Professional Documents
Culture Documents
(AS) Bom, em primeiro lugar, eu acho que se deve fazer uma grande
diferença entre «instruir» e «educar». «Instruir» é um parente do verbo
construir, pois nós vamos dando, na medida em que podemos instruir
alguém ou alguma coisa, o tijolo com que ele vai fazer o seu próprio
edifício à sua vontade. E também não é por acaso que a palavra «aluno» é
um particípio passado de um verbo que se deixou de empregar e que
significa «o alimentado», o aluno é aquele que nós alimentámos. A origem
das palavras «alimentar» e «aluno» é exactamente a mesma. E o outro é
«instruir», ao passo que «educar» já tem um elemento que significa
conduzir, que é parente dessa palavra, e até, possivelmente, um elemento
de reduzir. Quando passamos do «instruir» para o «educar», nós não
estamos a dar tudo o que é necessário para ele construir um edifício à sua
maneira, segundo o seu gosto, mas estamos a partir do perigo de reduzir o
que ele era para o habituar aos nossos costumes, para ele viver na nossa
sociedade. Há outra maneira de o fazer? Nenhuma outra! Estamos nesta
sociedade que tem determinadas características, evidentemente o que
temos que fazer é proceder de tal maneira para que ele não fique um
estranho dentro dessa sociedade. Só? Não! Porque, agora, já estamos
pensando que há mais coisas para além disso, que há o tal ideal de, depois
de realizarmos um empreendimento, deixarmos determinada profissão
para sermos nós próprios, que é, por exemplo, o que falta ao reformado.
Porque é que os reformados morrem tão facilmente? Porque quando eles
deixam de ser o trabalhador de um determinado sector, eles apenas têm
para viver a recordação disso. E uma saudosa recordação, porque cai
sobre eles o tempo livre, que é a carga mais pesada que alguém pode ter
na sua vida e não lhes resta nenhuma ocupação, senão às vezes
definharem molemente e melancolicamente num cafezinho, chupando um
cigarrinho triste. Então é alguma coisa que se tem de ver desde hoje e
desde hoje modificar. É preciso ter um tempo, um menino que nasce hoje
saiba, se for preciso, cumprir uma determinada profissão, realizar um
determinado trabalho. Às vezes, relativamente fácil e que ele pode
aprender mais facilmente do que pode aprender hoje a militar uma peça
de artilharia ou um instrumento de engenharia qualquer para uma
construção militar ou não. Por outro lado, nós temos também que olhar
para o Futuro, para lhe dar a ideia do que vai ser o Futuro, e dizer que há
todas as probabilidades do menino ficar reformado, já ter sido reformado
provavelmente, nunca mais ter emprego, ou ser reformado antes de
tempo, que haverá tanto trabalhador, e a gente pode dar a cada um cinco,
dez anos de trabalho e depois o larga. Então o que você precisa de ter é
uma coisa de si mesmo, para a qual tenha aprendido os meios de
expressão: se é um poeta ou um músico, ou qualquer coisa…
(JL) Ou uma criança, uma criança nunca tem tempo para brincar tudo.
(JL) Portanto o drama de Fernando Pessoa foi ter escrito sobre o que
não viveu…
(AS) Bom, mas afinal o que é que ele viveu? Ele, provavelmente, viveu
na companhia de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro e, talvez, de vez em
quando, ele estivesse a conversar, no Martinho, tendo em frente Álvaro de
Campos, de um lado Ricardo Reis, do outro Alberto Caeiro e era uma
excelente conversa entre aqueles quatro.
(AS) Nós não temos ideia nenhuma do que era o Fernando Pessoa, de si
próprio. Nós podemos dizer o que era cada um dos poetas que ele criou ou
foi, porque eles deixaram escrito, podemos traçar as características deles,
mas de Fernando Pessoa não. Não sabemos o que é que ele era, era uma
multi-personalidade que apareceu, mas não com o aspecto doentio com
que o psiquiatra trata de dupla, tripla ou décima personalidade com que
as pessoas aparecem. Mas, realmente, podia ser isso ou um criador puro,
não limitado pela sua própria vida e até, às vezes, sentindo coisas a que,
penso eu, tenham um carácter de heteronomia, mas a que colocava o
próprio nome. É o que eu suponho sobre todo o episódio de amor com
Ophélia, não é? O que ele fez naquela altura, o que nasceu dentro dele foi
o pequeno empregadinho dum escritório da Baixa, apaixonado pela
pequena empregadinha dum escritório da Baixa e foi escrevendo aquelas
cartas que, como sabe, a respeito da literatura ou alta filosofia não têm
coisa nenhuma, não é assim? A única carta notável de Fernando Pessoa a
Ophélia é a do rompimento, quando ele viu que, naquele jogo, ele tinha
atingido uma pessoa viva e não um besouro puramente criado, não é
assim? Mas o que ele pôs lá como heterónimo dele, o nome tinha:
Fernando Pessoa! E é curioso que ele, sem o nome dele todo, é um homem
notável no Mundo, também foi passivo ou activo dessa heteronomia.
Agostinho da Silva
(JL) O senhor professor acha que Lisboa continua a impor a este país o
estrangeiro? Como sendo o Governo o que é e o que sempre tem sido ao
longo da nossa História… e muito mais faz isso do que projectar Portugal
nesse Império dos sonhos e dos sorrisos das crianças…
(JL) É a tal sociedade gratuita que nos falava, do século XIII e dos
conservadores e da Igreja…
(JL) E exige…
(AS) Uma das piores posses que uma pessoa pode sofrer é a de estar
possuída por si própria, possuída pela ideia que tem de si mesma, que
pode ser errada. De modo que é bom experimentar se, quando nos
julgamos muito hábeis, ou muito inábeis, não estamos enganados e a
receber uma ordem e cumprindo-a, verificando que éramos menos hábeis
do que pensávamos ou menos inábeis do que pensávamos. Para mim, o
Voto de Obediência é, efectivamente, um Voto de Liberdade. Mas ele, o
Papa, achou que, naquele momento, o que era necessário na Economia do
Mundo era ir acumulando capitais, que permitissem depois à Europa que
transportasse o Mundo. E eles não entenderam…
Agostinho da Silva
(JL) Posso pegar nessa suas palavras. Eu acho que nós demos «mundos
ao mundo» como se diz, mas, em termos económicos (vamos continuar a
deixar que a Economia se imponha sobre esta conversa) demos matérias-
primas ao mundo, muito recentemente e ainda actualmente demos força
de trabalho à Europa, demos matéria-prima, demos aqueles que
transformam essa matéria-prima, ajudámos a construir a riqueza dessa
Europa. Qual é que acha que vai ser no futuro, este futuro que nós não
sabemos bem qual vai ser e que é uma fase apaixonante deste fim de
século, o nosso papel? Vamos dar o quê ao mundo?
(JL) Mas também são eles que têm maior preocupação com o lazer,
com os tempos livres, com a liberdade do espírito…
(JL) Senhor Professor, nós estaremos (não sei se serei correcto em dizer)
num grande parêntesis da História. Temos, para trás, um passado com
referências certas, seguras e temos à frente um futuro que não sabemos o
que é que vai ser. Vai ser aquilo que todos nós fizermos dele. O que é que
pensa que vai acontecer a este Mundo? O que é que vai ser o Mundo?
Fala-se em Fim da História, tenho lido análises estranhíssimas, sobretudo
neste período, que eu acho que é mais apaixonante, porque não é o fim da
História, é o nascimento de qualquer coisa de diferente ou o aproximar de
qualquer coisa mais humano, com sobressaltos, com custos e baixas,
como nas guerras, mas o que é que vem aí?
(JL) Professor Agostinho da Silva, muito obrigado por esta meia hora de
conversa consigo!