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á cinco décadas, fadas, bru- castelos na areia molhada das praias, de
xas, duendes, anões, animais pipas de jornal com rabo de pano, de caba-
falantes, príncipes encantados nas-esconderijo.
desfilavam em flanelógrafos, fleet sharps Felizmente, ainda hoje, pintando, dese-
(cavalete de madeira no qual se prendem nhando garatujas, brincando de pega-pega
folhas grandes de papel), teatrinho de som- e esconde-esconde a criança cria o seu es-
bras, de fantoches, povoando o imaginário paço de faz-de-conta, onde materializa os
do público infantil que ouvia atento as nos- seus desejos compartilhando da vida ani-
sas histórias. Neste ambiente fascinante e mal, mudando de tamanho, libertando-se
Iúdico, crianças, a partir de três anos de da gravidade e tornando-se até invisível.
idade, transitavam do mundo real para o Isto nos reporta à belíssima composição de
mundo da fantasia onde se mesclavam ruí- Toquinho e Vinícius de Moraes, Aquarela
dos estranhos de cachoeiras, sapos, grilos, - (...) Numa folha qualquer eu desenho um
monstros e vampiros, sob a luz dos curio- sol amarelo. E com cinco ou seis retas é
sos vaga-lumes. Nessa época - assim como fácil fazer um castelo (...) e se fago chover
hoje, apesar da invasão dos eletrônicos -, com dois riscos tem um guarda-chuva. Se
as crianças gostavam de fazer bolinhos e um pinguinho de tinta cai num pedacinho
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Lapic: espaço Iúdico de conhecimento sobre Wlcriança
azul do papel. Num instante imagino uma desenhos animados a fim de entender a
linda gaivota a voar no céu(...). fascinação que causam às crianças.
Dos tempos de contadora de história aos Assim, surgiu nossa produção acadê-
de fonoaudióloga muita coisa mudou, mas mica, tentando esclarecer as querelas acir-
continuamos observando, através daspro- radas sobre efeitos catárticos ou
duções artísticas das crianças que frequen- narcotizantes e responder a perguntas ain-
tavam nossa clínica de fonoaudiologia, as da não suficientemente aclaradas, como:
mesmas construções do imaginário. Esta- por que a TV, amada por muitos, é odiada
mos falando de anos 60, nesse mesmo por poucos? Qual será o enigma de tanta
ambiente, uma década depois, as fadas e fascinação? Por que o Pica-Pau, Tom &
bruxas começaram a se esconder no baú, Jerry e outros desenhos tradicionais resis-
surgindo em seu lugar os desenhos anima- tem ao tempo e até a inovações tecnoló-
dos que passaram a encantar as crianças. gicas do gênero?
Tal reorientação motivacional foi a baliza Muitas perguntas, poucas respostas. Era
que direcionou nossos trabalhos de pes- necessário investigar mais, observar melhor
quisa e de observação sobre a relação TV/ para desmistificar concepções apocalípticas
criança, resultando na nossa tese de dou- e reducionistas sobre a relação TVIcrian-
torado, em 1981, O Pica-Pau: herói ou ça, originárias, em parte, de uma óptica
vilão? Representação social da criança e adultocêntrica. Era necessário procurar
reprodução da ideologia dominante, publi- bem não a explicação duvidosa da vida mas
cada em livro pela Loyola, em 1985. a poesia inexplicável da vida.
Essa pesquisa, embora de cunho um
pouco apocalíptico, foi um marco. A par- Conforme Jung, a fantasia tem
tir dela passamos a nos dedicar ao estudo
tanto de sentimento como de
da relação TVIcriança. Dessa preocupação,
surgiram os três cursos de pós-graduação reflexão, e uma parcela idêntica
que organizamos - TV/criança: uma cul- de intuição e sensação.
tura de lazer ou de alienação?;Infância,
cotidiano e imaginário infantil; Meios de Às vezes, ela se manifesta em sua for-
comunicação, infância e educação: repre- ma primitiva; outras vezes, é produto mais
sentações e imaginário social - a linha de elaborado e cabal de todas as faculdades.
pesquisa Comunicação-Educação, o Labo- Assim, a fantasia é, acima de tudo, a ati-
ratório de Pesquisas sobre Infância, Ima- vidade criativa da qual provêm as respos-
ginário e Comunicação (LAPIC) e o gru- tas para todas as perguntas que podem ser
po de trabalho Imaginário Infantil, que respondidas. Ela constitui a origem de to-
coordenamos, na INTERCOM, até 1996. das as p~ssibilidades.~
O Pica-Pau, desenho preferido pelos Com o intuito de continuar investigando
entrevistados da nossa tese de doutora- o assunto, em 1990 organizamos e coor-
do, despertou em nós o interesse de apren- denamos o curso de extensão Comuni-
der a ler a linguagem cinematográfica dos cação, educação e arte na cultura infanto-
juvenil para um público de 300 pessoas, Imaginário, reunindo mais de 300 pro-
que gerou a publicação, pela Loyola, dó fissionais de todo o Brasil.
livro com o mesmo nome. Devido à grande O LAPIC é vinculado ao Departamen-
repercussão que teve foi possível promo- to de Comunicações e Artes da Escola de
ver a segunda edição do curso, para o qual Comunicações e Artes da Universidade de
se inscreveram 600 profissionais de várias São Paulo e tem como objetivos:
áreas do conhecimento. realizar pesquisas que visem à pro-
Outra etapa de estudo se deu na Espa- dução de novos conhecimentos e ao de-
nha. Uma bolsa de pós-doutorado, com senvolvimento de novos paradigmas
duração de um ano, proporcionou o desen- para o estudo das mediações no proces-
volvimento da pesquisa TVe criança:pro- so de recepção, de leitura crítica e de
dução cultural, recepção e sociedade, na análise de conteúdo da produção cultu-
Universidad Complutense de Madrid. O ral para infância, com a participação in-
objetivo era estabelecer um paralelo cultu- tegrada de pesquisadores de várias ins-
ral entre Espanha e Brasil no que tange à tituições acadêmicas;
relação da criança com a TV. colaborar com a formação de novos
pesquisadores na área de Comunicação/
Educação e Tecnologia, abrigando alunos/
bolsistas de Iniciação Científica;
desenvolver grupos de estudos avan-
çados, com especialistas que produzem
trabalhos sobre representações da infân-
cia, a fim de abrir espaço para a discussão
acadêmica e para a sistematização de te-
mas conjunturais relevantes à integração
entre universidade, escola e sociedade.
"Mais do que integrar academia, escola
e sociedade, o LAPIC discute a necessida-
de de o professor, por meio da Comunica-
ção Social e de recursos midiáticos, das
novas linguagens e da mídia eletrônica, tra-
balhar as disciplinas curriculares a partir
OBJETIVOS E FILOSOFIA de eixos temáticos globalizados e que fa-
zem parte do cotidiano de uma sociedade
Em função desse amplo e rico univer- plural como: saúde, que inclui a qualidade
so de estudo surgiu a idéia de criar o do desenvolvimento físico, emocional, se-
LAPIC - Laboratório de Pesquisas so- xual, intelectual, moral e social; cultura,
bre Infância, Imaginário e Comunicação que inclui o conhecimento e o respeito pela
- que aglutina pesquisadores de várias diversidade cultural (abrangendo etnias,
instituições de ensino. Foi o LAPIC que, religiões, ideologias...); educação,que não
com a subvenção d o CNPq e da inclui apenas o direito ao ingresso e à per-
FAPESP, em 1996 promoveu o I manência na escola (educação democráti-
Simpósio Brasileiro de TV Criança e ca), mas também amor e respeito por tudo
Lapic: e s p a ç o Iúdico d e conhecimento sobre TVIcriança
que é da comunidade como a cidade, o bair- e entrevistas para a mídia, estendendo seus
ro, a escola, o clube, as instituições públi- serviços à comunidade.
cas e privadas, as matas etc.; trabalho, que, O primeiro estudo Televisão, criança e
sem opressão, permita a satisfação das ne- imaginário: contribuições para a integra-
cessidades básicas; lazer, não apenas para ção escola, universidade, sociedade foi
o descanso dos fins de semana, mas para o uma pesquisa integrada, financiada pelo
desenvolvimento da criatividade. Só uma CNPq, de março de 1994 a fevereiro de
educação, formal ou informal, que consi- 1997, com a participação de uma equipe
dere esses eixos temáticos como fins e não multidisciplinar de pesquisadores.A temá-
como meios, estará possibilitando a forma- tica centrou-se na identificação das repre-
ção do cidadão consciente e crítico dos seus sentações do imaginário infantil nos pro-
direitos e responsabilidades, permitindo- gramas televisivos. Teve como objetivo
lhe, assim, a análise critica da realidade para
desenvolver novos paradigmas teóricos e
que ele seja co-participante das transfor- metodológicos; estudar as mediações no
mações sociaisw4. processo de recepção e de leitura crítica;
e analisar o conteúdo da produção cultu-
No terceiro milênio não se ral para a infância. A escolha desta temá-
tica partiu do crescente desenvolvimento
pode restringir o ensino às das novas tecnologias da informação e do
necessidades de trabalho, êxodo populacional para as grandes
mas à transformação do metrópoles, quando as crianças foram con-
finadas em miniapartamentos. As brinca-
local de trabalho e das
deiras e peladas que Ihes ofereciam o con-
relações eulou tro. tato com a diversidade cultural das ruas,
com as praças públicas foram se renden-
Vale dizer, "é imperioso pensar o ensino do aos encantos da telinha mágica. As fa-
como algo integrado a projetos de trabalho das e bruxas ficaram esquecidas no baú.
que façam sentido na perspectiva formado- Na impossibilidade de expor todas as
ra do educando. Mas, sobretudo, caberá à conclusões da pesquisa, foram ressaltados
escola que se pretenda superadora dos mo- alguns pontos:
delos em vigência ativar as relações inter- a) através dos desenhos de personagem,
subjetivas dos jovens, afinal eis uma instân- as crianças vivem o pega-pega de forma
cia que os processos videotecnológicosain- imaginária, sinalizando que nele há con-
da não conseguem elaborar à ~uficiência"~ . teúdos simbólicos que satisfazem neces-
sidades importantes;
UNIVERSO DAS PESQUISAS b) estes desenhos apresentam narrativa
semelhante à dos contos de fada, onde os
O LAPIC realiza pesquisas, promove heróis adquirem poderes extraordinários
eventos e exposições, efetua consultorias pela astúcia e esperteza;
4. PACHECO, E. D. Televisão, criança e imaginário: dilemas e diálogos. Campinas: Papims, 1998. p.10.
5. CITELLI, A. Comunicação e educação: a linguagem em movimento. São Paulo: SENAC, 2000. p.142.
Comunicação & Educação, São Paulo, (1 9) : 107 a 1 15, set./dez.2000
c) as telenovelas mexem com o imagi- seminários que, sem dúvida, irão permi-
nário infantil via eletronização do mito do tir uma educação continuada para os
nascimento - a busca da identidade social. meios de comunicação e reciclagens
Foram essas conclusões, que colocam constantes dos educadores, dando pros-
o herói como um arquétipo, em especial, seguimento ao processo de integração
o Pica-Pau, que levaram a equipe do escola/universidade/sociedade.
LAPIC a mergulhar na segunda pesquisa, Os pesquisadores do LAPIC, além da
financiada pelo CNPq e pela FAPESP e análise do discurso de cinco desenhos pre-
concluída em dezembro de 1999: O De- feridos - Pica-Pau, Pernalonga, Pateta,
senho Animado na TV: mitos, símbolos e Máskara e Yu-Yu Hakusshô - obtiveram a
metáforas. Paralelamente a esta pesquisa, representação social de 3 11 crianças, de 6
foi realizado um simpósio. Um ensaio, os a 11 anos de idade, entrevistadas em cin-
anais do simpósio e um livro contempla- co parques da capital de São Paulo, utili-
ram os temas nele abordados. zando-se, a partir de uma metodologia
O segundo estudo, O Desenho Anima- dialética histórico-estrutural, de uma in-
do na TV: mitos, símbolos e metáforas tervenção lúdica. De acordo com o rela-
foi também uma pesquisa integrada, ten- tório final da pesquisa, as análises desse
do o CNPq financiado os bolsistas pes- conteúdo, apontaram para a existência de
quisadores, de agosto de 1997 a julho mitos, símbolos e metáforas que respon-
de 1999, e a FAPESP financiado parte dem pelo desenvolvimento imaginário e
do material permanente necessário, de cognitivo da criança.
janeiro de 1998 a dezembro de 1999.
Como já foi dito anteriormente, a temá- OUTROS ESPAÇOS DE DISCUSSÃO
tica surgiu das conclusões da primeira
pesquisa. Uma delas, a de que os dese- Paralelamente ao desenvolvimento de
nhos de super-heróis apresentam narra- pesquisas, o LAPIC organiza simpósioscom
tiva semelhante à dos contos de fadas, o objetivo de ampliar o fórum de discussão
onde tudo é fantástico. sobre a questão criança/TVlimaginário.
O estudo centrou-se nos desenhos ani- O I Simpósio Brasileiro de Televisão,
mados preferidos pelas crianças brasilei- Criança e Imaginário, ocorrido no perío-
ras, traçando um perfil de todos os dese- do de 16 a 20 de outubro de 1996, contou
nhos, veiculados no Brasil, inclusive os com um público significativo de pesqui-
exibidos pelas TVs por assinatura, como sadores, docentes, profissionais de Comu-
o Cartoon Net Work, e os originários dos nicação, Educação, Artes, Psicologia e re-
Estados Unidos e do Japão. presentantes da sociedade civil de diver-
Através da análise dos elementos sas regiões brasileiras.
míticos, dos símbolos, das metáforas, dos O evento, financiado pelo CNPq e pela
heróis, anti-heróis e super-heróis, a pes- FAPESP, contou com o apoio da Faculda-
quisa procurou obter informações sobre de de Educação da USP, da Escola de
o porquê da maior fascinação das crian- Comunicações e Artes da USP, da TV
ças pelos desenhos tradicionais norte- Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo e
americanos, da década de 40. Tais infor- de várias livrarias, obtendo ampla cober-
mações gerarão novos cursos, palestras, tura de toda a mídia.
Lapic: espaço Iúdico de conhecimento sobre Nlcriança
Os livros, atas, artigos e resultados de projetos de pesquisa, realizados pelo Lapic, estão a
disposição dos interessados na ECA-USP.
Comunicação & Educação, São Paulo, (19): 107 a 1 15, setaldez.2000
6. PACHECO, Elza D. (coord.) Televisão, criança e imaginário: contribuições para a integração escola-universidade-
sociedade. São Paulo: LAPICICCAIECAILTSP, 1997.
7. PACHECO, E. D. (coord.) op. cit.,p i - ii.
8. PACHECO, E. D. Televisão, crianca, imaginário: dilemas e diálogos. Campinas: Papirus, ,i998.
9. Equipe de realização do vídeo: Helena Tassara (direção geral), Newton G. Cannito, Claudemir Edson Viana e Eduvaldo
Mathias de Oliveira.
Comunicação & Educação, São Paulo, (1 9): 107 a 1 15, set./dez. 2000
Palavras-chave: LAPIC, imaginário, pesquisa, Key words: LAPIC, imaginary, research, tele-
televisão, criança, comunicação/educação vision, child, communication/education
10. Equipe de realização do vídeo: Claudemir Edson Viana (direção geral), Leane F. Melo e Maurício Hirata (cameramanl
atoreslentrevistadores), Patrícia B. Donatti e José Eduardo Paula (atoreslentrevistadores), MfladaTornarelli e Jurema
Brasil Xavier (apoio técnico).
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