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CAPITULO 1 Natureza e Cultura De todos os principios propostos pelos precursores da sociologia nenhum sem dtivida foi repudiado com tanta firmeza quanto o que diz respeito 2 distingio entre estado de natureza e estado de sociedade. Nao se pode, com efei r_referéncia sem contradicio a uma fase da evolugéo da humanidade durante a qual esta, na auséncia de toda organizac&o social, nem por isso tivesse deixado de desenvolver formas de atividade que sao parte integrante da cultura. Mas a distincéo proposta pode admitir inter- pretagées mais validas. Os etnélogos da escola de Elliot Smith e de Perry retomaram-na para edificar uma teoria discutivel mas que, fora do detalhe arbitrério do esquema hist6rico, deixa aparecer claramente a profunda oposicio entre dois niveis da cultura humana e o caréter revolucionario da transforma: co neolitica. Q Homem de Neanderthal, com seu provavel conhecimento da linguagem, suas industrias [iticas € Titos TUNeTaTios, Mito pode ser _con- siderado_como vivendo no estado de natureza. Seu nivel cultural o opée, y no entanto, a seus sucessores neoliticos-com um rigor comparavel — embora em sentido diferente — ao qué os autores do século XVII ou 9. do século XVIIT atribuiam asta pr Mas, sobretudo,—cO- S\ mecamos a compreender que a distingao entre estado de natureza ¢ es x & tado de sociedade’, na falta de significacio histérica aceitavel, apresen- AoPq ta um valor l6gico que justifiea plenamente sua utilizagdo pela socio- ‘% — logia moderna, como instrumento de método.{O homem é um _ser_biold- 2° & gico_ao mesmo tempo que um individuo social.) Entre as respostas que edn WY. dd As excitagdes 5 is dependem inteiramente 2>W— ‘© de sua natureza, outras de sua condicéo. Por isso nao hd dificuldade it, Sg alguma em encontrar a origem respectiva do reflexo pupilar e da post %5."51'. “y Glo tomada pela mio do cavaleiro ao simples contato das rédeas. Mas ”~,5'> oc -Rem_sempre a distingio 6 tao facil_assim. Freatientemente o estimulo fisico-biologico € o estimulo psicossocial despertam reagdes do mesmo tipo, cio apy, sendo posiral porgantar, cone: | TaRE-TOMMS soo RiedO GE Criatien an ios ea escuridao explicase comd manifestagao_de sua natureza animal ow coy~y, «ci mo resultado das histérias contadas pela ama. ‘| Mais ainda, na maioria er dOS_cas0s, a8 causas pie-sfe_ realmente distintas ea resposta_do_sujeito. Aca constitui_verdadeira integragio das fontes bioldgicas das fontes sociais }) 1. Dirfamos hoje preferivelmente estado de natureza e estado de cultura, 2: Parece, com feito, que o medo do escuro nfio aparece antes do vigéstmo | juinto. més.’ Cf. C. W. Valentine, “The Innate Basis of Fear”, Journal of Genetic ‘sychology, vol. 37, 1930. 41 cca ausente por causa de sua origem cultural ou porque os _mecanismos fi vax |SiOIOgicOs que condicionam seu aparecimento nao se acham ainda mot | Odean de seu comportamento} Assim, 6 o que se verifica na atitude da mae cull com relacdo a0 filho 6u nas emocdes complexas do espectador de uma ad parada militar. £ que a cultura nao pode ser considerada nem simples- Mente justaposta nem simplesmente superposta a vida. Em certo sentido scent substituise 2 vida, € em outro sentido wtllza-a € a transforma para rea- Ay wei Orde walizar uma_sintese de nova ordem. {Se é relativamente facil estabelecer a distingéo de principio, a _di- ficuldade comeca quando se quer realizar a anélise. Esta dificuldade é dupla, de um lado podendo tentar-se definir, para cada atitude, uma causa de ordem biolégica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo atitudes de origem cultural podem enxertar-se em _compor- tamentos que sio de natureza bioldgica, e conseguir integré-los a si. Ne- gar ow subestimar a~oposigao é privar'se de toda compreenséo dos fe- nomenos sociais, e ao lhe darmos seu inteiro alcance metodoldgico cor- agbiyaltemos 0 risco de converter em mistério insolivel o problema da passagem wer entre as duas ordens. Onde acaba a natureza? Onde comega a cultura? E possivel conceber varios meios de responder a esia dupla questao. ‘Intake Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes. 430.94 © método mais simples consistiria em isolar {wolw cida e observar suas reacdes a diferentes excitacOes durante as_p: 6” horas ou os primeiros dias depois do nascimento. Poder-seia_entao ma crianga recém-nas- 4, por que “as respostas_fornecidas_nesss_condigdes_siio_de_origem_ ps- ‘hada cobiolégicas, @ nao dependem de sinteses culturais ulteriores. A psicolo- *8o» gia “contemporanea “obteve por este método resultados cujo interesse nao deve levar a esquecer seu cardter fragmentério e limitado. Em primeiro Qy+'/ 7 lugar, as tinicas observagdes vilidas devem ser precoces, porque podem) rekon” surgir condi clonanien ips ga eavGa elaeiataarger era ‘a0_cabo de poucas semanas, talvez_ mesmo de|!*ou Be edhe for. e ies. Assim, somente tipos de reagéo muito elementares, como certas\/en< “expresses emocionais, podem na pratica ser estudados. Por outro lado,™4>2 ana 2S experiéncias negativas apresentam sempre cardter equivoco. Porque per-777> Tmanece sempre aberta a questo de saber se a reagao estudada estd tados, devido & precocidade da_observacao. © fato de uma criancinha nao andar nao poderia levar & conclusdéo da necessidade da aprendizagem, Porque se sabe, ao contrario, que a crianca anda espontaneamente desde que organicamente for capaz de fazé-lo.* Uma situacio andloga pode apre- sentar-se em outros terrenos. O tinico meio de climinar estas incertezas seria_prolongar_a_observacéo além de alguns meses, ou_mesmo de _al- guns anos. Mas nesse caso ficamos as _voltas com dificuldades insoliveis, porque o meio que satisfizesse as condig6es rigorosas de _isolamento éxi- gido pela experiencia nao € menos artiticial [ue eio_cultural ao quét-se—pretende SUbSHIEGTIo; Por exemplo, os culdados da mde durante os primeiros anos da vida hi la_constituem condicao natural do de- senvélvimento do individuo. O experimentador acha-se portanto encerra- do-em um circulo vicioso. ¥ verdade que o acaso parece ter conseguido as vezes aquilo que © artificio é incapaz de fazer. A imaginagio dos homens do século XVIII 3.M. B. McGraw, The Neuromuscular Maturation of the Humen Infant, Nova Yorque isss. 42 ‘oi fortemente abalada pelo caso dessas “criangas_selvagens”, perdidas . ‘=o campo desde seus primeiros anos, as quais, por um excepcional con- “hol de probabilidades, tiveram a possibilidade de subsistir e desenvol-4% wre fora de toda influéncia do meio social. Mas, conforme se nota ‘uuito claramente pelos antigos relatos, a maioria dessas criancas foram ‘nermais congénitos, sendo preciso procurar na an, ‘quase unanimemente, ter dado prova, a causa inicial de seu aban- € ndo, como as vezes se pretenderia, ter” sido o resultado. * Be rcervesce recentes confirmam esta maneira de ver. Os pretensos “meninoslobos” encontrados na India nunca chegaram a alcangar o nivel "ammal. Um deles — Sanichar — jamais pode falar. mesmo adulto, Kellog velata_que, de duas criangas descobertas juntas, hd cerca de vinte_anos, © mais moco permaneceu 0 mais velho viveu até os Seis anos, mas com 0 nivel al_de_uma_crianca_de dois anos € meio © um vocabulério de cem palavras apenas.‘ Um relatério de 1939 con- Sidera como idiota congénito uma “criancababuino” da Africa do Sul, descoberta em 1903 com a idade provavel de doze a quatorze anos.‘ Na maioria das vezes, alids, as circunstincias da descoberta sio duvidosas. Além disso, estes exemplos devem ser afastados por uma razfio de principio, que nos coloca imediatamente no coracio dos problemas cuja Giscussio é 0 objeto desta Introducao. Desde 1811 Blumenbach, em um estudo dedicado a uma dessas criancas, 0 Selvagem Peter, observava que | mada se poderia esperar de fendmenos desta ordem. Porque, dizia ele com profundidade, seo homem 6 um animal doméstico é 0 tnico que s2_domesticou_a_si_proprio.” Assim, € possivel esperar ver um aniiat ee Stico, por exemplo, um gato, tum cachorro ou uma ave de_galinheiro, quando se acha perdido ou ae Lomas aelte a comportamento natural que era o da espécie antes da intervencdo exterior da _domesticacéo._Mas |» ada de semethante pode se produzir com o homem, porque no caso deste |= ditimo nfo existe comportamento natural da espécie ao qual o_individuo | |" isolado-possa voltar mediante regressao. Conforme dizia Voltaire, mais ou | menos nestes termés, uma abelha extraviada longe de sua colmeia e, incapaz de encontréla 6 uma abelha perdida, mas nem por isso se tor n° © bam nou uma abelha mais selvagem. As “criangas_selvagens”, quer sejam_pro->* | -Sluto do _acaso quer da experiméntagao, podem m0) josidades Cul-~ fa iS, Mas em nenhum caso testemunhas fiéis de um estado anterior. non feo = mpm, praia, err 0 amen A TRH _Comportamento de cardter_pré-cultural./Sera possivel entao tentar um =~ . " caminho inverso e precirat sine, atingir, nos’niveis_superiores da vida animal, (ps atitudes e manifestagdes nas quais se possam reconhece: | _sinais precursores da cultura? Na aparéncia, é a oposicio entre comporta-|_ "4.3. M. G. tard, Rapports et mémories sur le sauvage de t'Aveyron, etc, Pa °>*" ~ ris 1004. "A. von Feuerbach, Caspar Hauser, Trad. ingl. Londres 1853, 2 vols. fe 5.G. C. Fervis, Sanichar, the Wolf-boy’ of India, Nova Torque 1902. P. Squires, <-o. HFoikehilaren’ of “India. Arigrican Journal of Psychology, vol. 38, 3027, p. 318. W. N. Kellog, More about ‘the “Wwolf-children” of India. roid, voi. 43, 1931, ‘p. 508-509; A’ Further Note on the “Wolf-children” of India. Ibid.” vol. 46," 1934,” p. 149. — Ver também, sobre esta polémica, J. A. L. Singh "eR. 'M. Zingg, Wolf‘children ‘and Feral Men, Nova Yorque 1942, ¢ 4. Gesell, Wolrekila and Human Child, Nova Torque 6. J. P. Foley, Jr, The “Baboon-boy” of South Africa. American Journal of Psycho- logy, vol. 38, 1940. R. M. Zingg, More aboub the “Baboon boy" of South Afriea, Ibid. 7. J. F. Blumenbach, “Bettrdige zur Naturgeschichte, Gdttingen 1811, em’ Anthropolo- gical’ Treatises “of FF. Biumenoach, Landes 1868,” p.'338° oe rei» By puatds wah, medusa cg Walnonhon OrAL wanda anterior TD mento humano e 0 comportamento animal que fornece a mais notével ilustragio da antinomia entre a cultura e a natureza. A passagem — se existe — n&o poderia pois ser procurada na etapa das supostas socie- dades animais, tais como sao encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossiveis de ignorar, da_natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatOmico, tinico que pode "permitir o exercicio do instinto, e a transmissao hereditdria_das—condutas.essenciais & sobrevivéncia_do individuo_e da espécie. Nao ha nessas estruturas coletivas nenhum lugar mesmo para um esboco_do que se ptidesse chamar o modelo cultural universal, isto é, linguagem, instrumentos, instituigdes sociais e sistema de_valores_estéticos, morais ou religiosos. E a outra extremidade da es- cala animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir 0 _esbogo desses_comportamentos humanos. Seré com relacéo aos mamii periores, mais especialmente os macacos antropdides. Ora, as pesquisas realizadas ha mais de trinta anos com os grandes macacos sfio particularmente desencorajantes a este respeito. Nao que 0s componentes fundamentais do modelo cultural universal estejam ri- gorosamente ausentes, pois é possivel, a custa de infinitos cuidados, con- duzir certos sujeitos a articularem alguns monosstlabos_ou_di s, aos quais alids nfo ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos li mites, 0 chimpanzé pode utilizar instrumentos elementares_e_eventual- mente improvisé-los.* Relacoes temporarias de solidariedade ou de Su- bordifilacao podem aparecer e desfazer-se no interior de um determinado grupo. Finalmente, é possivel que alguém se divirta em reconhecer em algumas atitudes singulares o esboco de formas desinteressadas de ativi- dade ou de contemplagéo. Um fato notvel 6 que sao sobretudo os senti mentos que associamos de preferéncia @ parte mais nobre de nossa na- tureza, cuja expresséo parece poder ser mais facilmente identificada nos antropéides, como o terror religioso e a ambigiidade do sagrado.’ Mas se todos estes fendmenos advogam favoravelmente por sua presenca, sfio ainda mais elogiientes — e em sentido completamente diferente — por sua pobreza. Ficamos menos impressionados por seu esboco elementar do que pelo fato — confirmado por todos os especialistas — da impos: sibilidade, ao que parece radical, de levar esses esbocos além de sua expressio mais primitiva. Assim, 0 fosso que se poderia esperar preencher por mil observagdes engenhosas na realidade é apenas deslocado, para aparecer ainda mais intransponivel. Quando se demonstrou que nenhum obstéculo ahatémico impede o macaco de articular os sons da linguagem, © mesmo conjuntos sildbicos, sé podemos nos sentir ainda mais admi- rados pela irremedidvel auséncia da linguagem e pela total incapacida- de Ge atribuir aos sons emitidos ou ouvidos o cardter de sinais. A mes- ma verificacdo impoe-se nos outros terrenos. Explica a conclusio pes- simista de um atento observador que se resigna, apés anos de estudo e de experimentagéo, a ver no chimpanzé “um ser empedernido no es- treito circulo de suas imperfeigdes inatas, um scr ‘regressivo’ quando 8. P. Guillaume e I. Meyerson, Quelgues recherches sur I'intelligence des singes (communication préliminaire), e: Recherches sur T'usage de l'instrument chez les singes. Journal de Psychologie, vol.’ 27, 1930; vol. 28, 1931; “vol. 31, 1934; vol. 34, 1938. 9, W. Kohler, The Mentality’ of Apes, ‘apéhdice & segunda edicao. 44 he cil “comparado ao homem, um ser que no quer nem pode enveredar pelo eaminho do progresso”."* Porém, ainda mais do que pelos insucessos diante de tentativas bem efinidas, chegamos a uma convicedo pela verificacio de ordem mais geral, que nos leva a penetrar mais profundamente no amago do pro- blema. Queremos dizer que é impossivel tirar conclusées gerais da ex- periéncia, A vida social dos macacos néo se presta & formulaco de ne- nhumafnorma.J&m presenca do macho ou da fémea, do animal vivo ou morto, do jovem e do velho, do parente ou do estranho, 0 macaco comportase com surpreendente versatilidade. Nao somente o comporta- mento do mesmo sujeito néo é constante, mas néo se pode perceber nenhuma regularidade no comportamento coletivo. Tanto no dominio da Yida sexual quanto no que se refere as outras formas de atividade, 0 estimulante, externo ou interno, e os ajustamentos aproximativos por in- fluéncia dos erros e acertos, parecem fornecer todos os elementos ne- cessdrios a solucdo dos problemas de interpretacdo. Estas incertezas sparecem no estudo das relacdes hierdrquicas no interior de um mesmo grupo de vertebrados, permitindo contudo estabelecer uma ordem de Subordinacéo dos animais uns em relacéo aos outros. Esta ordem ¢ no- tavelmente estdvel, porque 0 mesmo animal conserva a posi¢éo dominan- te durante periodos de ordem de um ano. E no entanto a sistematiza- <0 torna-se impossivel devido a freqiientes irregularidades. Uma gali- nha subordinada a duas congéneres que ocupam um lugar mediocre no quadro hierdrquico ataca no entanto o animal que possui a categoria mais clevada. Observam-se relacées triangulares, nas quais A domina B, B domina C e C domina A, ao passo que todos os trés dominam o resto do grupo.” © mesmo acontece no que diz respeito as relacdes e gostos indivi- duais dos macacos antropdides, entre os quais as irregularidades sio ain- da mais acentuadas. “Os primatas apresentam muito maior diversidade em suas preferéncias alimentares do que os ratos, 0s pombos e as ga limhas."* No dominio da vida sexual, também, encontramos neles “um quadro que corresponde quase inteiramente ao comportamento sexual do omem... tanto nas modalidades normais quanto nas manifestagdes mais notéveis habitualmente chamadas “anormais”, porque se chocam com as convencées sociais”."* Por esta individualizagio dos comportamentos, 0 orangotando, o gorila e o chimpanzé assemelham-se singularmente ao ho- mem."* Malinowski esta portanto enganado quando diz que todos os fatores que definem o comportamento sexual dos machos antropdides 10.N. Koht, La Conduite du petit du chimpanzé et de enfant de l'homme, Journal de Psychologie, vol. 34, 1937, p. 531; € os outros artigos do mesmo autor! Recherches sur I'intelligence du chimpanzé par la méthode du “choix d'aprés_modele”. Bid. vol. 25, 1628; Les Aptitudes motrices. adaptatives du singe intérleur. 7bid., vol ii. W. C. Allee, Sociel Dominance and Subordination among Vertebrates, em Levels Of Integration in Biological and Social Systems, Biological Symposia, vol. VIIL, Lan- 12, A. H. Maslow, Comperative Behavior of Primates, VI: Food Preferences of Primates, Journal of ‘Comparative Psychology, vol. 16, 1933, p. 196 18. G. 8. Miller, The Primate Basis of Human Sexual Behavior. Quarterly Review of Biology, vol. 6,'n. 4, 1931, p. 392. 14 R. M, Yerkes, ‘A Program of Anthropoid Research, American Journal of Psycho- Jogy, vol. 39, 1927, 'p. 181. R. M. Yerkes e S. H. Hider, Gistrus Receptivity and Hebne jp Chimpanzee. Comparative Paychology Monographs, vol. 13, n. 5, 1098, sér. 45 séo comuns a todos os membros da espécie “funcionando com uma tal uniformidade que, para cada espécie animal, basta um grupo de dados e um s6... as variagdes sio tao pequenas e tao insignificantes que o zodlogo esté plenamente autorizado a ignoré-las”."* Qual €, a0 contrério, a realidade? A poliandria parece reinar entre os macacos gritadores da regiio do Panamé, embora a proporgio dos machos com relacéo as fémeas seja de 28 a 72, De fato, observam-se relagdes de promiscuidade entre uma fémea no cio e varios machos, mas sem se poder definir preferéncias, uma ordem de prioridade ou ligagdes duraveis. " Os gibdes das florestas do Sido viveriam em familias mondgamas relativamente estdveis. Entretanto, as relagées sexuais ocor- rem indiferentemente entre membros do mesmo grupo familiar ou com um individuo pertencente a outro grupo, confirmando assim — dir-seia —_a crenga indigena de que os gibées sio a reencarnagéo dos amantes infelizes. ** Monogamia e poligamia existem lado a lado entre os rhesus * e os bandos de chimpanzés selvagens observados na Africa variam en- tre quatro e quatorze individuos, deixando aberta a questdo de seu re- gime matrimonial.'* Tudo parece passarse como se os grandes maca- cos, jé capazes de se libertarem de um comportamento especifico, nao pudessem chegar a estabelecer uma norma num plano novo. O compor- tamento instintivo perde a nitidez e a precisio que encontramos na maioria dos mamiferos, mas a diferenca é puramente negativa e 0 do- minio abandonado pela natureza permanece sendo um territério néo- ocupado. Estafausencia de Tegra} parece oferecer o critério mais seguro que permita distinguir um processo natural de um processo cultural. Nada ha de mais sugestivo a este respeito do que a oposigio entre a atitude da crianga, mesmo muito jovem, para quem todos os problemas so regulados por nitidas distincdes, mais nitidas e as vezes imperiosas do que entre os adultos, e as relagdes entre os membros de um grupo si- miesco, inteiramente abandonadas ao acaso e dos encontros, nas quais © comportamento de um sujeito nada informa sobre o de seu congénere, nas quais a conduta do mesmo individuo hoje néo garante em nada seu comportamento no dia seguinte. E 4 ue, com efeito, hd um circulo ioso_ao se procurar na natureza a origem das regras institucionais que dem — mais ainda, que sio jé — a_cultura, e cuja instauracéo no interior de um grupo dificilmente pode ser concebida sem a intervencao da linguagem. A constancia e a regularidade existem, a bem dizer, tanto na_natureza_quanto na cultura. Mas na primeira aparecem precisamente no dominio em que na segunda se manifestam mais fracamente, e vice- versa. Em um caso, é 0 dominio da heranca biologica, em outro, o da tradigio externa. Ndo se poderia pedir a uma ilusdria continuidade en- tre as duas ordens que explicasse os pontos em que se opdem. et 3. Mal 1owski, Sex and Repression in Savage Society, Nova Iorque-Londres yp. 198. igC. R. Carpenter, A Field Study of the Behavior and Social Relations ot Howling Monkeys. Comparative Psychology Monographs, vols, 10-11, 1934-1935, p. 128. V7. ©, R. Carpenter, A Pield Study in Siam. of the Behavior and Social Relations Shygit®, Ginbon (Hylobates “lar). “Comparatice Psychology Monographs, vol. 16, 0. 8, 1, P._ 195. i8.C. R. Carpenter, Sexual Behavior of Free Range Rhesus Monkeys (Macaca mulatta) Comparative Psychology Monographs, vol. 32, 1942. 18. H. W. Nissen, A Pield Study of the Chimpanzee. Comparative Psychology Mo- nographs, vol. 8, n.'1, 1931, sér. 36, D. 73. 46 gue A Bair Por conseguinte, nenhuma_anélise_real_permite_apreender_o_ponto de_passagem entre os fatos da natureza e os fatos da cultura, além do mécanismo_da_articulacéo_deles. Mas 4 discusséo precedente néo fos Ofereceu apenas este resultado negativo. Forneceu, com a presenca ou @ auséncia da regra nos comportamentos nfo sujeitos as determinages instintivas, 0 critério mais valido das atitudes sociais. Em_toda_parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente, € facil _reconhecer no universal 0 criterio da natureza. Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa neécessariamente_ao dominio dos costumes, das técnicas e das instituicoes pelas quais seus grupos se diferenciam e se opoem. Na falta de andlise real, os dois critérios, o da horma e 0 da universalidade, oferecem o _ principio de uma andlise ideal, mc | casos e em certos limites — isolar os elementos naturais dos elementos 3 culturais que intervém nas sinteses de ordem mais complexa. Estabele- = camos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem : da _natureza_e se caracteriza pela espontaneidade, € que tudo quant 5 : 5 oo Cul tine ci fecde oho, Moving, 0 Berean | Bt ge. her Ne ycor Blank as Lal wraith Ot esta Tigado a uma norma pertence &_cultura e apresenta os atributos do relative e do particular. Encontramonios assim em face de um fato, ou anes de tm conjunto de fatos, que néo esta longe, & luz das definicdes precedentes, de aparecer como um escAndalo, a saber, este conjunto com- plexo de crencas, costumes, estipulagdes e instituices que designamos \sumariamente pelo nome de {prowimeaadns incerta] Poraue a proibigao do incesto apresenta, sem o menor equivoco € indissoluvelmente reunidos, os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditérios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas_uma_ri gra_que, tinica entre todas as _regras sociais, possii a0 mesmo tempo cardter_de_universalidade.“* Nao ha praticamente necessidade de demons- trar que a’ proibicho do_incesto constitui_uma_regra. Bastard -lembrar que a proibicio do casamento entre parentes prdximos pode ter _um ampo de ~aplicagao. varidvel, de acordo com o™modo™¢omo cada grupo (define o que entende por parente préximo. Mas esta proibicao, sancio- {nada por penalidades sem dtivida varidveis, podendo ir da imediata exe- cugaéo dos culpados até a reprovacao difusa, e as vezes somenté até a \zombaria, esta sempre presente“em qualquer grupo social. Com efeito, no se poderia invocar neste assunto as famosas exce- gdes com que a sociologia tradicional se satisfaz freqiientemente, ao mos- trar como sao poucas. Porque toda sociedade faz excecdo a proibicao do incesto quando a consideramos do ponto de vista de outra sociedade, cuja regra 6 mais rigorosa que a sua, Treme-se ao pensar no numero de excegdes que um indio paviotso deveria registrar a este respeito. Quando nos referimos as trés exceedes cldssicas, 0 Egito, o Peru, 0 Havai, a que alids é preciso acrescentar algumas outras (Azande, Madagéscar, Birménia, etc.), nao se deve perder de vista que estes sistemas so exce- ces relativamente ao nosso proprio, na medida em que a proibicéo abrange af um dominio mais restrito do que entre nds. Mas a nocao 20. “Se pedissemos a dez etndlogos contemporaneos para jindicar uma_institui- go humana, universal, € provavel que nove escolhessem a proivicao do incesto. Vd- Tios deles jé a desigharam formalmente como a nica institui¢So universal”. Cf. A. L, Kroeber, Totem end Taboo in Retrospect. American Journal of Sociology, vol. 45, n. 3, 1939, p. 498. 47 pode permitir —ao menos em certos ~ de excecio € inteiramente relativa, e sua extensio seria muito diferente para um australiano, um tonga ou um esquimd. A questo nao consiste portanto em saber se existem grupos que | permitem casamentos que séo excluidos em outros, mas, em vez disso, em saber se hé grupos nos quais nenhum tipo de casamento é proibido. | A resposta deve ser entao absolutamente negativa, e por dois motivos. | Primeiramente, porque o casamento nunca € autorizado entre todos os | parentes proximos, Tas somente entre algumas categorias (meia-irma com | exclusao da irma, irm& com excluséo da mie, etc.). Em Segundo lugar, | porque estas unides consangiiineas ou tém cardter tempordrio @ ritual ou carater~ oficial e permanente, mas —neste—ultimo—caso~si0~ privilégio | de uma ca rita. Assim_é que em Scar a méé, a irmid @ as _vezes também a prima S40 cOnjuges proibidos para | as pessoas cOmuns, ad passo que para os grandes chefes e os reis so- | mente a mée — mas assim mesmo a mie — é jady, “proibida”. Mas ha tao poucas “excegdes” & proibicio do incesto que esta 6 objeto de ex- trema susceptibilidade por parte da consciéncia indigena. Quando um | matrimonio ¢ estéril, postula-se uma relac&o incestuosa embora ignorada, as cerimOnias expiatérias prescritas sio automaticamente celebradas. * © caso do Egito antigo ¢ mais perturbador, porque descobertas re- centes sugerem que os casamentos consangiiineos — particularmente entre irma e irm&o — representaram talvez um costume espalhado entre os pequenos funcionérios e artestios, e nfo limitado, conforme se acre- ditava outrora', & casta reinante e as mais tardias dinastias. Mas em matéria de incesto nio poderia haver excegio absoluta. Nosso eminente colega Ralph Linton observou-nos um dia que na genealogia de uma fa- Inilia nobre de Samoa, estudada por ele, em Oito casamentos consecuti- vos entre irm&o e irm& somente se refere a uma irm& mais moga, e que a opinido indigena tinha condenado como imoral. O casamento entre 0 ir- moe a irma mais velha aparece pois como uma concessdo ao direito de primogenitura, e nfo exclui a proibigao do incesto, porque, além da mée e da filha, a irma mais moca continua sendo um cOnjuge proibido, ou pelo menos desaprovado. Ora, um dos raros textos que possuimos sobre a organizacio social do antigo Egito indica uma interpretacéo and- loga. Trata-se do papiro de Boulag n. 5, que relata a historia da filha de um rei que quer casar-se com seu irmao mais velho. A me pon- dera: “Se néo tiver filhos depois desses dois, néo 6 obrigatdrio casé- los um com! outro?” * Também aqui parece tratar-se de uma férmula de proibigio que autoriza o casamento_com_a_irmfi mais velha, mas_repro- yva-a com a mais moca. Veremos adiante que os antigos textos japoneses descrevem o incesto como uniao com a irr ‘is_moga, sendo excluida a mais velha, alargando assim o campo di ssa_interpretacéio. M nesses casos, que poderiamos ser tentados a considerar como limites, a 21, H. M. Dubols, S.J., Monographie des Betsiléo, Tranaur et Mémoires de Institut @Eihaologie, Paris, ‘vol. ‘34, 1938, p. 876-879. 28. M. A. Murray, Marriage in Ancient Egypt, em Congrés international des Sciences anthropologiques, Comptes rendus, Londres 1934, p. 282. 23. E. Amelineau, Essai sur Vévolution historique et ‘philosophique des idées mo- rales dans V'Egypte’ ancienne, Bibliothtque de V'Hoole Pratique des Hautes Etudes. Sciences religieuses. vol. 6, i805, p. 7273. — W. M. FlindersPetrie, Social Life in Ancient Egypt, Londres’ 1923, p.” 110ss 2%. G. Maspero, Contes populaires de VEgypte ancienne, Paris 1809, p. 171. 48 regra da universalidade nao 6 menos aparente do que o carter norma- ‘vo da instituicdo. Eis_aqui, pois, um fendmeno que apresenta simultaneamente o_ca- réter distintivo dos fatos da natures e o cardter distintivo, — teorica- mente contraditorio do precedente — dos fatos da cultura. {a_proibicao do incesto possui_a0 mesmo tempo a umiversalidade das tendéncias dos instintos e o cardter coercitivo das leis e das instituiqoes) De onde provém entao? Qual € seu lugar e significacdo? Ultrapassando ‘inevitavel- menie os limites sempre histdricos e geograficos da cultura, coextensiva mo tempo e no espaco com a espécie biolégica, mas reforcando, pela proibicso social, a acdo espontanea das forcas naturais a que se opde por seus caracteres prdprios, embora identificando-se a elas quanto ao campo de aplicacdo, a proibigio do incesto aparece diante da reflexio sociolégica como um terrivel mistério. Poucas prescrigées sociais preser- varam, com igual extenséo, em nossa sociedade a auréola de terror res- peitoso que se liga as coisas sagradas. De maneira significativa, e que teremos necessidade de comentar e explicar mais adiante, o incesto, em forma propria e na forma metafdrica de abuso de menor (conforme diz © sentimento popular, “da qual se poderia ser o pai”), vem a encontrar-se mesmo, em certos paises, com sua antitese, as relacdes sexuais inter-ra- ciais, que no entanto séo uma forma extrema da exogamia, como os dois mais poderosos estimulantes do horror e da vinganga coletivas. Mas este ambiente de temor migico nfo define somente o clima no qual, ainda mesmo na sociedade moderna, a instituicao evolui. Este ambiente envolve também, no plano te6rico, debates aos quais, desde as origens a sociologia se dedicou com uma tenacidade ambigua: “A famosa ques- tao da proibicéo do incesto, declara Lévy-Bruhl, esta verata quaestio de que os etndlogos e os socidlogos tanto procuraram a solucao, néo admite nenhuma. Nao ha oportunidade em colocd-la. Nas sociedades das quais acabamos de falar é imitil perguntar por que razio o incesto é proibido. Esta proibicéo nfo existe...; ninguém pensa em proibi-la. # alguma coi- sa que nao acontece. Ou, se por impossivel isso acontecesse, seria alguma coisa inaudita, um monstrum, uma transgressio que espalha o horror e © pavor. As sociedades primitivas conhecem a proibicio da autofagia ou do fratricidio? Essas sociedades nao tém nem mais nem menos razio para proibir 0 incesto”.* N&o nos espantaremos em encontrar tanto constrangimento em um autor que néo hesitou contudo diante das mais audaciosas hipdteses, se considerarmos que os socidlogos sio quase unfinimes em manifestar, di- ante deste problema, a mesma repugnancia e a mesma timidez. 25. L. Lévy-Bruhl, Le Surnaturel et ia Nature dans la menialité primitive, Paris 1931, p. 247, 49

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