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Muito tem sido dito sobre ortografia, principalmente apdés o novo acordo ortografico. Poucos, no entanto, sabem como surgiram essas ideias sobre ortografia e qual a sua real necessidade. Em uma tentativa de debatermos o assunto, que tal olharmos um pouco para 0 inicio de tudo isso? » por Edmar Cialdine* 12. | cwtecens rein | LINGUA PORTUGUESA uestdes sobre ortografia remetem as necessidades, muitas vezes questionaveis, de termos uma forma padronizada de nos comunicarmos ¢ {que gere 0 minimo possivel de ambiguidades, Nesse sentido, poderiamos dizer que ndo é de hoje a tentativa de estabelecer uma forma tinica para a lingua. Alids, a sociedade, de modo geral, possui uma tendéncia a cultuar 0 mito da escrita correta (em grego orthos, certo, e graphos, | um texto critico ou fazer apologia a qualquer lado da moeda, abordaremos aqui, essencialmente, 0 ponto de vista historico sobre a ortografia da lingua portuguesa, Entdo, vamos comegar de um mito basico: a melhor ortogratfia, ra ou escrita). Sem objetivar tecer “FRANCAIS" SE LE “FRACE”... Sendo a ortografia um estudo normativo que visa 4 padronizagao da lingua escrita em sua forma de registro, alguns estudiosos dizem: “ortografia nao é é regra”. O que faz sentido se entendermos a lingua como algo maior do que s maneira como ela é lingua, registrada, Explicando melhor: poderiamos escrever a frase “kd ve, kra?” que, em um ambiente virtual, é perfeitamente aceitével tanto quanto compreensivel. Alids, mesmo fora desse ambiente, muitas pessoas “traduzirao” a frase para “Cadé voce, cara?”. Do mesmo modo, por mais que olhemos com maus olhos, se léssemos “caza”, “tiquisi” ou “ospital”, a compreensio se daria sem grandes dificuldades. Assim, a ortografia trata da forma, ou, como as gramiticas trazem, as regras que delimitam a maneira ‘como escrever para que outro falante da mesma lingua compreenda. Tais regras podem ser motivadas por iniimeros fatores (desde a tradigao da lingua quanto a simplificacao desta) e, portanto, podem softer modificacdes a qualquer momento. Mas e o mito da melhor ortografia? E comum os falantes da lingua pensarem que melhor forma de registré-la € escrever exatamente como se fale. Claro que essa relacdo exata entre promiincia e es perceber é que existem linguas em que tal relagio & mais proxima que em outras, Essa diferenga existe gragas ica no nivel fonético € fonol6gico. Toda lingua varia e, quanto maior for a extensao da comunidade da fala, maior a probabilidade de existir promincias diferentes — isso sem mencionar situag6es de plurilingufsmo, isto é muitas linguas em contato. Vejamos um exemplo em portugués para deixar claro: o numeral “20” pode ter varias promincias diferentes: bint no norte de Portugal, vintchi em boa parte do Brasil, vinte no nordeste ita no existe - © que podemos variagao ling Caterers | LINGUA PORTUGUESA | 43. Ce ey brasileiro etc. Como consequéncia, terfamos formas diferentes de escrever. Outro fator que pode distanciar aescrita ea fala é 0 tempo. A lingua francesa, por exemplo, possui uma ortografia extremamente tradicional, jd estabelecida em seus primérdios ~ masa lingua se transformou ‘com 0 tempo em sua prontincia de modo que temos palavras como “francais”, cuja promincia é “fracé™ Dentre outros motivos, isso ocorre por a ortografia francesa procurar seguir uma perspectiva etimol6gica Tal situagao nao € muito diferente da lingua portuguesa, em que ‘encontramos a promincia “ogéna” para o nome Eugénia, Ademais, ha ainda a existéncia dos difonos (uma letra para mais de um som, como “x” em “taxi"), digeafos (0 inverso, como “ch” em “chave"), letras mudas (como a letra “h” em “homem”). Em linguas ideograficas', . por outro lado, encontramos uma relacio muito estreita entre a escrita e a fala Os ideogramas chineses, por exemplo, podem ser lidos facilmente por falantes de varias linguas existentes na China como 0 cantonés ou madarim, dentre outras linguas orientais. No entanto, © problema se verifica na imensa quantidade de simbolos gréficos necessarios para registrar esse gama de prontincias - 0 que torna sua aprendizagem dificil até mesmo para falantes nativos. Diante de tudo isso, podemos dizer sobre a lingua portuguesa algumas coisas: primeiramente ela representa as palavras de modo apenas _ aproximadamente fonético, mas com algumas influéncias etimologicas; a histéria da ortografia pode ser dividida em trés momentos (Fonético, Pscudo- etimolégico e Simplificado) e, somente a partir do século XX, é que procurou-se seguir um padrao ortografico. Vejamos agora as fases histéricas 44 | cxwireto rain | LINGUA PORTUGUESA Na Lingua Portuguesa, as palavras s40 representadas de modo aproximadamente fnoético, com influéncias etimoldgicas. A histéria da ortografia tem trés momentos: Fonético, Pseudo-etimoldgico e Simplificado ORTHOGRAPHIA PHONETTICA A partir do momento em que os primeiros textos (veja 0 box) em. lingua portuguesa foram produzidos, por volta do século XIIT, até o Renascimento cultural, meados do século XVI, os copistas (pessoas responsiveis por fazer as c6pias dos livros, em sua maioria monges) registravam a lingua de acordo com a forma que compreendiam a proniincia. Claro, isso gerou uma grande confusdo por falta de padronizacio entre eles. Virios simbolos gréficos eram utilizados para registrar um mesmo fonema e vice versa. O mais curioso é que, apesar dessa confusio, esse periodo foi muito mais compreenstvel, em termos ortogrificos, que o seguinte, Havia uma certa légica no uso dos simbolos escolhidos. Dentre as varias caracteristicas desse periodo podemos destacar: ch [tf] de origem francesa: Sancho, “santcho"s chama “tchama’; @ nh [p] elh [4] de origem provengal: ganhar, velha;, W [g] resentado por g antes de a, 0, u e por gu antes de € € is mas havia trocas de letras: gerra (guerra), lingoa (lingua), amigua (amiga), alguo (algo); 1 Uso de “qu-” indistintamente: nunqua (nunca), cinquo (cinco); § [5] representado por g, gi, j,i,y e js agia (haja), ‘mangar (manjar), go (fujo), aya (haja),iulgar (julgar), oye (hoje); ® Uso de de m, n e til indistitivamente: ano, aio, anno, camiho, caminho, cimco, cinco, grade, grande, haildade, humildade, tépo, tempo, raz, razom; Uso de h como i semivogal: sabha (sabia), mha (mia); 1 Uso de consoantes duplas; Esse periodo fonético foi sofrendo cada vez mais influéncias do Renascimento cultural, no qual se buscou resgatar as influéncias ‘greco-latinas nas ciéncias ¢ nas letras — era o inicio da segunda fase dda historia da ortografia portuguesa chamada de.. PERIODO PSEUDO- ETHYMOLOGICO A partir do século XV, 0 Renascimento cultural“ comecou a exercer influéncia em Portugal. No que se refere as letras, a lingua nacional se tornou cada vez mais valorizada. Para tanto, alguns estudiosos tentaram sistematizar a lingua com base nas gramiticas gregas ¢ latinas. Surgiram, assim, as primeiras obras de referencia sobre a lingua portuguesa. Data dessa época, também, a obra literaria que dividiu a histéria da lingua portuguesa, Os Lusiadas. Durante esse periodo, os escritores estudiosos, ao tentar relacionar a lingua nacional com as linguas clissicas, idealizaram que a ortografia melhor seria aquela que se aproximasse da palavra original em latim ou grego ~ ou sefa, buscou-se dar um tratamento etimoldgico a lingua. Porém, a Etimologia é, ainda hoje, uma ciéncia que caminha por uma linha ténue entre o real ¢ o imaginario. Nao raro encontramos obras que apresentam etimologias confusas, inexatas ou mesmo erréneas. Durante esse periodo, entre os séculos XV e inicio do século XX, nio era diferente. As falsas etimologias foram difundidas entre 05 textos, o que tornou, como jd apontamos, esse periodo menos regular que o anterior. Um exemplo disso é a palavra “tesoura’, escrita na época “thesoura”, por acreditarem que ela vinha da palavra “thesaurus” quando, na verdade, sua origem é de “tonsoria’” O surgimento da imprensa mével, no ‘entanto, fez. com que essa ortografia ganhasse espaco facilmente. Dentre as caracteristicas dessa época podemos destacar o uso de letras que fizessem referéncia ao étimo grego: ch ‘com som de [k] (archaico), ph (phrase), rh (thet6rica), th (theatro)e y (estylo). ‘O mesmo aconteceu com palavras de origem latina, nas quais encontramos ‘0.uso de ct, gm, gn, mn, mpt: aucthor, fructo, phleugma, ass prompto. Isso fez com que letras prontincias desaparecidas fossem recuperadas como, por exemplo, a letra “g" de “digno”, antes pronunciada “dino”. ssa fase permaneceu até 1911, quando surge 0 primeiro acordo ortografico € 0 periodo da ortografia simplificada, natura, damno, TEXTO EM PORTUGUES DE 1214 0 Testamento de D. Afonso II data de 1214. £ um dos textos mais antigos em lingua portuguesa. Nel Eis um trecho: fonética na ortografi: podemos perceber a influéncia UNHA.: “En’o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, teméte o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia ‘molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) uassalos e de todo meu reno fiz ‘mia maida per) a(ue) de” LINHA: "pes mia morte mia molier e me(us)flios e meu reino e me(us) uassalos € todas aq(ue)las cousas q(ue) De(us) mi deu en poder sten en paz e en folgacia. Pri) meiram(en)te mado q(ue) meu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for” LNHA3: “morto sen semmel, 0 maior fio q(ue) ouuer da raina dona Orraca agia oreino entegram(en)te e en paz. E ssi filio baré né ouuermos, a maior filia q(ue) ‘ouwuermos agin‘. = Sigerimos aera da maléra Nescinenio de tuna ing’ va e620 31 da, ‘comznenro parca LINGUA PORTUGUESA, como uma forma de complementar a etura esse assun, CE NCEITO Linguas ideogritias ‘As ings idogrfcas usam um ipo ‘de esanlacom base nos charade ‘eoyamas. Essa escria 6 aniga ‘ee ands je. Os hierélfos ‘egipcis eos kan do ands © ‘chings sao exerpos dese tipo ce ‘sta, Cada se, cependende ‘8 ingua, pa represertr una pala um pedo” de pala un revfoma, ura slaba, un fonema ou ‘go i ur POR DENTRO Renascimento cltural (O Renascinert fo um periods ‘ne fm da dade Mada 90 ‘nice daldado Moser, re qual howe uma pturanasocedade em ‘aio agpocos econbics, poco picipalmente, ural. Foo ici das Grandes Naveoaries. apialsn, do antropoentismo. No aspeciocutual howe um resgte acuta essa, o quo refs ras lors impulsonando a crigto de ‘amas das ingues nacionas com Basonas ramos atnas © grog ‘Grandes nores dessa época so Leonardo da Vr, Michelangelo © Rafael Em Porugl tas, além do ‘Games Gi Vicente «58 de anda msemstn hates | LINGUA PORTUGUESA | 45 GRAMATICA HISTORICA INICIO DOS ACORDOS... Com o surgimento da Repiblica portuguesa, um grupo de fildlogos / estudiosos que contavam com Goncalves Viana®, Carolina Michaélis@® ¢ Leite de Vasconcelos @ foi formado para dar inicio a elaboragao de normas que ortografia lusitana. primeiro acordo ortogrético s entio, em 1911 e tinha uma forte influéncia foneticista (0 que fez. com que desaparecessem muitas consoantes duplas e os grupos de origem grega, th, rh ete). Estranhamente, apesar dos adeptos 2 essa corrente foneticista, o Brasil nfo aderiu 20 acordo ~ ficando, assim, 0 portugués com duas ortografias oficiais. Nas décadas seguintes, a Academia de Ciéncias de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras comecaram a promover encontros e reunides em tentativas de firmarem acordos ortograficos os poucos, os demais paise também foram sendo inseridos nesses encontros que culminaram com o surgimento de grupos e orgenizagdes de cooperagio internacional, como a Comunidade dos Paises de Lingua Portuguesa, (www.eplp org), e empreitadas como a criagao da Universidade da Integragao Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (www.unilab.edu.by), séfonos ‘oPito | LINGUA PORTUGUESA E-certo que existem muitas outras questoes que f permeiam a ortografia e os acordos ortogrificos. As I ic he } reagdes dos usuarios da lingua (professores,intelectuis, RETRATQ? pesquisadores, o proprio falante comum) divergem SaieGes muito em cada local - em geral, é comum encontrar nical dos Ris Gorgas Via ‘um argumento nacionalista por tri, Ha também as 40494 ean, ro un implicagdes econdmicas com o mercado editorial portuguesa. Fibiogo lencgrao ofrendo grandes mudangas; implicagdes nos concursos eee caer artes sofrendo grandes mudangas; implicagdes nos concurso: ee piiblicos; cria-se a necessidade de cursos de reciclagem tetra erga ling em 9 para os professores de portugués se adaptarem & nova realidade... tudo isso, claro, gera uma forte polémica que apenas com o tempo diminui, E tudo isso abre espaco, para estudos e pesquisas...alguém ai se propOe? mt RETRAT@R arolina Wiehabis Catena ita Mca ce asoanelo (181-925) mais mpoterefiioga da nua poruguesa. Anda que nasi en Betin,possia une grande 30 por Porgal hogar, ncusie a ecacar ‘amu priguts. Siaspesquisas en i ico, Fela, Cte terra ‘5c, nfo 6 fez coniio com autos gandes estore opesqusadors, ‘amotaben abr a prs pare (queas muberesecorasser ra Univriado do Cina RETRAT QR nite de Vasconcelos José Lele ce Vasconcelos Cardoso Pras do Melo (1858-104) una (grande fetes nos estes dengue prtguess cor eeu Comunidade dos Pats, estudos em Fon, quedo a Lingua Portuguesa Etiograta,Daletlsia,Onmésica ( potugus a ing pases Angola, fcilam ste @Numisatea Fo prolessor ca bo Verde, Uneridade d Usboae grande Guine-Basau, 0, Portgal _ enuiesta de efome do 111. Grande (0 Si Ton e Prisco Eales @ pate de sua bolo pessoal ‘ura comuridaes esas pelo (comarca de ot mi cbras, am lobo ue Wem alinguaperuquesa demenusrios lros ros) se Formam a Comunidade ces Pases de arcana hee no Mus Nacional de gua Poriguesa ‘rqulogi Dr Lats de Vasconodes. “Francisco Edmar Caldine Arruda € profesor a Univsidade Regional do ari, metre em Unguistica aplada pola Univsdade Estadual do Cerdepesauisador a Gupo d Pesqula em tevicograa, emlnclopa Enno (LTE) © do Mieo de Pesquisas em linguistic Aplicada (Uf), atuanc prindpalmente com os tomas Terminoiogia, lexcogra, Sure, Multimodaldade e Estudos css. Contato: 04@alcom | wwv.dadlearudabogspo.com Centers Pit | LINGUA PORTUGUESA | 47 Eccerto que existem muitas outras questdes que permeiam.a ortografia ¢ 0s acordos ortograficos. As reagbes dos usuarios da lingua (professores, intelectuais, pesquisadores, o priprio falante comum) divergem e muito em cada local ~ em geral, é comum encontrar ‘um argumento nacionalista por tras. H também as mplicagdes econdmicas com o mercado editorial sofrendo grandes mudancas; implicagées nos concursos pubblicos; cria-se a necessidade de cursos de reciclagem para os professores de portugues se adaptarem nova realidade... tudo isso, claro, gera uma forte polémica que apenas com 0 tempo diminui, E tudo isso abre espaco para estudos e pesquisas...alguém ai se prope? at ° Lingua portuouesa | 47 he RETRATQ® Gonsalves Viana Aniceo Gos eis Goncahes Vane (1840-194) considrado, hoje, um os mle etuciosos oe ingua otugusa. logo esicdrao fone, eteve arent da ‘misao que ogarizou apr raforma etogrea na inguem 18. es RETRATQ® cao ics Sete lon Seana eee Sen apes Pee eiaecsces ee ae een islogtis Pare curses Si lemecrsrce eee eee ae Gees eee Soda bie Leite dost (gander de lingua portuguesa por seus CYNCEITO Comunidade dos Paises eetus on Fog, Arquobg a lingua Portuguesa Enogratia, Daleiogia, Ono (ports ba ing.s fcelem sele _ o Nunemiea. Fai professor da paises: Angoa, Bre Gain isa Sto Tone e Universe de isos crane ‘nse da retrace 21, Grande part de sua noice pessoal fGemcercad cl rilotas aém de rranascios ets acs se Pabes de etconrahono Museu Naor de ‘Arqudlgia Late de Vasconcelos ferman a Conu Ungua Portugues “Francisco Edmar Galdine Arruda € profesor da Universidade Regional do ai, mete em Lngustiaaplada peta Univesdade Estadual do Cer epesqusador o Grupo de Pesquisa em escort, TeminologaeEsino (ETERS) edo Nieo fe Pesguisas em Lingus Aplicada (UA), atuando pinplmente com os temas Terminolgla, ecg, Sue, Mlimodalidade eEsudos css. Contato dosau@gmalom J wwiieldnearuda blgsptcon, | | | [CONHECIMENTO AME) ww DESCASO POETICO Questao do Enem nao estimula a interpretacao do poema ENSINANDO GRAMATICA Como expor conceitos-chave © | para o entendimento da gramatica da lingua

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