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O OUTRO EM LACAN: CONSEQUENCIAS CLINICAS Jussara Falek Brauer Instituto de Psicologia - USP Neste artigo procuramos explicitar, considerando a élgebra lacania- ‘na, as articulagoes estruturais entre os seguintes termos: Outro, si- gnificante, sujeito do inconsciente, objeto pulsional, Deste trabalho de leitura, procuramos extrair consequéncias para a clinica com ‘eriancas consideradas dificeis. Descritores: Psicandlise. Lacan. Jacques, 1901-1981. Inconsciente (Fator de personalidade). Psicose infantil. presente texto trata do Outro, tal como 0 concebe Lacan, autor [que inaugurou o trabalho de elucidagao epistemolégica da obra de Freud, conforme Althusser (1979) no texto Freud e Lacan. Para desenvolver este trabalho Lacan pensou um modelo estrutural que desse conta do trabalho analitico de pesquisa do inconsciente. O Outro & concebido por Lacan como um elemento desta estru- tura. Para falar do Outro em Lacan ndo ha outra saida possivel sendo enveredar pela teia que constitui a estrutura que ele concebeu O trajeto ¢ arido, como o leitor ira perceber, se for paciente. Pessoalmente tenho preferido, em minha transmissdo, apresentar essa rede de conceitos a posteriori. Ou seja, introduzo toda essa teoria apés a clinica, como descrigao possivel do trabalho que se veio de acompanhar. O proprio Lacan, no texto A significagdo do falo afirma: “B somente sobre a base de fatos clinicos que a discussio pode ser fecunda (....)” (Lacan, 1978c, p.262). A psicandlise é uma teoria que se Psicologia USP, S.Paulo, 5(1/2) p.309 - 333, 1994 309 Jussara Falek Brauer constitui a partir da pritica clinica. Para interrogé-la é necessario partir também da pratica. Neste artigo, no entanto, irei deter-me inicialmente na parte con- ceitual. Ela constitui a ferramenta que manejamos ao conduzir uma anilise. Nao tenho evidentemente a pretensGo de esgotar aqui o assunto, Limito-me a introduzi-lo, esbogando seus contornos e demarcando 0s elementos de que necessito para falar do assunto a que me propus neste artigo, Vou ficar inicialmente colada a alguns textos de Lacan que selecionei, em pontos onde ele trabalha este elemento da estrutura inconsciente, Na segunda parte do texto relatarei as conseqiléncias que esta leitura estrutural da psicandlise produziu em meu trabalho clinico com criangas muito comprometidas que freqiientam a clinica psicolégica do IP-USP. “Eu é um outro” (Rimbaud) A palavra Pode-se falar da psicandlise de varias formas. Lacan (1979a) escreve no Seminério 1 que aquilo a que assistimos no trabalho analitico € a emergéncia de uma palavra verdadeira, esquecimento seria, neste sentido, uma manifestago de degra- dagdo da palavra em sua relagdo com o outro. E da esséncia da palavra o agarrar-se ao outro. A palavra é me- diagdo entre 0 sujeito e 0 outro, ¢ ela implica na realizagao do outro dentro desta mesma mediacao. A palavra pode ter ainda uma outra face, que é a de revelago. A palavra do inconsciente é palavra de revelagio. E palavra que nfo se diz diretamente, jé que o inconsciente s6 se expressa por deformagao, distorgao, transposigao. 310 Outro em Lacan: Conseqiiéncias Clinicas A revelagio é, para Lacan, 0 mével tltimo daquilo que procura- mos na experiéncia analitica. A resistencia seria, sob esta dtica, aquilo que faz com que a pala- vra de revelagdo ndo seja dita. Uma consequéncia da resisténcia é a transferéncia. Entdo, se a palavra no funciona como revelagio ela funciona como mediagao. O analisante se dirige ento ao analista to- mando-o como pessoa, aqui e agora. A questio ¢ ento saber em que nivel a palavra se agarra ao outro, tem que nivel 0 outro é realizado, como ele € realizado, em que fungo, em que circulo da subjetividade de quem fala, a que distancia se encontra, ‘Ao longo da experiéncia analitica, essa distancia varia sem cessar. Seria entio inatil querer consideré-la como correlativa a um certo estado do sujeito. O analista pode ser tomado a um dado momento como teste- ‘munha, mais adiante poderd ser alvo de sedugdo, para que mais tarde se fale a ele no sentido mais propriamente simbélico, ‘Lacan formula, dentro deste sentido, a oposig&o palavra vazia — palavra plena, onde a palavra vazia faz com que 0 sujeito se perca no aqui e agora com seu analista, enquanto palavra de resisténcia, e a pa- lavra plena realiza a verdade do sujeito, Resisténcia e transferéncia no so portanto sequer concebiveis, sem uma referéncia ao outro. nivel no qual o outro é vivido situa exatamente o nivel no qual © eu existe para o sujeito. O eu € referente ao outro, ele se constitui em relagdo ao outro, é seu correlato, Vamos arrolando desta forma elementos da estrutura que Lacan propde para a anilise: 0 sujeito, 0 eu, 0 outro. A imagem Se no Seminario 1 Lacan (1979a) desenvolve sua argumentagao na linha de marcar a especificidade da palavra que interessa ao trabalho analitico, apontando a relagio a0 outro como referéncia importante 3 Jussara Falek Brauer ara a constituigo do sujeito, no Seminario 2 (Lacan, 1985) introduz a distingZo entre dois “outros’. Aparece aqui a distingdo entre 0 outro com A, que é 0 Outro de que se trata na fungo da fala, e outro com 4, que ¢ 0 eu, ou mais exatamente a imagem do eu O eu € uma construgéo imaginaria, Lacan (19666) desenvolveu no texto Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, datado de 1949, esta idéia de que o eu ¢ imaginério, de que se constitui a partir do espetho. O espelho foi neste texto a metafora usada para marcar este ponto, No Seminario 2 (relativo as reunides dos anos de 1954 — 1955) ele vai estender-se ainda mais sobre o assunto. Vou tentar resumir aqui algumas de suas idéias. O sujeito analitico no é 0 sujeito em sua totalidade, é 0 sujeito em sua abertura, Lacan vai introcuzindo ai, na estrutura do inconsciente, mais um elemento que sera marcarte na técnica analitica pos — lacaniana, Este elemento € a temporalidade do inconsciente. Temporalidade esta ligada & contraposigo abertura — fechamento, Se o inicio da andlise se da em um tempo de fechamento (affinise) de que falaremos mais adiante, a emer- sgéncia do sujeito vai estar ligada a um tempo de abertura. Falamos de tempos, ¢ se estamos falando de uma estrutura esta- mos falando também de lugares. O sujeito (S), 0 eu (a), 0 outro (a”), 0 Outro (A) sfo lugares. (E9) $ «: Ainda, se o sujeito fala, como marcévamos acima desenvolvendo algumas da idéias do Seminario 1, no qual fica desenvolvida a ja tio conhecida idéia do autor relativa & palavra, ao inconsciente estruturado 312 O Outro em Lacan: Conseqaténcias Clinicas como linguagem, se 0 sujeito fala ele também se vé. Isto é algo que Lacan vai desenvolver no Seminario 2. O sujeito se vé, naio em S, mas em a, no outro, num outro lugar. E por isso que ele tem um eu, que ¢ imaginario, constituido imagem € semelhanga do outro. O eu € uma forma fundamental para a constituicfo dos objetos. Em particular, € sob a forma do outro especular que ele vé aquele que, por razOes que sto estruturais como estamos acompanhando, Lacan chama de seu semelhante. Esta forma do outro tem a mais estreita rela- do com o seu eu, ela pode ser superposta a ele, e nds a escrevemos a’. a’ é um objeto. Existem pois 0 plano do espelho ¢ 0 mundo simétrico dos iguais € dos outros homogéneos ao eu. Seus objetos de identificagai. E necessério distinguir deste, um outro plano que vamos chamar de muro da linguagem, ‘A linguagem, o simbélico, € anterior ao imaginario e ao real. E em relagdo a ela que o imaginirio e o simbélico se caracterizam en- quanto tal, E assim, a partir da ordem definida pelo muro da lingua- ‘gem, que 0 imaginario toma sua falsa realidade. Esta falsa realidade é contudo uma realidade verificada. Verifica- da “objetivamente” eu, 0 outro, o semelhante, todos estes imaginérios s4o, neste contexto tebrico, objetos. Porém sio objetos devido ao fato de serem assim denominados num sistema organizado que é o da linguagem. Quando o sujeito fala com seus semelhantes, fala na linguagem comum, que considera os eus imaginarios como coisas nao unicamente exteriores a ele, mas reais também, Note-se que se fala aqui em eus. Por no poder saber 0 que se acha no campo em que o didlogo con- creto se dé, ele lida com um certo nimero de personagens, a’, a”. Na medida em que 0 sujeito os pSe em relaggo com sua propria imagem, aqueles com quem fala so também aqueles com quem se identifica Ele se endereca de fato aos A/, A2, que é aquilo que ele nao co- nhece, verdadeiros Outros, verdadeiros sujeitos, que estio do outro 313 Jussara Falek Brauer lado do muro da linguagem, lé onde em principio o sujeito jamais al- canga. Eles so fundamentalmente aqueles que sfo visados cada vez que 0 sujeito pronuncia uma fala plena, mas o sujeito sempre alcanca a’, a”, por reflexio, O sujeito esta separado dos Outros, os verdadeiros, pelo muro da linguagem. Se a fala se fundamenta na existéncia do Outro, o verdadeiro, a linguagem ¢ feita para remeter-nos de volta a0 outro objetivado, ao ‘outro com o qual podemos fazer tudo o que quisermos, inclusive pen- sar que ele é um objeto. Quando fazemos uso da linguagem, nossa relago com 0 outro funciona o tempo todo nesta ambigiiidade. Em outros termos, a lin- guagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendé-lo. E é justamente disto que se trata na experiéncia analitica Esta concepgao de Lacan é, como se vé, uma espécie de mito da caverna transposto para o plano da psicanilise, Serve a este contexto para mostrar que o sujeito se sabe a partir do exterior, que o sujeito se trata como se ele fosse um outro, © que cria um empecilho para que os verdadeiros outros, os Outros, sejam acessiveis ao sujeito. E em ultima anilise da subjetividade que se trata aqui. O sujeito nao sabe 0 que diz porque no sabe o que é. Mas ele se v6, Ele se vé do outro lado, de maneira imperfeita, devido ao caréter fundamentalmente inacabado da imagem especular, que é, ndo apenas imagindria, mas também ilusoria, A letra na imagem No seminario 11 Lacan (19790) desenvolve o processo através, do qual o sujeito surge do Outro. Ele afirma: 34 0 Outro em Lacan: Consegiténcias Clinicas Outro é 0 lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, ¢ 0 campo desse vivo ‘onde o sujeito tem de aparecer (p.193-4). Tudo surge da estrutura significante. Essa estrutura se funda no que Lacan articula aqui como fungao topoldgica da borda. A relagao do sujeito a0 Outro se engendra por inteiro num pro- cesso de hidncia, ele diz, que quer dizer literalmente abertura de uma boca, abertura de uma fenda. Os processos que ocorrem entre 0 sujeito € 0 Outro se articulam de forma circular: 0 sujeito & chamado ao Outro! , 0 sujeito vé a si ‘mesmo aparecer no campo do Outro, © Outro lé reforna. Esse proces- so € circular, mas, por sua natureza, nao é reciproco, Por ser circular, dissimétrico. O significante (0 sujeito ¢ chamado ao Outro) , produzindo-se no campo do Outro, faz surgir o sujeito de sua significagao. Mas ao funcionar como significante 0 Outro reduz o sujeito a ser apenas um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que 0 chama a funcionar como sujeito. Ai esté a pulsagao temporal que é caracteristica do ponto de par- tida do inconsciente como tal — o fechamento — a affinise, o desapa- recimento, ou 0 fading do sujeito. No momento do nascimento do sujeito no campo do Outro, sua caracteristica & de estar, sob o significante que desenvolve suas redes, suas cadeias e sua historia, num lugar indeterminado. A interpretagao deve limitar-se por esta razo a apenas designar uma tinica série de significantes, pois o sujeito pode ocupar ai diversos. lugares, conforme se ponha sob um ou outro desses significantes. 1 Optarei por utilizar no texto esta forma de expresso que é sem divida um galicismo, Escolho, como aparece neste trecho, “em relagao a0 outro”, 20 inves da forma usual, “na relago com 0 outro”, pois aquela parece-me mais adequa- da para enfatizar o fato de que 0 outro & somado neste texto como elemento de estrutura ¢ dio enquanto outra pessoa. Sigo nisto a opgio que fizeram os tradu- tores dos trés semindrios citados. 318 Jussara Falek Brauer Fica fundamentada resta légica a pontuagdo como técnica de andlise. Se estamos trabalhando em um tempo de fechamento, com um sujeito petrificado, que esta em um lugar indeterminado, no ha o que interpretar. Trata-se da primazia do significante aqui. A significagao € posterior. Pontuar a cadeia de significantes ¢ demarcar os lugares pos- siveis para o sujeito, para que ele possa ai tomar posigo, ou seja, sair desse estado de imobilidade, circular pelos significantes que 0 marca~ ram, fazer sua escolha a partir desta oferta significante, Lacan introduz duas operagdes que articulam a relaco do sujeito com 0 Outro. Para demonstrar essas operagdes langa mao da linguagem utilizada na teoria dos conjuntos e na lgica simbélica. Vai falar entio em vel. A primeira operagao ele dé 0 nome de alienagio. Q vel da aliena- ‘fo € 0 ou simbolizado na logica por um V. A alienagao consiste nesse véu2 que condena o sujeito a s6 apa- Tecer no seu inicio no campo do outro (0 sujeito se vé), de um lado como sentido, produzido pelo significante falo. Do outro lado como 2 No Semindrio 11 Lacan vai usar 0 termo vel, que ele extrai da légica matemé- tica, para constituir 0 algoritmo do fantasma, Este termo & um deslizamento si- gnificante dentro da obra deste autor. Optamos por usar também no texto a palavra véu, como aparece no texto D'une question préliminaire 4 tout traite- ‘ment possible de 1a psychore, ou mesmo na Significagao do falo numa tentati- ‘va de clarear a idéia, remetendo 0 leitor ao falo, termo a que se refere metafori- ‘camente ao falar em vel, som entrar no mérito da vertente logico-matemtica ‘que ela implica. 316 O Outro em Lacan: Conseqiléncias Clinicas affinise. Ou seja, do lado do Outro, no desenho, o sujeito aparece como sentido, como significago. Do lado do ser ele aparece como afinise, no esté, esta petrificado. Entdo, ou ele se aliena na significagao que é dada pelo Outro, se identifica com esta imagem, ou ele no €, Ambos, o ser € 0 Outro, estdo ligados por uma regio de ndo-senso, O ser e © Outro esto reunidos (a operagao légica & a reunio) . A regio de nfo-senso & 0 que pertence aos dois conjuntos. ‘Ai esté um vel que vale a pena ilustrar, para diferencia-lo dos outros usos do vel. Ha dois deles. Ha 0 vel exaustivo — eu vou ow para la ou para cé. Tenho que escolher. Ha também outra maneira de empregar o vel — vou para um lado ou para outro, tanto faz, da na mesma. Sao dois vel que no so a mesma coisa, Uma coisa ¢ adicionar colegdes e outra coisa é reuni-las. Se neste circulo, 0 da esquerda, ha cinco objetos, e se no outro, ha também cin- co, adiciond-los faz dez. Mas ha os que podem pertencer aos dois, Se ha dois que pertencem a ambos os circulos, reuni-los consistiré no caso em ndo reduplicar seu nimero, s6 havera na reunigo oito objetos. vel da alienaco se define por uma escolha cujas propriedades dependem do seguinte: que ha, na reunido, um elemento que comporta, que qualquer que seja a escolha que se opere, ha por conseqiéncia um nem um, nem outro. A escolha ai é apenas a de saber se se pretende guardar uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso. O que significa que algo se perde, algo cai Iustremos isto pelo ser do sujeito, aquele que esté ali sob o sen- tido. Escolhemos o ser, 0 sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no 1nio-senso. Escolhemos 0 sentido e o sentido s6 subsiste decepado des- sa parte de nio-senso que é, falando propriamente, o que constitui, na realizagao do sujeito, o inconsciente. Em outros termos, é da natureza desse sentido, tal como ele vem a emergir no campo do Outro, ser eclipsado, numa grande parte de seu campo, pelo desaparecimento do ser induzido pela fung&io mesma do significante. ‘A alienago tem por consequéncia que a interpretagdo no con- segue liberar as significagdes. A interpretagio no visa tanto o sentido 317 dussara Falek Brauer quanto reduzir os significantes a seu nfio-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito. Esse ou alienante néo é de modo algum uma invengio arbitraria. Ele est na linguagem. Este ou existe. E 0 que afirma Lacan, e a clinica nos confirma. Ele contém em seu interior aquilo que Lacan chama de ‘um fator letal No processo de anilise esse momento é um momento de terror. A segunda operagio termina a circularidade da relagao do sujeito a0 Outro, mas ai se demonstra uma torgo essencial Enquanto que primeiro tempo esta fundado na subestrutura da reunifo, o segundo esta fundado na subestrutura que chamamos inter- segdo ou produto. E simbolizado por um “ (e). A intersegio de dois conjuntos é constituida pelos elementos que pertencem aos dois conjuntos. E aqui que se vai produzir a operagdo segunda, a que o sujeito & conduzido por essa dialética. Esta operagao segunda é to essencial de ser definida quanto a primeira, porque ¢ ai que vamos ver despontar o campo da transferéncia. Lacan a denomi- nou separacdo. A intersegio surge do recobrimento de duas faltas. Uma falta & encontrada pelo sujeito no Outro, na intimago mesma ‘que lhe faz © Outro por seu discurso. Nos intervalos do discurso do Ou- tro, surge na experiéncia da crianga o seguinte: ele me diz isso, mas 0 que é que ele quer? Nesse intervalo que fica entre os significantes, que faz parte da estrutura mesma do significante, reside a metonimia, E la que desliza o que chamamos desejo. O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que no cola, nas faltas do discurso do Outro, e todos os por ques da crianga falam menos de uma avidez da razio das coisas, do que consti- tuem uma colocagio em xeque do adulto, perguntam pelo enigma do desejo do adulto. Para responder a essa pergunta 0 sujeito traz como resposta a falta antecedente ao seu proprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no Outro. O primeiro objeto que ele 318 O Outro em Lacan: Conseqiéncias Clinicas propde a esse desejo parental, cujo objeto & desconhecido, é sua pré- pria perda, A fantasia de sua morte, de seu desaparecimento, é 0 pri- meiro objeto que o sujeito tem a por em jogo nessa dialética, ¢ ele poe, com efeito. Uma falta recobre a outra. Dai a dialética dos objetos do desejo, no que ela faz a jungo do desejo do sujeito com o desejo do Outro (0-Outro 14 retorna). Essa dialética passa pelo seguinte: que ai ele ni ¢ respondido diretamente, E uma falta engendrada pelo tempo precedente que serve para responder & falta suscitada pelo tempo seguinte. Dois elementos devem ser marcados nessa operagio logica fun- damental: a ndo-reciprocidade e a torgo no retorno. Aquilo que se desprende e que cai nesta operago é 0 objeto a, a que Lacan vai chamar objeto causa de desejo, o objeto pulsional, Voltemos agora a um pardgrafo que extrai dos Escritos, e que con- densa tudo aquilo que foi dito até aqui Lacan (1978c) no texto A significagdo do falo escreve: Isso (¢a) fala no Outro, dizemos, designando por Outro o proprio lugar ‘que evoca 0 recurso a fala em toda relagdo onde ele interwém. Se iso (ea) fala no Outro, que 0 sujeito 0 escute ou ndo com seus ouvidos, é que 14 {que o sujeito, por uma anterioridade logica a todo despertar do significa do, encontra seu lugar significante. A descoberta do que ele articula nesse lugar, isto é, no Inconsciente, permite-nos aprender a custa de qual divi- so (Spaltung) cle assim se consitui (p 266). Para introduzir este termo tal como Lacan o desenvolve ha que articular alguns operadores. — 0 isso, indeterminado, onde esta o objeto a, de onde vem o mandato e a demanda, que operam a divisio (Spaltung) que constitui 0 sujeito. — O lugar onde fala 0 isso — 0 Outro. O lugar do sujeito. — 0 significante. © que a psicandlise propde nao ¢ algo que possa ser objeto de ‘um conhecimento, mas que remete ao ser, ente cujo ser é ser segundo 319 Jussara Falek Brauer © significante, do qual se dé testemunho a partir de caprichos, aberra- Ges e fobias, todos ligados ao objeto pulsional Nesta perspectiva 0 alvo do trabalho analitico é o inconsciente concebido como sendo a subjetividade, aquilo que constitui o objeto. Cabe a psicandlise lidar com as manifestagdes aberrantes, equi- vocos produzidos pela expresso metaférica do desejo. Partindo do Outro, dada a excentricidade do inconsciente em re- ago a consciéncia, a intervengao analitica nao pode ser interpolagio de sentido, ela ¢ jogo sobre 0 equivoco significante. Coube a Freud incluir no campo da ciéncia a pesquisa do irracional. Claro esta que ndo se trata aqui da ciéncia concebida como ci cia positiva. A psicandlise descoberta por Freud subverte 0 método ientifico para constituir-se como método de pesquisa do subjetivo. Posto desta forma, concebe-se que a pesquisa deste inconsciente no trabalho de analise supde a presenga de alguém que possa ocupar este lugar de Outro para que na transferéncia possa emergir o inconsciente. A alteridade condiciona a possiblidade do trabalho do inconsciente. Decorre também que a subjetividade assim pesquisada ja aparece, cla mesma, como um produto da propria pesquisa, uma vez que ela & ‘uma conseqiiéncia deste trabalho. Conseqiténcias Vou relatar, a titulo de conseqiéncias, um trabalho que venho desenvolvendo na Clinica Psicolégica do IP-USP. Este trabalho s6 pode set concebido por mim como conseqiéncia clinica destas concepgdes que acabo de expor. Vou fazer inicialmente algumas articulagdes tebricas que permi- tam contextualizar minhas hipdteses para este trabalho que desenvolvi com criangas que aprésentavam problemas graves e que procuravam atendimento em nossa clinica. Inicio citando Lacan: 320 Outro em Lacan: Consegiiéncias Clinicas Nao devemos retroceder diante da Psicose (Lacan, 1977) Esta frase assim tirada do contexto permite varias leituras. Vou me servir deste artificio, de tirar a frase de seu contexto, para desen- volver meu raciocinio. Podemos ler a frase no sentido de lembrar a historia disto que constitui a loucura, de como diante dela as pessoas retrocederam, do tratamento de exclusio que 0 louco sofreu ao longo da historia, e afir- mar entio que no devemos retroceder diante da psicose. Esta é uma postura que algumas correntes tém tomado jé ha al- gum tempo, mas se paramos ai estamos apenas no comego e nos res- tam ainda muitas questdes, ja que trabalhar clinicamente com o pacien- te psicdtico & muito dificil, Nio seria supérfluo lembrarmos que o proprio Freud retrocedeu diante da psicose, uma vez que caracterizou a psicanilise como forma de tratamento da neurose. ‘Parece-me fundamental discutirmos neste ponto a questio do diagndsti- co de psicose. Herdamos uma visio médica da loucura, A medicina é um saber te- 6rico que se consttui para procurar solugdes em relagao a tudo aquilo que cause a morte do corpo, as doengas, visando sua cura. E desta forma, en- quanto doenga, que a loucura é tomada pela medicina, Enquanto doenga ela é categorizada, so arrolados os sintomas e ela é trabalhada no sentido da eliminago destes sintomas. proprio Freud, médico por formagio, toma a Psicopatologia como ponto de partida em seu trabalho. Acaba no entanto por criar a psica- nélise, concluindo a uma dada altura que esta disciplina, por lidar com palavras, pede muito mais uma formagao em letras do que uma forma- do médica, A psicandlise rompe com a ordem médica para lidar com forma- ‘ges que tem uma estrutura de palavra, uma estrutura de poesia, Di- chtung em alemao, uma estrutura de condensagao, Verdichtung como Freud a batizou, 321 Jussara Falek Brauer E preciso que nds, enquanto psicanalistas, fagamos nés também esta ruptura radical com a ordem médica e deixemos de nos preocupar, diante da loucura, com o seu diagndstico, de concebé-la como algo que se deve curar. Eu me explico. Lacan (1978c) na abertura do texto A significagéio do falo, disse que (.) 0 complexo de castrago inconsciente tem fungio de niicleo na estru- turacio dindmica dos sintomas no sentido analitico do termo, isto 6, do que é anaisivel nas neuroses, perversdese psicoses (p.262). sintoma é definido como formagao inconsciente, caracteristica da estrutura neurética, Pode no entanto aparecer também nas outras duas estruturas clini- cas, a perversio e a psicose, possibilitando, na medida do seu aparecimen- 10, 0 trabalho de anilise. Postos diante da questo que consiste em saber se como psicanalis- tas devemos ou nfo retroceder diante da psicose, entende-se agora, a luz desta segunda fiase de Lacan, que no devemos retroceder diante dela na medida em que estejam presentes sintomas com estrutura de metéfora, sintomas que sejam da ordem das palavras e satisfazendo esta condigao sejam sintomas passiveis do trabalho de analise. Lacan no diz. nada de novo, mas o diz de uma forma que abre uma nova perspectiva para o trabalho do analista. A partir deste tipo de formulagao ja ndo se trata mais de diagnosticar ‘© quadro psicopatolégico, mas de diferenciar a estrutura do sintoma, Ao lado destas consideragdes nunca € supérfluo lembrar que nem tudo aquilo que tem uma aparéncia de loucura corresponde @ uma es- trutura psicética, tal como a psicanalise concebe esta estrutura. Falar em estrutura é muito diferente de falar em comportamento, A psiquiatria € neste sentido fenomenolégica, ela parte da descri- ‘¢40 do fenémeno. A psicanilise, em Lacan é estrutural 322 0 Outro em Lacan: Consegiténcias Clinicas Ja posso dizer enti que meu trabalho de pesquisa no visa ex- clusivamente criangas psicdticas. Tenho trabalhado, na linha do que expus acima, com criangas que apresentam problemas graves, em um recorte que irei precisando a seguir. Novamente: Nao devemos retroceder diante da Psicose. Vou torcé-la em: Nao é possivel retroceder diante da Psicose. Vou colocé-la ao lado desta outra citagiio de Lacan (1978a) reti- rada do texto A instdncia da letra no Inconsciente ou a razdo desde Freud. Diz Lacan: ‘Vé-se que a metéfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz no sem sentido, isto & nessa passagem da qual Freud descobriu ‘que, transposta ao contrério, cla dé lugar a essa palavra que em francés é& Je mot por exceléncia, a palavra que ndo tem ai outro patrocinio sendio 0 significante do chiste, em que se vé que é o seu proprio destino que 0 hhomem desafia pela derristo do significante (p.239). Aqui ja se pode notar que esta historia de retroceder e de trans- por deve ser lida, no contexto da teorizagéo de Lacan, de uma forma mais especifica. Diante do significante deve-se retroveder, recomenda Lacan nesta frase, transpor a0 contririo, diz ele, ¢ eu leio, voltar para a historia. Eu diria entio, a partir desta leitura, que diante do significante devemos retro- ceder, transpor esta passagem a0 contrario, reconstruindo pela associagao livre a histéria do paciente, & qual o significante envia, Que querera dizer ele ento com este no devemos retroceder? Poderia dizer que 0 psicdtico nao esta na diacronia, ele no tem passado, e também ndo tem futuro, © importante a marcar ¢ justamen- te a sincronia, a relagdo particular com a dimensto temporal. A simul- taneidade Se resgatamos esta dimensdo, podemos dar contexto a uma difi- culdade que se encontra para trabalhar com a estrutura psicética, 323 Jussara Falek Brauer Se 0 discurso do psicético é tal que ele no se dispde de acordo com a dimensao de presente, passado e futuro, se ele simultaneo, ele no permite a aplicago do método psicanalitico que consiste justamen- te em retroceder o plano da escuta para a historia do sujeito em anali- se, para a outra cena, a cena inconsciente, Estamos ento agora diante de um problema que j4 no se pren- de mais a uma questio de postura ou de atitude, Estamos agora diante de um problema ligado a técnica. Voltando & frase de Lacan, ele diz que a metéfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz no sem sentido. Se o discurso de nossos pacientes psicéticos se caracteriza pela falta de sentido, isto no deve por si s6 consistir em problema. A meté fora se situa no ponto em que o sentido se produz no sem’sentido. P ‘mos pois do sem sentido, por definigao. Gostaria de voltar ainda uma ver a frase: ‘Nao devemos retroceder diante da Psicose. Do exposto acima pode-se depreender também que a inscrigZo da loucura no simbélico pode transformé-la, ora em doenga, ora em algo que o homem habita como poeta, ou em que € habitado pelo de- ménio, A loucura vai se constituir nessa relagio de alteridade do louco com seu terapeuta. O lugar dado ao louco vai constitui-lo de uma ou de outra forma, Dito de outra maneira, a representago que se faz das desordens ‘mentais tem variado ao longo da histéria sob influéncia da cultura, da Giéncia e dos valores vigentes em cada época. ‘Na antigdidade, onde é marcante uma visto sagrada do mundo, a doenga era associada ora a divindades destruidoras existentes na natu- reza ou a deménios especializados em determinadas doengas que se apoderavam do doente, ora ao castigo infligido pelos deuses. ‘Na transig&o da Idade Média para a Renascenga a forma como se concebe a vida e 0 corpo, e em conseqdéncia também a doenga, perde seu tom sagrado. 324 O Outro em Lacan: Conseqiténcias Clinicas Comega a expandir-se a ciéncia. O homem deve adaptar-se agora A ordem e as leis da natureza. AA partir dai, e mais acentuadamente na época classica, os distir- bios mentais sero cada vez mais tratados enquanto “mal moral” do qual o individuo precisa redimir-se. Os métodos usados para isso so punitivos ou corretivos. Substituindo-se a f€ pela natureza abre-se espago para a concep- G40 dos distirbios mentais a partir do modelo médico organicista. Es- ses distirbios residem agora em desordens quimicas, ou localizadas no sistema nervoso. Seja exorcisando demdnios (Babilénia), seja através da pritica cirirgica que visava libertar 0 doente de seu softimento (Egito), seja vendo no sonho uma manifestagao divina e provocando “sonos de in- cubagdo” como forma de obter orientagdo divina (Egito), seja através de banhos de purificagao e dietas especiais ministrados por médicos sacerdotes (Hebreus) etc., desde a antigdidade existem os loucos ¢ os tratamentos para os loucos. S86 isso jé diz do fato de que a loucura nfo & uma doenga, mas uum fato humano, que se reveste de significagdes diversas segundo épo- cae local ‘Nesse sentido podemos tomar a frase de Lacan como indicando que devemos, enquanto psicanalistas, assumir em relago ao louco uma relagdo de alteridade, Lé-lo segundo os postulados da teorizagao psi- canalitica, Lacan (1966a) no texto D'une question préliminaire a tout traitement possible de la psychose depreende-se que a questo preli- minar que se coloca para que seja possivel um tratamento analitico da psicose consiste no estabelecimento daquilo que Lacan denominou a metafora delirante. Estabelecida a metéfora, esta posta a possibilidade do trabalho de anilise. ‘Acho que jé montei 0 contexto onde se colocavam minhas ques- tes quando iniciei meu trabalho de pesquisa. 325 Jussara Falek Brauer Como aplicar o método psicanalitico a um discurso com estas ca- racteristicas? Como estender os beneficios da psicanilise para este tipo de crianga? Construi para solucionar minhas questdes uma hipétese que tam- bém partia das formulagdes de Lacan Em seu Dos notas sobre el nind ele disse: “(...) 0 sintoma da cri- anga se situa de forma a corresponder ao que ha de sintomatico na estrutura familiar” (Lacan, 1991, p.55). A partir desta afirmago concebi um recorte da situagio de atendimento destas criangas com problemas graves tal que englobasse ‘uma escuta analitica a crianga ¢ a seus familiares, que era oferecida de forma individualizada, respondendo A disponibilidade espontinea des- tes familiares ao nosso trabalho. Este recorte se mostrou bastante fecundo, permitindo a tal pro- dugdo de sentido de que se falava acima. Pudemos observar que ao ouvirmos crianga e pais individualmen- te algo ocorria de muito interessante: havia uma simultaneidade, um paralelismo entre os discursos, ou seja, falava-se sobre as mesmas coi- sas nas sessdes da crianga e dos pais, e de tal maneira que pudemos tentar ainda uma segunda hipdtese que foi a seguinte: tomamos o dis- curso fragmentado da crianga como pontuagéo do discurso de seus pais, como significante. Pontuado o significante isto dava ensejo a que alguma historia se contasse ¢ que retornando esta histéria a crianga e vice-versa, podiamos fazer rolar o trabalho de analise. Uma andlise que englobava agora a familia, instrumentalizando entéo a alteridade que a psicanilise pressupde. Se a mae ocupa no inicio o lugar do Outro para a crianga, a cri- anga pode também estar ocupando este lugar para a mie (isto sera ilustrado no caso relatado a seguir). Dai duas coisas puderam acontecer ainda segundo aquilo que nés observamos: ou bem em um dado ponto deste trabalho o né se desata- va e passdvamos a ter duas andlises independentes, de sujeitos que apa- reciam agora separados um do outro, ou bem a crianga ia se configu- 326 0 Outro em Lacan: Consegiéncias Clinicas rando psicética, ou seja, no se descolando do discurso da mae, no desfazendo esta simultaneidade, ndo se transformando em suma, O que temos feito é seguir trabalhando neste segundo tipo de caso da mesma forma, reconstruindo a partir dos significantes apontados no discurso fragmentado da crianga sua historia que € rememorada a partir das associagdes da mae ou dos pais, uma histéria que ela nfo tem enquanto registro, dada a estrutura clinica que a caracteriza. AA partir do trabalho com 45 criangas com problemas graves, so- ‘mente quatro configuraram-se desta forma que eu acabei de descrever, como estruturalmente psicbticas. Destas quatro, apenas uma encontra-se ainda em atendimento. Trata-se de um menino que chegou com 7 anos de idade e um problema de fala que resistia ao tratamento fonoaudiolégico tentado por um periodo de 3 anos. Ele ainda ndo falava quando chegou a nés. Hoje, apés 7 anos de trabalho conosco este menino esté falando, ainda com uma fala caracteristica. Ele estuda em uma escola especial no municipio de Osasco. Esta sendo alfabetizado. Ja no apresenta um com- portamento agitado que o caracterizava no inicio do tratamento. No esta medicado. Esté trangiilo. Sua mae segue seu trabalho de andlise. Vocés devem ter notado que eu dei um salto. Comecei falando de familia e acabei falando s6 das mies, Este é um outro fato que observamos. A grande maioria dos ca- sos teve este percurso. Embora convocissemos a familia, na maior parte dos casos compareceram apenas as mies. Pudemos observar que trazer o filho para consulta é, em certas mulheres, uma forma de demandar anélise, Neste sentido, 0 fato de termos ampliado nosso recorte de tal forma que as mies fossem incluidas deu ensejo a que chegassemos a este tipo de constatagio. Em muitos casos péde-se observar uma evolugdo muito répida, na qual havia uma grande melhora da crianga logo no inicio do traba- Iho, de tal forma que rapidamente estas criangas abandonavam o aten- dimento, restando entdo suas maes em anélise. 327 Jussara Falek Brauer Assim, se comegamos com a pretensio de desenvolver uma pes- quisa sobre a psicose na infancia, logo nosso objeto se desvaneceu, ja que a maioria dos casos de descaracterizou como casos de psicose, ¢ acabamos desembocando em um trabalho muito mais ligado & mulher e 4 sexualidade ferninina, ‘Nosso achado jé estava previsto na teoria. ‘No Seminario sobre a carta roubada diz Lacan (1978b): Pois este signo ¢ de fato 0 da mulher, pois que ela ai faz. valer seu ser, fundando-o fora da lei, que a contém sempre, pelo efeto das origens, em posigdo significante, ¢ mesmo de fetiche, Para estar altura do poder des- se signa, ela deve somente permanecer imével na sua sombra ai encon- trando além do mais, tal a Rainha, essa simulagdo do controle do nao agir ‘que 56 0“olho de lince” do ministo pide penetrar (p39). Essas mies que atendemos escondiam-se a sombra do significan- te mie, mies de seus filhos “doentes”, que estavam respondendo a elas como espelho. A intervengao analitica quebrou a cumplicidade das criangas, permitindo que elas se reposicionassem e trouxe & tona a se- xualidade de suas maes. ‘Vou relatar agora um dos casos que atendemos. ‘A crianga em questio no é psicética, Trata-se de um menino que tem o diagnéstico de paralisia cerebral. © que me levou a escolher este caso foi o fato de que ante a paralisia cerebral do menino também se po- deria ter retrocedido, G. veio a Clinica do IP-USP procurando Psicodiagnéstico com queixa familiar e escolar de que teria algum “bloqueio emocional” que © estaria impedindo de ir além das limitagdes que a paralisia cerebral Ihe trazia. Submetido ao processo Psicodiagnéstico concluiu-se que era im- possivel constatar bloqueio emocional pois o problema orginico nao permitia acesso a isto. ccaso foi encerrado. Mie e escola niio se contentaram com este re- sultado e a crianga foi trazida novamente para consulta no ano seguinte. 328 O Outro em Lacan: Conseqiiéncias Clinicas Decidimos entio tentar um vinculo terapéutico com G., colocan- do como condigao a participagdo de mae. ‘A queixa consistia basicamente no fato de ele no saber ler nem escrever, apresentar um discurso e reagdes que muitas vezes eram ina- dequadas ao contexto, ser muito agressivo, apresentar comportamen- tos bizarros na escola (como comer 0 cocd dos animais de criagdo da escola), apresentar um desenvolvimento motor inadequado para a ida- de, no aceitar os limites que se tentava colocar para ele, ter um com- portamento estereotipado, ter apego a rituais rigidos, ser dependente de forma quase generalizada, inclusive no que tange a cuidados bisicos. Ao iniciar 0 atendimento a mae discorre sobre aquilo que ela en- tende sejam os fatores responsaveis pelo bloqueio emocional do meni no. Esse bloqueio dever-se-ia aos diversos golpes softidos por G. Ele sofrera muitas perdas. A morte do av6 que adorava, a separagio dos pais e a posterior morte do pai, 0 fato de ter sido expulso da escola que frequentava, ocasiaio em que foi encaminhado para a escola especial em que se encontrava naquele momento, A mae acrescenta ter ela também softido muito pelas mesmas coisas. Refere-se & excepcionalidade do filho como sendo um fardo muito pesado, No inicio do trabalho G. precisa ser forgado pela mie a entrar na sala, onde permanece por pouco tempo, demonstrando uma linguagem pouco articulada, expressando-se por meio de sons incompreensiveis. As alteragdes mais visiveis de G, deram-se justamente nesses pontos que englobam sua relago com a analista. Evolui de um contacto inicial onde explora a sala de atendimen- to, depois a caixa de ludo, passando entio a um brincar onde basica- mente quebra, separa e corta tudo 0 que é passivel deste tratamento, Sua fala neste momento tem as mesmas caracteristicas, é fragmentada. Tudo ¢ transformado em fragmentos. Num terceiro momento deita-se ¢ fala, Seu discurso agora tem um cardter descritivo. Conta o que fez durante o dia e 0 que fizeram com ele, Fala muito sobre a mae, a avd e as irmiis, e depois sobre o pai e o avd jé falecidos. Passa a trabalhar a conexdo morte — auséncia. Fala do medo que sente e que ndo tem um objeto definido. Demonstra nao ter claros seus limites nem mesmo os 329 Jussara Falek Brauer corporais. O ndo & um jogo dificil para ele, pois a0 mesmo tempo em que expressa um limite entrelaga a questo da morte e da auséncia. Evolui bastante no seu falar, mostrando um vocabulério mais en- Tiquecido que no inicio, um raciocinio mais sofisticado, organizagbes gramaticais mais complexas. Se no inicio seu discurso parecia com uma enumerago de pala- vras sem a conexio de um fio légico, passa em seguida a repetir dis- cursos dos outros como um eco. Centraliza-se depois em suas relagées ‘mais significativas, passa a relatar cenas. Ao lado disto vai estabelecen- do uma relagdo cada vez mais estreita com a terapeuta, chamando-a pelo nome. Passa de uma posigio onde ¢ objeto, e onde repete, para outra onde esboca uma posigio de sujeito, No inicio do atendimento da mie, G. era 0 tema central de seu discurso. No decorrer do trabalho ela vai se enganchando em sua pro- pria andlise e falando mais de si. Questiona-se sobre o sentido deste filho excepcional em sua vida, que buracos ele teria vindo preencher. ‘Teve um casamento muito dificil, que era particularmente insus- tentavel por ocasiao da gestagdo e nascimento do menino. Seu marido era muito ciumento e atacava-a com violéncia. Nestas circunsténcias, a tunica saida para ela foi apegar-se muito ao filho, seu nico sustentaculo. Sustentava-se no filho que nao podia se sustentar sozinho. G. ocupa © lugar de Outro para sua mae nesse momento. Questiona-se sobre seu casamento e 0 que a teria levado a apaixo- nar-se por este homem louco e violento. A tmnica justficativa que encontra & que seu marido tinha muito bom papo. Este papo aparece entio como algo que atrai a mae. Importante notar aqui o lago com a pseudo-dificuldade de fala apresentada por G., que foi se desfazendo to logo ele comegou o tra- balho de terapia. No que se refere & sua relago com seu pai (portanto, 0 avé de G,) diz que sempre o admirou por suas capacidades e perfeicao, de tal sorte que ela acabou por encarnar esse papel de perfeita. Sofre agora 330 O Outro em Lacan: Consegiténcias Clinicas por constatar 0 fracasso, a imperfeigao no casamento e no filho defici- ente. Aqui a deficiéncia do menino mostra-se sobredeterminada pelo significante perfeigo, que conecta a mae a seu pai. na imperfeigho 0 lago edipico da mie. Dai seu goz0 no cuidado deste filho imperteito. Dai o estranho fato de ser esse 0 filho mais querido dos trés que essa mie tem. Trabalhar isto j4 permite ao menino comegar a falar, desmon- tando o sintoma que o trouxe até nés. Em seu trabalho a mae ora avanga, ora recua. ‘Vai saindo da posigao de mae de G., daquela que relata os fatos que se referem ao filho para ser a C., uma pessoa, Fala de seus pais, principalmente de seu pai, a quem sempre admirou pela perfeigdo, fala de seu casamento, sua profissao, seus filhos em relagao ‘aos quais esta agora em uma outra posigio. Nesse sentido avanga, pode separar-se de G. que agora aparece como um outro, Em outros momentos recua, deprimida, resistindo em criar para a sua vida outro sentido que o de cuidar deste filho deficiente: “90% da ‘minha existéncia vivo para ele”, ela diz. Embora capaz de refletir sobre o que diz e faz, chegando a tomar atitudes ativas e concretas no sentido de modificar certas regras do- mésticas € passar a trabalhar como professora, esforga-se em manter intocavel a situagdo. Empenha-se por um lado. Desanima por outro. Alterna estados de mania e de depressio. Acaba por encerrar o aten- dimento procurando outra terapia mais proxima de sua casa. Poderfamos questionar agora se no caso desta mae, aquilo que paradoxalmente a impede de prosseguir em sua andlise € uma vontade de manter o filho nas condigdes de deficiéncia de que ela se queixa, por cuja razdio procura insistentemente por atendimento, A resisténcia desta mie recobre por outro lado sua depressfo, esta sim dificil de transpor. No filho imperfeito fica expressa ¢ inacessivel a depressio, posta 4 devida distancia, distancia que a deixa a salvo. Cuidar do filho é uma forma ritual de tratar de sua depressio e, ainda, manter-se imaginaria- 331 Jussara Falek Brauer ‘mente em relago com o pai jé falecido, HA portanto um luto a traba- Thar aqui, o que reenvia & depressdo. ‘Na pseudodeficiéncia G. aprende com sua mie a expressar seu medo da morte, Ele parece no entanto mais capaz de lidar com esse medio que sua mie, © comportamento bizarro do menino pode ser lido desta forma como obra conjunta destas duas criaturas, mie e filho, co-autores na criagdo deste personagem de ficgo, Se é criagao, entio nao é deficiéncia real, apenas aparéncia, ilusdo. Apesar da grande dificuldade de se lidar com este tipo de caso, essas evolugdes nos tém indicado que ndo devemos retroceder diante deles, marcando a especificidade do trabalho analitico, trabalho com 0 significante, que deixa de fora as implicagdes a que 0 dado biologico pode conduzir. Intervindo analiticamente nesta intrincada rede de alteridades foi possivel dar inicio a um trabalho que jé teve como efeito por a nu a relagdo significante da imperfeigio do filho ao avé falecido, sua defici- éncia de fala ao traco significante que ligou sua mae a seu pai FALEK BRAUER, J. The “Other” in Lacan: Clinical Consequences, Psicologia USP. S80 Paulo, ¥.5, n.1/2, p.309 - 333, 1994, Abstract: This paper outlines the relationships among the following terms of Lacanian algebra: other, significant, unconscious subject, pulsional object. It further inquires into their clinical consequences. Index terms: Psychoanalysis. Lacan, Jacques, 1901-1981. Unconscious (Personality factor). Childhood psychosis. 332 O Outro em Lacan: Conseqiiéncias Clinicas REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALTHUSSER, L, Freud ¢ Lacan, In: ESTRUTURALISMO: antologia de textos tebricos. S40 Paulo, Martins fonts, 1979. p.229-56. LACAN, J. Abertura da soogéo clinica. Ornicar?, n9,p.7-14, 1977. LACAN, J. 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