocante, sonoro-ou- vinte/falante, meu corpo se vé vendo, se toca tocando, se escuta eseutando e falando, Meu corpo nao € coisa, no é maquina, nao é fei- xe de ossos, miisculos € sangue, no é uma rode de causas ¢ efeitos, nao & um receptacu- Jo para uma alma ou para uma conseiéneia: & meu modo fundamental de ser e de estar no mundo, de me relacionar com ele ¢ dele se relacionar comigo. Meu corpo é um sensivel que sente © se sente, que se sabe sentir e se sentindo. E uma interioridade exteriorizada ¢ uma exterioridade interiorizada. E esse 0 ser ou a esséncia do meu corpo. Meu corpo tem, como todos os entes, uma dimensao metafisica ou ontoldgica.

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