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responsabilidade, quer ela seja ou no capaz. de aprendizagem, estar atirando sua responsabilidade aos ventos, apenas para vé-la de volta sentada num furacio”.* 41. Norbert WIENER, Cibernétiea e Sociedade, p. 183, 160 Papiue core PARTE 3 . PERSPECTIVAS ANTROPOLOGICAS Queda esperanca? Eo pressentimenta de que a imaginasao & mais real e que ‘a realidade é menos real do que parece. A esperanca & a ‘conviego de que a perturbadora brutalidade dos fais que “aoprimem e reprimen nao hi deter a tina palayra Ba é is compleva do que 0 suspeita de que a realidade é muito mals comp! rato querforer ns cre eas foes do pose 0 “cam determines pelos lites do ata. Rubem Alves 6 O HOMEM: SUAS OBRAS E POSSIBILIDADES Este capitulo pretende ser uma breve reflextio sobre o homem da era tecnolégica. O ser humano criou a ciéncia e a tecnologia e, nos dias em que estamos, mal consegue situar-se em relagio as suas criatures. Examinaremos trés questdes bisicas, que poderiamos enunciar do seguinte modo: a) que culpa teve o homem ocidental (em termos de intencionalidade e premeditag#o) de haver construido um mundo to contraditério para si, como se mostra o mundo resultante da tecnificagio? b) Como o homem atual se compreende a partir da imagem do ambiente que ele mesmo criou? ) Com que perspectiva pode contar 0 homem contemporineo? Sao todas questdes muito dificeis, sem davida, Mas a esta altura do presente texto, no devemos fugir a elas. Se algumas das nossas colocagdes se mostrarem mais intuitivas do que rigorosamente logicas, {sto também terd a ver com o objeto da reflexto: o homem, Assim se exprime CASSIRER: “O pensamento racional, © pensamento légico e metafisico, sé pode compreender os objetos que estio livres da Fiota ca cidrcia oda teonlogia 163 contradigao e possuem uma natureza e verdade coerentes. Entretanto, é precisamente esta homogeneidade que nunca encontramos no homem. Nio € licito ao filésofo construir im homem artificial; cumpre-the deserever um homem verdadeiro”.! Um mundo tao contraditério Certamente que ninguém nunea desejou a sordidez, a feiura ou a falta de sentido. Se FREUD esteve certo ao afirmar que somos todos vitalmente faseinados pela busca do prazer (principio do prazer), ou bem antes de FREUD esteve certo ARISTOTELES ao ponderar que a vida humana é uma caminhada constante a procura da felicidade, ninguém pode ter planejado e desejado construir a prépria infelicidade do atual ambiente, que caracteriza a tecnologia cientifica. ! No entanto, todos fomos contribuindo para a construgdo de um | ambiente feio, frequentemente sérdido, ¢ para a instalagiio de um modo : de viver vazio e desorientado. ; i Durante séculos estivemos fascinados pelas possibilidades de progresso e vida mais suave, com as quais a ciéncia e a técnica nos acenavam, Agarramos estas possibilidades de forma decidida mas, a0 ‘mesmo tempo, impensada, Nem todos os homens do século XIX, por exemplo, conseguiram antever os perigos que um progresso irrefletido poderia trazer. E porque abundou, entre nossos antepassados, lamentvel ingenuidade quanto 4 esséncia dialética das realizagdes humanas, nao € licito conceber que 0 homem ocidental houvesse premeditado a construgiio do seu feio mundo, Ocorre que o desenvolvimento do proprio industrialismo ! tecnolégico, esvaziando sistematicamente 0 nosso contetido humano, substituiu em nds o desejo de ser pelo desejo de fer. Persuadiu-nos de que devemos fer muitas coisas, quinquilharia a mais variada, que entulha © 1. Emst CASSIRER, Aniropologia Filaséfca, p30. 164. Papins Edtora deforma a face do nosso ambiente. Acudimos a palavra de ordem da logica tecnicista como sonambulos. Fomos deixando que toda uma gama de novas necessidades se desenvolvesse em nés e, para suprir estas mesmas necessidades, fomos destruindo, esburacando e entulhando. Agora ji nao valia mais nada algumas vozes dizerem que as necessidades essenciais do homem séo em muito menor numero, porque uma civilizago toda nos havia condicionado. Como escreve René DUBOS: “A expresso necessidade essencial 6, portanto, desprovida de sentido, pois na pritica as pessoas necessitam do que desejam. As necessidades sio determinadas ‘menos pelas exigéncias bioldgicas do Homo Sapiens do que pelo ambiente social no qual uma pessoa vive e, especialmente, naquele onde fo criada. ‘Os membros de um determinado grupo social geralmente passam a desejar consequentemente desenvolvem uma necessidade por qualquer coisa considerada imprescindivel para a sua aceitag3o no grupo” De modo ‘que, & medida que os desejos se fazem em necessidades, nds também nos fazemos menos liicidos e, sem premeditagao culposa, colaboramos na realizacdio de uma vida desagraddvel — quando estavamos era buscando um melhor viver, identificado este com a satisfa¢do mais imediata das nossas necessidades, Ambiente e compreensdo do homem Referindo-se sobre a influéncia da arquitetura sobre a vida interior dos homens, o estadista Winston CHURCHILL falou, em um discurso: “moldamos nossas construgdes € elas, posteriormente, nos moldam”, Entendemos, contudo, que este prineipio se estende para além da arquitetura simplesmente, evidenciando-se vilido no tocante a toda & qualquer construgio humana, O homem ceria cultura, entendida esta como toda a parte do ambiente que resultou do trabalho humano, Nisto entram conhecimentos, 2. Um Animal t20 Humano, p. 147. Filosola da onc @ da tecnologia. 165 crengas, artes, estilos de trabalho e lazer ete, A medida que exerce sua idade construindo engenhosamente seu modo de sobreviver, 0 homem Se vai deixando condicionar pelas suas proprias eriaturas Intl € tentarmos mentalizar individuos fechados em si mesmos, isolados do ambiente e reduzidos apenas aos limites do seu organismo, Rubem ALVES escreve: “Porque 0 corpo do homem é algo muito mais amplo do ‘que o seu proprio ¢ imitado organismo: € a civilizag&o toda que criamos com o fim de tornar possivel a existéncia.? Desde 0 prineipio da Idade Moderna, com 0 advento do experimentalismo cientifico, até os tltimos séculos nos quais a tecnologia floresceu e se impés, fomos criando todo um ambiente do qual nem tinhamos real consciéncia, Apinhamos as cidades, complexificamos superficializamos 0 relacionamento humano, rendemo-nos a formas cada ‘vex menos humanas de conceber 0 nosso espago habitavel. Cometemos uma série de erros tentando, o mais das vezes, acertar, Hoje estamos desejosos de saber como compreendemos a nés ‘mesios a partir dos aopectos du ambiente que criamos. Sendo, ohomem, lum ser-no-mundo e, ainda mais, sendo ele um ser de relagdes, ndo & dificil de entender que um dos didlogos mais fundamentais o homem o mantém com as suas construgdes. Estamos todo o tempo muma conversa silenciosa com o ambiente. Nossas ruas, casas, estilos de viver falam-nos a respeito do que somos. Nestes tempos marcados pelas realizagdes cientificas & tecnolégicas, o ser humano descobre no mundo algumas caracteristicas que 0 apavoram e passa a introjeté-las, no af de obter uma imagem de simesmo. Com o apenas objetivo de dar, a0 leitor, como que o prinefpio de um roteiro para 0 processo de reflexto, examinaremos algumas introjegdes que se fazem mais evidentes. © homem medieval, por exemplo, sentia-se possuidor de uma esséncia espiritual, por se entender filho de um Deus vivo e poderoso, Mela seu proprio valor pela sua esséncia e a paternidade divina conferia- 3. Mijos del Manana, p.81 166. Papius Ectora the uma dignidade com a qual podia pairar um tanto acima das dividas inquictagdes. Os tempos correram, porém. Miiltiplas mudangas se deram, até que chegaram os dias atuais, em que o valor do ser humano passou a residir na funglo econdmica que ele desempenha. Seu valor é sua produtividade, de modo que, fenecendo sua capacidade de produzir, fenece também seu valor. Basta que analisemos como os velhos s80 tratados na sociedade ocidental, e teremos confirmado nosso raciocinio. Mas como 0 homem chegou a tal subestima de si mesmo! Como, de um essencial filo de Deus, veio a se considerar uma mera fungao produtiva? Estas perguntas conduzem a diversas reflexdes. Todavia, uma sobremaneira nos parece a mais merecedora de abordagem, Vejamo-la Na chamada “eivilizagio pré-maquinista” e mesmo algum tempo depois da Revolugao Industrial, os artesdos primeiro e depois diversos industriais estiveram empenhados em uma huta por produzir objetos duréveis ¢ por manté-los, la-se saindo de um mundo elaborado sobre a ideia de estabilidade; principiava-se a entrar no mundo das mudangas vertiginosas, Desenvolveu-se, entdo, em meio a uma atividade econdmica alheia a prineipios éticos ¢ s6 preocupada com elculos de quantidade, 6 lema fundamental do industrialismo tecnolégico: produzir objetos cefmeros. Assim 0 produto descartdvel iniciou sua trajetoria entre nés, das mercadorias simples até envolver toda a nossa concepgdo de vida. ‘Quem, num passado nio muito distante, deixou de sonhar com poss! ‘uma caneta-tinteiro da melhor marca, que usaria quase que por toda a vida? Este tipo de coisas, no entanto, foi visto como antiecondmico, & ‘0s porta-vozes do industrialismo persuadiram-nos de que uma canetinha esferogratica de alguns centavos podia ser usada e jogada fora... sempre se poderia ter uma nova. ‘As coisas precisavam ficar obsoletas com maior facilidade. Cada objeto produzido pela indistria hoje, precisa tornar-se imitil ou fora de ‘moda o mais depressa possivel. Este obsoletismo se foi irradiando para quase todas as realizagdes humanas, surgiram casas pré-fabricadas e desmontiveis, os méveis foram apresentando uma feitura preedria e quase tudo que agora vemos & nossa frente & de alguma forma, descartérvel. Filogota da onoi @ da tecnologia 167 Estas caracteristicas foram, contemporaneamente, introjetadas de forma emocional pelo set humano; coneebeu-se, enti, por um processo nao propriamente consciente, que também as pessoas ficam obsoletas e, neste caso, devem ser postas fora de uso, voltamos a lembrar: nosso mundo muito cruel para com os velhos. A soviedade teenolégica éacima de tudo a sociedade da juventude. Mas como os jovens vio um dia ficar velhos, todo um processo de inseguranga esta subvertendo os grupos humanos. A angustia € uma consequéncia inevitivel do mundo do efémero. Mas hé outra modalidade de introjeetio de nao menor importincia, Com 0s apinhamentos nas metr6poles, os contatos humanos foram se tornando miltiplos e diversificados, perdendo, todavia, qualidade e profundidade. Sem falar nos problemas fisiolégicos que as aglomeragdes tendem a acarretar, este relacionamento muito horizontalizado, carente da verticalidade do aprofundamento humano, tem conduizido o nosso estilo de vida a uma despersonalizagaio contundente, Segundo DUBOS, “Testes fisiol6gicos revelam que o apinhamento comumente tem como resultado ‘aumento de secteciio de virios horm@nios que afetam toda a fisiologia humana, Uma atividade hormonal adequada e essencial a0 bem-estar, mas qualquer excesso tem virios efeitos prejudiciais”.* No entanto, de uma forma mais imediatamente visivel, é mesmo a despersonalizagdo das relagdes 0 dado que o homem de hoje introjeta com maior facilidade em sua autoavaliagao. Introjeta a imagem da despersonalizagdo e passa ase ter na conta de um ser deformado e impotente no que diz respeito a0 telacionamento humano. Ainda ¢ René DUBOS quem observa: “N80 percebemos o infortinio porque nos consideramos, assim como 20s outros homens, como coisas endo como semelhantes” * Por outro lado, o apinhamento ea despersonalizagdo acabam levando-nos a outras observagdes e consequentes introjegdes. Ora, 0 hhomem do nosso tempo € levado a concluir que toda a magnifica intena0 dos antepassados de construirem um monumento maravilhoso, algo que 4. Um Animal do Humaro, p. 134. 5. IBidem, p. 145, 168 Papirus Estora focasse 0 céu resultou em nova Torre de Babel, na qual ninguém se entende que se vai tormando ela mesma (a torre) imprestivel ¢ incompreensivel. Em outras palavras: o homem, por nfo conseguir entender 0 mundo que o cerca, raviocina que o criador deste ambiente insano s6 pode ser um loueo. “Zorba”, escreve ALVES, “costumava dizer que ele era demasiado grande para este mundo ou dito de outra forma: que o munda Ihe parecia pequeno. .Nés experimentamos justamente o contrério: poucos de nés compartiriamos com Zorba essa atitude. Pensamos que o mundo é demasiado grande, até inabaredvel para nés, por demiais complicado, Realmente o problema nao tem nada que ver com o tamanho, sendo muito mais com a capacidade de ‘fazer inteligivel o que nos rodeia, quanto existe ao nosso redor. O mundo no tem sentido”.* Esta iltima expresso (“O mundo nio tem sentido”) 1nds a internalizamos com facilidade e, gradativamente, a transformamos para “eu niio tenho sentido”. Voltamos a afirmar que é nas marcas que 0 homem deixa no mundo que ele proprio vai lendo o seu passado como espécie ¢inferindo determinadas qualidades que Ihe sio interiores, E, 0 ser humano, um animal que transforma fortemente a paisagem, imprimindo nesta uma histéria que costuma contara respeito dos seus eonteiidos mais profundos. Haas cigneias hermenéuticas (humanas) que procuram interpretar, dentro do rigor possivel, o homem e suas obras, Muita coisa, no entanto, é por nds pereebida de forma mais emocional em nosso ininterrupto didlogo com o ambiente © processo urbanistico, envolvido pela mentalidade cientficista do industrialismo tecnoldgico, estabeleceu, em certo momento, uma ruplura entre o espago habitado pelos homens ¢ a natureza. Hoje vemos uma reaglo a isto no traballo dos urbanistas mais conscientes, a luta pela reimplantago de espagos verdes e a campanha de reavivamento do significado dos logradouros para a convivéneia urbana, Masa eorientagao, & sempte mais lentae dificil do que a primitiva desorientagdo. Em dado ‘momento, o mundo cientifico ¢ teenolégico rompeu com a natureza, Tal 6. Rubem ALVES, Hijos del Maitana, p. 84: Fiosola da ofnca eda tecnologia 169 rompimento significa que a natureza deixou de ser apreciada e respeitada ‘como mensageira de uma harmonia legitima, para representar tio somente lum manancial de matéria-prima, Nada de contemplar a natureza ou, como queria o pocta, “ouvir estrelas”. Era ungente fazer alguma coisa com a natureza e irs estrelas. Esta nova posigao ndo deu, logo de inicio, como resultado, um empobrecimento urbanistico e arquitetGnico. Foram vividos 0s séculos XVI, XVII e XVIII antes que descobrissem que a ciéneia ea técnica eram fungdes explordveis economicamente, Com o século XIX, 0 ideais humanisticos da ciéncia softeram o impacto do industrialismo nascente ¢ todas as altas aspiragDes cristalizadas pelo “Século das Luzes” (XVID foram barateadas pelo pragmatismo de uma bunguesia que se endinheirava, havendo antes (curiosamente) fundamentado os anseios da Revolucdo Francesa, Cigncia ¢ técnica deixam de se propor como instruments de realizagio de uma humanidade mais feliz, e se fazem em uma tecnologia cientifica subvertida pelos interesses das grandes instituigdes econdmicas. Entrando ja 0 presente século, as nossas casas, ruas e demais, edificios vio mudando muito de aspecto. O fascinio pelo Incro instalara © mundo do efémero. A beleza das casas passou a ser de um modo geral, negligenciada; importante mesmo era que as construgdes fossem Jfinetonais, préticas, dando o menor trabalho possivel aos moradores, que nelas nflo permaneciam muitas horas por dia. As exigéncias especiais e 8 velocidade da vida requeridas pela sociedade industrializada fizeram, dos homens, visitas em suas préprias casas. E, principalmente, as construgdes foram perdendo sua “personalidade”: enquanto antes era, cada casa, a expressiio de como os seus moradores sentiam e pensavam, agora as construgdes se iam uniformizando em padrées arquiteténicos mais baratos ¢ funcionais, Isto € valido também para os prédios (com apartamentos ¢ fachadas iguais) particulares, bem como para os prédios

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