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O CONCEITO DE IDENTIDADE NACIONAL NA, ARTE MINEIRA DO PERIODO COLONIAL* Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira** RESUMO- Definido a partir de 1920 por Mério de Andrade ¢ os moderistas, 0 conceito de identidade nacional no chamado “‘barroco mineiro’’, tema ainda controverso na historiografia artistica brasileira, é fundamental para o estudo da questao da origi- nalidade da arte produzida no Brasil colonial face ds importacdes européias. O pre~ Sente artigo faz wn balanco da situacdo atuai da pesquisa relativa ao tema e propée novas abordagens e perspectivas de andlise. Unitermos: barroco mineiro ~ Brasil colonial ~ historiografia artitica brasileira — identidade nacional E fato geralmente estabelecido e aceito, mesmo fora do cfreulo restrito dos estudiosos da histéria da arquitetura e das artes plasticas no Brasil, que a arte mineira do perfodo colonial se destaca por caracterfsticas diferenciadas no quadro geral da arquitctura luso-brasileira da época. Com efeito, em mea- dos do século XVIII sao adotados na regiao os planos curvilineos de tradi- Go borromfnica, associados a uma exuberante decoragdo rococé, tanto no que se refere aos interiores, quanto as fachadas dos edificios religiosos. Neste contexto viveu e trabalhou Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mestigo, doente e praticamente autodidata, reconhecido como o principal ar- tista luso-brasileiro da época, pela originalidade de seu génio criador, tanto no campo da arquitetura, quanto nos da escultura e relevos omamentais. (*) Retomamos e descnvolvemos neste artigo o texto da comunicagdo que apresentamos no “XXVI International Congress of the History of Art”, Washington, 10-15 de agosto de 1986, sob 0 tftulo de ‘Discussion du concept d'identité nationale dans Fart de Ia région de Minas Gerais/Brésil au XVIITe sitcle”. (*) Professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janciro ¢ Historiadora de Arte do SPHAN = Pr6-Mem6ria. Rev.Inst.Est Bras.,SP,30 : 117-128,1989 7 Depois da pesquisa pioneira de Rodrigo Ferreira Bretas em 1858,! fonte basica de informagées tanto sobre o Aleijadinho, seu objeto principal, quanto sobre a arquitetura e escultura mineiras setecentistas, constata-se um longo hiato na historiografia desses temas, indicador de um certo desinteres- se que pode ser relacionado ao preconceito antibarroco do neoclassicismo e ecletismos diversos. Como bem observou Fernando Correia Dias, foi so- mente a partir dos anos 20 do nosso século, que se iniciou no Brasil ‘‘o pro- cesso de revalorizagao critica do barroco mineiro’’,? tendo como marco ini- cial 0 conhecido artigo de Mario de Andrade, publicado em 1920 na Revista do Brasil, no qual j4 aparece de forma definida 0 ‘‘concito de identidade na- cional da arte mineira’’: Foi nesse meio oscilante de inconstAncias (Minas Gerais sete- centista) que se desenvolveu a mais caracteristica arte religiosa do Brasil. A igreja péde af, mais liberta das influéncias de Portugal, proteger um estilo: mais uniforme, mais original, que os que abrolhavam podados, dulicos, sem opiniao prépria nos dois outros centros. Estes viviam de observar o jardim luso que a miragem do Atlantico lhes apresentava continuamente aos olhos; em Minas, si me permitirdes; 0 arrojo da expressdo, o estilo barroco estilizou-se. As igrejas construfdas quer por portugueses mais aclimados ou por autéctonos algumas, prova- velmente, como o Aleijadinho, desconhecendo até o Rio e a Bahia, tomaram um cardter mais bem determinado e, poderfa- mos dizer, muito mais nacional.3 Considerando-se 0 surto de nacionalismo emergente que caracterizava o contexto politico e-cultural do pafs nas vésperas de celebrar o 1° centensrio da Independéncia, justificava-se plenamente esta busca de um “‘cardter na- cional”” na arte do passado levada a efeito pelos modemistas, paralelamente aos ideais de “retorno ao nacional’’ ou “valorizagao do nacional” na arte do presente, que constitufam preocupagées fundamentais dos promotores da “Semana de 1922”. A tese nacional de M4rio de Andrade filia-se portanto, em wiltima instfncia, a quase totalidade dos autores brasileiros (principal- mente mineiros e¢ paulistas) que nos sessenta anos seguintes dedicaram-se 4 pesquisa da arte colonial mineira, de Lourival Gomes Machado a Affonso vila, incluindo mesmo especialistas do estudo da arquitetura e das artes plisticas como 0 arquiteto Sylvio de Vasconcelos e o muse6logo Orlandino Seitas Fernandes. (1) BRETAS, Rodrigo José Ferreira. Tragos biogrificos relativos ao finado Anténio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, Correio Oficial de Minas, Ouro Preto, n. 169 ¢ 170, 1858. Republicado diversas vezes, notadamente in: AN- ‘TONIO Francisco Lisboa, 0 Aleijadinho. Publicacées da Diretoria do Patrimdnio HistOrico Artistico Nacional, Rio de Janciro, (15):23-57, 1951. (2) Versobretudo: A REDESCOBERTA do barroco pelo movimento modemnista. Revista Barro- co, Belo Horizonte, (4):7-16, 1972. (3) ANDRADE, Mério Mornes de. Arte religiosa no Brasil. Revista do Brasil, Sio Paulo, 14(54):103, jun. 1920, 118 Rev Inst Est Bras_SP,30 : 117-128, 1989 Sao geralmente invocados como agentes determinantes do cardter ou identidade nacional desta arte fatores de ordem geogrdfica (afastamento do litoral, isolamento entre montanhas, clima frio) ou histérico-sociais como o processo répido de urbanizacdo, o autoritarismo do sistema administrativo gerando vocacio precoce de independéncia politica e ainda o modelo carac- teristico de estratificacao social, favorecendo ‘a ascensiio’ dos mesticos e a laicizagéo do culto religioso em conseqiiéncia das leis de interdigao das or- dens regulares na regifio. Nesta linha de reflexdo'0 socilogo Fernando Cor- reia Dias chega mesmo a estabelecer os fundamentos de uma “‘subcultura mineira’’, com tracos regionais fortemente acentuados, constituindo a mani- festagdo mais ‘‘artisticamente brasileira’ da civilizagio colonial do século XVIII e tendo como principal produto a arte que se convencionou chamar genericamente de ‘‘Barroco Mineiro”’.4 Adicionaimente, as pesquisas do musicdlogo Francisco Curt Lange e as do ensafsta e poeta Affonso Avila demonstraram que as manifestag6es do barroco mineiro ultrapassam os setores da arquitetura e das artes plasticas para abranger também os da miisica e literatura, tendo o segundo formaliza- do a aplicag4o /atu sensu do conceito a todo um “estilo de vida’’, gerador de um tipo de sensibilidade especifica, “uma maneira propria de ver e de sen- tir”, caracterfstica das populagées da antiga Capitania das Minas Gerais.5 Ha portanto um consenso firmemente estabelecido na historiografia ar- tistica brasileira com relagao a originalidade nacional da arte mineira sete- centista. Todavia, os tragos especfficos do fenémeno estilfstico propriamente. dito sao ainda mal definidos, nenhum dos autores citados tendo conseguido demonstrar de forma satisfatéria em que consistiria esta propalada originali- dade mineira na concepgdo e decoracao dos edificios religiosos, em face da producio de outras regiées brasileiras ou européias no mesmo perfodo. Por outro lado, a confrontagao dos textos de autores brasileiros com os de historiadores da arte estrangeiros que também analisaram a arquitetura mineira setecentista, como os franceses Germain Bazin, Victor Lucien Tapié e Yves Bottineau, o norte-americano Robert Smith ou o inglés John Bury, revela nesses tiltimos uma 6tica diversa. Com efeito todos eles omitem ou enunciam de forma restritiva a tese brasileira da originalidade nacional do barroco mineiro, tendo ao contrario como objetivos principais os de situar as manifestag6es desta arte no contexto geral da arte européia dos periodos bar- Toco € rococé e atribuir-lhe protétipos definidos. Partindo da constatagao dessa dualidade de vis6es, sem diivida instigante para o pesquisador da histéria da arte no Brasil, resulta essencial a elabora- Gao de uma sfntese complementar para uma visao totalizante do fenémeno, pois como observou André Chastel, a histéria da arte se faz geralmente em dois nfveis, um interna- cional e outro local. E preciso abragar o panorama geral para situar corretamente o detalhe, mas esse ultimo s6 pode ser es- (4) DIAS, Fernando Correia. O' movimento barroco. In: DIEGENES JUNIOR, Manuel (coord.). Histdria da cultura brasileira. Rio de Janciro, 1973. v. 2, p. 243-57. (5). Ver principalmente: AVILA, Affonso. Iniciacdo ao barroco mineiro. Sio Paulo, Nobel, 1984. . Restduos seiscentistas em Minas. Belo Horizonte, 1967.2 v. Rey Inst EstBrasSP,30 : 117-128, 1989 119 tudado de perto (...). A verdadeira erudicdo requer a intuigao das grandes correntes € principais momentos artisticos, mas sa- be que lhe é também necesséria a familiaridade com o meio onde nasce a obra particular, os costumes e visio do mundo que indicam um enraizamento (...). As duas atitudes se encon- tram raramente em grau igualmente elevado num mesmo histo- riador, mas toda descoberta, toda interpretagdo duradoura pres- sup6em, de uma forma ou de outra, sua conjungao.6 Para que esta sintese se viabilize € necessdrio, antes de mais nada, en- contrar bases s6lidas nos campos da andlise arquitet6nica e artfstica para a tese da originalidade nacional do barroco mineiro, fundamentadas no estudo comparado dos fenémenos estilfsticos dos dois lados do Atlantico. Estudo este que dever4 enfocar primeiramente a arquitetura portuguesa do século XVIII e seus prolongamentos naturais nas regioes litoraneas brasileiras que constituem os protétipos imediatos das formas transplantadas e assimiladas em Minas Gerais. Em seguida, para o caso de formas para as quais nao se encontrem correspondentes na arquitetura portuguesa ou brasileira do perio- do, a extensiio da pesquisa a outras regioes européias, a partir das indicagées dos historiadores estrangeiros.7 Finalmente, identificar no panorama da arte produzida em Minas no século XVIII momentos artisticos ¢ obras que pos- sam ser consideradas como realmente originais por suas caracteristicas dife- renciadoras no contexto geral da arquitetura luso-brasileira e européia do pe- riodo e analisar estas caracterfsticas sob o prisma dos contributos locais. eK Oe A anflise da arquitetura e artes plasticas produzidas em Minas ao longo do século XVIII revela, a nosso. ver, que, apesar de indiscutivelmente deri- vadas de fontes européias e sobretudo portuguesas, estas artes conheceram ao longo de sua evolugio dois momentos que podem ser considerados verda- deiramente “‘originais”, ou seja, nos quais a marca regional sobrepuja as in- fluéncias externas numa série de obras sem equivalentes em outras regides. O primeiro momento corresponde a fase pioneira e castica da implanta- Gao da civilizacdo na regido, entre 1700 e 1720 aproximadamente. E a época das capelinhas primitivas, cujo partido construtivo, apesar de derivado do modelo portugués j4 disseminado no litoral brasileiro nos séculos XVI e XVII, se diferencia em Minas por novas e variadas solucées, cujo aspecto mais evidente se verifica com relacdo ao tema da colocagao dos sinos. No caso das capelinhas desprovidas de torres estes sinos podem ser encontrados nas mais variadas situagdes, seja dependurados em janelas das fachadas principal ou laterais, seja em pequenas arcadas nos telhados (capela do Ta- quaral préxima de Ouro Preto), em toscos andaimes) providos de pequenos telhados justapostos-as paredes ou em situaco independente (Santana de (© CHASTEL, André. L’érudition provinciale. In: HISTOIRE de I’art fins et moyens (Editoriaux de la Révue de I’Art). Paris, Flammarion, 1980, cap. 4, p.37. Ur (7) _ Estas duas etapas j6 tiveram no Brasil um trabalho ‘em relacio A cidade de Ouro Pre~ precursor to, Trata-se da tese de Paulo F. Santos, publicada em 1951 sob o tftulo de A arquitetura reli- ‘Siosa em Ouro Preto, Ver particularmente p. 43-78 ¢ 127-51. 120 Rev.inst.Est Bras_SP, 30 : 117-128, 1989 Mariana) ou ainda em pitorescos anexos (capela de Costa Sena na regifio do Sena). Ha ainda duas tipologias bem caracterizadas de capelas incluindo tor- re, ambas com extensas ramificagdes na regiao: a da capela com torre tinica em posigao central (N. Sra. do © em Sabard) e a da torre tinica independente que tem na capela do Padre Faria de Ouro Preto seus exemplo mais conheci- do. Observe-se ainda que o tipo litoraneo com torre nica lateral e anexa A fachad a é também encontrado em Minas, particularmente nas regides de Diamantina e So Joao del Rei. Capela de Nossa Senhora do O, Sabard, Minas Gerais (foto: Arquivo SPHAN). Rev.Inst-Est.Bras. SP, 30 : 117-128, 1989 21 Algumas das solugGes apontadas; que nao esgotam a variedade existente, sao préprias da regiao mineira, isto 6, sem correspondentes nas zonas litora- neas brasileiras, onde prevaleceu o tipo tradicional da capela urbana portu- guesa com torre Unica lateral fazendo corpo com o frontispfcio. Estas solu- GOes parecem ter rafzes no vasto substratum cultural da arquitetura portugue- sa rural, que apresenta também um panorama extremamente variado destas modestas construgées religiosas, de formas elementares mas de um perfeito utilitarismo, estreitamente ligado’as condig6es naturais das regides onde se situam, como revela a excelente pesquisa patrocinada pelo Sindicato Nacio- nal dos Arquitetos de Portugal.’ Tendo em vista a diversidade de origens dos imigrantes, portugueses e de outras regies brasileiras atrafdos a Minas Gerais pela corrida do ouro, assim como a quase total auséncia de mao-de-obra qualificada e caréncia de fontes que pudessem servir como modelos nesta fase pioneira em que as co- municag6es com as vilas costeiras e a metrépole portuguesa se faziam com extrema dificuldade, € facil compreender a variedade de tipos e originalidade de solugGes encontradas nas capelinhas mineiras. As modalidades do fen6- meno s6 poderao, entretanto, ser conhecidas quando se fizerem inventérios sistemAticos e estudos regionais aprofundados sobre o tema, até agora prati- camente inabordado na historiografia de nossa arte colonial. No perfodo seguinte, entre 1720 e 1750 aproximadamente, que corres- ponde a fase de assentamento das populacées mineradoras, enquadradas ad- ministrativamente em vilas e freguesias,9 a arquitetura religiosa da regido cujo monumento-tipo € agora a igreja matriz, nfo apresenta grandes novida- des comparativamente a Portugal e As outras regides da colénia, como Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro. A ténica da época é a suntuosidade orna- mental dos interiores, magnificamente revestidos de talha dourada, refletindo a opuléncia geral do perfodo dureo da mineraciio e os principais arquitetos artistas sio competentes mestres de origem portuguesa como 0 escultor Fran- cisco Xavier de Brito e o arquiteto Manoel Francisco Lisboa, pai do Aleija- dinho. Plantas e elevacdes reproduzem com fidelidade a f6rmula jé sedi- mentada em outras 4reas do mundo luso-brasileiro da igreja retangular com corredores laterais e fachada plana, flanqueada por duas torres de segio qua- drada, 4 qual, entretanto, o emprego de materiais e técnicas diferentes (ma- deira e pau-a-pique ¢ nao alyenaria de pedra) confere um aspecto mais nisti- co € provinciano se comparada as similares litoraneas ou portuguesas. © segundo momento de originalidade da arquitetura religiosa mineira vai situar-se na segunda metade do século XVII, perfodo que, apesar da produ- cao aurifera em declfnio, caracteriza-se por intenso labor construtivo impul- sionado por associagGes leigas conhecidas pelo nome de confrarias e ordens terceiras. As condicionantes desta originalidade contrapoem-se as do primei- ro perfodo analisado, pois so agora miiltiplas as fontes de informacgao e mo- delos disponfveis, e amplo e variado o contingente de mio-de-obra qualifi- (8) Esta pesquisa foi publicada com o titulo de Arquitectura popular no Brasil, Lisboa, 1961, 2 v. (9) Classificacio estabelecida Poe Sylvio de Vasconcelos. Cf.: A arquitetura colonial mineira. In: PRIMEIRO Seminétio de Estudos Mineiros. Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1957. p. 59-77. 122 Rev.Inst Est Bras_SP,30 : 117-128, 1989 cada, constitufdo, em grande parte por mesticos nascidos na prépria regio e formados nos canteiros de obras sob a diregao de mestres portugueses. No Tepertério de formas que tinham & sua disposicao, entre as quais se situavam sem duivida as iltimas novidades européias, puderam esses artistas, j4 soli- damente ligados a terra, selecionar as que melhor se adaptassem a sua sensi- bilidade e as necessidades do grupo social, adaptando-as em criagdes vigoro- sas e originais. Tendo sido este perfodo, no qual se situa a arte do Aleijadi- nho, 0 que focalizou principalmente a atengao dos historiadores de arte es- trangeiros citados acima, assim como a dos brasileiros, partid4rios da tese da “originalidade nacional”, € obrigatéria uma andlise mais detalhada de alguns de seus aspectos, particularmente ‘aqueles que vem sendo apontados como “‘inovadores’’. é E fato geralmente reconhecido que na arquitetura religiosa mineira pro- duz-se a partir de meados do século XVII uma verdadeira revolucéo que subitamente a coloca em posicio de vanguarda em face das outras regides brasileiras ¢ até mesmo Portugal. Na origem da mesma, a conjugacao de trés fatores importantes: a assimilagao de novas técnicas construtivas baseadas no uso da pedra, a introducdo na regido de plantas curvilfneas de tradicao bor- rom{nica e a adogao do rococé na decoracao interm e externa dos templos. O monumento-tipo é agora a igreja de irmandade, género que prolifera em Minas no perfodo, em conseqiiéncia ao desenvolvimento social do culto reli- gioso, imposs{vel de absorver apenas pelas matrizes numa regiao interditada aos conventos e ordens regulares. Apesar de suas dimensées relativamente modestas, j que em princ{pio destinadas ao uso de apenas uma irmandade (ou Ordem Terceira), estas igrejas chamam imediatamente a atenciio por algumas caracteristicas diferen- ciadas no contexto da arquitetura luso-brasileira da época. As mais evidentes Sao as torres circulares ou poligonais coroadas de bulbos de desenho gra- cioso e a composigdo ornamental dos frontispicios com relevos em pedra- sabao, reproduzindo no exterior dos templos a delicada complexidade dos motiyos rococés, até entdo apandgio da talha dos interiores. A estas somam-se a convexidade (Rosério de Ouro Preto e Sao Pedro dos Clérigos de Mariana) ou sinuosidade das fachadas principais (Carmo e Sao Francisco de Assis de Ouro Preto) ou Iaterais (Sao Francisco de Sao Joao del Rei) e 0 novo tratamento, tipicamente rococé, dos espagos inter- nos, inundados de luz, em contraposi¢o 4 semi-obscuridade dos espacos barrocos anteriores. Retébulos e piilpitos pintados em tons suaves ou marmo- rizados, que p6em em relevo os douramentos dos motivos ornamentais, des- tacam-se contra a brancura uniforme das paredes, assim como os painéis Pictéricos de molduras sinuosas e, em alguns casos, barrados com pinturas a imitagao de azulejos (capela-mor de Sao Francisco de Assis de Ouro Preto), JA que esses wiltimos se restringem em Minas a um tinico exemplo (capela- mor do Carmo de Ouro Preto). Nos forros, magnfficas pinturas de perspecti- va ilusionista cuja evolugao para 0 rococé, tal como ela se processou em Mi- nas, constitui, a nosso ver, um dos aspectos mais especfficos da arte da re- gido. Vejamos agora os principais antecedentes europeus dos perfodos barroco e rococé que’ a historiografia estrangeira aponta como eventuais modelos de algumas das caracteristicas mencionadas acima, todas elas, insistimos, sem equivalentes na arquitetura religiosa de outras regides brasileiras, tendo ape- Rey Inst.Est Bras. SP,30 : 117-128, 1989 123 nas como excecdo a demolida igreja de Sao Pedro dos Clérigos, do Rio de Janeiro, no que diz respeito A convexidade das fachadas ¢ torres circulares. Para Robert Smith e Germain Bazin € essencialmente em Portugal que devem ser procurados esses antecedentes. Robert Smith os situa todos em uma regifio precisa, a do Minho-Douro, p4tria do maior contingente de mi- grantes que colonizaram a regia das Minas,10 enquanto Germain Bazin alu- de a regiGes portuguesas diversas, principalmente o norte e o Alentejo. 11 Segundo esses autores, as composicdes ornamentais dos frontispicios minei- Tos teriam em suas origens modelos tais como a capela dos Malheiros Rei- mao em Viana do Castelo, a da Madalena da Falperra na periferia de Braga, a igreja de Sao Francisco de Visar ou a de So Jodo Batista de Campo Maior no Alentejo. Da mesma forma as ovais entrelagadas que constituem as plan- tas do Rosfrio de Ouro Preto e Sao Pedro dos Clérigos em Mariana teriam um antecedente na Sao Pedro dos Clérigos da cidade do Porto, passando pelo intermedi4rio da igreja hom6nima do Rio de Janeiro. J4 o inglés John Bury, que’ pessoalmente consideramos como o mais pertinente dos analistas estrangeiros citados em temas relativos a Minas Ge- fais, Os protétipos portugueses sao insuficientes ao esclarecimento de todos ‘os aspectos da questiio, jf que caracteristicas importantes da arquitetura reli- giosa mineira, como as torres circulares, nio tem equivalentes em Portugal, e outras, como as fachadas convexas ou sinuosas conheceram voga limitada na arquitetura portuguesa coetfinea. Partindo desta constatagao, Bury estende seus horizontes de pesquisa a outras regi6es européias, notadamente a Itdlia setentrional ¢ a Europa Central, encontrando nesta ultima protétipos convin- centes para as torres circulares (Santfssima Trindade de Kappel na Baviera e Santa Catarina de Pocatky na Boémia) e as fachadas convexas (Kollegien- Kirche de Salzburgo e abadias de Weingarten na Baviera e Einsiedeln na Suica).12 Na esteira de John Bury, os franceses Victor Lucien Taipé e Yves Bottineau desenvolveram posteriormente pesquisas and4logas, retomando os mesmos exemplos.13 xe Todos os antecedentes indicados, tanto em Portugal, quanto na Europa central, sfio validos e devem ser estudados como marcos fundamentais de andlise comparativa com os monumentos mineiros vistos no contexto global da arquitetura européia da época. Todavia, nenhum deles constituindo um (10) Ver: THE COLONIAL architecture of Minas Gerais in Brazil. The Art Bulletin, N. York, (21):110-59, jun, 1939. THE ARTS in Brazil/baroque architecture. In: PORTUGAL and Bra- zil, an introduction. Oxford, Claredon Press, 1953. p. 349-84. (11) Cf: A ARQUITETURA religiosa barroca no Brasil, Rio de Janeiro, Record, 1972, 2 v. (12) Cf.: BURY, John. The “‘borrominesque” churches of colonial Brazil. The Bulletin, N. York, (37):27-52, mar. 1955. .. Estilo Aleijadinho and the churches of cighteenth century Brazil. The Architectural Review, (111):93-100, fev. 1952. (13) ‘TAPIB, Victor L, Rapprochements entre I’architecture de I'Europe Centrale et celle du Brésil au XVIile sitcle. Bracara Augusta, Braga, 27:565-70, 1973. BOTTINEAU, Yves. La trans- mission des sources architecturales vers le Brésil du XVIIle sitcle: des certitudes aux hypo- theses. Coldquio/Artes, Lisboa, (25):9-17, dez. 1975. 124 Rev.Inst Est Bras_SP, 30 : 117-128, 1989 protétipo exato ou mesmo aproximado das igrejas.com eles relacionadas, como pode ser verificado pela simples comparagao de fotografias, € necess4- rio questionar a presenga nestas igrejas de elementos préprios da regio ou ine ei” Igreja de Sdo Francisco de Assis, Ouro Preto, Minas Gerais (foto: Arquivo SPHAN). Rev Inst Est Bras. SP, 30 : 117-128, 1989 125 séja) elaborad6s ou'reinterprétados emi Minas.’ Elementos esses que, integra- dos ‘aos’ modelos’ europeus importados’ através de gravuras’ ou desenhos ar- quitet6nicos © ornamentais, teriam'tido’omo resultante um grupo de igrejas reconhecido como um dos mais originais da tradi¢gao arquiteténica luso-bra- sileira do perfodo. Em estudo recente, o arquiteto Augusto C. da Silya Telles selecionou, com grande acuidade critica, duas caracteristicas fundamentais nesta arqui- tetura, podendo ser consideradas como “‘criacoes proprias” da regiao minei- ra: em primeiro lugar “a conjugacaio de curvas e de retas ou de planos, criando pontos e arestas de contencao, nas plantas, nos calcados e nos espa- Gos internos”” e em segundo “‘a organizacao das frontarias, tendo como cen- tro de composigao a portada esculpida em pedra-sabao””.14 Com efeito, 6 inegdyel que a regido elaborou um tipo especifico de planta, presente nas Igrejas do Carmo e Sao Francisco de Assis de Ouro Preto e também na de Sao Francisco de Sao Joao del Rei (todas atribuidas total ou parcialmente ao Aleijadinho), tipo este que estabelece uma espécic de compromisso entre os planos retangulares luso-brasileiros de tradigéo ma- Neirista e os planos curvilineos borromfnicos, acrescidos de um elemento no- vo — as torres circulares. A mesma solugao de compromisso pode ser observada na composicio dos frontispfcios. Nestes é igualmente mantida a tradicional disposicio em losango dos vaos (porta, janelas laterais e Sculo), introduzida no pafs pelos jesuftas e j4 utilizada nas matrizes e capelinhas primitivas da regifio mineira, mas esta disposicao aparece como que “‘transfigurada” pela decoragdo roco- 6, que interliga esses| quatro elementos em um conjunto unitério, 0 culo fi- gurando agora abaixo da cornija arredondada em semicirculo. Na base destas composi¢6es ornamentais de aparéncia fr4gil e delicada, tao conforme como yerdadeiro espfrito rococé, a utilizagao de um novo material, a pedra-sabao da regiao, de extrema facilidade de talha, enquanto no norte portugués, 0 emprego do granito condicionou a aparéncia muito mais pesada dos ornatos de fachadas como a da Madalena da Falperra apesar do emprego do mesmo yocabulério formal. Com respeito aos interiores, apesar de seu evidente parentesco espiritual com os de outras igrejas concebidas segundo os moldes do rococé no Rio de Janeiro, Pernambuco, Portugal ou Europa central, podemos afirmar com se- guranca também serem proprios da regido mineira, sem correspondentes exatos na’ arte luso-brasileira ou européia da época, os modelos de retaébulos € pinturas em perspectiva ilusionista dos forros que integram a decoragao interna dessas igrejas. Nossas pesquisas especificas sobre os dois temas che- garam até agora ao’ estabelecimento de tipologias compreendendo, no mini- mo, quatro tipos diferentes de retébulos rococé de capela-mor e um ntimero equivalente, senao superior, de composic6es de pinturas de forros, quase to- (14) Sunyal ‘TELLES, Augusto C. O barroco no Brasil: anflise da bibliografia crftica e colocaciio ‘de pontos de consenso ¢ de dilvida. Revista do Patriménio Histérico e Arttstico Nacional, Rio de Saneiro, (19):125-37, 1984, 126 Rey.Inst Est Bras_SP,30 : 117-128, 1989 dos elaborados e desenvolvidos em Minas.15 E, curiosamente, pudemos tam- bém constatar que, na obra dos artistas a justo tftulo considerados como os re agus Igreja de Nossa Senhora do Rostirio, Ouro Preto, Minas Gerais (foto: Arquivo SPHAN). (15) Ver: OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro, Escultura colonial brasileira: um estudo preliminar. Revista Barroco, Belo Horizonte, (13):21-25, 1984/85. A pintura de perspectiva em Minas colonial - 2):171-80, 1983, iclo rococé. Revista Barroco, Belo Horizonte, Rey.{nst.Est Bras. SP, 30 : 117-128, 1989 127 maiores mestres desses dois géneros, o escultor Antonio Francisco Lisboa, o: Aleijadinho, e o pintor Manoel da Costa Athaide, fig ram também solugGes de compromisso entre as novas formas do rococé e formas de estilos anterio- res, j4 aclimatados na regifio. Assim, nos retébulos de capela-mor do Aleijadinho subsistem os impo- nentes grupos escultéricos caracterfsticos da €poca joanina e em especial o da Santfssima Trindade do coroamento, tomado dos ret4bulos da Francisco Xavier de Brito. Da mesma forma nos fornos de Athaide subsistem elemen- tos da trama arquiteténica ilusionista na linha do padre Pozzo, interligando as laterais da abébada com a “‘visdo celestial’’ da parte central. Nos dois ca- sos, trata-se de elementos que podem ser considerados como “‘arcafsmos bar- rocos”, jd eliminados das composicées dos outros entalhadores e pintores do perfodo, tanto em Minas quanto em outras regides. Esperamos, com as consideracdes precedentes, ter contribufdo com al- guns aspectos novos A discussao do conceito de identidade nacional na arte mineira setecentista, que j4 h4 tantos anos vem interessando pesquisadores de 4reas e tendéncias diversas. O tema, de grande fascfnio, por se situar no Amago da questio da originalidade da arte produzida no Brasil colonial face as importages européias, continua, entretanto, longe de ser esgotado. Se o presente texto puder suscitar novas pesquisas e reflexGes, se poss{vel esten- dendo 4 arte de outras regiGes brasileiras as hipdteses e linhas de trabalho nele propostas, terd cumprido seu principal objetivo. Recebido em 20 de janeiro de 1989. ABSTRACT Although Mario de Andrade and the “'modernists” began defining the concept of national identity in the so-called mineiro barroque after 1920, this topic is still controvertial in Brazilian art historiography. Yet it is fundamental to studying the iSsue of erginaliy in art produced in colonial Braz considering its importation jrom urope. This article provides an overview of how present research stands in relation oA Hohe Gal pre erent ‘and perspectives of analysis to its study. Key-words: mineiro barroque — colonial Brazil — Brazilian art history — national identity 128 Rev Inst Est BrasSP,30 : 117-128, 1989

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