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O apartheid MITIGADO Uma reflexao filoséfica sobre as relacdes sociais na cidade moderna exige que detenhamos nossa atengao para um dos seus frutos mais impactantes na configuracao visual do tecido urbano: a construgao do shopping center ais do que um espaco ‘comercial que favore- ce 0 desenvolvimen- to de interagbes so- letérias assépticas e seguras,o shopping center é também uma ideologia materializada e uma producio de signos, caracteristicas que exigem um estudo multidisciplinar para compreen: dermos razoavelmente a presenga desse espago na topografiacitadina. A configuracao fisica do shopping center apresenta uma estrutura de recep- tividade e acolhimento similar aquela exercida pelo titer materno na prote G40 do feto. Com eftito, o frequentador desse espago social de consume vivencia uma experiéncia de seguranga tal como a proporcionada por uma mie, regulan- do a sensagdes de calor e de frio em seu organismo. Talvez, por isso, seja pratica- mente impensdvel uma visita répida em tal centro de compras, Vai-se ao shopping center para se pasar uma manha inteira, ‘uma tarde inteira, uma noite inteira, até ‘mesmo para se ficar 0 dia todo. Por isso existe a profusdo de tantos servigos, para que 0 consumidor-cidadao deseje gastar parte do seu tempo diario nesse ambien- te tio agradivel. Conforme argumenta 0 antropélogo italiano Massimo Canevacci, “p shopping center, o hipermercado é a somatéria mixima do pés-moderno, espaco metropolitano liberado e prote- gido, no qual todos modelos se somam, se justapdem sincronicamente, onde se experimenta e entra em contato com a hierarquia dos olhares, entre a fantas- magoria das mercadorias ¢ dos narcisis- ‘mos, espago no qual o tempo é como que suspenso ou, por assim dizer, adiado” ! © grande prazer do consumidor- -cidadao frequentador do shopping cen- ter reside em sentir o ar-condicionado em contato com sua epiderme, relaxando os Renaro Nunes Brrrencourré BOUTON EM FILOSOFIA, LO PPGE-UFRY, PRorEsson Do CURSO DEESPECIALIZAGAO eM Pesquisa DE MercanoE OpmxiZ0 DA UER}. ProEsson DA FacuLDapE CCAA pps EacuLpaps Dugue DE ‘Caxas-UNtESR MEMBRO DoGauro ne Prsavisa SPINOZA & NIETZSCHE, _RENATONUNES rrmevcourr@cacatt ‘www.portalcienciaevida.com.br * Filosofia ciéncia&vida * 55 (0+ Tolezinhos” colocaram fem xeque a diviso social Jimplicta pos shopping centers, espagos que segregam a sociedade entre _aqueles que podem e as que aio podem consumi-to A CONFIGURACAO FISICA DO SHOPPING CENTER APRESENTA UMA ESTRUTURA DE RECEPTIVIDADE E ACOLHIMENTO SIMILAR AQUELA EXERCIDA PELO UTERO MATERNO NA PROTEGAO DO FETO seus misculos apés o sofrimento impos- to pelo sol escaldante do espago aberto das ruas. No caso de um dia frio, a clima- tizagao do shopping center lhe propor- ciona uma sensago de conforto, como um banho morno aps sentir as agruras doar gelado. A circulagao pelo shopping gera um efeito orgéstico na afetividade do indi- vyiduo. Seu impeto por consumo, esti- mulado pelas belas lojas ¢ seus efeitos sedutores, excita seu sistema nervoso de tal forma que o prazer pela compra e pelo proprio ato de estar presente nesse es- aco especial de consumo causa-the um g0z0 existencial poderosissimo. sistema de vigilincia do regime ca- pitalista segue a estrutura do Panéptico idealizado por Jeremy Bentham (1748- 1832), dispositive que representa analo- gamente a manifestagio social (policial) do olhar onisciente de Deus, que conhece de antemio 0 intimo de todas as coisas, uma espécie de grande projeto utdpico, aja instauragao resolveria definitivamen- te 0 problema da seguranga da sociedade urbana: “Quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devam inspe- cioné-las, mais perfeitamente 0 propésito do estabelecimento tera sido alcancado. A perfeicao ideal, se esse fosse 0 objetivo, exi- giria que cada pessoa estivesse realmente nessa condigdo durante cada momento do tempo, Sendo isso impossivel, a proxima coisa a se desejar é que, em todo momen- to, a0 ver razao para acreditar nisso e a0 nao ver a possibilidade contraria, ele deve- ria pensar que est nessa condicao”* ‘Ao estudarmos as infraestruturas das grandes cidades, poderemos constatar a elaboragdo de uma espécie de arquitetura do medo, que modificou grotescamente as configuragées estéticas dos centros urbanos, tornando, assim, necessiria a construgio de prédios, condominios ¢ shopping centers de “seguranga maxi ma” como defesa contra as ameacas dos “outros”, isto a5 pessoas que nao séo consideradas economicamente vidveis, assim como a grande massa de marginais sociais estereotipadas como feios e sujos. Essa € a face excludente do capitalismo tardio, que embeleza o mais feio dos ho- mens, desde que ele tenha dinheito, caso contrario, resta-lhe a vivéncia de todas as violencias possiveis. O shopping center representa assim o projeto moderno de securitizagao da vida, 2 BENTHAM 2000, p17 no qual todas as ameagas da barbarie sio pretensamente excluidas em prol da paz, da tranquilidade, do siléncio, do conforto e do prazer, Nessas circunstancias, 0 pe- riodo de frequentagao desse espaco privi- legiado de seguranga 6 marcado pela sus- enso momentinea de todas as agruras sociais que aguardam 0 consumidor-cida- dio do lado de fora das muralhas de pro- tego do shopping center. Nada da cacofo- nia dos veiculos de transporte e das vores. humanas dissonantes nas ruas metropo- litanas, Para individuos neurasténicos, 0 shopping center se evidencia como uma grande terapia psiquica de relaxamento ‘quealivia as tensdes cotidianas. O escritor brasileiro Daniel Veloso descreve a hipo- condria do “idiota” oprimido pelo temor difuso produzido pela efervescéncia das tensas relagdes sociais na vida metropoli- tana: “E meio assustadora essa mania de ter medo, mas jé é banal. Eu queria por tum dia nao ter medo denada, maso medo jfaz parte de mim e, se eu algum dia nao tiver medo, ficarei inseguro”? ‘O silencio sepuleral reina no shopping center, desprovido, todavia, do elemento tétrico e apavorante que habita os locais, ermos da cidade. Contudo, o siléncio he ternomo do grande templo do consumo 10 favorece a interiorizac3o humana, do promove a meditacdo pessoal sobre o valor da vida; antes, serve como instru- ‘mento concentrador da consciéncia dire- cionada para os atos de consumo. Mesmo 4 oferta de massagens relaxantes por 15 minutos nao resolve essa demanda hu- ‘mana por paz psiquica, pois como alguém consegue ficar despojado plenamente diante do olhar coletivo das massas em fluxo no shopping center? A voz do silén- cio nao pode ser ouvida nesse espaco de irculagio veloz shopping center & sectario da légica da identidade pautada nos signos do su-

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