You are on page 1of 128
O DESENHO INFANTIL Titulo da obra original: LE DESSIN ENFANTIN Edigio autorizada por EDITIONS DELACHAUX & NIESTLE S.A., Suige 1969 Companhia Editora do Minho BARCELOS G.-H. LUQUET O DESENHO INFANTIL “BIBLIOTECA UNIVERSITARIA | AU AAA 179698509 beat NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA Edicdo apresentada e comentada por JACQUES DEPUILLY Tradugho de MARIA TERESA GONCALVES DE AZEVEDO Livraria Civilizagao—Editora Rua Alberto Aires de Gouveia, 27— PO RTO INTRODUGAO ACTUALIDADE DE LUQUET Conseguir as obras de Luquet sobre 0 desenho infantil constituia desde ha muito uma procza de biblid- filo. Esta lacuna tornava-se inadmissivel desde que 0 interesse suscitado pelo problema dizia respeito a um ptiblico cada_vez mais amplo, Reeditar Luquet nao é s6 reparar uma injustiga mas satisfazer todos aqueles que descjam conhecer os scus trabalhos de outro modo que nao seja através dos trabalhos de outros. Esta obra reencontrada nao nos aparece como um monumento venerdvel, mas como um pensamento da_bem vivo, confirmando-nos na conviccio de que a expressio livre nio é uma fantasia nascida da ignorancia mas uma actividade a edificar sobre bases sélidas O Desenko Infantil apareceu em 1927, ou seja 14 anos depois de Os Desenkos de Uma Crianga. A partir das suas proprias observacdes ¢ das que recolheu sistema- ticamente por toda a parte, Luquet dispunha entio de uma documentago que The permitia abordar uma sintese ¢ uma critica das principais ideias emitidas até af sobre o assunto e tirar delas as conclusdes que sc impu- nham, © livro teve © sucesso que merecia ¢ poder-se-ia pensar que a pedagogia do desenho iria por fim liber- tar-se dos maus métodos que ni&o souberam substituir as antigas tradigoes. . No entanto, preferia-se afastar a maior parte das veres do rumo aberto por tho pacientes tentativas, Haveria motivo para se chocarem certas ideologias? De modo nenhum. Se chegamos a adivinhar a sua simpatia pelo positivismo que durante a sua juventude estava no auge, vemos que Luquet cvita sempre cair num dominio estranho ao seu estudo. De facto ele aderiu, mesmo sem nunca o querer, a mais persistente, 2 mais divulgada das crengas a que leva o adulto a admitir que’a sua maneira de ver € por definigao, e em todos os casos, superior & da crianga. Ora, n&o hayia ainda muito tempo que com a ajuda de processos experimentados se conseguia levar a crianga a desenhar segundo esse «realismo visual» ao qual se segue, segunda Tuquet, uma evalugie normal? Vitima do espirito de rotina, este livro nao foi melhor compreendido pelos da vanguarda: a pintura moderna realcava a espontaneidade do trago e a explosio da cor, Nao sao estas também as caracterfsticas do desenho ¢ do colorido infantis? Entéo porque prestar atengio a manifestagdes por vezes pouco espectaculares quando bastava Matisse! Os trabalhos de Luquet beneficiaram da atencao sobretudo da parte dos psicdtogos que se referem ainda frequentemente a eles, mas a maior parte das vezes para concluir pela sua insuficiéncia. De facto podemos ler todo O Desenio Infantil sem ficar a conhecer nada do cardcter, do nivel mental ou dos problemas familiares € escolares das criangas em causa, Vemo-las somente pensar ¢ agir como criancas, ¢ € talvez precisamente por isso que ste livro volta a ter actualidade. 6 Nao quer dizer que seria preciso desinteressar-se das multiplas possibilidades de interpretaciio que sur- giram depois de Luquet. Sabe-se particularmente o que a éptica psicanalitica contribui para 0 conheci- mento da simbélica infantil, Foi assim revelado um mundo que ainda nao acabémos de explorar. Esta apaixonante aventura pode, no entanto, fazer esquecer que o desenho infantil nao € um proceso que se poe ao servico de tal ou tal disciplina, mas uma actividade que pertence a prépria crianca ¢ cujo estudo se justifica por si mesmo. £ a partir deste prin- cfpio que certas comparacdes € aproximagdes podem ser estabelecidas com outras formas do conhecimento. Luquet utiliza deste modo a sua cultura filoséfica. Nao € 0 observador frio que julga e classifica desde as suas concepgdes, Mas € sobretudo um apaixonado desse «jogo» que as criancas praticam espontaneamente e, muito naturalmente, procura participar nele. Assim, estabelece-se um didlogo que pode ainda inspirar a atitnde do actual educador, senio segundo a letra, ao menos segundo 0 espirito. Luquet nao se deixa enternecer nem mesmo pelos préprios filhos, pela sua filha Simone em particular. Se 08 scus desenhos ¢ as suas reflexdes Ihe servem de base investigagdes, nunca Ihe veio ao espirito a ideia de os apresentar como seres excepcionais. Pelo contrario, procura ver em que medida os fenémenos que observa neles se encontram em desenhos de outras criangas, sendo 0 seu objective, como ele préprio esclareceu, «fazer sobressair os caracteres essenciais do desenho infantil». Reunin para isso uma enorme documen- tagio que examina metédicamente pondo pouco a pouco em relevo os meios graficos empregados. pelas criangas. Mas 0 contacto humano‘nao perde nunca os seus direitos apesar desta vontade de rigor cientifico. Assim, este livro, admiravelmente escrito, no tem o aspecto desagradavel de uma soma de experiénciasa fro. 7 Se Luquet se coloca diante da crianga como um observador ao mesmo tempo sensivel ¢ objectivo, pro cura também descobrir as leis as quais obedecem os actos ¢ os factos que observa. E neste plano que ele foi mais discutido. Ff. certo que, 4 primeira vista, os horizontes de Luquet parecem um pouco estreitos em relagao 3 evolugio do pensamento moderno. Mas, observando melhor, nao nos resta diivida de que esta impressio € dada por uma terminologia que nao podia ser perfeita mesmo para um filésofo, to dificil era ainda nessa época, a menos que se limitasse a um ponto de vista, puramente psicolégico, falar do desenho infantil sem recorrer ao vocabulirio da arte adulta, Por exemplo, pode achar-se discutivel a expressio «modelo interno» se for tomada a letra. A palavra modelo, que faz parte da linguagem dos ateliers, tem 0 inconveniente de se prestar 4 confusdo da imagem ¢ da percepco que filésofos como Sartre denunciam como um profundo erro. Praticamente pode dizer-se que um modelo é cfectivamente de natureza_a paralisar a formagao da imagem se se deixa passivamente absorver por ele. ‘Mas pode também entender-se por modelo o impulso que suscita 0 acto criador, Ora, sem ciivida, Luquet concebe sob este Angulo dindmico o papel do modelo, evitando fazé-lo um objecto fixo, fisicamente prescnte ou mentalmente reproduzido, cuja imagem nao passar de uma demarcagio mais ou menos exacta, A contra- digko que opée, segundo ele, 0 desenho infantil ao asso- ciacionismo, nao deixa nenhuma diivida a este respeito. Nao € portanto, dir-se-, sobre a nogao de realismo que repousa toda a interpretagao de Luquet, ¢ 0 rea- lismo nao tende precisamente a submeter tanto quanto possfvel a imagem ao objecto? 8 Talvez seja essa, de facto, a pretenstio declarada de certos artistas, pretensio ditada pelo temperamento pessoal, favoreeida por circunstincias de ordem social ou justificada pela necessidade de reagir contra 0 manei~ rismo. O realismo nao tem sempre 0 mesmo aspecto segundo as épocas. Difere por isso nitidamente do rea- lismo infantil de Luquet, que € preciso considerar n&o como uma das tendéncias da contemplagio estética, mas como a primeira tentativa do individuo que pro- cura afirmar-se face a0 mundo exterior. Este realismo, sabe-se, manifesta-se para Luquet sob duas formas essenciais: 0 realismo intelectual ¢ 0 realismo visual. Estas expresses foram varias vezes criticadas, se bem que muitos investigadores conti- nuassem a empregé-las, Tentemos, portanto, mais uma vez compreender a esséncia do pensamento de Luquet sem nos deixarmos impressionar por termos que, voltamos a repeti-lo, nao tinham ainda qualquer oportunidade de convir perfeitamente a uma maneira de ver tio nova. A dualidade realismo intelectual-realismo_ visual refere-se em primeiro lugar a um facto muito simples: o desenho pode em certo sentido ser considerado como um processo que permite representar objectos, tanto pelo conhecimento que temos deles ou pela maneira como os concebemos, como pela aparéncia que ofere- cem aos nossos olhos. As criangas, assim como os adul- tos, fazem constantemente apelo a estes dois recursos. Porque admitir desde logo, como faz Luquet, que o realismo visual sucede ao realismo intelectual ¢ 0 subs- titui, por assim dizer? E que os modos de representagao nao tém o mesmo valor expressivo na crianga que no adulto. Quando uma crianga observa um objecto, precura mais informar-se que gozar a sua forma e a sua cor, Pelo menos este conhecimento é para a crianga muito superficial, ainda 9 que abale profundamente a sensibilidade do artista. Mas, quando um adulto desenha em «realismo inte- lectual», quer dizer, em plano, elevagdo € corte, faz uma operacdo que pode evidentemente (no caso de um arquitecto ou engenheiro, por exemplo) estar em rela- 40 com um acto criador, mas que nao deixa de ter em Si mesmo um cardcter essencialmente técnico ¢ absolu- tamente nada afectivo. ‘A «transparéncia» ¢ 0 «rebatimento», para citar apenas estas duas manifestagées tipicas do «rcalismo intelectual» de Luquet, pelo contrério, impdcm-se as criangas para traduzir sentimentos e sensagdes, ultra- pasando largamente, pela sua profundidade, o simples desejo de representar objectos. Certamente Luquet nao ousou afirmar isto, mas basta para sua gléria ter mostrado que «realise inte- lectual» € por exceléncia a linguagem grifica da crianga e que nao convém, como se faz muitas vezes, desprezd-la ou estudé-la, servindo-se dela como padrao do realismo visual, apandgio do adulto civilizado. Luguet compreendeu maravilhosamente que o desenho da crianga est4 na realidade bastante mais perto daquilo que ele chama, talvez de um modo demasiado geral mas muito justo do ponto de vista em que se coloca, «a arte primitivay, Este € precisamente o titulo de uma das suas obras. ‘A crianga, no entanto, no é um primitive. Na medida em que cresce, o seu desenho vai evoluindo em direccio ao «realismo visual». E precisamente o que pensa Luquet, que de nenhum modo se desgosta com isso, De facto, é normal que uma crianga cuja inteli géncia se desenvolve chegue a interrogar-se sobre a maneita como os objectos se aprescntam aos seus olhos ¢ a ter em conta, desde que desenha, as observa~ Bes que pode fazer. Evidentemente, seria absurdo ten- tar deter, em nome de uma estética escolhida arbi- 10 trariamente, uma aspiracio tao legitima; no € menos absurdo valoriz4-la exclusivamente, como de um modo geral se faz, porque, de facto, numa concepgao abso- juta, o «realismo visuaby termina na visio mais impes- soal e portanto mais inexpressiva que se possa imaginar. Luquet sente-o bem e € por isso que conserva a nostalgia do «realismo intelectual», cujas formulas sao continuamente reinventadas & medida de cada ind viduo. O que ele nao supés, por falta de pratica de atelier, € que, paralelamente ao «realismo visual», a crianga descobre pouco a pouco as virtudes intrin- secas da matéria e da cor. Igualmente toma conscién- cia do poder expressive das formas que cada vez mais se empenha em fazer viver independentemente dos sinais usados pelo «realismo intelectual». ‘Assim, se se permite & crianca continuar a criar livremente, h4 todas as possibilidades de ver 0 adoles- cente reagir vitoriosamente contra o conformismo frido do «realismo visual», sem que isso o impeca, em tal circunstancia, de se interessar pela perspectiva como ciéncia geométrica. Por que génios ha-de ser operada uma vez mais a sintesc da expresso pessoal eda ciéncia?... Isto j4 nao ¢ do dominio da educagio. PRIMEIRA PARTE OS ELEMENTOS DO DESENHO INFANTIL Cariruto I A INTENCAO 1 —A crianga desenha para se divertir. © desenho & para cla um jogo como quaisquer outros ¢ que sc intereala entre eles. Notou-se que em muitas criangas 08 seus periodos de actividade grafica eram separados por intervalos de varias semanas ou mesmo de varios meses, durante os quais nao desenhavam nada, ¢ jul- gou-sc que, pelo menos em certos casos, esta falta de interesse momentinea parecia ser devida ao descon- tentamento pelos resultados das suas tentativas anterio- res, Nio se poderiam encerrar no quadro rigido de uma forma geral as razdcs que, cm dado momento € por um tempo mais ou menos longo, o fazem preferir a outros divertimentos ou pelo contrario abandond-lo. Convém notar que é um jogo tranquilo que nao exige companheiro ¢ ao qual se pode dedicar em casa tao comodamente como ao ar livre. Por consequéncia, © desenho serd praticada com predileccao pelas criancas de temperamento relativamente calmo ¢ por todas as criangas em momentos de solidio quando as circun: tAncias nao permitem os jogos ao ar livre, quando esto fatigadas, ou simplesmente quando a necessidade de mudanga as leva a divertir-sc cam outra coisa. De esto, esse jogo, como outros, apresenta para quem 15 se dedica a ele um caracter de qualquer modo obce- cante ¢ que pode prolongarse por muito tempo, Um pequeno alemio de 13 meses diverte-se levantando ¢ baixando a tampa de uma caneca 79 vezes consecutivas. Um outro com 3 anos passa 1 hora ¢ 1/4 triturar com um pauzinho farinha, sal ¢ 4gua, que faz passar alter- nadamente de uma pequena tigela para outra e pdc-se a chorar quando The querem por fim ao jogo, tirando- -lhe 0 pauzinho. Do mesmo modo tém-se observado criangas mesmo muito pequenas cujas_ produgdes graficas nio sto mais do que sarrabiscos, que se diver- tem a desenbar durante 2 a 3 horas a fio [1), 2—F, antes de mais nada a teoria kantiana que a crianga aplica espontaneamente aos seus desenhos, que vé ‘no desinteresse 0 caracter distintivo da arte, «finalidade sem fim», Assim, uma rapariguinha com 8 anos fez um esboco para explicar 4 mae como era feita a dobadoira de que se servia uma das suas peque- nas amigas para dobar novelos de scda. Gomo Ihe ma- nifestaram a intenc&o de conserva-la na colecgio dos seus desenhos, pos esta objeccio: «Nao é um desenho; € uma coisa para explicar como € feita (a dobadoira)», donde resulta que uma figura explicativa nao é um desenho, © que, portanto, o desenho se caracteriza\, pela sua inutilidade (2). 3.— Mas, se a crianga considera 0 desenho come um jogo ou precisamente por essa razio, toma esse jogo a sério tanto como os outros (3). Na generalidade ‘dos casos, desde que qualquer razio especial nio a force a apressar o seu plano, os seus desenhos sto. bem feitos. A prova disso € que muitas vezes a crianga faz, os seus desenhos ¢ dedica-os a uma pessoa deter- __ (1) Os nimeros integrados no texto remetem para 0s comen- tivios, pig. 239. 16 minada; outras vezes faz-lhes ela propria a sua critica, ‘Veremos mais adiante (§ 53) quais as razdes que moti- varam a sua aprovagio ou desaprovagio; basta-nos por agora registar esta apreciacio, Por exemplo, tal desenho € considerado «muito bonito», tal outro «o mais belo do mundo». Mas, se bem que a crianca eralmente se satisfaga com as suas producdes gri- ficas, no entanto, nfo pode suportar sempre um julga- mento favordvel. Alids, parece haver, tanto em’ dese- nhadores infantis como em adultos de qualquer activi- dade, diferengas individuais de carécter: uns estio sempre contentes, outros levam o escripulo até a0 exagero. Muitas vezes a mesma crianga passa por periodos sucessivos de satisfacio e de’ descontenta- mento, sem que se possa notar diferenga de qualidade nos seus desenhos. Uma pequena da Califérnia de uns 3 anos acompanhava a explicac%o dos seus desenhos com uma reserva pejorativa: € «uma espécie de par- dal», «uma espécie de gato», Frequentemente, um desenho julgado imperfeito pela crianga diverte-a tanto que no se entristece com ele. Um pequeno belga de 4 anos, tendo achado os cabelos dos seus bonecos muito compridos, grita: «O meu boneco é cémico: tem os cabelos compridos!». Um outro, de 5 anos ¢ meio, depois de ter desenhado um cavalo, desfaz-se a rir, dizendo: «Oh, 0 meu cavalo parece um porco!» (4). Ainda outro de 5 anos desenha 5 retratos de pessoas da familia, lado a lado, ¢ depois o scu. Mostra-se satisfeito com os primeiros mas, olhando para seu, ri-se e grita: «Um Armando patusco!» (Armando <0 seu nome préprio), Um pequeno alemio de 4 anos diz de um boneco que acabou de desenhar: «f um homem velho; nao tem cabelo, ou 36 tem um; 0 homem lho é também manco» (objéctivamente, 0 desenho nio 0 representaya). ‘ - im tequentemente, depois de ter comprovado uma imperfeicao, a crianga desculpa-se. Tanto pode invocar 2 © Desento In Ww como raziio uma circunstancia acidental, por exemplo, a falta de lugar no papel para explicar 0 escasso com: primento dos bragos ¢ das pernas dos seus bonecos, como recorrer a uma justificagio, mais ou menos sofistca sobre a qual csté_provavelmente, enganada (§ 16). Durante os ultimos 3 meses dos seus 4 anos, um pequeno da Califérnia, descontente com um grande niimero dos seus bonecos, alegrava-se chamando-lhes japoneses. Uma rapariguinha belga de 3 anos desenha ‘uma «mama» reduzida 4 cabega. Gomo Ihe chamem. a atengao sobre a auséncia dos bracos e das pernas, responde: «Ela perdeu as pernas ¢ os bracos». Uma outra, de 4 anos, representa os dedos dos pés num retrato da mae, Fazem-Ihe reparar que os sapatos nao deixam ver os dedos. «Sim», diz cla, «mas eu fiz a minha mama com os pés descalcos». Notaram a um rapaz de 5 anos que no desenho de um carro de cavalos colocou as rodas mais baixas que as patas do cavalo. «E que 0 cavalo esta sobre uma montanha» (5). Outras vezes, a crianga limita-se a assinalar os defeitos do seu desenho sem tentar desculp-los; declara, por exemplo, «teito A pressa» tal desenho ou parte do desenho. A reprovagdo de um desenho, quer depois de aca- bado quer no decorrer da execucao, manifesta-se de varias maneiras. Ou a crianca se contenta em nao a enunciar, passando-a de algum modo em siléncio, ou declara que «sio tolices», «nto é nada», «isto nao vale nada». Muitas vezes o seu descontentamento traduz-se nio por palavras, mas por actos: risca, rasga ou deita fora a folha de papel com o seu desenho. A crianga sabe eliminar, Para os desenhos a tinta ha um proceso muito simples que consiste em esborraté-los, quer espa- Ihando com a mao a tinta que ainda nao est seca, quer voltando as folhas, e esfregando-as enérgicamente contra a mesa (fig. 1). Quando s6 uma parte do desenho é considerada imperfcita, a crianca risca-a completa~ mente (fig. 2). 18 4, — Em diversos exemplos, a crianga corrige no seu desenho a parte considerada defeituosa. Por exem- plo, uma pequenita de 4 anos ¢ 4 meses risca 0 braco esquerdo de um boneco e volta a fazer por cima do braco dircito um outro brago correcto com uma indi- cagdo. Mas o proceso mais frequente, a que chamarei correcgao ticita, consiste em deixar o pormenor reconhe- cido como mate limitar-se a justapor a correccio. Por exemplo, num desenho do Pai Janeiro (fig. 3), Fig. 1 — Simonne L., francesa, 4 anos ¢ 2 meses (colecco Luquet). Casa. Desenho contiderado mal conseguido ¢ riscado (p. 18) uma pequenita, achando o chapéu mal feito, volta a fazer um: outro A direita do primeiro sem o riscar. Ainda aos 6 anos e 7 meses, a mesma pequenita, no desenho de um burro, depois de ter notado que as orelhas desenhadas na parte anterior da cabeca esto mal colocadas, volta a fazer outras duas na parte Posterior ‘da cabeca, “acrescentadas as precedentes. ma pequena belga de 5 anos, depois de ter desenhado uma mulher nua, pensa vesticla; desenha entio sobre as petnas primitivas, que deixa ficar, uma saia em forma de trapézio ¢ na base deste dois pés (6). No 19 desenho de um rapaz belga de 5 anose meio, que repre- senta uns debutantes dancando, todas as figuras tém a perna de trés encolhida, menos uma em que esta pema, primciro desenhada alongada, foi manifesta+ Prente sobrecarregada com uma outra perna encolhida: ‘A tazdo deste processo de correccao sem qualquer cl Fig. 2—Simonne L., francesa, 3 anos e 8 meses (colecedo Luquet); Casa. O desenho comecado de uma senhora no interior foi ‘abandonado c siscado (p. 18). minagio nao poderia scr procurada numa dificuldade material, pois, como vimos, a crianga sabe eliminar. Portanto, se na maior parte dos casos, para corrigir s¢ satisfaz justapondo o bom ao mau em vez de substi- tuf-lo, € porque simplesmente nao sente a necessidade de suprimir materialmente o pormenor defeituoso. 20 ‘Uma vez que reconhece deficiéncia ou erro num desenho, € como s¢ este nao existisse, ¢ a crianca nio 0 vé, como que hipnotizada pelo novo desenho que o subs- titui, porque ndo tem em conta as linhas que se podem encontrar acidentalmente sobre a folha de papel. Existe aqui a manifestacio de uma faculdade esponti- nea de selecg%o ou abstracco, A qual se acrescenta igualmente 0 facto de que, entre os elementos reais de um object, a crianca no procura reproduzir nos seus desenhos, como se 05 no tivesse visto, os que nao lhe interessam (6 44). 5, —O desenho ou a actividade grafica compde-se de dois elementos: a accio de desenhar em geral ¢ a execugiio de um desenho determinado, Quais sio os motivos ou assuntos tratados pela crianga nos seus desenhos espontineos? Ninguém ignora que a figura humana, 0 boneco, € 0 mais frequente. Mas nfo se poderia acreditar que se limita a isto o repertério grafico da crianga, come acontece muitas vezes onde Fig. 3 —Simonne L., francesa, 5 anos e meio (calecgo Luquet). {p. 26). O chapéu ‘esta corrigido por cprrecgio tacita B 19). A cesta esti ‘deslocada por realismo intelectual (p. 183). Fig. 4 — Simone L,, francesa, 6 anos ¢ 4 meses (coleccio Luquet). Diabo. Tntengdo determinada por homonimia grafea (p31). 2 h4 «cavalos», «galinhas» ¢ casas. Fazendo o inven- trio da colecgéo completa dos descnhos de uma crianga, encontram-se muitas vezes no sé todas as categorias possiveis de seres ¢ objectos, mas também todos os géncros tratados pelos artistas profissionais (7): retrato, paisagem, natureza morta, desenhos ane- déticos ou histéricos (porque para’ a crianca tudo 0 mesmo), cenas de familia, ilustragdes de historias reais ou imaginadas. Gertamenie 0 conjunto das produgies grificas de um mesmo autor apresenta, segundo a crianga con- siderada, diferencas notdveis tanto pelo mimero geral dos desenhos como pela natureza e proporcio relativa dos diferentes motivos. Nota-se em diversas criangas, pelo menos durante um certo perfodo de duracao varidvel, uma predileccio acentuada e¢ por vezes exclusiva pela reprodugao de uma categoria deter- minada de objectos; hd aqui uma especializagio de interesse comparavel a uma vocagio, ¢ que n&o passa da manifestagio de um trago de catécter individual. O exemplo mais curioso € 0 daquele arqueslogo conhe- cido que até a idade de quatro anos tinha pelos guarda- -chuvas uma verdadeira paixio que nem os pais nem ele préprio puderam descobrir a origem; nao queria nunca sair sem 0 guarda-chuva, desenhava-o continua- mente e pedia muitas vezes As pessoas importantes que o desenhassem. ‘Mas, mesmo tendo em conta as suas singularidades, pode considerar-sc regra geral a erianga representa nos seus desenhos tudo o que faz parte da sua xpe- rigncia, tudo o que est aberto & sua percepgio. Mesmo as diferencas de interesse por tal ou tal categoria de objectos sio determinadas nao s6 pelos gostos pessoais, do desenhador, mas também pelas condigdes da. sua experiencia, c variam com elas. Assim, de uma maneira geral, os pequenos «pintores de animais» vivem no campo ou estio na casa paterna em contacto cons- 22 F tante com animais caseiros: caes, aves, cavalos, O repertério grafico da crianga, assim como a sua experi- éncia visual, esté condicionado pelo meio onde cla vive. Assim, para ter em conta apenas objectos sus- ceptiveis de serem desenhados, um inquérito feito nas escolas puiblicas de Berlim estabeleceu que, nas eriancas de mais de 6 anos, 98% jamais viram um rio, 819, bétulas, 75% Iebres vivas, 64% esquilos, 59%, campos de cereais, 53% caracdis, Em Boston, em criancas entre 05 4 ¢ 05 8 anos, 77% nunca tinham visto gralhas, 66% amoras (fruto das_silvas), 61% campos de batatas, 57% ceifeiros, 50% ras, 20% borboletas, 6.—-Entre os objectos que a+ crianga conhece ¢ que sctia capaz de representar, que desenhara talvez mais de uma vez, cada desenho reproduz um desses objectos ¢ ndo qualquer outro. Nao se trata de deter- minar para cada desenho particular os mébcis ou razdes, a maior parte das vezes inconscientes, que levaraim a crianca a fazer precisamente determinado desenho. Contudo pode enunciar-se esta formula geral: o desenho ¢ uma intima ligacéo do psiquico edo moral. A intencao de desenhar tal objecto nio é sendo o prolongamento a manifestacao da sua repre- sentagio mental; o objecto representado é 0 que nesse momento ocupava no espirito do desenhador um lugar exclusivo ou preponderante. Os factores sugestivos da intengao de cada desenho confundem-se, portanto, om os da evocaco da ideia do objecto correspon- 7.—O primeiro desses factores € a influéncia das circunstincias exteriores, Entre estas, convém por de parte o pedido que pode ser dirigido & crianca Por qualquer pessoa para que faga desenho determi nado. Estas sugestdes estranhas tém uma influéncia extremamente restrita c sobretudo passageira; $6 23 parecem eficazes para os motivos que a crianga desenha JA espontineamente, Por exemplo, uma rapariguinha ‘de pouco mais de 3 anos ¢ meio mostra A avé os baloes que acabou de desenhar, os quais, cm conformidade com 0 seu tipo habitual, consistem num circulo comple- tamente cheio de tracos rectangulares. A avd per- gunta-lhe se so bolachas. Podia at haver uma sugestao para que desenhasse bolachas, tanto mais que esta crianga tinha j4 desenhado ‘pastéis. No entanto, dat para diante nunca mais desenhou bolachas (8). 8 —Ao. contririo das sugestdcs no sentido res- trito, as circunstancias exteriores, se num sentido estimulam a espontaneidade da crianca, no a subor- dinam a uma vontade estranha; propéem-Ihe um motivo mas nao lho impéem. ‘Neste caso, estio incluidos todos os desenhos sugeridos pela percepcao ou pela recordagio dos objectos correspondentes, que chamaremos por esta raz4o objectos sugestivos. Esses objectos podem ser de duas espécies: objectos propriamente ditos ¢ motivos, ou modelos, quer dizer desenhos ja executados anteriormente quer pela. pré- pria crianga quer por outras pessoas, vistos em Albuns, livros ow eatalogos. = Poderia citar-se uma profiusio de descnhos cuja intencao foi determinada pela percepcio de objectos reais ou pelas circunstancias imediatas. Assim, para uma rapariguinha, cinco desenhos de cavalos sao provocados, segundo as suas proprias declaracoes, ao ver um cavalo a“passar na rua; o desenho de um selo, porque esteve a divertir-se vendo um Album de selos; 0 de um homem que faz bolas de sabao, porque, come ela se queixava de nao saber em que se ocupar, © irmaozinho sugeriu-lhe fazer bolas de sabio. O desenho de um passcio sob a neve (fig. 62) foi executado em 20 de Dezembro, Desenhos de criangas de nacio- nalidades diferentes reproduzem um acontecimento ory que elas ouviram ler no jornal: casamento, atentado, faufrégio, fafsca caindo’ sobre uma casa (fig. 138). Outros desenhos sio inspirados por circunstincias nao de todo imediatas, mas do proprio dia: ingidentes do passeio que a crianca acabou de dar, um botdo encontrado ¢ trazido para casa, 0 circo ou o concerto aonde a levaram, o rato que poder cair na ratocira que acabaram de preparar, o fogao de sala que voltou a ser aceso A chegada do’ Inycrno. ‘Acontecimentos mais antigos podem igualmemte determinar os desenhos, em virtude do facto geral, particularmente patente na infincia, de poder reviver recordacées muito longinquas. Por exemplo, uma pequenita representa no desenho* de um jardim «o grio de reseda por brotar» que foi semeado 8 meses antes. Os dois lendarios herdis douaisianos, Gayant sua mulher, ainda que desenhados de meméria dez dias depois, s40 representados de um modo extrema- mente ficl © completo no pormenor, como € facil de notar comparando com a fotografia junto aos desenhos (fig.37-45). O ultimo dos desenhos de Gayant, ‘0 mais completo, reproduz 0 capacete com plumas, 0 manto que flutua, a cota de malha e as abas, a lana ¢ 0 escudo decorado no centro com o d gético que serve de armas & cidade de Douai; 0 desenho da senhora Gayant mostra brincos nas orelhas, andis, leque ¢ colar de jéias descendo sobre o peito. Um outro desenho reproduz com uma inerfyel fidelidade pormenores de um dos bairros da cidade onde a crianga passou as suas férias ¢ que jé nfo via havia cinco meses. Frequentemente, estas recordagdes sugestivas de desenhos sko provocadas pela expectativa do regresso de circunstancias semelhantes; assim, com a aproxi- mago das férias, a crianca desemha paisagens, cenas ou objectos vistos durante as férias precedentes: a praia € 0 mar, por exemplo. 25 Por vezes, ainda, os desenhos representam ideias sugeridas por circunttincias mais ow menos prolon- radas. Em bastantes criangas notam-se no fim de Dezem- ro desenhos repetidos de S. Nicolau ou do Pai Ja- neiro (fig. 3), de «bonecas como h4 nas montras», Arvores de Natal. No principio da guerra, os painéis das ruas representavam frequentemente, ¢m Franga, soldados com capacete, motivo que nfo se encontrava, antes; © pode ver-se todos os anos, nas paredes, nas mais variadas localidades, uma verdadeira prolife- racio de desenhos de peixes por volta do primeira de Abril (9). 9.— Nao seria dificil multiplicar os exemplos de determinagao da intengio por modelos. Numa multidao de criangas, os seus primeiros desenhos pretendem reproduzir os mesmos motives que obscrvaram em desenhos anteriores dos scus pais, muitas vezes pedidos pela propria crianca. Mais tarde ¢ em todas as idades, do mesmo modo numa grande variedade de criancas, encontram-se numerosos desenhos sugeridos por outros desenhos executados na sua presenga por irmaos, irmis ou pequenos colegas. Para uma pequenita, 08 gatos vistos de costas, que sto os tinicos desenhos de gatos até aos 4 anos — porque dai em diante a criant distingue os gatos de perfil pelo nome de gatos sen- tados—, so inspirados pela imagem de um gato repre- sentado de costas que decorava um cinzciro que tinha na sua frente, sobre a mesa de trabalho do pai quando ela desenhava. A intengao, como acabémos de ver, pode ser pro- vocada quer pela percepcio quer pela’ recordacio de objectos reais ou de modelos desenhados, Mas as con- igdes necessdrias para estabelecer com certeza a determinagao de um desenho por um ou outro destes factores apenas se encontram realizadas em casos privi- Jegiados cm mtimero forcosamente restrito. Portanto, 26 parece-nos arbitrério dar a um ou outro destes ele mentos um papel preponderante, Segundo varios auto res a crianga, pelo menos no prinefpio, ndo desenharia objectos actualmente presentes; como ficou dito, quando a intengao € provocada por objectos reais, sé-lo-4 pela sua recordacio e nao pela sua percepgao. Esta opinido € contraria aos factos, porque citémos exemplos, que no seria necessario multiplicar, em que a crianca se propés expressamente reproduzir um objecto que tinha diante dos olhos; por vezes mesmo, querendo desenhar e em busca de um motivo, procura-o nos ‘objectos que esto sua vista. A tese é portanto mate- rialmente falsa, O argumento tedrico invocado para a sustentar nao vale mais, Diz-se que a crianga nio necessita de uma imagem quando tem a propria coisa, «assim como um amante nao tem necessidade de fazer © retrato da sua amada enquanto a tem consigo» (10). Este argumento baseia-se numa concepcio. radical- mente errénea do papel que a crianca atribui aos scus desenhos. Um desenho nao é nunca um substituto do objecto correspondente, de menor valor, e que tornaria imitil a presenga do objecto; a obra da crianga, produto © manifestagio da sua actividade criadora, ¢ 0 exercicio desta mesma faculdade é 0 mesmo ¢ acompanha-se de um igual prazer, quer 0 desenho reproduza um objecto presente ou ausente. Igualmente se sustentou que @ crianga se inspiraria de melhor vontade em modelos desenhados por outras pessoas que em objectos reais. Admitiremos sem custo que, muito no principio, quando ainda no foi consti- tufdo um repertério grilico, os desenhos dos outros Ihe possam fornecer temas ja familiares que orientam numa direc¢io determinada a sug intencio de desenhar qualquer coisa. Talvez mesmo, ém virtude da alegria que encontra a crianga ao tomar consciéncia da sua faculdade de criagio gréfica, a nosso ver elemento fundamental da estética infantil (§ 58), a -crianga 27 procure, mais ou menos inconscientemente, mostrar-se Igual aos grandes fazendo precisamente ‘os mesmos desenhos que hes viu fazer. ‘Mas nao é assim que se entendc vulgarmente o papel dos modelos; a crianga imité-los-ia nao porque the fornecessem temas de inspirago, mas para facilitar ‘a execucao dos seus prdprios desenhos. A represen taco de objectos reais, diz-se, apresenta a um dese- nhador principiante a dificuldade de traduzir as suas trés dimenses sobre uma superficie que s6 tem duas; a crianga evita esta dificuldade copiando desenhos, onde encontra esta tradugio completamente feita, Criticaremos mais tarde (§ 38), em toda a sua gene- ralidade, a concep¢io a partir da qual a crianga sera guiada de uma maneira mais ou menos consciente na procura do tema dos seus desenhos pela sua facilidade relativa de execugio. Sera suficiente notar que, nos desenhos em que ela se props expressamente copiar um modelo, s6 Ihe toma o tema do desenho; para fazé-lo, inspira-se nao no modelo objectivo que tem diante dos olhos ¢ que na maior parte do tempo nao otha, mas no que nés chamamos modelo interno (§ 35)- A crianca, tanto nos desenhos copiados © inspirados na natureza como nos desenhos de meméria, nao se preocupa com a perspectiva, que substitui por um outro modo de representagio: a mudanga do ponto de vista. E portanto um erro dar-lhe, por uma con- cepcio de adulto estranha 4 mentalidade infantil, a intengdo de utilizar os desenhos dos outros como modelos no sentido completo da palavra, quer dizer, ndo encontrar neles simplesmente uma fonte de inspi- ragio, mas para facilitar a execucao do desenho, o seu modo de representacio grafica’ dos objectos reais. 10. — Um segundo factor da intengao € a associa~ sao de ideias, O tracado de um desenho, a que chama- remos desenho evocador, ¢ acompanhado da ideia 28 mais ou menos consciente do objecto correspondente; esta evoca por associagdo a ideia de um objecto dife- Fente que se prolonga pela intencdo de o desenhar. Em diversas criangas de nacionalidades diferentes, 0. pri- feiro desenho de uma senhora ou da mama € imedia- tamente consecutivo ao desenho de um senhor ou do a 24h att } tg ee z Fig, 5 — Simonne L., feancesa, 3 anos ¢ 5 meses (colecgao Luquct). Cavalo, Intengao determinada por associagdo de ideias (p. 29). Fig. 6 — Simonne L., francesa, 6 anos e 8 mescs (colecgio Luquet)- Galinha. Interpretagéo sugerida pelo aspecto do tragado (p. 42)- papa. O primeiro cavalo feito por uma rapariguinha, alids muito imperfeito, sucede 20 de um chicote (fig. 5), © 2 passagem de um ao outro por associagao € estabele- cida pelas declaragdes da prépria crianga: «Isto é um chicote; preciso de fazer o cavalo». O desenho de um selo provoca o de um sobrescrito. Varios desenhos de combeios sucedem-se imediatamente a desenhos de carros; ao contrario, um carro sucede a um comboio, um outro a um cavaleiro (fig. 8 ¢ 9). O papel da associa- 29 cdo de ideias transparece igualmente nos desenhos con- secutivos de um pio, um prato, uma garrafa, um garfo, uma faca, uma colher. Uma pequena americana quer representar a histéria do «Joao Nariz-no-Ar», e comeca por desenhar Jodo caido na agua c dois homens na Thargem que 0 vao tirar. Mas estas personagens beira da agua sugerem a ideia da pesca ¢, portanto, poe na mao de cada uma linha, na extremidade da qual esta suspenso um peixe. Este evoca, por sua vez, a ideia de peixe, ¢ 0 resto da folha é cheia por um desenho de peixes. big. 7-9 —Simonne L.. francesa, 7 anos € meio (colecgao Luque). “Trés desenhos consecutivos. Fig. 7— Senhora levando 0 seu guarda-chuva. Adicio de um pormenor provocado pelas circunsténcias exteriores (p. 69). Fig, 8— Cavaleiro, Adigio de um pormenor provocada por fuvoclasio de ideas (p. 1). Fig, 9— Caro. Tntengao sugerida pela associagio de ideias (p. 29). Rebatimento das rodas (p. 172). 30 11. — Merece especial referéncia um caso particular de associac&o por semelhanca, cm que a analogia é de ordem nao j intelectual (analogia do papel), mas visual (analogia do aspecto); por esta razdo dou-lhe 0 nome de analogia morfolégica. Esta apresenta-se muitas vezes em duas formas distintas: a analogia morfoldgica objectiva ¢ a analogia morfoldgica grafica, que pode ainda chamar-se homon{mia grifica. No primeiro caso, © que se parece pelo aspecto sio os objectos represen- tados, no segundo a sua representagdo. Muitas vezes as duas espécies de analogia sao indistintas, e a semelhanca dos desenhos resulta simplesmente da semelhanca dos objectos reais correspondentes; tal ser o caso, por exemplo, dos desenhos de um senhar e de uma senhora. Mas em certos casos, sobretudo nos primeiros desenhos, a deficiéncia da execuco da aos tragados uma seme- Thanga que nao existe entre os objectos reais ¢, por- tanto, s6 se pode falar de uma analogia morfolégica grafica. Assim, mesmo que no haja alguma analogia morfoldgica cntre um campandrio, um boneco, um peixe e um gato reais, os desenhos destes diferentes motivos para uma rapariguinha de uns 4 anos ¢ meio parecem-se pelo facto de serem todos essencialmente constituidos por um contorno eliptico e, em diferentes repetigdes, sugerem-se uns aos outros (fig. 10 © 11). A determinacio da intencdo por analogia morfoldgica € particularmente clara no seguinte exemplo. A mesma rapariguinha, aos 6 anos e 4 meses, desenha ntimeros durante varios dias, sobretudo 0 8. Ao lado de um des- tes oitos desenha uma bobina do jogo do Diabo, que tem pouco mais ou menos a mesma forma, ¢ completa depois este desenho com as varas ligadas pelo cordel (fig. 4). Aum rapazinho de 4 anos ¢ 1 més, o desenho de um cachimbo sugere por homonimia grafica o de uma bota. 12. — Um terceiro factor da intengao, a que cha- marei automatismo grafico, parece-se com a associagao * 31 de ideias, porque nos dois casos ha um desenho evocado consecutive a um desenho evocador. Mas aqui os dois desenhos representam © mesmo objecto; nao se inter- cala, portanto, nenhuma ideia entre a representacdo correspondente ao desenho evocador ¢ a que sugere a intencdo que subsiste em estado inconsciente no espi- rito do sujeito ¢ que se manifesta de facto pelo tracado correspondente; 0 desenho evocador é reproduzido maquinalmente em varios exemplares. m primeiro caso de automatismo grafico € 0 auto- matismo gr4fico imediato, em que um desenho ¢ ime- diatamente seguido de um ou varios desenhos do mesmo motivo, Entre uma quantidade de exemplos, eis alguns de um autor belga. Um rapaz de 3 anos € meio desenha durante uma meia hora um mimero consideravel de pequenas linhas fazendo no conjunto a forma de um m ou de um w. Uma pequenita da mesma idade cobre com pequenos circulos os dois lados da sua lousa, depois de o ter feito numa folha de papel. Uma outra, igual- mente de 3 anos ¢ meio, desenha em fila uma boa centena de «homens» compostos por um circulo ¢ duas rectas. No dia seguinte, convidada a desenhar, retoma © mesmo tema, mas num ritmo mais lento ¢ acrescen- tando dois olhos na cabeca; numa meia hora fez mais de um cento desses bonecos, Um pequeno da Cali- fornia de 3 anos ¢ 8 meses desenha em fila quarenta «fotografias minhas quando cra bebé». Uma crianca americana, comecando a desenhar a histéria do «Jodo Nariz-no-Ar», esquece a sua intencao e alinha vinte ¢ seis figuras do J 13. — Ao lado do automatismo grafico imediato, existe um automatismo gréfico continuo, que consiste numa tendéncia maquinal néo de repetir o desenho que foi feito imediatamente antes, mas de fazer de novo 6s mesmos desenhos com o intervalo de um ou varios dias, na auséncia de toda a determinagao psiquica 32 perceptivel ao observador. Jé o encontramos conjunta- mente com o automatismo imediato nos bonecos de uma rapariguinha belga. Uma outra, a que tinha tra- gado uma longa série de circulos por automatismo ime- diato, desenha exclusivamente, um pouco mais tarde e durante mais de oito dias, escadas formadas por dois tracos horizontais cortados» por dois tragos. verticais, quase constantemente em mimero de cinco. Uma outra, com 5 anos, repete sem se cansar, durante dois dias, bonecos sem tronco ¢ com os bracos metidos nas pernas. Um pequeno belga de 5 anos desenha durante varios dias, excluindo qualquer outro motivo, ainda que sugerido pela professora, mesas segundo um esquema que acabou de aprender numa ligdo do jogo dos bas- tes: um rectdngulo em que os dois lados mais curtos se prolongam para formar os pés; no interior, um ponto representa 0 puxador da gaveta (11), Para uma pequena francesa de 4 anos ¢ 3 meses, 0 automatismo apresenta um caracter de qualquer modo obcecante pelo motivo casas, Durante catorze dias, os dezasscis desenhas que executou foram dnicamente de casas; seis dias depois recomeca uma série que se estende até aos dezoito dias, € contendo exclusivamente trinta © uma casas; € trés meses mais tarde, tendo desenhado outros motivos neste intervalo, ela repara: «Ha ja muito tempo que eu nao tinha feito casas», e desenha uma. ___14—A inteng&o nao resulta apenas da influénci isolada de tal ou tal factor dos que acabamos de exa- minar, mas também da sua accdo concorrente, Por exemplo, um desenho (fig. 11), anunciado como sino, sucede a um desenho de gatos que por autom: ismo grafico provocaram a inten¢ao (sem duvida incons- iente) de desenhar de novo um gato. Mas a ideia de gato assim evocada sugere, por sua vez, por homonimia grdfica, a representagao de um sind, ¢ a intencao gato transforma-se em intencao sino, a qual é unicamente 3 © Deseo + 33 anunciada. A sobrevivéncia inconsciente, sob a inten- 40 sino anunciada, da intenc&o gato que Ihe sugeriu manifesta-se pelo facto de que esse desenho anunciado como sino conserva dos desenhos de gatos 0 traco horizontal da extremidade que representa a cauda e que nao tem nenhuma razao de ser num sino. sO Fig, 10 ¢ 11 — Simonne L., francesa, 4 anos © 2 meses (colecga0 Luquet). Desenhos imediatamente’ consecutives de um gato cde um sino. Homonimia grafica (p. 31) determinando a inten- sto (p. 33). Por outro lado, sabe-se que a associagao de ideias é um factor psfquico extremamente vago, capaz de justificar igualmente bem ou igualmente mal a evocacio de certa ideia por qualquer outra, € que, para explicar porque tal ideia evocou num momento detcrminado uma outra em vez de uma terceira, precisa de fazer intervir razées acessérias. No caso de que nos ocupamos, as circunstancias exteriores, cuja acco isolada notamos para determinar imediatamente a intenc&o do desenho, podem determind-la mediatamente, orientando mais de um lado do que do outro a assaciagio de ideias. ‘Assim, uma rapariguinha de 4 anos ¢ meio desenha Iado a lado, sobre a mesma folha de papel, cinco senhores e senhoras, como se estivessem no més de Janeiro; esses bonecos despertam a ideia de pessoas que fazem 34 visitas, ¢ ela desenha ao lado deles as ruas por onde sam, Do mesmo modo, o desenho de um peixe lembra um dia de pesca 4 linha’ em que tomou parte durante as férias, ¢ ela acrescenta ao peixe uma cena de pesca, Mas alguns dias mais tarde um outro desenho de peixes fi-la pensar em dois peixes vivos que nesse momento havia em sua casa numa taca, e esse desenho € seguido imediatamente por dois outros, cada um dos quais re- presenta uma taga com dois peixes. O desenho de uma margarida sugere duas rosciras e violetas; depois, como era o dia de Todos-os-Santos, em que as pessoas levam flores € coroas 0s cemitérios, ocorreu-he uma coroa de flores. : ” Carituto IL ~A INTERPRETAGAO 13 —O desenho, uma vez executado ou cm plena ‘execugao, recebe do seu autor uma interpretagio. ‘A intengio era apenas o prolongamento de uma ideia que a crianga tinha no espirito no momento de comecar © tragado; do mesma moda a interpretagio, deve-se a uma-ideia que tem no espirito enquanto executa esse tracado, ao qual dé o nome. o ‘© caso mais normal & aquele em que esta ideia € a mesma que, sob a forma de intenco, sugerin desenho © que a propria execugao deste contribuiu para manter no espirito. Mas nao € 0 Unico caso, porque a obser- vagdo revela o facto inesperado de que a crianga d4 frequentemente a um desenho executado ou em vias de execucio uma interpretagao diferente da. sua inten- 40 primitiva. Podcria enumerar-se uma infinidade de exemplos. Numa pequenita de uns 3 anos, uma ra transforma-se em cio, € uma outra em boneco; inver- samente, um desenho anunciado como um boneco é, depois de executado, enunciado como uma ra, Um exemplo que torna’ particularmente interessante a extrema diferenca entre a intenc&o e a interpretacao nos fornecido por um descnho de uma pequenita de 4 anos e meio ie. 12). Depois da execugao, ela inter- 37 preta 0 seu desenlio como um carneiro, ¢, tendo-the fido pedido que o analise, indica a cabega, 0 olho, a boca, as patas, a 1a, Esse desenho satisfa-la plena- mente; ela faz notar que a cabeca parece bem uma cabeca de carnciro c no dia seguinte, voltando a cxa- minar 0 desenho a propésito de um outro carneiro que quer fazer, repete que «tinha mesmo a forma de um carneiton, Ora este desenho que, pela satisfagio que Ihe Fig. 12 —Simonae L., francesa, 4 anos e meio (colecgao Luquet) Cakncico, Interpretagio diferente da intencio (p. 37). ,Tusio G2'Rier aesenhar wm motivo determinando a intengio (p. 54). Fig. 13—Simonne L., francesa, 3 anos ¢ 11 meses (colecgio SLuquet). Tnterpretagao diferente da intengdo (p. 48). causa, daria a impressfio de corresponder & sua inteng&o rimitiva, tem uma origem totalmente diferente. ‘endo a'mie decalcar desenhos para bordados, quis fazer como ela ¢ decalcou um desenho, Acidentalmente, tomou uma forma que interpretou como um carneiro e em seguida completou o scu desenho no sentido da interpretagio sobreposta, Mais notavel ainda é um borrio de tinta que, apesar de puramente acidental, é considerado por diferentes criancas como um dos seus desenhos voluntarios € recebe entio uma interpretacao (c&o, oceano). Donde se deduz que a interpretagéo ou nao faz mais que repetir a intengdo ou difere dela? Veremos 38 depressa (§ 17) que a interpretagdo é a maior parte das vezes determinada pela semelhanca do tragado com um objecto ja conhecido da crianga, objecto cuja jnterpretagdo d4'o nome ao desenho ¢ que, por esta razilo, eu chamo objecto denominativo. A interpretagio apresentar-se-4 4 crianga com tanta intensidade que ela encontraré uma maior semelhanga entre o seu tra- gado © 0 objecto denominativo, ou mais exactamente © seu modelo interno (§ 34) desse objecto. Ora, esta semelhanga & extremamente varidvel, porque, para uma crianga, os diferentes motivos nao tém, se se pode dizer, a mesma idade. Se, por exemplo, uma crianga desenha de seguida um cao ¢ um homem, o cdo podera ser desenhado pela primeira vez ¢ 0 boneco pela quin- quagésima, donde resultard forgosamente uma maior habilidade grafica para a execucio do boneco. Por outro lado, pelo habito, a crianca adquire nao s6 habi- lidade para desenhar tal motivo, mas ainda habili- dade para desenhar em geral, quer dizer, fazer corres- ponder os scus movimentos 'graficos A representacao de um objecto qualquer. Assim, o primeiro gato podera ser muito menos imperieito que o primciro cio, se foi executado trés meses depois, porque a habilidade gré- fica geral da crianca seré acrescentada por conse- quéncia de todos os desenhos feitos no intervalo. Portanto, haverd ou nao coincidéncia da interpre- taco com a intengao segundo o grau de correspon- déncia do trasado' com a intengao e, logo, a nio coincidéncia € pelo menos em grande parte, conse- guéncia da inaptidao grafica, Assim se explica éste caso la experigncia que 0s casos de ndo-coincidéncia dimi- nuem gradualmente & medida que a habilidade gré- fica se adquire pela pratica do.desenho, 16. — Se a interpretacao recebe’ da semelhanga do tragado com 0 objecto denominativo uma maior ou menor forca intrinseca, esta no passa de um clemento 39 da sua forga total. A este factor positivo opde-se um negativo, isto é, a interpretagao nao se encontra isolada na consciéncia da_crianca, mas juntamente com a intengdo. A intengio de facto, como todos os estados psiquicos, tem uma tendéncia para durar, prolongando- “se sob a forma de recordacio imediata, e essa recor- dagao da intengao tem, como a interpretacao, uma forca intrinseca maior ou menor. A da interpretagao dependia da semelhanca do tragado com 0 objecto denominativo; ada intengao depende da semelhanga do tragado com 0 objecto sugestivo ou antes © modelo interno deste, que nio é sendo a face representativa da intencao. A recordagio da intengao, que subsiste com uma forca mais ou menos grande na consciéncia do sujeito, choca com a interpretagao que se esboga sob a influén- cia do tracado, No caso em que, em consequéncia da impericia grafica, esse germe de interpretacao difere da inteng&o, 0 seu encontro na consciéncia da origem a um conflito, Aqui, como em tudo na vida mental, ‘© confiito entre elementos pstquicos consiste na lta para chegar A consciéncia clara no estado de conscién- Cia total resultante da sua acco recfproca. Enquanto a recordagao da intengdo nao quer perecer, opde-se & interpretagio nascente ¢ prejudica o seu desenvolvi- mento, a interpretacao nascente luta, para subsistir, contra a recordacao da intenco que se opde ao seu desenvolvimento, O éxito deste conflito dependerd evidentemente da forca respectiva dos dois adversarios. As suas armas, 0 seu apoio neste combate s6 pode con- sistir no acordo com 0 tracado, quer dizer, a seme- Thanca do desenho com 0 objecto sugestivo pela inten ¢Ao, ‘com o objecto denominativo pela interpretacao. No entanto, preciso acrescentar que a forga intrin- seca da intengio pode, independentemente de todo o conflito com uma interpretagao diferente, ser mais ou menos reduzida ou mesmo anulada por um outro factor, de ordem puramente psfquica, a saber: a mobilidade 40 de espitito, que ¢ um dos tragos caracteristicos ¢ und- nimemente reconhecidos da psicologia infantil. Se_a crianga tem uma meméria extraordinariamente fiel no sentido de que a recordacdo dos factos passados hd bastante tempo pode despertar no seu espirito com uma nitidez perfeita (§8), num outro sentido € essencial- mente esquecida: Vive no instante actual sem o sistema- tizar com 0s momentos mesmo imediatamente ante- riores. E o que explica a adico a certos desenhos de pormenores inconciliaveis com © conjunto (§ 32) no momento em que os traca, a crianca esqueceu a intengdo do seu desenho. Compreende-se que em vi tude desta mobilidade de espirita a crianga, como ja vimos exemplos, esquece a sua intencdo durante a execugio do desenho correspondente, por vezes mesmo antes de o tracar. Nestas condigdes, uma interpretacaio intrinsecamente fraca, quer dizer, a interpretagio de um tracado muito pouco semelhante em relagio ao objecto denominativo, nao ter dificuldade em substi- tir a intengao, tendo esta desaparecido da consciéncia da crianga. Conforme a intensidade da intengao e da interpre- taco, 0 seu conflito produz resultados diversos. Quando a recordagao da intencio é intrinsecamente forte ¢ a interpretagao intrinsecamente fraca, geralmente a crianga limita-se a reconhecer que o seu desenho é defeituoso, por formas variadas, tais como: «Nao é nada», Quando os dois sio intrinsecamente fracos, tém por resultado uma intensidade mediocre de interpre- tagao, que se manifesta de diferentes modos: a crianga abandona a sua interpretacao se a interrogam, enun- cia-a_com hesitagdo, enuncia varias interpretagoes, ow nfo enuncia nada. _ Quando a recordacao da intengao e a interpretagao sdo intrinsecamente fortes, coexistem e chocam-se no espirito da crianga, Esta tem consciéncia do conflito desde os seus primeiros desenhos. A princfpio, as {or- 41 mulas com que se exprime nio sao claras; dira, por exemplo: «£ um peixe; ndo € um peixe»; 0 que Here sem diivida ser traduzido por: «Eu interpreto 0 meu desenho como um peixe porque parece um peixe, mas nao € 0 que eu queria fazer». Mais tarde, porém, enuncia com uma preciso satisfatéria 0 mecanismo psiquico da substituigao de uma interpretagdo diferente da sua intengao primitiva, Entre varios exemplos, citarci um desenho de uma rapariguinha de pouco mais de seis anos ¢ meio (fig. 6), & volta do qual escreveu espontaneamente: «Eu nao queria fazer uma galinha, mas reparei que isto parecia uma galinha», Quando a lembranga da intencio ¢ intrinsecamente fraca_e a interpretacao intrinsecamente forte, esta triunfa sem custo ¢ a crianca sustenta-a com e contra tudo, quer seja ou nao defensivel. Particularmente, desde que Ihe facam notar ou que ela prépria note no seu desenho algum pormenor inconciliavel com a sua interpretacao, esforga-se por dar a esse pormenor uma interpretagao que the permita conforma-la com 0 conjunto, ‘Antes de mais nada, ¢ preciso acrescentar que a jus-* tificacdo dada pela crianga a um pormenor inconciliavel com 0 conjunto, como a uma imperfeigzo do scu desenho (§ 3), ndo é pelo menos num bom mimero de casos, puramente sofistica. Um facto dos mais curiosos, que poderia parecer inverosimil se a experiéncia nao rovasse 0 contrério, € que a crianga que acaba de fazer um desenho esquece nao $6 0 que quis fazer, mesmo sendo obra sua, ¢, iludida pela sua imaginagio, toma com toda a sua boa-fé por objectos reais, assim como por simulacros por vezes informes ou até imagens, as suas prdprias criagbes grdficas, Por exemplo, uma pequenita francesa de 4 anos, depois de ter desenhado um homem com um cigarro na boca, volta a cancta ¢ aproxima-a da extremidade do trago como para acender © cigarro; s6 depois desta pequena comédia é que 42 desenha o fumo na extremidade do cigarro. Uma equena alema de 4 anos ¢ meio quer desenhar uma Rigrada Familia. Desenha primeito 0 Menino Jesus, mas nio consegue dar-lhe a atitude de oragao: os joelhos nao quiseram dobrar-se ¢ em vez das maos juntas via-se apenas um noveloinho desordenado. Entao, a pequena artista indigna-se: «O mau Menino no quer rezar € Sto José esti muito zangado; bate o pé e ralha porque © Menino nao quer rezar nem sequer por-se de joelhos. Mau Menino, por favor reza € pée-te de joclhos!» ‘Ao mesmo tempo desenha S. José com uma pernano ar: na sua célera bate com © pé no chao, Por fim, consegue fazer uma figura ajoelhada e com as mos juntas; 0 Menino tornou-se simpatico. O mecanismo psiquico de uma justificagdo de aparéneia sofistica Bparece-nos de uma maneita clara, assim o julgamos, num desenho de uma rapariguinha de 5 anos € 4 meses, onde uma pequenita tinha 0 queixo coberto por uma barba escura. Dizem a pequena, mostrando-lhe a barba: «Ela tem barba?» Ao que ela responde muito justamente: «Nao, porque € uma rapariga, Mas isso aconteceu porque a minha caneta tinha muita tinta.» Ela sabe perfeitamente que esse pormenor é 0 resultado de uma circnnstancia actdental. Mas, senao tinha signi- ficado no desenho que ela queria fazer, era preciso um J que existia, e a crianca acrescenta: «E para dizer que cla deitou fora da boca todo o vinho» Assim, a Justificagio, que pode parecer-nos puramente sofistica, nao o € para a crianga: é simplesmente a interpretacdo do desenho considerado como um objecto existente em si, independentemente da intengao que o fez tragar, Um rapazinho de 5 anos e 8 meses, tendo no desenho de uma senhora dado ao chapéu comi,as suas plumas dimensdes exageradas, interpreta-o como «uma senhora com um abeto sobre a cabecan; c esta interpretagao agrada-Ihe tanto que desenhia mesmo ao lado «0 boneco (quer dizer © marido da senhora) com um abeto sobre a cabeca». 43, 17, — De tudo 0 que foi visto conclui-se que, para um desenho dado, a interpretagio atribulda pela crianca ao desenho executado ou em vias de execucio difere da intengao que o determinou. Portanto, ela nao pode explicar-se pela sua recordagao e, por consequén- cia, a razio nao pode ser procurada no desenho. ‘Mas esta influéncia do tragado para determinar a interpretagio que a crianga acrescenta, no caso em que essa interpretacao difere da intenc&o primitiva, pode manifestar-se de diferentes maneiras} dito de outro modo, a materialidade do tracado pode ‘servir de suporte a diferentes factores sugestivos da interpretagao.. Se se exceptua o automatismo grafico que, sendo por esséncia sugestivo da intengdo, no se encontra na interpreta- g&0, esses factores da interpretacao sio os mesmos da intengao. Entre esses factores, 0 que se manifesta na quasc totalidade dos casos, quer isolado quer combinado com outros, é a analogia morfolégica, a semelhanga com um certo objecto (ou mais exactamente como modelo interno dese objecto) que cu chamo objecto denominativo, porque € ele que di o nome ao desenho. Esta semelhanga € a maior parte das vezes uma scme- Thana global entre o aspecto do tragado no seu con junto e 0 do objecto denominativo, que pode ser ele proprio um motivo ou objecto real, um modelo ou desenho. Por vezes, a crianca introduz nos scus desenhos pormenores inconcilidveis com o conjunto (§ 32). Quando este € caracterizado scm engano_possivel pelo seu tracado, esses pormenores ficam simplesmente sobrepostos ¢ a crianga nao lhes dd ateng3o: a nova interpretagao do conjunto para a qual tinham sido verdadeiramente provocados ou que, inversamente, segundo os casos, teriam podido provocar, morre antes de ter penetrado na sa consciéncia clara. Eo caso dos botdes desenhados no corpo de um gato e 44 que fazem uma espécie de casaco, dos pormenores ne transformariam num rosto humano a lanterna da focomotiva de um comboio (fig. 14). Se se chama a atencao da crianca para esses pormenores, ela nega-os @ tenta meté-los' no conjunto, por uma justificagao mais ou menos sofisticada (§ 32}. Sé se 0 tragado do conjunto for muito vago para se prestar a uma inter~ pretacfo na qual esses pormenores tomam um sentido & que 0 desenho receberd esta interpretagto. Expli- Fig. 14—Simonne Ln, francesa, 7 anos © 8 meses, (coleccao Luquet). Comboio. ‘Transformacio da lanterna da locomotiva em cabeca por analogia morfolégica (p. 45-74). Rodas nio rebatidas (p. 172) ¢ representadas intciras (p. 165). ca-se por isso a extrema raridade de casos em que a interpretacio de um desenho é determinada ‘nio por uma semelhanga de conjunto do tracado com o objecto denominativo,” mas por uma semelhanca parcial. Meso, verdadeiramente, nunca encontrei_ nenhum exemplo absolutamente demonstrativo, A influéncia determinante de um pormenor sobre a interpretacao fio pode ser reconhecida ‘com certeza sendo nos desenhos que retinam dois pormenores incompattveis. Por exemplo, uma pequenita de 4 anos e meio, depois de ter desenhado um boncco que tem 20 mesmo tempo um cachimbo ¢ brincos, interpreta-o como uma senhora. Tendo-lhe chamado a ,atengio sobre 0 cachimbo, declara que € 0 marido da senhora que dese nhou antes, Mostram-lhe entio os brincos ¢ ela diz: . 45 adss0 S40 brincos; uma senhora assim usa brincos». Volta portanto A interpretacio senhora. Mas, como Ihe tornam a mostrar 0 cachimbo, volta a interpretacdo senhor, ¢, para se desembaracar do pormenor dos brincos que n&o mais podia existir, procura inter- preté-los como simples ornamentos do desenho des- providos de significacao figurada: «Nao sao brincos, € para tornar bonito (quer dizer, um simples orna mento do desenho,. sem significagao figurada); além disso ele fuma cachimbo». Ss Fy Fig. 15 © 16—Simonne L,, francesa, 3 anos ¢ meio (colecgio Luquet). ‘Tragado interpretado depois da execugao como uma ‘mii, seguide de desenho intencional de uma mio (p. 46) ‘Ao papel capital da analogia morfolégica para determinar a interpretagio acrescenta-se 0 facto cons- tante de que a semelhanga, em relagio A interpre taco, é muito maior nos desenhos em’ que esta inter- pretagéo € aplicada imediatamente do que naqueles em que apenas continua a intencao primitiva. Que se comparem, por exemplo, dois desenhos imediatamente consecutivos de uma rapariguinha de 3 anos ¢ 5 meses (fig. 15 € 16) em que o segundo é uma mao intencional, enquanto © primeiro s6 recebeu a interpretacio mio depois de executado. O facto compreende-se sem custo. No caso de um desenho premeditado, a recordagao da intengio bastard muitas vezes, mesmo com um tracado muito pouco semelhante, para ditar a inter- pretaco que sc limita a repetir, ¢, se apesar de tudo a crianga nfo chega a encontrar semelhanga entre 46 9 seu tragado € © objecto que queria desenhar, ou Sonsidera o scu desenbo falhado ou the aplica uma Gterpretagio. mais conforme ao seu gosto. Mas, Resde que a interpretacao difere da intencio, ela tem Seeessidade, para substitu(-la, de encontrar uma jus- Ufeacdo no conjunto do tracado com 0 abjecto deno- minativo. 18, — Se, em geral, a interpretagio de um desenho pode ser produzida ‘pela analogia morfologica do Fracado com o objecto denominativo, esta explicagio { insuficiente para certos casos em que a analogia morfoldgica justificaria muito bem, senao melhor, uma imensidade ‘de outras interpretacdes que aquela que foi efectivamente dada. A interpretacio, segundo uma formula geral, une ao desenho 0 nome corres- pondente a uma ideia que se encontra no espfrito Ha crianca no momento cm que executa o seu tracado. Normalmente esta ideia, quer seja ou ndo diferente dda que detcrminou a intengao, é sugerida pelo préprio tracado em virtude da analogia morfolégica. Mas pode igualmente ser provocada por outros factores, que so exactamente os mesmos da intengdo ¢ mais geralmente os da evocagio de uma ideia’ qualquer, saber, as circunstancias exteriores © a associagio de ideias. Por exemplo, se um desenho de uma rapa- riguinha de 3 anos ¢ 4 meses, muito andlogo a um desenho imediatamente anterior enunciado como um boneco ¢ que talvez tenha sido comegado com a mesma intencdo, se interpreta como um peixe, € porque, muito provavelmente, a crianga se divertia nesse mo- mento com peixes vivos numa taga de agua, Do mesmo modo, se um més mais tarde um desenho muito seme- Ihante a um outro executado na, véspera, e que recebeu a interpretacao papagaio, se interpreja como um gato, 6, segundo toda a probabilidade, como sucede imediata- mente, por associagdo de ideias. ~ 47 Indiquemos de passagem, ainda que a titulo de curio- sidade ¢ para mostrar como a realidade excede os li- mites das fdrmulas gerais em que se tenta sistematiz4-la, um factor que, em certos casos, determinou a inter- pretacfio ¢ que nao deixa de ter analogia com asimu- Iago dos temas nas experiéncias da psicologia experi- mental. Trata-se de uma espécie de’ impertinéncia que leva a crianga a enunciar uma interpretacao porque compreende que o observador espera outra. Por exem- plo, por volta dos 4 anos, a minha filha, depois de ter anunciado uma casa, desenha um quadrado (fig. 13), que € de facto muito parecido com o contorno das casas anteriores ¢ posteriores; depois mostra-mo, dizendo: «Tu nao sabes o que ¢é.—Sim.—Nao.— Ff uma casa. —Nao, € uma almofada; (¢ como prova) esta agui o nd» (quer dizer, a ligacto do cordel que a debrua). Chegada a mae, mostra-lhe o desenho, repetindo a mesma interpretacao. A impertinéncia 6, a meu ver, apenas um elemento acrescentado e 0 processo pst quico fundamental parece-me o seguinte, A pequena quis desenhar uma casa e {ez 0 tracado; entio, este sugere por analogia morfoldgica a interpretagao almo- fada (de resto ha na casa uma almofada que a interessa particularmente). Produz-se-lhe ent&o no espirito um - conflito entre a sua intengio primitiva ¢ a sua inter- pretacao posterior, e € esse conflito que ela me faz compreender anuniciando-me uma almofada em vez de uma casa. HA al qualquer coisa muito préxima do que se poderia chamar trocadilho gréfico, que consiste em reunir voluntariamente, num mesmo desenho, ele- mentos que dao ao conjunto significagdes diferentes. Talvez a ctianga nao seja capaz de os inventar por ela propria, mas reproduz com um prazcr acentuado os que Ihe mostraram. Desse género so as «figuras a scis- -quatro-dois», nas quais o perfil de um rosto humano € constituido pelo encadeamento dos nuimeros 6 para a 48 face e 0s olhos, 4 para o nariz ¢ 2 para a boca ¢ queixo. Esse desenho € muito reproduzido pelas paredes, nos locais mais diversos, por eriancas que aprenderam isto na escola, Num passeio de Paris, perto do reclamo de uma massa para bolos, representando uma personagem com 0 corpo e 0s membros feitos de tubos de fog’io, uma crianca reproduziu muito aproximadamente o essencial desse desenho; depois, seduzida pelo proceso, fez uma aplicacao original em duas experiéncias contiguas para representar uma pequena com a forma de um moinho de café, acompanhadas da legenda: «Yvonne € um moinho de café», 19. — Nao € s6 0 conjunto de um desenho que pode receber uma interpretacao diferente da intengdo que a fez tracar, mas também um e outro pormenor desse dese- nho. A interpretacap desses pormenores € sobretudo pro- vocada pelos mesmos factores que a do conjunto. E assim que a mobilidade do espfrito € a imaginagao da crianga se manifestam nnm desenho de uma rapariguinha: uma guarnigio (a espécie de sarrabiscos diz respeito A de 5 anos e 4 meses representando um quarto de dormir. A mesa de cabeceira tem em cima, como nos desenhos anteriores ¢ imitagdo da dos pais, uma caixa de pastilhas ¢ wm candeeiro). Mas este transforma-se bruscamente «numa chdvena de chd que fumcga», ¢ cla explica dizendo: «£ que o senhor esté doente Numa casa (fig. 17), um pormenor que devia primi tivamente querer representar a caleira com 0 respectivo esgoto é, por analogia morfoldgica, interpretado como um guarda-chuva. A influéncia das circunstancias exte- riores manifesta-se a propésito da mesa desenhada por uma pequena no patio de diversas casas e que, corres- pondendo primeiro a uma mesa para comer fora de casa, é interpretada num desenho posterior como uma mesa de jogo, porque viu o pai‘jogar com amigos na mesa do seu escritério. 40 Deseato Infant + 49 Outras vezes, depois de recordar o conjunto que um pormenor recebe uma interpretagio diferente da sua_significago primitiva, Assim, uma rapariguinha de 3 anos e meio tinha, num desenho de cio, reunido por um pequeno traco dois tracos principais do con- forno que nao se tocavam. Como the perguntassem © que Significava esse traco, responde: «fa cauday. Aos 4 anos ¢ 3 meses repara que, num senhor, por inad- Fig. 17 —Simonne L., francesa, 4 anos ¢ 9 meses (colecgi0 Luquet). Casa. Mudanca de interpretac3o dum pormenor por analogia morfoldgica (p. 90-52). Chaminé no ar (pig. 193), ‘elhado dissimulado (p. 157). Fig. 18 —Inglesa, 6 anos (segundo J. Sully). Senhor. Multi- plicagao dos dedos (p. 74). verténcia inscriu os ecabelos na parte de baixo da cabega ¢ os pés na de cima. Entao, na cxplicacao dos pormenores do seu desenho, indica como olhos, em lugar de dois pontos desenhados com essa intengao, pequenos tracos na outra extremidade da cabeca que deviam primitivamente representar a barba, Pode ainda acontecer que um tracado, executado primeiro como um desenho independente, seja tomado por um_por- menor dum outro desenho contiguo sobre a folha de papel. Assim, um desenho anunciado como um sino 50 torna-se © patio da casa ao lado da qual foi tracado (fig. 19 ¢ 20). natural que a interpretagio dum pormenor, que pode assim depender da significagao atribufda ao dese~ Bho de que faz ou parece fazer parte, seja modifi- cada a0 mesmo tempo que esta. Assim, um desenho Fig. 19 ¢ 20-—Simonne L francesa, 4 anos ¢ meio (caleccio Luquet). Casa. A parte & direita, tracada como desenho inde- pendente dum’ sino e depois da execugio interpretada como 0 Patio da casa (p. $1), recebe entio pormenores corresponcendo a esta interpretagio (p. 53) executado com a intengio de representar um pequeno vaso cm forma de ra é depois interpretado como um boneco e completado com pormenores apropriados (fig. 21); a elipse lateral, expressamentc enunciada em primeiro lugar como a asa de uma.cancca, transforma- ~se num candeeiro levado por um boneso. Um desenho anunciado como uma casa, tendo sido depois, sem chivida por causa do seu contorno alongado em altura, o interpretado como um sino, transforma a chaminé da casa, apesar do seu fumo, no badalo do sino. Os factores sugestivos da intengao podem levar a crianga a introduzir num desenho qualquer pormenor inconciliavel com a intengao geral desse desenho (§ 32); do mesmo modo, os factores da interpretagio podem levé-la, depois de ter tragado um pormenor conforme 2 interpretac&o do conjunto do seu desenho, a dar em 4 Fig, 21 — Simomne L., francesa, 3 anos ¢ meio (colecgio Luquet). Doit estados sucessivos do mesmo desenho, interpretado. pri- meiro como uma #3, depois como ur senhor, a que candiy a uma mudanga de interpretagao dum pormenor ja desenhado (p. Sl) €'a adigao de novos pormenores (p. 53). seguida uma interpretagio incompativel com ela, £0 caso, por exemplo, da interpretagio guarda-chuva aplicada por analogia morfoldgica 20 pormenor que, numa casa, correspondia primitivamente a caleira com 0 esgoto (fig. 17). 20, — Uma vez que, por uma raz4io ou por outra, o desenho retebeu turd interpretagan diferente da intengio primitiva, esta interpretagio torna-se, de qualquer modo, uma intencao secundaria que provoca muitas vezes a adigio ao desenho de pormenores apro- priados, Uma pequenita belga de 4 anos, depois de ter desenhado um peixe, interpreta-o como um rato ¢ acrescenta entao uma longa cauda, Uma pequena fran+ 52 cesa de 3 anos ¢ meio, depois de ter interpretado como fam boneco um desenho que na sua inteng&o primitiva representava um pequeno vaso em forma, de ra, acres- centa 03 olhos, 08 cabelos, os bragos, a boca com o cachimbo (fig. 21). Um ano mais tarde, depois de ter {nterpretado como um pato um desenho comecado por ser um sino (fig. 20), completa-lhe pormenores apro- priados que enuncia ‘ao desenhé-los: uma platibanda {a espécie de gatafunhos diz. respeito A casa) e vasos de flores em forma de halteres, onde ela distingue expressa- mente a flor, 0 caule ¢ o vaso. Um pequeno francés de 5 anos e 10 meses quer desenhar um A; mas a forma que toma o seu tracado sugere-Ihe a ideia de um pequeno coelho», ¢ completa o seu desenho acrescen- tando neste sentido particularmente a parte posterior, os olhos e as patas. 21, — As indicagdes precedentes permitem-nos com- preender como, por um enriquecimento gradual, o repertorio grafico da crianga chega a compreender toda a variedade dos motivos que de facto af se encon- tram. Se 0 automatismo gréfico leva a crianca a repro- duzir os mesmos motivos, a influéncia das circuns- tancias exteriores e da associacio das ideias suscita nela a intengio de desenhé-los de novo. Muitas vezes, a ideia correspondente ao desenho que acaba de ser feito evoca por associacdo a ideia de um outro objecto que nunca foi desenhado e que se torna assim num motivo novo. Por exemplo, o primeiro retrato de papa podera ser provocado por um retrato de mami, o primeiro desenho de rato por um desenho de gato. Também muitas vezes acontece que o desenho de um objecto sugere, em virtude de uma associagao de ideias por contiguidade, o de outro objecto que, desenhado ao lado do primeiro, forma pela sua Teunido com ele um motivo novo. O| motivo complexo tirado por acaso de um motivo mais simples, subsistindo sob a forma 53 de recordacdo no espirito da crianga, pode tornar-se © ponto de partida de uma série de desenhos ané- logos. Por exemplo, varias criangas representam os membros da sua familia ou de uma familia anénima, primeiro em desenhos diferentes, ainda que imediata- mente consecutivos, depois num ‘inico desenho que os reine. Trés desenhos consecutivos de uma pequenita de 6 anos ¢ 8 meses representam uma rapariguinha 36, um rapazinho sé, uma rapariguinha e um rapazinho de maos dadas, Do mesmo modo, frequentemente, as casas sio sugeridas por personagens ¢ por vezes enun- ciadas expressamente como a sua casa; mas elas cons- tituem no principio um desenho separado. E sé depois que a sua justaposicao sobre a mesma folha de papel da a crianga a ideia de reunir num sé desenho de con- junto as personagens ¢ a sua casa. Mas o papel capital para a passagem de um motivo original a'um motivo novo, derivado do primeiro, per- tence, sem dhivida, aos desenhos que, executados com a inten de representar um certo motivo, recebem depois uma interpretacio diferente. De facto, pode acontecer que a ligacao assim estabelecida bruscamente entre o tracado e a interpretagio sobreposta subsista, no espirito da crianga e provoque a intengao de dese- nhos ulteriores com’ mesmo nome. A interpretacio aplicada ao desenho faz o desenho inicial de um motivo novo derivado do primeiro. A crianca julga, portanto, ter ja desenhado esse motivo derivado e pode, dai por diante, ser tentada a reproduzi-lo. Esse processo especialmente posto em evidéncia no caso em que, querendo desenhar um novo exemplar do motivo derivado, ¢ obrigada a reconhecer a sua impoténcia. Assim, uma pequenita de 4 anos e meio, lembrando-se de ter feito na véspera um desenho que interpretou como um carneiro e achando-o bem conseguido (fig. 12), anuncia um carnciro, acrescentando: «Eu sei 54 fazé-los»; mas mal comecou o seu tracado foi obrigada a parar ¢ reconhecer que nao sabia fazer um carnciro. Visto que a atribuicio a um desenho de uma inter- pretacio diferente da intencio primitiva, que provoca passagem dos motivos originais aos motivos derivados, é determinada normalmente por uma analogia morfo- Idgica resultante da imperfei¢io do tracado, pode dizer-se que © enriquecimento do repertério gréfico da crianga é devido em boa parte a profundas faltas de ~pericia (12). Cariruro HT oO TIPO 22, — O tipo, entendendo por esta palavra a repre sentagio que uma detcrminada crianca dé de um mesmo objecto ou motivo através da sucesso dos seus desenhos, apresenta uma evolug3o gradual, Como toda a évolugio, também esta € resultante de dois factures: um ¢lemento de estabilidade, a que chama- remos conservagio do tipo, ¢ um elemento de modi- ficago, a que daremos o nome de modificacdo do tipo. A conservagio do tipo € uma tendéncia da crianca para reproduzir do mesmo modo os desenkios de um mesmo motivo; em relacao aos tipos, ela éa manifestacao de uma rotina, de um automatismo andlogo aquele que assinalmos a propésito dos motivas sob o nome de automatismo grifico, quer imediato (§ 12), quer con- tinuo (§ 13). 23, — A conservagio do tipo manifesta-se, em pri- meiro lugar, pela forma que apresenta no primeiro desenho do motivo correspondente; portanto, pode dar-se a esta primeira espécie de conservacao do tipo © nome de conservagao primaria. JJm exemplo decisivo € fornecido pelos primeiros bonecos que, durante um tempo mais ou menos longo, ficam, por assim dizer, BT ligados a0 mesmo molde, ¢ caracteriza-se particular- mente pela auséncia do tronco (fig. 22 ¢ 54), 0 que obriga a inserir 03 bragos, quando sto representados, ou sobre as pernas (fig. 24-27), ou, mais frequentemente, na cabeca (fig. 23, 28, 85-87, 97, 105). ‘A conservacao prinidria é tanto mais notavel no caso dos bonecos sem tronco quanto o tipo assim Fig. 22—Simonne L., francesa, 3 anos ¢ 9 meses (colecgao Inquet). Senhor. Boneco sem tronco (p. 58). Trajo no repre~ sentado {p, 97), se bem que indicade ao mesmo tempo como caracteristica dé um homem real (p. 96). Intengio realista ip. 129) Fig. 28 —Bavara, 7 anos (segundo Kerschensteiner). Boneco sem, ironeo com os bragos inserides na cabeca (p. 58). Dedos multiplicades (p. 74 € dispostos ao longo dos bragos (p. 155). Cabelos individuais (p. 165). conservado esté em oposig2o manifesta & natureza; s6 a acco do habito pode impedir a crianga de notar com 0 tempo uma imperfeicao tio flagrante. Ainda mais, a inserc&o bizarra dos bracos, que a entusiasma, subsiste nos desenhos em que a aparicao do tronco a priva de toda a desculpa (fig. 48) e os bracos sé gra- dualmente adquirem a sua inserco correcta no tronco. 58 Mas, se jsto € assim nos bonecos em que 0 tronco esta representado de frente, aqueles em que o tronco é apresentado de perfil geralmente tém desde o prinefpio aera insercao correcta dos bracos. A razdo ¢ que os honecos deste tipo, por causa da sua aparigao tardia, nao passam pela fase sem trotico; portanto, a insergio forrecta dos bragos sendo possivel para as criancas {nao sendo, como para os bonecos completamente de frente, prejudicada pela persisténcia de um tipo anterior 4 insergao defeituosa, esses bonecos tém desde os seus primeiros exemplares os bragos inseridos no corpo (13). SO C, Fig. 24-26 —Joseph D., francés, 5 anos (colegio Luquet). Bonecos sem tronco com os bragos inseridos nas pernas (p. 58). Chapéu no ar (p. 153, 165). 24.— Nao s6 a conservagio do tipo impede a crianca de notar as modificagdes vantajosas que pode- ria conseguir, mas ainda se opde a aceitar essas modi- ficagies quando Ihe sio indicadas. Assim, um pequenito de 3 anos ¢ 10 meses desenha, sem interferéncia de ninguém; um boneco que s¢ com- pde dnicamente de cabeca e pernas. Por sugestio da ima, acrescenta os bragos; mas estes no se conservam nos bonecos seguintes. Oito dias mais tarde, como ele se 59 gabava de saber desenhar tio bem como a irma, esta protesta argumentando que ele no faz como ela 68 fatos dos seus bonecos; esta sugestio fica sem efeito. Varios observadores verificam que a crianga continua a desenhar bonecos sem tronco com os bracos inseridos na cabeca, mesmo quando Ihe tenham feito notar esse defeito € convidado a olhar para si propria ¢ ver em que parte do corpo os bracos sio inseridos. Uma pequenita de 5 anos ¢ 3 meses, tendo pedido & sua criada que lhe desenhasse honecos, esta desenha- -Ihe alguns de um tipo diferente do seu. A crianca comesa por protestar com energia: «Nao & assim que se fazem» (€ preciso traduzir: «Que cu os facon). Depois de os ter examinado mais atentamente, parece admiti-los; mas isso no a impede de desenhar ao Jado um do seu tipo. Outros exemplos demonstram que, mesmo numa idade mais avancada, por exemplo pelos 7 anos ¢ meio, as sugestdes que lhe so propostas, entre outras aquelas que a crianca recehe na escola, mesmo que possam exercer uma acco momentanea, nao trazem aos seus tipos espontineos modificacdes duraveis (14). ~ A conservacio do tipo opée-se mesmo & conserva- io das modificacdes trazidas pela prépria crianca aos seus tipos: muitas vezes essas modificagées, acidentais ‘ou mesmo voluntarias, desaparecem mais ou menos depressa ou até imediatamente, mesmo quando tém por eftito aproximar o desenho do objecto real cor- respondente, pela adi¢Zo de um pormenor novo ow por uma representacdo mais ou menos fiel, quer de Certos pormenores ja existentes quer das suas relagdes recfprocas (progresso do sentido sintético).. or exemplo, se bem que 2 inovagdo, que consiste na aparic2o do tronco para o tipo do boneco, o aproxime consideravelmente da realidade, nio se mantém ao principio ¢ sé € definitivamente adquirida depois de um perfodo mais ou menos longo de oscilacdo entre 0 tipo primitive € © tipo novo. 60 Pode crer-se que as modificacées trazidas ao tipo num desenho scjam o eleito de qualquer circuns- tancia acidental ou de simples incapacidade. Neste caso, nao pode surpreender que a crianga 0s reprove; mas nao é menos importante notar que, mesmo quando fossem muito aceitaveis ¢ nao tivessem contra elas sendo a sua novidade, a crianga sentiria a necessidade de desculpar-se, com argumentos mais ou menos sofisticos, Fig, 27—Miguel, belga, 4 anos (segundo Rouma}, Boneco seh tronco com os bragos inseridos nas pernas (p. 86). Dedos ispostos a0 longo do. brago’ {p. 155). Fig. 28 — Ali, Kabyle, 4 anos (segundo Probst). Homem (com Barrcic). Boneco sem tranco com os braces inseridos na eabesa (p. 58) ou pelo menos assinald-los. Uma pequena da Califér- nia de 3 anos ¢ 8 meses, tendo por fantasia ou inadver- téncia_desenhado dois’ pares de olhos num boneco (fig. 57), deciara cspontaneamente: «Dois olhos em cada lado: € assim que eu os fago agora». No entanto essa_anomalia nfo subsiste nos desenhos seguintes. Esta resisténcia a qualquer modificacao do tipo é sobretudo notével quando, se bem que a inovagio seja vantajosa, a crianga, bruscamente, s6 quer ver nela uma falta de jeito procura dissimulé-la. Por exemplo, uma rapdriguinha de 3 anos e meio desenha numa casa um pormenor que nio existia nas casas anteriores. Como Ihe perguntam a sua significagio, comega por . 61 responder que «ndo € nada», formula que, para ela como para outras criangas, juntamente com a expres- sho «isso no conta», equivale & declaracao de um fracasso. E preciso insistir para que a crianga acabe por reconhecer que € uma janela que acrescentou, porque as outras nao tinham cortinas. Assim, o aperfei- Goamento, que consiste em representar janelas, € negado porque se trata de uma inovagao. or _vezes a modificaco trazida ao tipo € aceite, pelo menos para esse desenho, e nao é conscrvada nos seguintes, mas o desenho € depois completado de maneira # conciliar a inovag4o com a conservacao do tipo: 0 novo toma lugar ao lado do antigo sem pro- curar suplanté-lo, Por exemplo, uma pequenita de 6 anos, tendo desenhado numa casa uma porta de garagem no lugar habitualmente ocupado por uma a Janelas, desloca esta ¢ explica a deslocacao pela adi da porta da garagem. Esta conservacao do antigo ao lado do novo provoca uma conseqnéncia curiosa: acontece que um tinico pormenor no objecto real seja representado duas vezes no desenho, sem que o seu autor mostre o menor descontentamento. Por exemplo, cm varias criangas, quando a cabega dos bonecos comeca a apresentar no seu contorno uma protuberancia lateral correspondente 20 nariz de perfil, cla conserva os pormenores internos das anteriores cabegas de frente, ¢ acrescenta um segundo nariz entre os dois olhos (fig. 133) Por veres, a inovacio, reconhecida boa, triunfa da rotinas mas 0 seu sucesso 6 € assegurado gracas ao apoio de consideragdes extrinsecas. Assim, wma rapar guinha de 4 anos © 8 meses: substitui, no desenho de uma casa, as partes simplesmente justapostas das suas casas anteriores por partes tangentes. Se bem que csta modificagto do tipo corresponda a um progresso do sentido sintético, a crianga sente a necessidade de a justificar e, desenhando, da, falando consigo propria, 62 esta explicacao: «Isto vai mais depressa» (a desenhar). ‘A explicacao, sem diivida, ¢ parcialmente justa, ¢ ¢ ver- dadeiramente por este motivo que tal modificacao sub- siste mas casas posteriores; mas no restam diividas de que a crianga julgou necessario formuliela a si propria para desculpar uma anulacao do scu tipo habitual. 4 25. —O cardcter automatico da conservagio do tipo manifesta-se particularmente nos desenhos em que a crianga continua a representar pormenores de que esqueceu a significacdo ¢, por consequéncia, a reprodugao apenas pode explicar-se pela rotina. Por exemplo, uma pequenita tem desde a idade de trés anos € meio um tipo de senhora «amarrotada», quer dizer, em que 0 contorno do resto é feito por um trago sinuoso destinado, segundo as suas declaragoes repetidas, a representar o chapéu. Perguntam-Ihe a significagao dessas sinuosidades a propdsito de dois desenhos desse tipo que acabou de fazer — um aos 3 anos € 7 meses, © outro aos 3 anos ¢ 9 meses. Quanto an primeiro, res mde: «E © cabelo dela», o que nao passa de uma Justificagio sofistiea, como j4 encontramos exem- plos (§3), porque num desenho anterior do. mesmo tipo acrescentou os cabelos. Quanto ao segundo desenho, hem sequer procura uma explicagao para o contorno «amarrotado». «E o rosto dela», diz. «Porque é assim?» «Porque € preciso», N4o encontro outra traducdo pos- sivel para esta resposta sendo a seguinte: «Porque este € 0 meu tipo». 26. —O tipo original tende a ficar tal como estava no desenho inicial (conservacao primaria): Do mesmo modo, as modificagdes: que, depois de uma resistencia deste tipo primério, lhe sio introduzidas, sob a influén- cia de factores que estudaremos mais tarde, se conservam igualmente, permanecendo além disso todas as coisas semelhantes, > 68 = Esta conservagdo secundaria manifesta-se de modo idéntico, o que prova bem o seu cardcter automiatico, uma vez que a modificagio que ela prolonga seja injustificada. Fig. 29—Simonne L., francesa, 5 anos e 4 meses (colecgio Luguet), Casa rica. “Janela triangular derivada dos castelos de reis»'(p. 64-73) € contormos sinuosos destinados a simbolizar luxo (p. 135). Por exemplo, uma pequenita de 5 anos e meio trans- fere por analogia a janela triangular dos scus «castelos de rei», primeiro para «casas de gente rica», simboli- zando assim 0 luxo (fig. 29), depois para uma’ casa vul- gat em que nao tém razao de existir. Esse pormenor nao é menos conservado nas casas posteriores até A liltima desenhada por esta crianga de 8 anos ¢ 8 meses. 64 27, — Uma vez que se produziu uma modificagio do tipo primério, ou scja, 0 nascimento de um tipo secundario, este cocxiste com o tipo primério ¢ tende como ele a conservar-se. Conservagio primaria e con- servagao secundéria entrarao em concorréncia nos desenhos seguintes do mesmo motivo. Poder4 haver a cocxisténcia dos dois tipos alternando com um nimero sensivelmente igual de exemplares, ‘ou 0 desaparecimento relative de um dos tipos repre- sentado s6 por alguns espécimes esporddicos entre um niimero, bastante maior de desenhos do outro tipo, ow o desaparecimento completo de um dos tipos. Geral- mente, essas diferengas resultantes do conflito entre conservacao primaria ¢ conscrvacio, secundaria alter~ nam por periodos de duragio muito’ varidvel nos dese- nhos de um mesmo motivo. Um rapazinho, desenhando tum boneco aos 4 anos e 7 meses, pergunta: «Os bracos esto presos na cabeca ou no corpo?». Respondem-lhe: «Olha para tie vé como estao ligados os teus» (15). «Simp, diz ele, «é no corpo»; e termina o seu boneco com esta insercio. Os bonecos seguintes apresentam. uma altcrndncia entre as duas insergdes; de modo particular a insergio na cabeca reaparece regular mente quando o boneco no € desenhado ‘por cle mesmo, mas como elemento secundario de um desenho complexo (num aeroplano, sobre um cavalo). Parece que o tipo secundario nao triunfa do tipo primério sendo por um esforco de atengao. 28, — A crianca manifesta tendéncia para a conser- vagio do tipo, nao s6 nos seus préprios desenhos, mas também pela’ sua atitude para com os desenhos dos ‘outros. Pretende que os desenhos que Ihe fazer 2 seu pedido sejam sempre executados do mesmo modo. Um pequeno da California, duranty os trés primeiros Meses dos seus quatro anos, pede sem cessar que the desenhem cavalos e sempre segundo a mesma formula: 50 Desenho tant > 65 um cavalo, um homem a montéd-lo, as rédeas, um chi- cote e agua para o cavalo beber. Outros exemplos mos- tram, mais claramente ainda, que a crianga exige da pessoa que desenha para ela, fidelidade aos seus tipos como a propria crianca aos dela. Assim, eu desenho para uma rapariguinha de 3 anos e meio um cio do seu tipo habitual, depois um outro ao lado, para ver 0 que ela diré, em que coloco na cabega de perfil dois colhos justapostos. Ela indigna-se: «Isso assim nao tem dois olhos. Um cao tem sé dois olhos como 0s homens. Os que tu fizeste (até agora) s6 ttm um!», E apaga com 0 dedo um dos olhos. Esta exigéncia da crianca € particularmente notavel quando a modificacio do tipo da pessoa a que cla se Gpse consiste na adopgio do seu. Bor exemplo, fago a mesma pequenita, ao seu pedido de fazer uma ri, um desenho semelhante a uma ri que cla desenhou na véspera. Declara a mitida: «Nao é assim uma rip. also € que él» «Mas no deste modo que tu a fazes!». 29, — Chegamos agora a um facto quase invero- simil e capaz de perturbar ideias preconcebidas fun- damentadas numa concepcao muito simplista da alma infantil, mas cuja realidade nao poderia ser contes- tada. Nao sé a crianca admite que outras pessoas desenhem tipos diferentes dos seus, nao s6, como acabamos de ver, exige dessas pessoas a mesma fide- lidade aos tipos delas, que compara com os seus, mas ainda, quando desenha para outra pessoa, adopta para essa ocasido os tipos dessa pessoa em ver dos seus prd- prios. Por exemplo, uma rapariguinha de 8 anos ¢ 4 meses, tendo desenhado um burro como exercicio de classe, faz como rascunho um desenho (fig. 30) ue a satisfaz, porque, depois de varios retoques, jeixa-o nesse estado, Mas, voltando a copid-lo para © caderno destinado a ser visto pela professora, acres- centa, entre diversas modificagdes secundarias, como 66 a adicio dos sapatos, uma modificagio essencial que Gonsiste na substituicio de uma narina tnica pelas Guas do rascunbo (fig. 31). Portanto, parece sentir que.a professora prefere o realism visual ¢ querer dar-Iho enquanto ela propria prefere o realismo inte- lectual (§ 77). . | ‘A gencralidade desse facto curioso, que s¢ poderia chamar duplicidade de tipos, é posta fora de duvida Se > Fig. 30 ¢ 31 —Simonne L., francesa, 8 anos ¢ 4 meses (colecgao Tuyquet). Doisdesenhos de win burro; primeiro em rascunho, depois a limpo como exercicio de classe. Duplicidade de tipos (p. 66-67). pela observagéo dos desenhos tragados nas paredes das ruas. Esses sarrabiscos sao feitos por criangas de todas as idades, por vezcs mesmo por adolescentes ou adultos; a maior parte dos desenhadores frequen- taram a escola, ¢ muitos dos seus desenhos devem ter sido executados entre duas aulas, Ora, encontra-se entre eles um nimero consideravel de bonecas do tipo sem tronco, que certamenté nao teriam sido aceites por nenhum professor. Portanto, € preciso . 67 admitir que o desenhador infantil utiliza simultanea- mente, por um mesmo motivo, dois tipos diferentes: um para a sua propria satisfagio, outro para a dos outros (16). 30.—Se a conservagio do tipo pde obsticulo as modificagdcs deste, néo as impede absolutamente, porque todos os desenhos de um mesmo motivo nao sio semelhantes ¢, mesmo na sua forma de conser- vagio secundaria,’ implica essas modificacdes. ‘A principal ‘consiste na adi¢do de pormenores novos aos que se apresentem nos desenhos anteriores do mesmo motivo. & claramente visivel na sucessio cronolégica de bonecos desenhados por qualquer crianga. . Colherei_ um outro exemplo desta complicagao do tipo na série de casas em elevagio desenhadas por uma mesma rapariguinha, Aos elementos primitivos —portas, janelas, chaminés — sto acrescentados, su- cessivamente, para continnarem, mais ou menos, nos desenhos seguintes, a placa com o nome do habitante © a campainha, o degrau diante da porta, que se tora mais tarde uma escadaria com varios degra 's, © para-raios, a varanda, 4 qual se acrescenta a jane 4, © respiradoiro ¢ a escova dos sapatos, colocados sime- tricamente de cada lado da porta de entrada, 0 con- torno © a bandeira envidracada da porta, os pcitoris das janelas, as rosciras trepando pelas paredes, as telhas, as persianas com as suas ripas, a representagao de uma porta aberta ¢ de janclas abertas, notando-se um boneco, as dobradigas das portas ¢ das janelas. Em diversos exemplos, a casa é completada pela rua, que apresenta por sua vez a mesma adicio gradual de pormenores: pessoas que passam, um boneco abrindo a porta da casa com a chave, os passeios, © fontendrio com a alavanca que tira a agua, a agua 8 Due corre, «o buraco que deita a agua para o rego» ¢ uma rapariguinha que vem buscar Agua com o cantare. 31. — A adicdo de novos pormenores a um desenho de um motivo que nao os tinha nos exemplares anteriores € determinada pelos mesmos factores que vimos (§§. 8-14) provocar a intencto de um desenho no seu conjunto. A influéncia das circunstancias exteriores & manifesta nos desenhos executados em dias de chuva, ow cujas personagens levam guarda-chuvas abertos (fig. 7)., Do mesmo modo, a crianga € levada a repre- sentar um pormenor né desenho de-iim objecto quando os espécimes desse objecto que, vira até entio nao © representavam; encontrando-o' pela’ primeira vez na realidade, a sua novidade atrai-lhe* a, atengio. Assim, uma rapariguinha de pouco. mais ou menos 4 anos coloca sobre a chaminé de dois desenhos conse- cutivos de casas, ao lado do fumo, a bandeira que, quando passeava, vin sobre a chaminé de uma casa recém-acabada, Uma pequena provinciana de 7 anos ¢ meio, de regresso de uma viagem a Paris, onde a impres- sionou a altura das casas, representa numa «casa de campo» um grande mimero de janelas, e explica? «E uma casa de Paris; tem muitas janelas porque ha muitos andares». E igualmente a ‘novas. experiéncias que corresponde a introducao nas suas casas de uma escadaria com numerosos degraus, de- peitoris nas janelas e roseiras trepando pelas paredes (17). "+ ‘A modificagio do tipo pode ser produzida. nfo 36 Por novos objectos reais, mas também por modelos ou. desenhos de outras pessoas que representam o objecto de outro modo. Por exemplo, uma rapari- gumha de 6 anos e meio e um colega’com quem se diverte a desenhar retratam-se mituamente. A miiida nota que o colega representou 0 pescoco qui ela nunca, tinha feito nos seus desenhos e repata também que, 69 a0 mesmo tempo que cle desenha os dedos, 0 miido conta cinco; portanto, como ela tinha o habito de Gesenhar trés dedos em cada una das maos, apressa.se a acrescentar dois. Apés uma resisténcia do tipo anterior em alguns desenhos consecutivos, 0 novo tipo triunfa; trés dias mais tarde, desenhando s6, faz uma dezena de rapariguinhas semelhantes as do | toh Fig. 32 — Pierre R., francés, 6 anos ¢ meio (colecgto Luquet), Leo. Animal derivado do boneco (p. 71). - 33 Ernest, belga, 4 anos (segundo Rouma). Dois gatos. ‘Animal derivado do boneco (p. 71) amigo, reconhecendo cla _prépria a influéncia do desenho do colega, © opde-nas com satisfaglo aos seus desenhos anteriores. Como exemplo de um_pormenor provocado pela associagio das ideias, citarei o desenho de uma senhora debaixo de chuva, que sugere por contraste a represen- tagdo do sol raiando sobre um cavaleiro desenhado imediatamente antes (fig. 7 ¢ 8). Um corolario interessante da associagao de ideias, quer na sua forma geral, quer na sua forma especial de analogia morfolégica, consiste no que chamaremos transferéncia e analégico: quando dois desenhos s4o andlogos ou representam objectos andlogos, um trans- fere ao outro alguns dos seus pormenores. Por exemplo, 70 em muitas criangas, a inserc%o dos bragos na cabeca dos bonecos sem tronco conserva-se no princ{pio dos bonecos com tronco de frente; mas depois que desenha- ram bonecos com o tronco de perfil, onde os bragos esto correctamente inseridos, esta insergo correcta € transferida para os bonecos com o tronco de frente. Por vezes, a transferéncia analégica determina nao uma modificacao de um tipo j4 existente, mas a forma sob a qual aparece um tipo novo. E 9 caso dos animais que, para a generalidade das criancas, sio no principio € por mais ou menos tempo dotados de um rosto humano (fig. 32 ¢ 112) € mnitas vezes nfo passam de bonecos, quase sempre, embora nao sempre, deitados horizontalmente, Poder-se-iam multiplicar os exemplos até ao infinito. Um pequeno belga de 4 anos desenha dois gatos (fig. 33) que, pelo aspecto, so bonecos sem tronco com uma imensa cauda; o da esquerda parece ter ao mesmo tempo duas orelhas humanas e duas ore- Ihas de gato, que foram substituidas nos precedentes por correce’o tacita. O primeiro burro, premeditado ¢ desenhado por um pequeno francés de 4 anos e 4 meses, é uma cabeca humana alongada horizontalmente ¢ colocada sobre quatro patas. E sobretudo notavel que esse desenho (fig. 34) ndo agrade ao seu autor, porque, declara ele expressamente, se parece muito com um boneco; e desenha logo ao lado um outro burro, do tipo claramente animal, com um cavaleiro (fig. 35). Pelo contrario, um pequeno alemao de uns 5 anos acha muito parecido com um cio um boneco dese- nhado por ele, com duas grandes narinas e tragos repre- sentando os pélos. Em desenhos de criangas de nacio- nalidades diferentes, onde estio justapostos um boneco © um animal ( cdo, cavalo), o desenho deste apenas apre- senta com o outro algumas diferencas imperceptiveis, € a sua significacto é estabelecida inicamente pelas declaragées verbais do desenhador. Particularmente notdveis sio umas dez borboletas desenhadas em série 1 in he Fig, 94 © 39 — Jean Le francts, 4 anos ¢ meio (coleegio Luque), Dols desenhos ‘vonsectitivos de’ um burro: 9 primeiro derivado de ‘um boneco ¢ criticado como tal, 0 segundo do tipo realmente animal (p. 71). A ctianga representa-se depois, montada; exem- platidade no motivo do cavaleiro (p. 104). por um pequeno francés de 6 anos ¢ meio, cada uma das quais nao passa de um boneco com um par de asas em forma de cirenlo raiado (fig. 36). Enfim, do automatismo grafico imediato deriva a tendéncia, frequente na crianga pelos 5 anos e meio, de exagerar 0 ntimero de certos pormenores reais do objecto representado. Por exemplo, nos desenhos de uma rapa- riguinha de 4 anos e meio que, segundo as suas préprias declaracées, reproduzem uma igreja real que viv, as portas ora’ sao em mimero de trés, expressamente enunciado, como na igreja real, ora’em niimero de uma _meia-diizia. 32, A adigio de pormenores supranumerétios, sob a influéncia’ de diversos factores que temos indi- cado, ¢ particularmente notével quando esses porme- nores so. inconeilidveis com 0 conjunto do desenho. 72 ‘Assim, uma rapariguinha belga de 4 anos ¢ meio, quatro dias depois de ter comecado a vestir as suas Senhoras com uma saia, transfere-a para os senho- res (18), que 86 sc distinguem das senhoras porque tem um chapéu, como 0s senhores nus anteriores. Do mesmo modo, varias criangas pdem barba ou um cachimbo Fig. 36—Jean Gr, francés, 6 anos ¢ meio (coleegto Luquet). Borboleta. Animal derivado do boneco (p. 72). numa senhora, Uma rapariguinha, aos 5 anos e meio, transfere a jancla triangular dos «castelos dos reis», piimeiro para as casas de «gente rica» simbolizando 0 huxo (fig. 29), depois para as casas vulgares, onde nao ‘tém razio de existir; cinco meses mais tarde, esta janela recebe, por causa da analogia das suas fungées com as Janelas vulgares, as persianas destas’tltimas sem que a crianga compreenda a impossibilidade de as fechar; e, nave meses depois, as lucarnas das 4guas-furtadas, em consequéncia da ‘sua analogia morfoldgica. com a ce janela triangular, recebem também persianas. A mesma rapariguinha, aos 7 anos ¢ meio, poe uma chaminé num caramanchdo de jardim e explica cla mesma esse pormenor, quando lhe fazem notar a impossibilidade de tal coisa, pela analogia de um caramanchao com uma casa. Atribuem-se botdes a um gato visto de costas, por causa da semelhanca da sua forma com um boneco (19). Num comboio, a locomotiva sugere um quadripede tendo como cabeca a lanterna da frente, e esta lanterna recebe dois olhos e uma boca (fig. 14). Varias criangas poem nos seus primeiros desenhos de aves e mesmo de peixes as quatro patas dos quadrii- pedes anteriores. Enfim, num bom nimero de casos, a multiplicagio de pormenores por automatismo grafico esté em con- tradicao flagrante com a realidade. Numerosas criancas de nacionalidades diferentes desenham nas mios dos seus bonecos um mimero inacreditavel de dedos (fig. 18 ¢ 23), Um exemplo decisivo € 0 dos quadripedes (fig. 89 © 112), que tém frequentemente uma dezena de patas, por vezes uma vintena, e merecem 0 nome de «cento: pela» dado a um desenho desse género pelo scu autor, um rapaz de cinco anos. Todos estes exemplos manifestam a mobilidade de espirito caracteristico da crianca (§ 15); quando um ou outro dos factores que indicémos a leva a apresentar num desenho qualquer pormenor inconeilidvel com 0 njunto € no nos apercebemos desta incompatibi- lidade, é porque esqueceu mais ou menos a intengio primitiva do desenho. Quando the fazem notar estas_impossibilidades, a sua atitude é a mesma que em relacao a outras imper- feigdes dos scus desenhos (§ 3); geralmente, d4 uma Jjustificagio mais ou menos sofistica, ou afirma tranqui- lamente, por formulas variadas, que o seu desenho esta bem assim. Por exemplo, uma rapariguinha americana de 2 anos e 3 meses e um rapaz belga de 4 anos justi- 14 ficam um rato de miiltiplas patas com um mesmo pre- texto: «E para que posta salvar-se mais facilmente do grande gato». Um pequeno belga de 5 anos, tendo sido STiticadas as suas galinhas com 5, 6 ¢ 7 patas, responde: j , Fig. 37-44 —Simonne L., francesa, 7 anos (colecgio Luque). Sete desenhos consecutivos de Gayant e um da Sr.t Gayant. Fidelidade da recordagdo que provoca a intengéo (p. 25). ‘Aumento do tipo (p. 78). «Sao galinhas assim; t¢m muitas patas». Uma pequena francesa de 3 anos e meio acrescenta na base de um desenho de casa, sem diivida por analogia com um carro, dois pequenos cfrculos que cla explica_serem todas; perante a observacdo de que unia casa ndo tem rodas, responde: «Isso nao tem importancia» (20). © 33. —Nos diferentes casos examinados até agora, © enriquecimento do tipo resulta de um proceso sinté- tico compardvel & sedimentacao. Os pormenores intro. duzidos no desenho de um motivo so acrescentados a 45 — As personagens desenhadas nas figuras 37-44, segundo uma fotografia. partir do exterior, tirados de exemplares novos do objecto real, dos desenhos desses objectos feitos por outtras pessoas, ou de objectos diferentes, ao ponto de serem por vezes incompattveis com o motivo para que slo transferidos. Uma outra espécie de complicacio % do tipo é de origem interna, de natureza analitica, andloga ao desenvolvimento’ de um organismo por diferenciagio; por isso, damos-lhe o nome de cresci mento do tipo. A representacio global do objecto abre-se, pode dizer-se, ¢ desenvolve sucessivamente os pormenores elementares que continha até entio em poténcia, a rei buscar um exemplo disso & série de casas com salas em plano desenhadas por uma mesma rapari- guinha ¢ que sto todas inspiradas no mesmo objecto real, a sua proptia casa, A casa total, representada pri- meiro em altura, depois em plano, produz sucessiva- mente, por uma espécie de desenvolvimento, 0 «w. c.», a cozinha, o quarto de dormir, 0 escritério, a casa de banho. Depois, cada uma das salas. complica-se_ pela representagio de pormenores novos. Assim, na sala de jantar, A mesa, que a principio era representada s6, € acrescentado primeiro o aparador, depois as cadeiras. ‘Na cozinha, ao fogio e ao aparador acrescentou-se o «enxugadoiro» (quer dizer, as ripas munidas de pregos para dependurar o trem de cozinha), a mesa com o prato da criada, a cadcira. Depois, sto os méveis que por sua vez se complicam; por exemplo, na cozinha 0 fogio adquire a torneira’ da caldeira, pés ¢ forno; sobre a mesa, ao lado do prato, aparece a garrafa ¢ 0 copo. A casa ‘acrescenta-se 0 patio, que se dissocia em patio e jardim, e cada um destes adquire também por- menores cada vez mais numerosos: macicos, terracos, Arvores, flores. O mesmo processo de diferenciagio ou discriminacao no crescimento do tipo ¢ claramente marcado na evolu- 0 de dois pormenores andlogos: 0 cachimbo ou o cigarro dos senhores ¢ a chaminé das casas. No pi meiro, 0 cigarra eo fumo, que formam ao principio uum nico” conjunto, representado por um traco sinuoso, dissociam-se depois: o cigarro é representado Por uma linha recta © o fumo por um trago’ em 7 forma de novelos na extremidade desta linha. Depois, a diferenciagio vai ainda mais longe; a linha sinuosa correspondente ao fimo é acrescentada de repente por um outro trago, uma linha recta representando © cigarro; por outro lado, este € uma outra recta acrescentada & que representa a boca, enquanto anteriormente era um tinico trago que representava ao mesmo tempo.a boca eo cigarro. O mesmo se passa com a chaminé das casas, Um traco unico em zigue- zague, representando o conjunto indiferenciado da chaminé ¢ do fumo, € substitufdo depois por uma linha recta correspondente a chaminé, prolongada por uma espécie de bola representando 0 fumo. Depois, € a chaminé que se desenvolve, por substituigao de um contorno rectangular por um simples traco. Um exemplo muito claro do mesmo processo de diferenciacgao ¢ dado por uma série de desenhos de uma rapariguinha de 7 anos, representando Gayant, © gigante lendario da cidade de Douai (fig. 37-45). Os’ dois primeiros desenhos representam © corpo Fo manto, a cabeca sem pormenorcs, 0s dois lados do capa- cete e/a crista deste com plumas. No tercciro, foram acrescentados os pormenores do rosto, no quarto ¢ no quinto, o escudo ornamentado no centro com od gético que serve de armas a cidade de Dovai, no sexto, alanga a mAo que a segura, c, no s¢timo, acota de malha eo gibao. Se citémos este exemplo apesar do seu cardcter particular, € porque aqui os soldadcs imediatamente consecutivos € executados de meméria correspondem indubitavelmente a uma experiéncia visual unica, de modo que pode ver-se af com plena nitidez 0 cresci- mento do tipo: a crianga conhecia, desde o tragado do primeiro exemplar, pormenores que s6 se evidenciaram nos tracados seguintes. Acontece 0 mesmo no caso infi- nitamente mais geral do boneco, cujo tipo adquire gra- dualmente, em todas as criangas, um numero crescente 78 de pormenores, Vécm-se sucessivamente aparecer, numa ‘ordem sensivelmente constante, 0 tronco, 0s. bragos, as roupas, o cabelo, o pescoco. Depois, cada um destes clementos desenvolve-se por sua vez € por sua propria conta; por exemplo, as pernas dissociam-se em pernas e pés, ¢ cada uma destas partes nao mais érepre- sentada por um simples traco mas por um contorno 08 olhos sao completados pelas pestanas e sobrancelhas E evidente que desde os primeiros exemplares composto: exclusivamente de um circulo para a cabega e de doit tragos, aproximadamente paralelos (por vezes um s6) para as pernas, a crianga nao ignora os outros elemento: do corpo, pelo menos 03 mais notaveis, ainda que os na represente, 9 Cariruto IV © MODELO INTERNO 34. — O tipo, cuja conservacao acabémos de estu- dar, nio & uma abstracgao artificial, uma simples eti- queta aplicada a uma colecgdo de desenhos de um mesmo motivo e de im mesmo desenhador; corresponde a.uma realidade psiquica existente no seu espfrito, a que chamaremos modelo interno. De facto, qualquer que seja u factor que evoca no espirito da crianga a repre= sentaciio de um objecto ¢ a intencio de o desenhar, mesmo quando sugeridos pela observacio de um dos motives ov modelos que chamamos objectos sugesti- vos, 0 objecto executado nao ¢ nunca, como se poderia crer, uma cépia pura e simples. A representacio do objecto a desenhar, devendo ser taduzida no desenho por linhas que se dirigem a vista, toma necessariamente a forma de uma imagem visual; mas esta imagem nunca €a reproducio servil de qualquer das percep¢des forne- cidas ao desenhador pela observac%io do objecto ou de um desenho correspondente. F, uma refraccao do objecto a desenhar através do espirito da crianca, uma recons- truco original que resulta de uma elaboracio muito complicada apesar da sua espontancidade. O nome de modelo interno é destinado a distingufir claramente do objecto ou modelo propriamente dito esta represen- tacdo mental que traduz o desenho. © ~0 Desenbo infant gL 35. — E forgosamente o modelo interno que devem reproduzir os desenhos feitos de meméria, ou, como se diz nos ateliers, «originais»; mas ¢ ainda este modclo que a crianga copia mesmo quando se propés reprodu- zir um objecto (motivo ou modelo) que tem diante dos olhos, quer dizer nos desenhos do natural e nos dese- nhos copiados. Nestes dois tiltimes casos, 0 objecto exte- tior s6 serve de sugestdo ¢, na realidade, ¢ 0 modelo interno que € desenhado. A prova é que os desenhos Sore —Lobim. Fig. 46 © 47 —Simonne L., francesa, 7 anos e meio (coleccio Luquet). Sineta ¢ carreto, Modelo interno nos desenhos da natureza (p. 82). do natural ¢ os desenhos copiados apresentam. os mes- mos caracteres que os desenhos de _meméria, cuja caracteristica principal ¢ screm conformes, nio_ao realismo visual, mas ao realismo intelectual (§ 71). Por exemplo, em desenhos do natural, uma sineta (fig. 46) mostra’o scu batente, na realidade invistvel, quando pousada numa mesa; um carreto (fig. 47) ¢ representado de trés pontos de vista diferentes: de perfil, para o cilindro central, ¢ de frente, a cada uma das extremidades, para os dois discos terminais, Um cani vete, colocado diante de uma crianga de 3 anos e meio sobre a mesa onde ela desenha, provoca-lhe a intengao de desenhd-lo; mas, em vez do canivete real que tem diante dos olhos, 0 seu desenho reproduz o canivete inteligivel no sentido platénico. De facto, enquanto 82 o canivete tinha duas Kiminas ¢, quando fechado, mos- tava s6 uma, o desenho representa um canivete aberto com wma s6 lamina. Os desenhos ao natural de um vaso de flores (figs. 81-83) sio particularmente demons- trativos, porque a crianca olhou constantemente 0 objecto real (fig. 84) «para fazer algo parecido». Isso nao impede que as asas laterais sejam representadas em realismo intclectual. O facto de geralmente, nos dese- nhos do natural, a crianga copiar nao 0 objecto real mas 0 seu modelo interno, é posto cm evidéncia por experiéncias feitas em escolares, sobretudo na América ¢ na Baviera. Por exemplo, ao ser proposto as criangas de certa classe que desenhassem ao natural a secre- taria do professor, quase todas representam as gavetas com o puxador, situadas no lado que nao viam. 36. — Os desenhos copiados nao manifestam menos a acco do modelo interno. De facto, nesses desenhos, ha dois casos a distinguir: ou a cépia ¢ fiel ou nao o € Ora, fel quer quando o| modelo copiado pela crianca € tal que seria o seu modelo interno do objecto dese- nado, se o desenhasse sem modelo, quer quando o modelo que copia é no seu conjunto, ou por qual- quer dos seus pormenores, algo de desconhecido para cla: nao o transforma porque néo o compreende. Por exemplo, como eu mostrava a um rapazinho de 4 anos 4 meses o desgosto que tive por cle ter apagado um desenho feito na parede pela irma, antes que cu o pudesse copiar, diz-me que o vai fazer de novo. Esta reproducio de meméria (fig. 49) é extremamente fiel: volta a ‘encontrar-se 0 carro com as duas rodas, 0 cavalo, o condutor e as rédeas; no entanto, quando Ihe Perguntaram o que representava esse desenho, declara que nao sabe. Por outro lado, -quando a crianga com- preende o modelo, se este difere do,seu modelo interno do objecto correspondente, nao ¢'0 modelo prdpria- mente dito, mas o modelo interno que reproduz 0 ‘83 desenho. Os primeiros bonecos de muitas criangas sio inspirados em modelos desenhados pelos pais, irméos ou irmas mais velhos; portanto, nao tém ne- nhuma semelhanga com os scus modelos € quase sempre sio do tipo sem tronco. Em duas cépias de um mesmo modelo de casa, executadas com um ano de intervalo, uma rapariguinha substitui a chaminé vertical por \é Fig. 48 — Alema, 7 anos (segundo Levinstein). Boneco com os bragos inseridos ‘na cabega, ainda que tenha tronco (p. 58) Fig. 49 —Jean_L., frances, anos € meiv (culeegae Luquet). Carro. Gépia fiel de um Gesenho em que © copista ignora 0 sentido (p. 83). uma chaminé perpendicular & aresta do telhado, em irtude da confuso entre vertical e perpendicular que se pode encontrar em varias criancas nos desenhos do original, quer nas chaminés das casas (fig. 94), quer nas personagens ou drvores representadas na vertente de uma montanha. O desenho da figura 50 € particularmente instrutivo pela sua semelhanca com 0 modelo, tirado de um catdlogo. O tema, tal como a crianga o compreendeu, € 0 seguinte: dois diri- giveis passam no céu; um senhor, num telhado, no meio das chaminés, espera-os com a bengala e a mal Os clementos ldgicos do quadro sao: dois dirigiveis, nuvens, chaminés ¢ uma espécie de terrago onde se encontra o senhor. As modificagées introduzidas pela 84 crianca na sua cépia tém por fim por esses elementos Tégicos mais em evidéncia do que estio no modelo. O mais pequeno dos dirigiveis, parcialmente encoberto Fig. 50—Simonne L., francesa, 6 anos ¢ 8 meses (colec¢do Luquet). Desenho de um modelo. Modelo interno nos desenhos copiados (p. 84). Fig. 51 — Gravura de um catalogo, modelo de um desenho pre- cedente, Por uma nuvem no modelo, na cépia esta totalmente Visivel; as nuvens estio suficientemente indicadas, As chaminés secundarias sio reproduzidas como simples indicagio para que se saiba que est’io ali, Mas o que 85 ha de mais demonstrativo € a modificagao da repre- sentagio do boneco. No modelo, esta de frente para os dirigiveis e, portanto, necessariamente o desenho do adulto est orientado em realismo visual, visto de perfil. Mas isto aborrece a crianca, porque numa representacio de perfil os diferentes elementos—corpo, braco, ben- gala ¢ mala —encobrem-se mais ou menos uns com os outros; ento substitu a representagao de_ perfil por uma representagio de frente, de cada lado da qual se afastam os bragos que seguram a bagagem, se assim se pode dizer (21), 37.—Se ainda fosse necessério provar a exis- téncia do modelo interno no espirito da crianca ¢ do seu papel no desenho, bastaria considerar que a homo- nimia grafica ¢ um factor nio s6 da interpretagao mas também da intengao (§ 11). De facto, quando a homo- nimia grafica determina a execugio de um desenho, é forcosamente anterior a este. Assim, como o desenho cvocado nao cxiste ainda, nao ¢ com cle que o descnho evocador possui_a relagio de homonimia grifica. Eis portanto qual deve ser © proceso mental. O desenho evocador desperta no espirito da crianga a ideia do motivo correspondente, ideia que ultrapassa a intencao de reproduzir o mesmo motivo. Essa intengao € acompanhada do modelo interno desse_motivo; mas, em consequéncia da analogia morfoldgica desse modelo interno com o modelo interno de um novo motivo, produz-se no espirito da crianga uma passagem do primeiro ao segundo, ¢ € cst ultimo que é desenhado. 38. —Se o desenho tracado no papel é a repro- dugao nao da sensacao ou da imagem visual do objecto representado, mas do modelo interno correspondente, resulta que, quando a crianga tem um objecto para desenhar pela primeira vez, precisa de criar 0 seu 86 modelo interno no proprio espirito. Também quando fa intencao desse desenho tem uma fraca intensidade, © que acontece quando nao € esponténea mas pro- yocada por uma sugestao, a crianga prefere geral- mente fugir a esse esforco. Assim’ se explica que, quando Ihe pedem o desenho de um objecto que nunca desenhou, tenta muitas vezes esquivar-se pro- mdo fazer um outro desenho que sabe fazer. BE preciso insistir para obter, € nem sempre isso se con- feguc, desenho pedido, que alias nao € sensivelmente sferior aos. outros (22). Esta observagao permite-nos voltar & opinido de que a crianga, na escolha inconsciente dos motivos que desenha, sera conduzida pela dificuldade da execucao (§ 9). Normalmente esta dificuldade é entendida como um obstéculo de ordem grafica, a dificuldade de fazer os tracos correspondentes. Mas € muito arriscado dizer que tal desenho, entendido simplesmente como um conjunto de linhas, é de exe- cugio mais dificil que um outro, ¢, mesmo sc esta dificuldade pudesse ser determinada pelo adulto, no seria nunca menos exigente para a crianca, Por outro lado, a crianga sé pode ser informada desta dificuldade bruscamente, por insucessé da sua tentativa ¢, de resto, numerosos exemplos demons- tram que, de facto, quando a crianga tem a intencao de desenhar qualquer objecto, esta intencao realiza-se pelo desenho correspondente, por muito imperfeita que possa ser a execugao. A dificuldade que faz obs- téculo A execugio de'um desenho inicial nao é de ordem grafica, mas de ordem psiquica; ¢ simples- mente a preguica mental que leva a crianga a evitar 0 esforgo de’ criar no seu espirito o modelo interno correspondente (23). 39. — Uma vez que 0 desenho fnicial de um motivo obrigou a crianga a criar o scu modelo interno, este » 87 € mantido no seu espfrito pelos desenhos subsequentes do mesmo motivo. Portanto, se néo o desenha durante bastante tempo € porque esquece o sen modelo interno. Encontra-se entd na mesma situacio que’ perante um desenho inicial ¢ j4 no sabe desenhar esse objecto. Precisa de esforcos e de tentativas, quer para recuperar © antigo modelo interno quer para criar um novo, sc entretanto a sua concepgio do abjecto se modificar. 40, — O, modelo interno intervém n&o s6 na exe- cugio do desenho mas também na significacio que a crianga lhe atribui, 6 a partir da sua analogia com 0s modelos internos da crianga que esta interpreta quer 0s desenhos dos outros quer os seus préprios desenhos acabados ou em execugéo, Nao sé dé aos seus desenhos uma interpretacio diferente da intengio que os ditou quando o seu tragudo Ihe parcee mais ‘conforme ao modelo interno correspondente & primeira que ao da segunda, mas ainda, quando © seu modelo interno de um certo motiva’ se modi- ficou, ou seja, se produziu uma modificacao do tipo, ela no é j4 capaz de reconhecer um dos seus desenhos anteriores do tipo primitivo. 41, — Como se. constitui entdo no espirito do dese- nhador 0 modelo interno de que os seus desenhos de um certo motivo sio a reproducio? Para a clareza deste estudo, sera conveniente distinguir nos motivos diversas categorias segundo o scu grau de generali- dade, Em primeiro lugar, vird o que se pode chamar representacdes histéricas, ‘quer dizer, as que repre- sentam um determinado objecto visto mum momento determinado, em circunstincias precisas © por vezes Xinicas: isso sera tal personagem numa situagao especial, fazendo um gesto determinado, vestindo de determi- nada maneira, ou tal paisagem num momento par- ticular, ou tal’ cena que aconteceu uma sé vez, Num 88 grau superior de gencralidade ou abstraccao, a imagem Bho corresponded j4 a tal objecto em tal momento, mas a este objecto num momento qualquer: serd, se se pode dizer, ainda um retrato, mas ja nao um ins- fantineo. Eniim, num grau de abstracgio ainda mais dlevado, nfo serio ja as diferencas’ momentancas mas as’ diferencas individuais que se apagarao; por exemplo, o desenho representaré uma tal rapariga, mas uma rapatiga qualquer, ou mesmo um boneco sem disting’o de sexo ou de idade: nao representard ja uma margarida ou uma rosa, mas uina flor, etc. £ preciso dizer que também aqui, como em tudo, ‘as distingdes acentuadas que acabamos de estabelecer atenuam-se consideravelmente, Uma fotografia ins- tantdnea que, na sua matcrialidade, apanha uma pessoa num momento preciso, tem, no papel que se lhe atribui, a faculdade mais geral de representar simplesmente esta pessoa. Do mesmo modo, o desenho de um ser determinado podera ser uma imagem individual orientada para o geral, tendendo, por exemplo, a representar 0 homem com as qualidades de tal senhor. As diversas categorias de motivos que distinguimos correspondem na realidade a etapas na progressto continua do mais individual para o mais geral. Por outro lado, estas interferem-se muitas vezes entre aquelas, ¢ tal desenho podera ser ao mesmo tempo mais particular que outro de certo ponto de vista ¢ mais geral segundo outras opinides. Tomemos dois desenhos de uma mesma crianga, representando um © seu préprio retrato, o outro um boneco andnimo. O primeiro seré mais particular que o segundo em relagio A humanidade, mas poderd ser mais geral em telacko ao gesto, se a crianga se representou sim- plesmente numa atitude neutra, enquanto den ao boneco um movimento especial ‘ou 0 representou numa ocupacio determinada, por exemplo, pescando A linha, Limitar-nos-emos, portanto, a distinguir em 89 geral duas categorias correspondentes, por assim dizer, as duas extremidades da cadeia: por um lado, os motivos individuais, por outro, os motives gerais ou genéricos, 42. —Os desenhos infantis representam mais fre- quentemente imagens genéricas que imagens indivi- duais, sobretudo no principio, Um desenho generico, regra geral, no recorre a um modelo interno que lhe seja proprio; nao se distingue em nada de um desenho individual, ¢ a sua generalidade reside anicamente na significagao que o desenhador Ihe atribui, porque, ao anuncid-lo ou enuncié-lo, dé-lhe 0 nome, por exemplo, nao de papd mas de boneco. Quer dizer, entre todas as imagens individuais dos objectos de uma certa classe, a crianga escolhe uma, naturalmente aquela de que tem uma maior experiéncia, como representativa dessa classe. Chamaremos exempla- ridade & atribuicdo de um valor geral ao modelo interno de objecto individual. Por exemplo, ainda que os desenhos de casas feitus por uma rapariguinha sejam quase sempre chamados «uma casa» (qualquer), 0S pormenores representados, © mesmo em nume- rosos casos as declaragdes expressas da crianga, pro- vam que cla se inspira na sua prépria casa} assim, ao mesmo tempo que traga um desses pormenor diz: «Como em nossa casa». Um exemplo muito caracteristico ¢ dado por uma pequena alema de 9 anos. Tinha feito um desenho que na sua mate- rialidade era um quadnipede de perfil com uma cabeca humana de frente, do género da fig. 34. Per guntam-lhe que animal é. A pergunta surpreende-a, € ela responde confusa: «Bem, € um animal!». Por- tanto, o seu desenho pretendia representar a ideia geral de animal ou, pelo menos, de quadripede. 43. — A par da exemplaridade intervém na cons- tituiggoe do modelo interno certos motivos genéricos, 90 uma outra operacio a que chamaremos sintese. Con- Sete, sem falar da combinacio de modelos internos genéricos jé constituidos (§ 21), em reunir numa foiea imagem quer © conjunto quer as partes ou ele- mentos de diversas imagens individuais que podem provir ou de um objecto real ou de um desenho exe- Pitado anteriormente pela crianca ou por qualquer pessoa. Por exemplo, 0 modelo interno de casa com- preende Unicamente, para uma rapariguinha de uns Stanos ¢ meio, os pormenores dos desenhos de casas que faziam a seu pedido, isto , a fachada, o telhado, as jamelas. Acrescenta’ entao um clemento novo, as cortinas nas janelas, que nfo Ihe foi sugerido nem por modelos nem por uma casa verdadeira, mas por Lm outro objecto real, o seu jogo de consteuges, em que as janclas consistem num quadrado de madeira com uma lamina de vidro sobre a qual estio pin- tadas a vermelho as cortinas presas por uma braca deira, Aos 5 anos ¢ 3 meses, em diferentes desenhos de um quarto de dormir, quer isolado quer como ele- mento de uma casa inteira, reproduz por exemplari- dade os pormenores do quarto dos pais; 20 mesmo tempo, introduz no fogio de sala, por sintese, a grelha «com cabega de bebé» para a qual lhe chamaram a atengao no salio de um amigo (fig. 52). Um pouco mais tarde, desenhando uma igreja na cidade onde vive, reproduz fielmente os pormenores exteriores, sobretudo «as Janelas com os bonecos de cor», quet dizer, os vitrais © também a corda do sino e 0 homem que a puxa; desenha ainda uma bandeira, certamente inspirada na de monumentos, talvez mesmo na de outra igreja, mas que nunca existu na igreja que desenhou (fg. 75). Aos 5 anos ¢ meio a mesma rapariguinha combina com os pormenores habituais das suas casas um novo elemento — 0 telhado pontiagudo cora chamine lateral, tirada de uma gravura de casa que ela copiou de um livro. Pelos 6 anos, dois desenhos acrescentam &s casas, -o1 que desenhava nessa altura, inspirando-se na vila perto do mar, em que entio morava, um jardim que, pelos seus pormenores, é 0 da sua avd, situado numa localidade muito afastada e que, na realidade, nfo € contfguo A casa da avd. Fig. 52—Simonne Ly francesa, § ange ¢ 4 meses (colecsio Luquet). Casa. Sintese dos pormenores do quarto de dormir (p. 91). Descontinuidade das salas contiguas (p. 153). Reba: timento (p. 172-177), Como se pode ver por estes diversos exemplos a complicagao do tipo sob a influéncia das circunstan- cias exteriores € da transferéncia analégica (§§ 31-32) ndo é seno a traduc&o material de um entiquecimento do modelo interno por sintese. 44. — Chegamos agora ao modelo interno de um desenho individual. A’ sua constituicio implica uma actividade original do espirito, uma elaboracao incons- ciente dos materiais derivados da experiéncia, ou scja, as impressdes visuais fornecidas pelo objecto real, motivo ou modelo, ¢ conservados pela meméria. Esta claboragio apresenta-se aqui sob a forma de uma selec- go, de uma escolha entre os diferentes elementos constitutivos do objecto representado, Se bem que 92 objectivamente esses elementos sejam todos igualmente teais, todos igualmente apercchidos pela aparéncia do objecto, ao contrério do que acontece com uma maquina fotografica, cuja lente regista também todos os por- menores da paisagem que sc estende diante da objec- tiva, o espirito da crianga distingue entre esses porme- ores 05 elementos essenciais ¢ os elementos secundarios; mais exactamente ainda, institui entre eles uma ver~ dadeira hierarquia. Na percepcao na memiéria, 0 espl- ito no € reduzido ao papel de um recipiente inerte onde se verte ¢ se conserva tal qual a experiéncia, «o dado». Nao s6 cada categoria de espiritos mas tam- bém cada espirito individual pode ser comparado a um repercutidor ou a uma dessas telas coloridas que s6 podem ser atravessadas por certas radiagdes. Se, como diz. Espinosa, um camponés, um pintor, um general, em presenga de uma mesma paisagem, nao recebem as mesmas impresses, a crianga, diante de um objecto ou de um desenho, nao vé os mesmos pormenores que um adulto; melhor, a sua vista vé-os, mas o seu espf- rito nfo os percebe senfio na medida em que eles o interessam ¢ proporcionalmente & importancia que Ihes atribui. ‘A importancia relativa atribuida pela crianga aos diferentes elementos constitutivos de um objecto tem por critério o lugar que eles ocupam nos seus desenhos. Um primeiro meio de determinar a hierarquia de valor dos pormenores de um objecto consiste em observar quais sio os representados. no desenho inicial dese motivo. Em virtude da critica exercida pela crianga aos seus desenhos (§ 3), 0 observador pode saber se, no momento em que 6 sujeito abandona tm desenho, est satisfeito com 0 seu trabalho e 0 considera acabado. Neste caso, se um desenho assim julgado conveniente pela crianca nao contém tal ou tal pormenor do objecto representado, € porque a crianca © julga inutil, por- tanto secundario, » 93 Uma outra fonte de indicages sobre a importancia relativa atribuida pela crianca aos diversos elementos de um objecto é a consideragio, nao sé dos primeiros desenhos, mas também da série de desenhos sucessivos de um mesmo motivo. De facto, vimos primeiro (§ 33) que o factor mais importante da modificacio do tipo, e portanto do modelo interno, € a adiciio progressiva de menores sempre mais numerosos. A ordem crono- Bégica da apariedo desses pormenores, muito secunds- ios em relacdo aos que foram representados no desenho inicial, é a indicacio da sua importincia relativa, ‘Mas, por outro lado, os pormenores, uma vez apa- recidos quer no desenho inicial quer nos desenhos posteriores de um certo motivo, nilo se conservam sem- pre regularmente nos desenhos que Ihe sucedem. Mos- trémo-lo a propésito do conflito entre conservagio pri- maria ¢ conservacao secundaria (§ 27); mas 0 automa- tismo nao & a tinica razdo desse facto, antes limita-se a manifestar e a fixar 0 carécter que estudamos aqui. Os pormenores representados em cada um dos desenhos so 03 que sobressacm com a maxima claridade no modelo interno que traduz; esses diversos modelos internos podem ser comparados com imagens fotogré- ficas em que 86 certas partes, e nem sempre as mesmas, esto perfeitas, Sendo assim, a aproximacao de desenhos sucessivos de um mesmo motivo permitira, por um pro- cesso andlogo ao das imagens compostas de Galton, destacar os clementos que a crianca considera como essenciais, mostrando aqueles cuja auséncia em tal ou tal desenho no impede que a crianca © considere acabado, Esses diversos métodos fornecem os resultados qu se completam reciprocamente ¢ concordam no con- junto. Indicdmos (§ 33) em que ordem sensivelmente Constante, em quase todas as criancas, a representacdo do boneco se complica ¢ se completa pela adicio de novos pormenores. Do mesmo modo, em diversas 94 criangas, as casas em altura no tém telhado durante certo tempo. Em desenhos, aliés raros, de varias criancas, 0 contorno do rosto ou € reduzido & sua parte superior, que poderia simplesmente querer representar a fronte, ou est4 mesmo totalmente ausente. Uma pequenita, nas suas casas em plano, descuida frequente- mente o contorno, quer do conjunto da casa, quer das salas, que apenas sto representados pelos méveis, Por vezes um tnico contorno representa, por si mesmo, 0 conjunto de uma sala e um dos seus méveis, Por exem- plo, em duas casas desenhadas aos 4 anos ¢ 4 meses, 0 escritério é representado por um contorno correspon- dente, 20 mesmo tempo, as paredes, porque contém uma porta ou janelas, ¢ A mesa, porque tem pés. 45. —Na hierarquia a que a crianga submete os elementos dos objectos que desenha, parece estabelecer uma distingao fundamental entre og que so pormeno- res secundarios e acessdrios, mesmo que sejam_ mais importantes que outros, e um clemento essencial que desempenha — este termo metafisico no deixa de ser oportuno—o papei de substancia. A prova é que muitas vezes, a0 anunciar os pormenores de um desenho, a crianca deixa no siléncio este elemento substancial, por se tratar ndo de um pormenor como os outros, mas do suporte de todos os outros; por exemplo, na enumera- Gao dos elementos das suas casas, enunciard as portas, a8 janelas, a chaminé, mas no 0 contorno da fachada (24). Outras vezes, esse pormenor essencial € designado pelo nome do proprio objecto; por exemplo, no desenho de um coelho, enuncia assim as diferentes partes: © coelho (0 corpo), a cabeca, as patas ¢ a cauda, Do mesmo modo, uma pequena californiana de 4 anos ¢numera, & medida que desenha, os elementos de um Telégio. «Isto € o reldgio, isto o ponteiro e isto a corrente com a argola» (fig. 53). 95, Sem ddvida, seria exagerado pretender que a crianga elimina ‘deliberadamente do scu desenho um ou outro dos elementos reais do abjecto que representa; no entanto, ela tem, até certo ponto, consciéncia da existéncia desses elementos no proprio momento em Ve Fig. 53—Ruth W., californiana, 4 anos (segundo Brown). Reldgio, (Relégio. agulha, movimento da agulha no mostrador, penduld, correla}. "A substancia (p. 99). Narragdo” graitca {(p. 202). Carol, calforniano, 3 anos € meio (Segundo Brown) ‘Um brago separado do corpo (p. 153). Fig. 5 que os descuida, Encontra-se um exemplo muito claro num boneco de uma rapariguinha de 3 anos ¢ 9 meses (fig. 22). Se bem que nao tivesse nem bragos, nem tronco, nem roupas, a crianga considera a sua obra com muita satisfacdo, ¢ exprime-se nestes termos: «Esta bem: € um senhor vestido». Assim, no préprio momento em que esta rapariguinha descuida as roupas, serve-se deste pormenor para caracterizar um homem real. 46.—Em resumo, se, como veremos (§ 71), a crianga tende a representar no desenho de um objecto todos’ os elementos que considera essenciais, mesmo 96 quando nao visiveis, 20 contrério descuida os que, mesmo visiveis, Ihe parecem de importancia secun- daria. Talver nfo seja impossivel ir mais longe © prever em que sentido deveria ser procurada a raziio da importincia relativa atribufda pela crianca aos diversos elementos constitutivos de um objecto. ‘A crianca € essencialmente finalista, mas concebe a finalidade & maneira de Sécrates; a sua represcntagao das coisas é, para empregar uma expressio de Renan, antropocéntrica. Uma rapariguinha designava exclu sivamente os objectos nao pelo seu nome, mas pela sua funcao. Uma cadcira cra «uma coisa para se sentar», um prato, «uma coisa para comern. Um dia, espe rando atrapalhd-la, mostram-lhe uma_ prensa, pergun- tando-lhe: «O que € isto?». O interrogador fica desar- mado quando a crianga responde: «f uma coisa para esmagar». Sem pretender que todas as criangas levem to longe a sua concepcao teleolégica, creio que se inspi- am muito nela ¢ que a importéncia relativa que do ‘aos diferentes pormenores de um objecto depende em grande parte da que atribuem ao seu papel, & sua funcio. Por exemplo, ¢ bem conhecido que todas as criangas, a prinefpio ¢ durante um perfodo bastante prolongado, representam 03 bonecos sem nenhum traje (fig. 22, 109, 142), mesmo quando representam expressamente pessoas importantes, que a crianga nunca teve ocasitio de ver nuas; ¢, se ¢ verdade que a experiéncia da nudez Ihe ¢ fornecida por si propria, porque se inspira nessa experiéncia com exclusio da do seu corpo vestido, apesar de mais frequente? Sem diivida nenhuma, por que o vestido nao ¢ indispensavel & natureza de um ser humano; a crianca considera perniciosa a sua repre- sentagao, pois dislarca-o, ¢, num certo sentido, supri- me-o' dos clementos considerados essenciais. é mesmo necessario para caracterizaf o sexo, porque para o fazer basta um cachimbo para os senhores, =O Desento Tofantit +97 um penteado especial para as senhoras ¢ uma tranga para as rapariguinhas. Em muitas criangas, durante muito tempo, as senhoras sio caracterizadas nao por uma saia, mas por plumas no chapéu. A um rapazinho de 5 anos que desenhou um boneco perguntam-lhe se um senhor ou uma senhora; sem olhar o desenho, pergunta: «Tem plumas?». /¢ passamos as partes intrinsecas do corpo, as orelhas geralmente fazem a sua aparicao em desenhos de senho- gt BING Fig, 55— Bavara, 6 anos (segundo Kerschensteiner). Bonecos Tangande, bolas de neve. Representacio do) tinico byago uti (p. 98) com exageragao do seu eomprimento (p. 131). ras; os senhores podem passar sem elas porque nfo usam brincos, Do mesmo modo, em todas as criancas, os bonecos ficam durante muito tempo sem bracos (fig. 130 ¢ 133); e quando estes fazem a sua aparicao, normalmente sao representados apenas nos bonecos que tém necessidade deles para segurar qualquer coisa, Ainda mais, quando € necessario um s6, 0 brago imitil nao € representado, por exeniplo, no desenho de uma rapariguinha de 5'anos em que um boneco abro a porta da casa com uma chave ou em diversos desenhos de escolares de Munique representando um combate com bolas de neve (fig. 55). Acontece mesmo que a utilidade dos bragos num desenho determinado nao chega a prevalecer contra a sua negligéncia habitual, por exemplo, num desenho de uma festa de casamento 98 Fig. 56—Simonne L., francesa, 6 anos (colecgio Luquet) Banquete. Auséncia de bracos uteis (p. 99). ‘Tentativa de colo- rido realista (p. I11).” Realismo intelectual (p. 166). Fig. 57—Ruth W., californiana, 3 amos ¢ 9 meses (segundo Brown). Retrato do’ pap, desenhado 2 pedido. Um pouco das suas pernas; — Pulmdes; — Estdmago; — A sua _mecdinica; — © outro bocado do estdmago; — A sua mecanica; — Olhos; — Nariz; — Boca; — Queixo; ~* Pescogo. Justificagdio de um porme- nor insélito (p. 61). Representagao por transparéncia (p. 166) das visceras, causa provavel da representacio do tronco (p. 102). ‘fig. 56), em que a maior parte das personagens estdo sem os membros superiores, dispostas em pares, de que necessitariam para se darem o braco, ou ainda no desenho de um boneco que apanba cerejas, onde um rapaz de 99 4 anos e 4 meses justapéc a uma ecrejeira um homem sem bragos (fig. 58). Encontra.se a mesma auséncia de bragos nos bonecos que tocam trompete ou levam guarda-chuva aberto; a trompete segura-se sozinha na boca e o guarda-chuva esta implantado na cabega. O habito € tio forte, que em desenhos desse género, Vy Fig, 58 — Jean L., francés, 4 anos ¢ 4 meses (colegio Luquet). Boneco qué colhe cerejas. Auséncia de bragos mesmo titeis (p. 100). Fig. 59—Simonne L., francesa, 7 anos e 3. meses (coleccio Luquet). Margarida amarela, ‘Colorido re: is onde esto reunidas personagens que nao tém bracos ¢ outras que os tém, os objectos no sdo mais seguros por estes que pelos outros (fig. 60 ¢ 61). Um desenho de um pequeno belga de 4 anos e meio (fig. 62) retine os diferentes casos possiveis, Representa trés pares abri- gados cada um sob o mesmo guarda-chuva. No par da esquerda, as duas personagens nao tém bracos ¢ 0 guarda-chuva segura-se s6 entre os dois, Nos outros pares, o brago iitil € representado segurando 0 guarda~ schuva; destas quatro personagens, 86 a que esté mais direita tem o braco que nio serve para nada. Mesmo 100 quando a criangs chega a representar regularmente os bracos, a sua representacao fica bastante tempo mais sumaria e descuidada que a das pernas; cada brago € representado por um Unico trago, enquanto para as jernas esic foi substituido por um contorno fechado Fig. 109 © 132). Fig, 60 — Emile, belga, 3 anos e meio (segundo Rouma). Bonecos Tevando guarda-chuvas. Negligéncia des bragos (p, 100) Fig. 61 — Maria, belga, 5 anos e meio (segundo Rouma). Recru- tas tocando ‘trompete. Negligéncia dos bragas (p. 100). No desenho ja citado, figura um passeio coberto de neve, representado por cima dos passeantes: portanto nao serviria para nada, © papel da finalidade na escolha dos clementos representados manifesta-se, de ponta a ponta, numa das mais constantes ¢ ao mesmo tempo mais curiosas Produgées do desenho infantil —o boneco do tipo sem tronco (§ 23). Se ao principio ¢ durante bastante tempo a crianca descuida esta parte do corpo humano, que, pelas suas dimensdes, pode evidentemente passar + 101 despercebida, se nao se chega mesmo a fazer-lhe reco- nhecer essa auséncia, sem divida ¢ porque ela nao lhe reconhece utilidade, O tronco serve para conter os érgios vitais internos; mas, como a crianga normal- mente ignora a anatomia, nao os conhece. Esta dedu- cao encontra uma confirmagio por via de contraprova no caso, para mim dnico entre todas as criangas cujas primeiras tentativas grdficas foram objecto de uma observagéo metédica, de uma pequena da California em que os bonecos foram de repente providos de um tronco. Representa no interior com um sarrabisco o tomac, que cla enuncia ao mesmo tempo que o desenha. 3 meses mais tarde, aos 3 anos ¢ 7 meses, num retrato do papa, desenha e enuncia os pulmées, o estémago, «a mecdnica que faz andar o nosso estOmago: pum, pum; 0 outro bocado do estémago com a sua mec: nica» (fig, 57). Ha af indicios de conhecimentos mais ou menos fantasistas sobre a anatomia e a psicologia © compreende-se que o tronco, receptéculo ce ameca nicas» tio curiosas, fosse julgado digno de ser repre- sentado, A consideragao da finalidade explica no sé a ausén- cia primitiva do tronco nos bonecos infantis mas (também a sua aparigio quando ela acaba por se dar. Se a utili- dade do tronco para o homem de carne ¢ osso continua a escapar & crianga, esta reconhece a sua necessidade para receber © braco. Quando estes, a principio des- cuidados, fazem a sua aparigio, a auséncia do tronco mantém-se primeiro pela conservacio do tipo, ¢ a crianga tira-se de cuidados inserindo-os ou nas pernas ou na cabeca (§ 23). Em criangas de diferentes nacio- nalidades encontram-se, na série dos seus bonecos sem tronco, bragos inseridos na cabeca ¢ outros nas pernas; por vezes, nos desenhos onde ha duas personagens, cada um representa uma das duas insergdes; existe mesmo o caso, por exemplo num boneco desenhado por uma pequena da California de 3 anos e meio, onde um dos 102 bragos est inserido na cabeca e 0 outro nas pernas. ‘A propria oscilagdo da crianga entre estes modos de jnsergio dos bracos prova que ela tem até um certo nto consciéncia da sua imperfeigho, e € 0 que a leva 2 desenhar o tronco, indispensivel pata a insergao cor- recta (25). 47, — A exemplaridade, de que acabamos de ver 0 papel na constituigao do modelo interno dos desenhos Fig. 62 —-Pierre B., belga, 4 anos ¢ meio (segundo Rouma). Passeio coberto de neve.” Inten¢io provocada pelas circunstin clas exteriors (p; 24). Reptesentagao dos bragos (p- 100). Papel da finalidade (p. 100) , genéricos, intervém igualmente nos desenhos indivi- duais ou retratos. Isto ndo pode surpreender, porque um objecto ou ser individual € j4, num certo sentido, geral: € 0 conjunto dos diferentes momentos da sua existéncia, ¢ em particular, pela sua aparéncia visual, dos diversos aspectos que pode apresentar em seguida, quer das suas préprias modificagdes, quer do ponto de vista de onde seja focado. Entre todos estes aspectos, igualmente legitimos, a crianga escothe espontanca- mente ¢ com uma regularidade impressionante 0 que distingue o melhor objecto considerado entre todos, quer pela sua forma de conjunto, quer pelos pormenores 103 que oferece & vista, Assim, os desenhos de animais stio normalmente dc perfil. Pelo contrario, as persona- gens sdo durante muito tempo representadas exclusi- yamente de frente. A escolha constante de pontos de vista diferentes para a representacao do homem e do animal € posta em evidéncia em numerosos desenhos de cavalos, nos quais o animal est4 de perfil e a personagem de frente (fig. 35, 89, 100). Mesmo mais tarde, quando a crianga chega a desenhar os bonecos de perfil, ¢ por- tanto néo € forcada a desenhd-los assim por dificul- dade de execugao, eles saem excepcionais € nio cons- tituem apenas elementos de quadro de conjunto quc exigem esse ponto de vista para as personagens, por exemplo, nos desenhos de uma senhora empurrando um carro de bebé, em que a senhora deve estar de perfil como 0 carro, ou nos desenhos de cavaleiros, em que 0 homem deve estar de perfil como o cavalo. A exemplaridade tem também um papel na repre- sentacio grafica das cenas méveis de historias. Entre os momentos sucessivos ou episédios da acco, a crianga escolhe um ou varios de preferéncia aos outros. Por exemplo, para a histéria de «Joao Nariz-no-Arm, Joao aproximando-se do cio é mais vezes representado que Jodo tropegando no céo; Jodo ladeando o rio mais’ vezes que Jo&o caido na agua, Os autores que notaram este facto explicaram que a catastrofe & menos representada que a sua preparacdo, Houve outras explicagdes como, por excmplo, que a representacao da catastrofe nao contém mais nada do que ela prépria, enquanto a da preparacio, ao mesmo tempo que a representa, sugere a ideia da catastrofe que vai seguir-se € portanto é mais rica, Esta interpretacdo, valida para artistas consumados, parece-me muito subtil para a crianga. Nada prova, na auséncia de declaragdes verbais do desenhador, que’o desenho, que aos olhos de um adulto parece ‘representar tinicamente a preparacao, nio queira representar o conjunto da cena que € pri- 104 meiro preparacio ¢ depois catastrofe. Mas, mesmo admi- tindo que a crianca cstabeleca uma distincao clara entre estes dois momentos sucessivos, se representa © rimeiro de preferéncia ao segundo, é, julgo eu, porque heste ultimo os diferentes elementos Iégicos da accao se apresentam para a vista com um aspecto confuso ¢ jncompleto. Por exemplo, na representagio de Joao caindo sobre 0 cao, os dois actores seriam menos clara. mente distintos que na representagio de Joao aproxi- mando-se do cio; na representacio de Joao caido na Agua, a parte imersa do seu corpo nao seria visivel, enquanto, representando 0 momento em que esta ainda na borda do rio antes de cair, pode ser represen- tado inteiro. Nas represcntagdes das cenas méveis, como nas representacées estdticas dos objectos, a exemplari- dade escolhe para a desenhar a situagio em que 0 rea- lismo visual concorda com o realismo intelectual. 105 Capfruto V 0 COLORIDO 48. — Quanto ao interesse que-a crianca d4 A cor nos seus desenhos, as opinides so variadissimas ¢ as informages exactas muito raras, A observagio prolon- gada de varias pessoas forneceu dado: discordantes, ¢ 0 resultado a que se pode chegar € que as criancas apre- sentam neste ponto grandes diferengas individuais, Portanto, as indicagdes dada; aqui dizem respcito a uma generalidade muito relativa. Parece que, desde tenra idade, a crianca é sensfvel A cor por ela propria, abstraccio feita dos. objectos em que se encontra ou da sua aplicagao na representagio de objectos. Uma rapariguinha de 3 anos ¢ meio pede para fazer um desenho com tinta vermelha «porque é muito bonita». Varias criangas tém prazer em colorir folhas de papel estendendo uma s6 cor por toda a super- ficie da folha. Muitas vezes a legonda ou a assinatura dos desenhos € escrita a cor (fig. 63), por vezes poli- croma; num desenho (fig. 65), cada uma das seis letras da assinatura de cor diferente. 49. — Ao interesse que a crianga da & cor por si mesma alia-se o facto de o coloridoy num bom mimero de desenhos, ter um papel puramente decorative ou ornamental, sem relagao com o abjecto representado; * 107 poderiamos dizer, usando uma expressio infantil, que o colorido é «para fazer bonito». As fachadas das casas e os trajes das personagens fornecem-nos abundantes exemplos; limitar-me-ei a citar um desenho em que uma rapariguinha de pouco mais de 8 anos se representou a si prépria (fig. 63), eem que uma evidente Sime ne. Fig. 63—Simonne L., francesa, 8 anos e 2 meses (coleccio Luquet). Retrato da artista. Legenda colorida (p. 108). Colo- tido decorativo dos trajes (p. 108). e realista das faces (p. 116). Fig, 64 — Simonne L, francesa, 5 anos ¢ meio (colecgéo Luquet). Boneca. Realismo ‘intelectual (p. 166). preocupagiio do realismo das linhas faz sobressair o cardcter puramente decorativo do colorido (chapéu amarelo-enxofre, que no é um chapéu de palha, corpo verde e saia ptirpura), No boneco de um rapazinho de 4 anos e 3 meses, 0 contorno da cabeca é escuro, o nariz. e as pernas vermelhos, um olho violeta e outro verde; um més mais tarde, faz um outro desenho em que 0 contorno da cabeca, as pernas ¢ um braco sio 108 o> yermelhos, o outro braco azul, os pormenores da cabega castanhos-escuros, 0s dedos vermelhos, azuis casta- nhos-escuros. Nos desenhos colorides de comboios, 2 locomotiva € geralmente pintalgada das mais inve- Fig. 65—Simonne L., francesa, 7 anos ¢ 3 meses (colecgaio Luquet). Piano. Assinatura policromada (p. 107). Mistura de “" “colorido realista’€ decorative rosimeis cores: por exemplo, uma tem o corpo verde, a chaminé ¢ o fumo laranja, a cabina do maguinista violeta, o ténder azul. Pode observar-se de um modo Particularmente claro a tendéncia para o colorido-de- Corativo nos albuns em que ha dois desenhos parecidos um ao lado do outro, um colorido anteriormente, © outro simplesmente com um trago que deve ser colo- 109 rido pela crianga segundo o préprio modelo. Por exemplo, um rapazinho de 6 anos ¢ 3 meses, colorindo uma bicicleta de um modelo em que os dois pneus so cinzentos-claros, poe um castanho ¢ 0 outro verde. Em desenhos sem modelo de uma mesma crianga, © colorido decorativo é aplicado nao s6 as casas ou aos barcos de pesca € recreio, para os quais poderia admi- tir-se que corresponde até um certo ponto & realidade, mas também as muralhas de casernas ou de fortes e as quilhas dos barcos de guerra. Fig. 66 —Simonne T.., francesa, 7 anos ¢ 2 meses (colecgio Luquet). Pistola. Colorido realista (p. [11). 50. — Dado 0 lugar preponderante que o realismo tem no desenho infantil, no que diz respeito as linhas, isto é, & expressio vigorosa das formas (Cap. VI), € muito natural que cle se encontre no ‘colorido ¢ cste, a par do seu papel decorative, tenha também um papel realista. Parece mesmo que estas duas fungdes tém a sua razio de scr. E decorativo quando a cor n&o tem mais que um cardcter acidental do abjecto representado, quer dizer, quando poderia ser de uma cor diferente; € 0 caso particular dos trajes. Pelo contrario, é realista quando a cor é essencial ao objecto. Isto acontece na representaco de objectos claramente individualizados que na realidade s40 cores em questo, quer sempre, quer no momento preciso visado no desenho. 10 Por exemplo, o desenho de uma espécie de pistola reproduz-Ihe fielmente as barras coloridas vermelhas ¢ verdes (fig. 66), € uma rapariguinha, no retrato da mie, segundo o natural, dé exactamente a cor rosa a0 roupio que ela trazia nese momento (fig. 67). No Fig. 67 — Simonne L., francesa, 7 anos e | més (colecg&o Luquet) Retrato da sua marl numa’ grata de roses Rol as vestido'e dx sua‘cor fp At; desenho de um concerto (fig. 68), feito com tinta negra, © lugar do narrador & desenhado com tinta vermelha, “porque os cortinados sao vermelhos» (quer dizer, erart vermelhos na realidade). No desenho de uma’ boda (fig. 56), uma rapariguinha de 6 anos, ainda que $6 tivesse a sua disposicao um Mpis vermelho e azul, pro- cura dar ao vestido a cor branca caracteristica do vestido de noiva; nesta intencao, enquanto todas as Outras personagens sio tragadas a lapis vermelho, a noiva € desenhada com o lapis azul. “111 Fig. 68 — Simone L., francesa, 6 anos ¢ meio (colecso Luquet). Concerto. Colorido ‘Yealista (p, 111). Rebatimento (p. 174). Mistura de pontos de vista na cadeira do alto & esquerda {p. 181). Tratando-se, nio de desenhos de objectos indivi- dualizados, semelhantes a retratos, mas de imagens genéricas, o colorido é uma caracteristica essencial do género assim como da forma, quando todos os abjectos desse género tém regularmente 0 mesmo colorido. Nesse caso, 0 colorido do desenho € geralmente realista, 112 com wma excepgao. importante, a dos animais, cuja representacao manifesta uma predileccao decidida Celorido decorative. Vé-se, por exemplo, nos des nhos de uma rapariguinha aos 7 anos ¢ meio, um prado contiguo a uma casa onde estio um carneiro Fig. 69—Simonne L., francesa, 8 anos c 2 meses (coleceao Luguet). Passaro, Colorido decorativo dos animais (p. 113). Fig. 70—Italiana, 2 anos e meio (segundo Lombardo-Radice). Passaro, Interpretacdo de um tragado ndo premeditado (p. 141). ‘Adigio de pormenores aperfeicoando a semelhanga (p. 143), a Fig. 71 — Simone L., francesa, 8 anos ¢ meio (coleccio Luquet). Gisne. Colorido decorative dos animais {p. 113). Realisino (p. 129). azul, um cao violeta, uma galinha amarela-esverdeada; aos 8 anos e 2 meses, surge um passaro com cabega verde, corpo vermelho, asas e cauda azuis, bico ¢ patas amarelos (fig. 69); ‘particularmente demonstrativo, aos 8 anos e meio, um cisne com p corpo verde-escuro, asas amarelas-claras e cauda castanha (fig. 71). Nos desenhos de um rapaz de 6 anos a 6 anos e meio encontro $0 Desenho Tafantit ~ 113 um ¢4o amarelo, um outro com ocorpo castanho, orelhas vermelhas, olhos verdes, cauda violeta, um ‘clefante visto de tras resumido a uma tromba castanha-escura, nuca ¢ orelha cor-de-rosa, a parte de trés azul; um desconcertante leo (fig. 32) com 0 corpo vermelho, a cauda castanha-escura ¢ a juba verde, Nao encontro, para este colorido decorative dos animais, explicacao ue me satisfaca plenamente; talvez uma assimilagio da cor do pélo, ou das plumas, numa espécie de vestuario. de animais tenha feito transferir o colorido decorativo dos trajes humanos. Nos exemplares de que disponho, os vegetais so regularmente pintados em cores realistas, a0 contrario dos animais; apresentarei como exemplos uma rosa (fig. 72) © duas margaridas amarelas (fg. 59 ¢ 107). ‘céu € 0 Tios so regularmente azuis (fig. 74), as ban- deiras, nos desenhos de criangas. francesas,” sempre tricolores, em particular num’ desenho de_igreja, linico elemento que o seu autor julgou necessario colo: rir (fig. 75). Quanto aos uniformes militares, os ele- mentos de que disponho sao insuficientes para permitir uma concluséo segura. Numa ampla coleccao de dese- nhos de um pequeno francés, executados aos 6 ¢ 7 anos, durante a guerra, os uniformes das diferentes armas do exército francés e os dos exércitos aliados ou inimigos so constantemente, pelo menos em intenc&o, de um colorido realista; pelo contratio, noutros desenhos isolados de criangas diferentes, 0s uniformes sao em colorido decorative, do mesmo modo que os trajes civis. Quanto aos uniformes, ndo me & possivel decidir se a maioria das criancas tem uma preferéncia marcada por uma e outra espécie de colorido ou se nao as utiliza indiferente ¢ altcrnadamente. O cardcter voluntario, ainda que sem duivida incons- ciente, desta distingao entre as duas espécies de colo- tido c’o emprego de alguma delas para classes de objec- tos bem determinados manifesta-se sobretudo nos dese- 114 Fig. 72—Simonne L., francesa, 7 anos (coleccio Luquet). Rost. Coloridd realista de veyelais (p11). Fig, 73—Simonne L., francesa, 5 anos (colecgio Luquet). Gasa com jardim. Justaposicéo (p. 153) e mudanga de ponto de vista (p. 181). Fscalonamento das arvores (p. 160). nhos em que as duas se encontram ao mesmo tempo. Num mesmo desenho (fig. 74), hd um barco em colo- rido decorativo e o céu € uma bandeira em colorido realista, No desenho de um «lago» (fig. 76), enquanto as arvores sto verdes, os raminculos aquatics tém as folhas verdes ¢ as flores amarelas, a bandeira do barco € tricolor, as criangas esto vestidas de vermelho, amarelo ¢ azul, os patos sio cada um de cor diferente, violeta, amarelo, azul ¢ vermelho. No desenho de um «tion (fig. 77), a agua e 0 céu s&o azuis, as Arvores 115 verdes, a grade da ponte violeta ¢ o tabuleiro vermelho, assim como o vestido da senhora que passa por cima; 0s cinco peixes sto cada um de cor diferente: cas: tanho, azul, violeta, castanho-escuro e vermelho. No desenho de um piano (fig. 65), em que o colorido francesa, 7 anos e 3 meses (colecgio Fig. 74— Simonne de cores realista e decorativa (p. 114 115) Luquet). Barco. Mistus decorativo vai até a marca da firma, as teclas sio negras e amarelas, em colorido realista. Diversos bonecos, com os trajos em colorido decorativo, tém as bochechas indicadas por uma mancha vermelha (fig. 63). Enfim, € particularmente notdvel o desenho de uma senhora que volta do mercado (fig. 78). Enquanto o colorido do seu vestido € puramente decorativo, os objectos que traz no cesto tem um colorido realista; dois alhos- 116 -porros verdes, um bocado de carne cor-de-rosa, quatro magis vermelhas, quatro batatas castanhas, duas Jaranjas amarelas € uma cenoura vermelha com folhas verdes. (fa a) ovis Fig, 75 —Simonne Ly francesa, 5 anos ¢ 4 meses” (colesgio iquet). Igreja. Adiga de um pormenor por sintese (p. 91). Bascaho monocromo, salvo para & bandeiee com colorido reas lista (p. 114), mas com relacio topogréfica das cores inexacta S (p. 155). ._Apesar da deplordvel escassez de documentos infantis sobre os quais recai o nosso estudo do colorido, as conélusdes que se podem tirar parecem-nos ser, até certo ponto, de ordem geral. De facto, os carac- teres do colorido que pusemos em evidéncia encon- tram-se tal e qual nas imagens.de Epinal, ¢ a atraccio que exercem na maioria das criangas faz pensar que encontram nelas as proprias tendéncias (26). 17 { | { Fig. 76—Simonne L., francesa, 7 anos ¢ 3 meses (colecgiio ! Luque). Lago. Mistura de colorido realist e decorativo (p. 115). Rebatimento (p. 175) Fig. 78—Simonne L., francesa, 7 anos © 8 meses: (colecsio Luguet). Senhora vindo do. mercado. Mistura de coloridos realista e decorativa (p. 116). ‘Transparencia (p. 168). Fig. 77—Simonne L.,. francesa, 7 anos ¢ 3 meses (colecgi0 Ligue). Rio" Mistura de euros reaitae decorativa (p-11), \ Rebatimento (p. 175). 118 . “9 fi SEGUNDA PARTE A EVOLUCAO DO DESENHO INFANTIL CariruLo VI © REALISMO 51,—Nenhum termo convém melhor que o de realismo para caracterizar o desenho infantil no seu conjunto. Realista, antes de mais nada, pela natu- reza dos seus motivos, dos temas que trata. Um desenho consiste num sistema de linhas cujo conjunto tem uma forma. Mas esta forma pode ter, na intengao do desenhador, duas finalidades diferentes. Pode ser executada pelo prazer que proporciona a vista, pelo seu simples aspecto visual, ou para reproduzir objectos reais. Pode ser, segundo a linguagem da escola froe- beliana, uma «forma de beleza», ou uma «forma de vida». Em termos mais simples, hd duas espécies de desenho: 9 desenho figurativo e 0 desenho nao figurativo ou, num sentido mais amplo, geomé- trico (27). Esta segunda concepsao do desenho parece estranha a crianga, Nao quer dizer que ela seja absolutamente insenstvel_ ao que se poderia chamar beleza abstract, € particularmente A regularidade de uma figura. Por exemplo, uma rapariguinha de 3 anos e 8 meses interrompe o desenho de um boncto que estava a fazer para admirar a cabeca: «f bonito o circulo». Mas este € apenas um elemento acessério;-mesmo 123 nos casos relativamente excepeionais em que a crianca Ihe presta atengio, nao é premeditadamente c 0 desenho tem por papel principal representar qualquer coisa. A concepgio de um desenho que nao procurasse reptesentar alguma coisa é de tal modo estranha & crianca, que algumas nao chegam a encontrar uma interpretagio exacta para desenho que acabam de fazer, ¢ declaram que representa «uma coisa». E, se € ao desenho figurative que a crianga se dedica espon- taneamente, é sem sucesso que se tenta interess4-la pelo desenho geométrico: os professores dos jardins de infancia sio undnimes em reconhecer que_ 9s seus pequenos alunos mostram muito menos interesse pelas «formas de beleza» que Ihes pedem para desenhar que pelas «formas de vida». Tem-sc observado que diversas criangas que desenharam excepcionalmente figuras geométricas, em geral para imitar desenhos feitos por outras, procuram imediatamente dar-lhes uma interpretagao figurativa e reproduzem-nas de af para diante sé com essa significagio, Assim, uma pequena da Califérnia de 3 anos, depois de ter desenhado circulos imitando os que Ihe tinham dese- nhado, chama-lhes bolachas e abelhas; as letras H passam a ser escadas, A um outro pequeno de 4 anos, tendo desenhado o tinico desenho geométrico que lhe viram fazer —um rectingulo dividido em quadrados com as suas diagonais, certamente A imitagéo de uma espécie de jogo de macaca—, perguntaram 0 que tinha desenhado. Primeiro, respondeu: «Linhas regu+ Jares»;»-depois, .acrescentou imediatamente:«£ uma jaula de ledo»; em seguida, voltou a fazer varias vezes ‘a mesma figura, mas sempre como uma jaula. 52, —O desenho infantil € realista pela escolha dos seus motivos e também pelo seu fim, Poderi parecer a priori que 0 desenho figurativo s6 poderia ser realista, porque consiste na traducao grafica dos 124 caracteres visuais do objecto representado. Mas tal conclusio seria precoce. Ao dizer tradugio, nao se diz forcosamente traducdo literal; ela pode ser mais ou menos fiel, ndo s6 de facto, consequéncia do grau de habilidade do desenhador, mas ainda na intengao deste: a que se chama «as belas infidis»; e na propria arte ninguém ignora a oposigao, tradicional nos tra- tados de estética mais elementares, entre a tendéncia realista ¢ a tendéncia idealista (28). Nao sera, portanto, inoportuno estabelecer, segundo os factos, que o desenho infantil ¢ essencial e¢ voluntariamente realista. Esta intengao realista podria ser estabelecida, antes de mais nada, pelo simples cxame dos desenhos na sua materialidade. Submetendo-os a uma andlise esclarecida pelas explicagécs verbais do desenhador, verifica-sc a necessidade de dar dos objectos uma Tepresentacao exacta, de reproduzir tudo o que impressionou a crianga ¢ que muitas vezes um adulto, perante 0 mesmo objecto, nao notou. Eis, a titulo de exemplo, um desenho que escolhi, porque seja mais realista que tantos outros, mas porque trata, a seu modo, um tema de artistas profissionais. f de facto um verdadeiro quadro que o autor, uma rapariguinha de 5 anos ¢ 9 meses, explicando-o depois de o ter executado, intitulon «A Manha» (fig. 79). Reproduz fielmente 0 que a crianga vé todas as manhas diante da sua porta. Ao longo da rua, com passeios ladeados de drvores € bicos de gas, esto desenhadas trés casas, Das janelas mais altas dessas trés casas, as criadas olham para a tua. A porta das casas est4 aberta (normalmente para fora) ¢ diante das duas da direita a criada limpa os tapetes batendo-os contra a Arvore. A criada da casa da esquerda cst4 na beira do passeio, onde vem buscar © leite; diante dela, na rua, vé-se’ 0 carro do leiteiro € no fundo do carro as vasilhas do leite. Em cima, & direita do desenho, a casa do Ieiteiro, a esquerda da 125 126 125) anos ¢ 9 meses (colecgtio Luquet). ealismo (p. qual est xepresentada um campo com duas vacas € uma galinha. ‘Desenhos mais variados teslemunham, tanto pelo mimero como pela fidelidade dos pormenores, uma ‘observacao sempre desperta, aplicada a uma reprodu- do quer minuciosa, quer, pelo menos, caracterfstica da realidade ¢ provando como sera injusto considerar_ os desenhos infantis como «réplicas monétonas de um tipo estereotipado». Por cxemplo, um cio tera uma coleira com a placa da licenca ¢ os guizos; a crianga procurara reproduzit © movimento dos cavalos a trote, dos nes ¢ dos patos nadando; as pessoas serio indivi- dualizadas por qualquer ’ cardcter_ distintivo — os éculos da avé, as faces rosadas da ciiada, particulari- dades dos trajes, por vezes um traco ‘fisionémico; assim, uma rapariguinba de 7 anos e 3 mess fiz nota, a propésito do retrato da professora, que Ihe tinha feito dentes, aporque ela mostra sempre os dentes». Os gestos, em particular os mais expressivos, dos bracos, sio "muitas vezes representados de um modo muito imperfeito, por vezes anatdmicamente impossivel; ‘0 quenos importa, porém, nao ¢ o resultado, mas a inten- fo expressamente enunciada pelo desenhador: seré um soldado fazendo a continéncia, uma crianga acha- tando o nariz, pessoas manifestando emogdo com os seus bracos afastados ou levantados para cima — por exemplo, num desenho em que uma rapariguinha e a mama olham para a chavena de leite que a primeira deixou cair (fig. 80). AC intencio realista da crianga, quando triunfa da ‘tendéncia geral para representar pormenores, de objectos segundo a importancia que lhes atribui (§ 46), leva-a a,reproduzir um pormenor que nao compreende, precisamente porque nao compreende. Por exemplo, no desenho de um comboio, uma pejuenita de 5 anos © 2 meses desenha na locomotiva, ao lado da cha- miné que fumega, a ciipula, de que ignora a finalidade, 127 mas faz notar que «as locomotivas tém isso», Eu exp! carci pela mesma razdo o facto de muitas criancas, nos bonecos em que descuidaram uma quantidade de por- menores, haverem indicado cuidadosamente 0 umbigo (fig. 142). NS Fig. 80—Simonne L.., francesa, 7 anos ¢ 4 meses (colec¢zo Luquet). Uma mama e a sua filha que deixou cair a chavena de leite. Realismo do gesto (p. 127). 53, — No insistiremos demasiado sobre 0 exame dos desenhos para poder estabelecer-Ihes a intencio realista. Para por em evidéncia a sua parecenga minu- ciosa, seria preciso acompanhar cada figura ‘de uma andlise pormenorizada que se arriscaria a ser fastidiosa; por outro lado, a inteng’o realista € muitas vezes mais ou menos disfarcada pela imperfeicao da cxecu- cdo. Para fazé-la sobressair, scré ao mesmo tempo mais cémodo ¢ mais seguro referir-se ndo 20 aspecto dos desenhos mas as apreciagées dadas a scu respeito pelo proprio autor. Testemunham, assim 0 vimos, a seriedade com que a crianga desenha (§ 3); mas, por outro lado, permitem observar qualidades que deve, a seu parecer, 128 possuir um desenho, quer efectivamente as possua ow Pho. Ora, as declaragées da crianca confirmam, sem duivida, que, para cla, o dever essencial de um desenho € ser parecido, quer pelo seu conjunto, quer pelo mi- mero € exactidao dos seus pormenores. Por exemplo, uum boneco de uma pequenita de uns 3 anos e 4 meses (fig. 22) da lugar a esta apreciacao: «fist4 bem: € exac- tamente um senor vestido» (quer dizer, em carne 0ss0). ‘Acrescenta ainda as orelhas ¢ acha que uma tangente ao contorno do rosto esti bem, mas que a outra secante a esse mesmo contorno niio esté hem. Depois de ter dese- nhado uma casa, aos 4 anos ¢ 5 meses, poe-na de parte € vai mostré-la triunfalmente & mie, repetindo muitas vezes: «Tem tudo completamente» (quer dizer, «0 meu desenho tem todos os elementos de uma verdadeira casa»). A propésito de um boneco desenhado na vés- pera, assinala que as méos esto muito bem feitas, com dedos. Aos 6 anos e 9 meses, depois de ter feito trés dese- nhos do natural de um vaso de flores, escreve sob a assinatura: «O terceiro € 0 mais boniton (quer dizer, © mais parecido), porque tem a pequena base qua- drada gue faltava aos dois precedentes (fig. 81-83). ‘A propésito de um cisne desenhado aos 8 anos © meio (fig. 71), faz notar que a cauda ¢ as duas asas levan- tadas estio bastante parccidas, assim como 0 mo' mento da pata que nada, mas que esta pata é muito comprida € © pescoco muito curto. Tais observacdes colhidas de uma mesma crianga demonstram que, do principio ao fim, a sua actividade grafica a sua concepgio do desenho sio dominadas pelo realismo. 54, — Em geral, a preocupagio realista da crianga contenta-se com pouco. A consciéncia que ela tem de ter procurado a semelhanca’ basta para Ihe fazer crer que a encontrou, ainda que um ebservador impar- cial seja de opiniao diferente. A sua indulgéncia Para com a sua produgao ¢ igualmente favorecida pela Intent 129 90 Deven a yemenna .& Fig. 81-83 — Simonse L’, francesa, 6 anos. e-9 meses (coleccao Luquet). Vasd de flores.'‘Trés ‘desenhos consecutivos. Modelo interno nos desenhos do natural (p. 83). “Realismo. (p. 129), Fig. 84~O- vaso desenhado: nas figuras precedentes segundo ‘uma fotografia, ido muito: desenvolvida para descobrir_nos seuss desenhos. semelhancas extremamente longinquas ‘¢ imperceptiveis aos outros. (falaremos.disto_a_propé- sitg: dos. desenhos nao premeditades, no § 59}; pode deontecer, contudo, estar descontente com o sett resut tado. Nesée caso, € @ uma observagio atenta da reilidade que ela recorre para reconhecer ¢ corrigir as suas imperfeicdes, Uma pequena belga de 7 anos gosta muito de cavalos ¢ desenha-os constantcmente, mas nunca estd satisfcita com as suas produgées: nao cessa de-observar totos os que tem ocasiio de encontrar, faendo. parar a criada para ollii-los, Uma pequena dibCaliférnia, dos 3 anos €10 meses aos 4 anos ¢ 1 més, edmparava os seus bonecos com o seu préprio corpo. Uniedia, depois de ter feito a um deles um braco que chegava até.ao chao, olha-o com reprovacio; depois, pondoxse de -pé, deixa cair os bracos ¢ olha-os para vomprovar.o seu comprimento. Diz ent&o: «Os bracos ‘nao. sio assim, ndo.vo até aos pés!», Uma pequena da Galiférnia. de 2 anos e 4 meses, depois de ter feito aymaos no descnho de uma rapariguinha, olha as suas; pareeo descontente com sua obra ¢ prepara-se para ‘omegar outro desenho. 55. — Seo desenho infantil € essencialmente realista, dexem encontrar-se nele apenas alguns sinais das duas tendéncias opostas ao realismo: o esquematismo © 0 idealismos. E, dc facto, 0 que acontece. No que diz Fespelto ao ‘esquematismo, entende-se como uma Simplificagio do objecto representado, que se taduz por uma reducio do miimero dos pormeneres reprodu- Zidos © uma execucio sumiria dos, pormenores conser- vado, FE, certo que numerosos’ desenhos infantis apresentam estes caracteres, mas € um erro concluir, parece-nos, como diversos autores, que se trata de um ¢squematismo voluntario, Convém notar que, ponmuito ‘uidado que a crianga ponha, em geral, na execu 131 dos seus desenhos (§ 3), pode aconteccr entio e por causas diversas, que 0s faa atabalhoadamente, ¢ muitas vezes a propria crianca os assinala como «feitos a pressa». Berke encontram desses desenhos descuidados entre os que a crianga faz para se divertir, serio natural mente muito mais numerosos do que os que Ihe manda- ram executar na aula, desenhos que documentam muitas vezes os estudos sobre o desenho infantil. Esses exerci- cios escolares, apesar do nome de «desenhos livres» com que os decoram, nao conseguem atrair a crianca como os desenhos absolutamente espontaneos, © ‘0 cuidado da execugao ressente-se forcosamente disso, Nos desenhos espontaneos e cuidados, 0 niimero dos que apresentam, pela materialidade do seu tragado, um cardcter esquematico vai diminuindo na medida em que a crianga cresce em idade, ¢ esse esquematismo, qualquer que seja a sua natureza intima, caracteriza, nao o desenko infantil no seu conjunto, mas inicamente um perfodo” determinado, Estudando mais adiante este periodo (Cap. VIII), procuraremos demonstrar jue 0 seu esquematismo aparente é, de facto, um rea- smo falhado, dificultado na sua’ manifestacio por diversos obstaculos de ordem quer motora quer propria~ mente psiquica, de que chega a triunfar progressiva- mente, porqué se atenuam neles préprios, Seja como for, em algum momento, mesmo neste periods, nao se encontra no desenho infantil o esque- matismo voluntirio, isto é, um propésito deliberado de dar uma representagao nao exacta mas simbdlica do objecto representado (29). Nao foi encontrado, por varios obscrvadores especialmente atentos, nenhum exem- plo. Fizeram notar alguns raros exemplares que 0 desenhador opunha a dgsenhos ordindrios; mas as expresses amb(guas cmpregadas pela crianga podiam querer designar quer os desenhos julgados mal conse- guidos, quer a atribuigdo imediata de uma interpre~ 132 tagdo a um tracado executado com uma intengao dife- rente, ou mesmo a simples faltas a¢identais. 56. — Como 0 esquematismo, o idcalismo nio repre- senta no desenho infantil senfio um papel muito insigni- ficante, A crianca chega a desenhar objectos imaginados ou mesmo imagindrios, por exemplo, uma paisagem equatorial que nunca viu, cenas de lendas ow de histé. rias que inventa; mas tais desenhos sao realistas no sentido de que querem representar os caracteres efec- tivamente possuidos por esses objectos ficticios. O idea- lismo consiste, pelo cqntrério, em dar voluntiriamente A representacdo caracteres estanhos ao objecto repre- sentado, com o fim de tornar, se se pode dizer, a natu- reza mais bela que a natureza, quer acrescentando ao desenho tragos supérfluos quer modificando a forma dos tracos correspondentes a elementos reais (fig. 29), ou ainda pélo emprego daquilo a que chamamos colo. rido_decorativo. Possu cousiderar este idealismo como inteiramente estranho ao desenho infantil, porque jé cncontrei mani- festagdes inequ(vocas nos desenhos da minha filha. Por exemplo, aos 6 anos, no desenho de um comboio, troca a tinica lanterna da frente da locomotiva por ias lanternas que, além disso, celoriu de vermelho, «porque assim fica mais bonito». Mas, como nao encon- trei nada de andlogo nos trabalhos de observadores mais atentos da actividade grafica da crianga, nao julgo ter 0 direito de generalizar as comprovacées feitas sobre este inico exemplo que poderia ser excepcional, De resto, mesmo nesta crianga, © idealismo nao se manifesta sendo num limitado mimero de desenhos e ao qual esta ligado por transigées continuas: os tracos considerados como simples embelezamentos do desenho derivam de oramentos reais do objecto representado, tanto pelo esquecimento da sua significagao primitiva (§ 25) como em virtude da confusio frequente na crianga 133 cutre a representagao de um objecto € 0 préprio objecto (§ 16). Em resumo, segundo o estado actual da docu- mentacio, que observacies mais profindas nao sab riam modificar, o idealisma ¢ o esquematismo nado ¥ sendo um pequene lugar no deseaho infantil, que, em definitivo, possui como caracteristica fundamental 0 realismo (30), : WA inns aise 1 1, ix wy 4 sey + Carico VI : obs bite f BHIMEIRA FASE: 0 REALISMO, FoRTUrtS obstlautctt 1 ha 1D sreysuieest peste “b 201 87.-—~O -desenho..infandl nao. mantém as mesmas caracterfsticas do principio ao: fim. Portante, convém fazer -sobressair. 0 catdcter.:distintive das! suas fagea snoessivas. Se, como dissemos, ‘0 desenho é do prin~ efpio, a0: fim essencialmente realista, cada tua dessas fasés: seré caracterizada por uma. eapécic detextitis niada de realismo. . et Um desenho.é um conjunto de tragos cuja execucio foi determinada pela intene:io de representar wm objec real, quera semelhanga procuradaseja ou no obtida 31). Esta concepgio do desenho nao & peculiar ao adulto; é também assim para a crianca, desde uma iddde muito. tenra,-em media por volta dos 3 anos, edesenvolve-se na medida em que 0 desenhador avanca emitlade, tornando-se mais capaz de. triunfar dos ebstdcules. que: se opdem-2 manifestagia da sua tens déncia, reslista, Contuda, se esta coucepgio do.desenho, éeespantanedino sentido.de-que a.adguire porsi propria: ado €uprimitiva mas sim. precedida por uma outra.: Vamos vexjno que, consisté, como a-ctianiga chess até ela, porqua'se,couserva nela-duranje, uni certo tempos! c ainda que processo emprega nia doneepgiio do desenko, Propriamente dito, . Ba ‘A principio, para a crianga, 0 desenho nao € um tragado executado para fazer uma imagem, mas um. tracado executado simplesmente para fazer linhas. Fazer um tracado € executar movimentos da mao que, estando munida de acessdrios variados, deixa num suporte, tal como uma folha de papel, tracos visiveis que nao existiam antes. A crianga pode chegar por si propria & ideia do tragado e A intencao de o fazer. Os movimentos da mao explicam como a crianca 0s executa sem que correspondam a uma utilidade. Sao, antes de mais nada, o simples efeito do consumo espontaneo de uma superabundancia de energia neuro- muscular, ¢ 0 exercicio dessa actividade ¢ acompanhado de um prazer que incita a crianca a recomegar. Por outro lado, a crianga toca em tudo. Entre os objectos que manuseia ha 0s que, passados sem intengao sobre uma superficie clara, deixam li tacos. Mesmo. sem segurar objectos estranhos, os dedos pouco limpos fazem © mesmo. Esses tracos, uma vez produzidos, so vistos pela crianga que reconhece ser o seu autor, Esia obra involuntaria poderia parecer a um adulto tasignifi- cante e sem qualquer interesse; mas para a crianga é um produto da sua actividade, uma manifestacio da sua personalidade, uma criacio. A consciéncia que tem, entio, de possuir um poder criador valoriza-a na sua propria estima e é a otigem de um prazer que procura Tenovar recomegando os seus desenhos, que, primeiro esporddicos, se tornam depois intencionais. Podem obser- var-se nas paredes das ruas tracos de carvao, giz, lama, feitos com um prego ou um seixo que so conlirmacées mecinicas da presenca do seu autor, espécie de assina- turas instintivas. Um pequeno da° California, nos liltimos meses dos seus 3 anos, quando The deram um lapis e um papel, servia-se deles, por vezes, para tragar linhas, mas preferia geralmente fazer buracos no papel com a ponta do lépis. 136 sy * * 58, — Uma, crianca totalmente isolada_poderia chegar, assim, & intencdo de tracar. Mas, de facto, na maior parte dos casos é induzida pela imitacio dos adultos, Vé 0s pais, ou outras pessoas importantes, dese- nhar ou escrever, ou, de qualquer outro modo, produzir uma actividade manual que deixa tragos, ¢, observando esta actividade nos outros, procura imiti-la. Seria supérfluo insistir aqui sobre o lugar que tem a imitacao na vida da crianga; mas porque imila ela? O «instinto da imitagdo» é um nome, nao uma explicacao. Veri- ficamos primeiro que a crianga imita as actividades do adulto de que ignora a finalidade ¢ que para ela propria no tém nenhuma utilidade, Imita, naa para fazer aquilo que faz outra pessoa, mas para fazer como essa pessoa; a imitacao ndo ¢ um meio, mas um fim, Porqué? Esquece-se frequentemente que nao basta querer imitar para consegui-lo. A observacao de um movimento qual- quer, executado por outrem, nao dé a quem o vé alguma indicacio sobre 0 modo de 0 executar, ¢ s6 em casos excepcionais isso pode acontecer sem dificuldade para a crianca. Cada uma das tentativas falhadas é uma prova de inferioridade; pelo contrario, quando consegue vencer, sente-se igual aquele que imitou, A imitagao na crianga €, assim o julgo, uma espécie de desporto; imita, sobretudo, para dar ocasiaio aos outros e até a si propria de ver que é também «capa» como os outros. Em resumo, a crianca comeca por fazer tracos porque, ao executé-los, tem a certeza encantadora de possuir um poder criador que a iguala as pessoas impor- tantes, 59. — Mas agora pic-se um novo problema, No momento da sua vida em que comeca a sentir prazer em tragar linhas que nao sto para ela sendo tracos des- providos de significado, a crianga nao sé viu mas observou imagens em livros, jornais ou catélogos, © reconhece © que representam pelo menos as mais 137 simples dessas imagens; repara que hé tracadas’que parecem qualquer coisa. Polo menios algumas criancas viram desenhat diante delas ow mesino para elasy alguns desenhos foram executados'a pedido da-crianca ¢ ela vin que o tracado de um boneco;-por exemplo, feito. a seu_pedido, representava bem um honeco. Por conseguinie, -pelo-menos esas criancas verificaram que 0 adulto posmi'o poder de executar nio"sd uns tragos-quaisquer mas também ‘desenhos propriamente ditos, ao que, . para \resumir, chamarci_ faculdade grafica, Desde entao, a tendéncia, para a imitacio deveria chiusiasmar a crianga, nao sé a riscar tracos, como vimos que faz, mas a desenhar. De facto, mesmo a crianga que viu outras pessoas fazer desenhos cone tinua durante mais ou menos tempo a tracar simples linhas sem intencdo figurada. + [sto € assim porque, neste pericde, a crianca, observando nos outros 'a existéncia da faculdade grifica, mao julga possuila também. O poder de produzir, deslocando um lpis sobre um papel, imagem de um ohjecto, quer dizer, a partir da_con: cepcio infantil, um objecto mais ou’ menos real (§ 16); 6 pensando bem, qualquer coisa de miracilosot assim; € muito natural que a crianca comece: por jal: gar-se incapacitada. para tal; isso é do dominio dos privilégios das. pessoas importantes. -B possivel “qué ela nao sonhe sequer cm imitar nisso o adultd, porque esta convencida de que a sua tentativa resultaria’um fracasso; de facto, nao se encontrott»nenhum exempld de crianga que procurasse por ela prdpria representar qualquer coisa com os tragos que faz nesta época. De resto, bs que: ehegam w artisear’ essa tentativa a convite ¢ encorajamento dos que a. rodeiam, sio obri- gados a reconhecer a.sua impoténcia depois da expe rigncia, Um psicdlogo -americano pede ‘insistentes mente a filha, durante os’seis wiltimos meses dos dois anos dela ¢ nos trés primeiros meses dos trés anos, que Ra the ofaga desenhos propriamente ditos:, «Depois de Hiversas tentativas, 0 Sct. rosto exprimia desconten« tamento.como o da crianga que faz ‘esforgos' wos para falar. Apés fazer um desenho, a minha filha escondia mrcabeca e depois estendia-me o lapis, didendo: «Paps, faz um homem.. Isto parecia indicar que-ela esperava mais da minha habilidade que da sua». mA crianga, em virtude da sua imaginac&o ao mesmo Tanpo:rica e-desordenada, tem uma aptidao especial para,,hotar .semelhancas, por : vezes extraordinaria- Mente longiaquas ¢ imperceptiveis a todos menos: a tla, que Ihe «scaparao instantes depois, Se cla nde as apercebe nos seus desenhos, como as apercebe nto $6 nbs desenhos dos-outros ou em imagens, mas mesmo son acidentes naturais, € porque esti persuadida. de que é incapaz de as encontrar af; portanto, elas nae podem existir. Tambeém, durante um tempo mais ‘ou menos longo,limita-se # fazer tracos sem qualquer objective. A prova esti em que, depois de os ter exe- cutado, nao hes da interpretagtv, enyuanto a dé mais tarde a tracados absolutamente semelhantes na sua materialidade, Nao se chega mesmo a conseguir que. dé uma interpretagio aos seus desenhos, pergun~ tando-Ihe o..que fepresentam, «Nada!», responde uma pequena da Califérnia de 3 anos. Um pequene francés da mesma idade da esta resposta equivalente, depois de varias perguntas: «sto representa desenhos». nt 2 ©),60. — Mas chega q dia em que a, crianga nota uma.certa analogia entre alguns dos: seus’ tracados:¢ tum objecto..réal; considera-o entie comb. uma irepre= sentacdo do ebjecto, ¢ enuncia a-interpretagaa que The dé: raip para uma, pequena da California de 2 anos 4 meses, quarda-chuva para uma pequena holan- dosa. da-mesina idade, passaro para uma pequena italiana de:2 anos ¢ meio {fig..70), toinho de vento Para, um .pequeno. francés de 3 anos e 3 meses, «ut 180,

You might also like