You are on page 1of 13

Agostinho da Silva

“Eu não quero ter poder

Mas apenas liberdade

P’ra dizer aos do poder

O que entendo ser verdade.”


INFORMAÇÃO IMPORTANTE

O texto que se segue é uma reprodução escrita, com


pequenas adaptações e esclarecimentos, de um excerto da
entrevista realizada por Joaquim Letria a Agostinho da Silva,
integrada numa série de treze entrevistas denominadas
Conversas Vadias, cuja exibição ocorreu, em 1990, no canal 1 da
RTP – Radiotelevisão Portuguesa.

Como tal, cumpre-me esclarecer que toda a informação


constante deste documento foi apresentada pela citada estação
de televisão portuguesa, aquando da exibição do programa
referido.
Agostinho da Silva

“Instruir, Educar, Reformados, Camões e Pessoa”

(Joaquim Letria – JL) Prof. Agostinho da Silva, muito boa noite!

(Agostinho da Silva – AG) Boa noite!

(JL) Vamos pegar no final da sua conversa da semana passada e penso


que ia muita coisa na cabeça das pessoas que o ouviram. E pensar como é
que nós (os dois) temos o corpo apaziguado, cabeças abertas e, embora
não estejamos na «Ilha dos Amores», estamos, enfim, aqui, numa mesa
quase de palratório, das tais cadeias que o senhor também dizia que
tinham de acabar, como é possível, isso a que se referia e que era, de
facto, a ideia, no século XIII, desses conservadores, no fundo uma vida
gratuita com as crianças, que eu penso que o senhor diz, e muita gente o
entende mal, «educar essa palavra horrível»? Não é que senhor seja
contra a Educação, é pela forma como essa Educação é feita. O senhor é a
favor ou acha que a Educação, tal como a temos, mata a criança que
temos dentro de nós ou obriga-nos a ser adultos antes de tempo? Mas
como é possível isso de uma «vida gratuita» e de ser educado sem as
tormentas por que temos de passar?

(AS) Bom, em primeiro lugar, eu acho que se deve fazer uma grande
diferença entre «instruir» e «educar». «Instruir» é um parente do verbo
construir, pois nós vamos dando, na medida em que podemos instruir
alguém ou alguma coisa, o tijolo com que ele vai fazer o seu próprio
edifício à sua vontade. E também não é por acaso que a palavra «aluno» é
um particípio passado de um verbo que se deixou de empregar e que
significa «o alimentado», o aluno é aquele que nós alimentámos. A origem
das palavras «alimentar» e «aluno» é exactamente a mesma. E o outro é
«instruir», ao passo que «educar» já tem um elemento que significa
conduzir, que é parente dessa palavra, e até, possivelmente, um elemento
de reduzir. Quando passamos do «instruir» para o «educar», nós não
estamos a dar tudo o que é necessário para ele construir um edifício à sua
maneira, segundo o seu gosto, mas estamos a partir do perigo de reduzir o
que ele era para o habituar aos nossos costumes, para ele viver na nossa
sociedade. Há outra maneira de o fazer? Nenhuma outra! Estamos nesta
sociedade que tem determinadas características, evidentemente o que
temos que fazer é proceder de tal maneira para que ele não fique um
estranho dentro dessa sociedade. Só? Não! Porque, agora, já estamos
pensando que há mais coisas para além disso, que há o tal ideal de, depois
de realizarmos um empreendimento, deixarmos determinada profissão
para sermos nós próprios, que é, por exemplo, o que falta ao reformado.
Porque é que os reformados morrem tão facilmente? Porque quando eles
deixam de ser o trabalhador de um determinado sector, eles apenas têm
para viver a recordação disso. E uma saudosa recordação, porque cai
sobre eles o tempo livre, que é a carga mais pesada que alguém pode ter
na sua vida e não lhes resta nenhuma ocupação, senão às vezes
definharem molemente e melancolicamente num cafezinho, chupando um
cigarrinho triste. Então é alguma coisa que se tem de ver desde hoje e
desde hoje modificar. É preciso ter um tempo, um menino que nasce hoje
saiba, se for preciso, cumprir uma determinada profissão, realizar um
determinado trabalho. Às vezes, relativamente fácil e que ele pode
aprender mais facilmente do que pode aprender hoje a militar uma peça
de artilharia ou um instrumento de engenharia qualquer para uma
construção militar ou não. Por outro lado, nós temos também que olhar
para o Futuro, para lhe dar a ideia do que vai ser o Futuro, e dizer que há
todas as probabilidades do menino ficar reformado, já ter sido reformado
provavelmente, nunca mais ter emprego, ou ser reformado antes de
tempo, que haverá tanto trabalhador, e a gente pode dar a cada um cinco,
dez anos de trabalho e depois o larga. Então o que você precisa de ter é
uma coisa de si mesmo, para a qual tenha aprendido os meios de
expressão: se é um poeta ou um músico, ou qualquer coisa…

(JL) Ou uma criança, uma criança nunca tem tempo para brincar tudo.

(AS) … deve ter a possibilidade de depois se exprimir por aquele meio. E


é o que se está fazendo nas escolas portuguesas mesmo, não é? Pode-se
aprender o currículo que nos permita depois ir para o Ensino Secundário
(estamos no Primário) e passar ao nível Superior de estudos, inteiramente
seguro do caminho que percorremos, e simultaneamente guardar para
nós, dentro de nós, para quando nos reformarmos ou para quando
estivermos livres, a tal capacidade de criar uma coisa que nunca ninguém
tinha criado no Mundo. Então temos que ser, ao mesmo tempo, soldados
e poetas. Camões andou nisso, por exemplo, vários portugueses andaram
nisso e se deram muito bem, conseguiram juntar as duas coisas: a guerra
ou a ocupação de algum local e a poesia que iam fazendo, como se
estivessem desprendidos disso. O que os levava, por vezes, a ter filosofias
diferentes, conforme …

(JL) Conforme o que viviam…

(AS) … claro! Nós, no Camões, encontramos vestígios de Aristóteles e


encontramos vestígios de Platão. Eu costumo dizer que, quando ele estava
seguro, sólido, comendo bem e com bons amigos, ele era todo o
Aristóteles, quando estava mal, lá se escapava para Platão.

(JL) Portanto o drama de Fernando Pessoa foi ter escrito sobre o que
não viveu…

(AS) Bom, mas afinal o que é que ele viveu? Ele, provavelmente, viveu
na companhia de Ricardo Reis e de Alberto Caeiro e, talvez, de vez em
quando, ele estivesse a conversar, no Martinho, tendo em frente Álvaro de
Campos, de um lado Ricardo Reis, do outro Alberto Caeiro e era uma
excelente conversa entre aqueles quatro.

(JL) Era uma tertúlia…

(AS) Nós não temos ideia nenhuma do que era o Fernando Pessoa, de si
próprio. Nós podemos dizer o que era cada um dos poetas que ele criou ou
foi, porque eles deixaram escrito, podemos traçar as características deles,
mas de Fernando Pessoa não. Não sabemos o que é que ele era, era uma
multi-personalidade que apareceu, mas não com o aspecto doentio com
que o psiquiatra trata de dupla, tripla ou décima personalidade com que
as pessoas aparecem. Mas, realmente, podia ser isso ou um criador puro,
não limitado pela sua própria vida e até, às vezes, sentindo coisas a que,
penso eu, tenham um carácter de heteronomia, mas a que colocava o
próprio nome. É o que eu suponho sobre todo o episódio de amor com
Ophélia, não é? O que ele fez naquela altura, o que nasceu dentro dele foi
o pequeno empregadinho dum escritório da Baixa, apaixonado pela
pequena empregadinha dum escritório da Baixa e foi escrevendo aquelas
cartas que, como sabe, a respeito da literatura ou alta filosofia não têm
coisa nenhuma, não é assim? A única carta notável de Fernando Pessoa a
Ophélia é a do rompimento, quando ele viu que, naquele jogo, ele tinha
atingido uma pessoa viva e não um besouro puramente criado, não é
assim? Mas o que ele pôs lá como heterónimo dele, o nome tinha:
Fernando Pessoa! E é curioso que ele, sem o nome dele todo, é um homem
notável no Mundo, também foi passivo ou activo dessa heteronomia.

Agostinho da Silva

“Políticos, Escravatura e Joaquim de Fiori”

(AS, continuação) Quando, noutro dia, no Porto, me disseram que


aquela história das conferências da «Árvore» ia acabar no dia 13 de Junho
e me disseram «no dia de Santo António, um santo português», cuidado!
Porque Santo António foi um Santo europeu, universal, ao passo que o
verdadeiro Santo português foi o heterónimo que ele deixou em Portugal,
o Santo Antonino. Esse sim, o Santo António não! O Santo António é um
Santo universal, teólogo, agora o Santo Antonino, do bailarico e do bom
vinho, esse é verdadeiramente um Santo português!

(JL) O senhor professor acha que Lisboa continua a impor a este país o
estrangeiro? Como sendo o Governo o que é e o que sempre tem sido ao
longo da nossa História… e muito mais faz isso do que projectar Portugal
nesse Império dos sonhos e dos sorrisos das crianças…

(AS) Bom, o político tem a obrigação e a tarefa terrível e difícil de se


colocar nitidamente dentro do tempo em que realmente vive. Todo o
profeta daria um mau político! Então ele tem naturalmente de estar
submetido a uma série de influências e, como se trata da capital do país,
naturalmente é o ponto de onde essas influências vão partir para o resto
do país. Mas, na realidade, o que tem que haver, junto com o Governo é
um outro Poder, que não se trata de um contrapoder, mas de um
equilíbrio de poderes, de tal modo que as pessoas façam o contrário: se
fixem naquilo que pensam que é nacional, aceitem aquilo que têm que
aceitar (um carro mais veloz ou um remédio muito mais eficiente que
outro), mas sempre contraponham que aquilo é uma coisa que se tem de
usar, não é uma coisa que se tem de viver, pois o que se tem de viver é ele
próprio. E aí não há nada que acusar o político de fazer aquilo, eles estão
realizando a sua tarefa: realizam o que não são, político é! Como é que eu
defino o nome «político»? É aquele que, de nenhuma maneira, quer tocar
ou que lhe toque alguma coisa que tenha a ver com o Poder, é aquele que
é tão venerador da Humanidade dos Homens que não quer ter poder
nenhum sobre eles, embora, de vez em quando, tenha que haver
acontecimentos que parecem inferir isso. Noutro dia, no Porto, na
discussão que houve, foi tendo o Martim de Albuquerque, muito bem
marcado, que foi sempre com respeito no pensamento português, a
defesa da liberdade de todos os homens, fossem eles de que país fossem,
de que hemisfério fossem ou de que cor fossem, ao mesmo tempo faziam
escravos, de vez em quando, embora dissessem que fosse para salvar as
almas, não é? Como é que essa coisa se junta? Sim, os portugueses tinham
aquela doutrina, simplesmente de vez em quando eram confrontados com
um problema e resolviam desse modo. Podiam ser confrontados com esse
problema de realmente salvar as almas daqueles mouros, daqueles
hereges, daqueles pagãos. E a possibilidade era trazê-los e mantê-los nas
casas para que eles se fossem convertendo, fossem tomando os costumes
dos cristãos e depois, efectivamente, muitos tornaram-se cristãos. Depois,
quando nós olhamos isso no passado, esquecemo-nos de muita coisa no
presente, porque a Economia está misturada a tudo e imperando sobre
tudo. Quando, noutro dia, muita gente se espantava quando disse que
aceitava perfeitamente que os portugueses, a um tempo, achassem que
estavam salvando as almas dos mouros e serviam-se deles, correctamente
e legalmente, como criados gratuitos, não é?

(JL) E de acordo com a moral das circunstâncias…

(AS) O que legalmente eles faziam. E quando as pessoas se admiram


disso, como é que acham quando os milhões que há como Humanidade e
Ciência nos salvam o corpo, efectivamente nos salvam o corpo, mas ao
mesmo tempo também salvam os honorários. E que a Economia se
metendo, de tal modo, em todas estas coisas… porque já não a podemos
separar, o que podemos é ter o ideal de, um dia, nunca mais ninguém
reclamar honorários por isto ou por aquilo, porque não precisa, é porque
realmente não precisa.

(JL) É a tal sociedade gratuita que nos falava, do século XIII e dos
conservadores e da Igreja…

(AS) Sociedade que os homens queriam, não é verdade? Porque é que a


Igreja foi contra essa Teologia? Era uma Teologia do Inesperado. O
Espírito Santo é a Pessoa de Deus, na qual está o domínio do Inesperado.
Daquilo que parece ser a Liberdade Pura e não o Destino. Mas, naquele
momento, em que o Joaquim de Fiori proclamou essa coisa, em Itália, e os
portugueses aceitaram com uma alegria, um júbilo realmente
extraordinário, o que acontecia é que, efectivamente, se entrava numa
época histórica em que era preciso ver a continuidade das coisas e não
adorar o inesperado. E então a Igreja, percebendo esse momento da
História, por exemplo, expulsou e impôs em Portugal aquilo que achava
que era, realmente, o entendimento ortodoxo e que tinha de ser a
Doutrina, não era a supremacia do Espírito Santo, era o conjunto do Deus-
Pai, do Deus-Filho e do Espírito Santo. Como, passando agora para um
plano que nós vamos entender muito melhor, quando um Papa deu ordem
à Ordem dos Franciscanos para ser rica (dos Franciscanos!), cujo patriarca
tinha sido o poeta da pobreza, o poeta do abandono do Ter, para obter a
Liberdade. Porque uma coisa que é preciso marcar muito bem e começar a
atender é que os votos eclesiásticos não são votos de submissão, são votos
de Liberdade. Quando um eclesiástico faz um voto, ele está-se libertando
da posse que o Ter exerce sobre a pessoa a respeito…

(JL) E exige…

(AS) E exige dela um determinado esforço e um determinado sentir. E a


violenta, muitas vezes, quando o material dela seria não se importar com
o que tem ou com o que não tem.

(JL) Fá-los, sobretudo, serem muito mais livres…


(AS) Ou quando se faz o voto de celibato, pode ser de várias maneiras e
em várias circunstâncias, não é? A pessoa se está livrando de outra coisa,
está-se livrando de que outros o possuam, está livre de ser possuído e, na
medida em que pode, livre também de tentar o outro como se fosse a
posse dele. E depois chega o outro voto que é uma coisa que prende a
pessoa – o Voto de Obediência –, que livra de uma coisa muito simples,
livra a pessoa de ser possuída de ela própria e ter a ideia de que só serve
para isto ou só serve para aquilo. Recebe uma ordem e cumpre. O Capitão,
na tropa, dá a ordem ao Tenente ou ao Sargento e ele não quer saber se
pode fazer ou não pode fazer, se sabe ou não sabe, se é aquilo que lhe
apetece ou não…

(JL) Se concorda ou não…

(AS) Nem mais!

(JL) São ordens! Ouvimos isso, muitas vezes, como desculpa…

(AS) Uma das piores posses que uma pessoa pode sofrer é a de estar
possuída por si própria, possuída pela ideia que tem de si mesma, que
pode ser errada. De modo que é bom experimentar se, quando nos
julgamos muito hábeis, ou muito inábeis, não estamos enganados e a
receber uma ordem e cumprindo-a, verificando que éramos menos hábeis
do que pensávamos ou menos inábeis do que pensávamos. Para mim, o
Voto de Obediência é, efectivamente, um Voto de Liberdade. Mas ele, o
Papa, achou que, naquele momento, o que era necessário na Economia do
Mundo era ir acumulando capitais, que permitissem depois à Europa que
transportasse o Mundo. E eles não entenderam…
Agostinho da Silva

“Europa, Japão, o Futuro e o Universo”

(JL) Posso pegar nessa suas palavras. Eu acho que nós demos «mundos
ao mundo» como se diz, mas, em termos económicos (vamos continuar a
deixar que a Economia se imponha sobre esta conversa) demos matérias-
primas ao mundo, muito recentemente e ainda actualmente demos força
de trabalho à Europa, demos matéria-prima, demos aqueles que
transformam essa matéria-prima, ajudámos a construir a riqueza dessa
Europa. Qual é que acha que vai ser no futuro, este futuro que nós não
sabemos bem qual vai ser e que é uma fase apaixonante deste fim de
século, o nosso papel? Vamos dar o quê ao mundo?

(AS) Vamos dar aquilo que temos de melhor, o de sonharmos


continuamente e de, ao mesmo tempo, termos da vida um conceito
objectivo e, quanto possível, físico ou, se quisermos exagerar, matemático.
Vemos o mundo tal qual é e, ao mesmo tempo, descobrimos nisso o que
ele também é, mas é muitas vez oculto aos outros. E vamos-lhes dar uma
coisa muito simples: é que essa gente da Europa e, quando eu digo Europa
estou-me a referir a esta além-Pirenéus e que vai até aos Urais, mas
estou-me referindo também ao Canadá e aos Estados Unidos, que é
aquela Europa para lá do Atlântico ou estou-me também referindo à
classe industrial japonesa, fabricante de automóveis, que é uma Europa
instalada no Japão, tendo aproveitado do Japão a capacidade militar dos
japoneses de obedecerem, simplesmente. Porque o ideal deles é ser o
menos possível alguma coisa, que é a coisa perfeita para entrar numa
companhia, marcar um patrão da companhia, um gerente, no lugar em
que ele deve estar, segundo a sua qualidade ou o seu defeito, ir
degradando-o, por exemplo, se ele não cumprir, mas não colocar fora,
porque senão ficava sem comer, mas ir pondo noutros lugares e o homem
se habituar àquilo, ir a espectáculos que a companhia dava. Eu nunca, no
Japão, consegui ver luta japonesa, porque o circo ou teatro, ou o que
aquilo era, estava ocupado de companhias. E ter que entrar à mesma hora
que entra o gerente para cantarem, todos juntos, o hino da companhia, e
acabar até por ir dormir um sono, por aí fora, no mausoléu da companhia.
Toda aquela coisa está organizada assim e, portanto, com tal eficiência
que, hoje, a perplexidade do Japão é estar rico, querendo ser pobre.
Nenhum daqueles homens queria ser nada e, muito menos, muito rico. E
eu me lembro muito bem de ter sido chamado à Escola Normal para se
discutir, com os professores da Escola, qual ia ser a sorte do Japão. No
Japão, havia essa esquizofrenia: metade do dia eram americanos,
trabalhando mais do que os americanos; a outra metade do dia eram
japoneses, trabalhando menos do que ninguém. E, por um lado, isso de
não ser nada, não ter dinheiro e não comprar nada e, por outro, o dinheiro
ia-se, efectivamente, acumulando. Como é que isso vai acabar? Não se
sabe!

(JL) Mas também são eles que têm maior preocupação com o lazer,
com os tempos livres, com a liberdade do espírito…

(AS) Claro! Porque eles sabem perfeitamente – porque são budistas –


que a coisa vai nesse sentido. E foi por isso, exactamente, que não se deu
o ajustamento entre a pregação dos magníficos jesuítas portugueses, que
foram para lá, e a gente japonesa. Os japoneses se converteriam todos ao
Cristianismo se os jesuítas os deixassem ser, ao mesmo tempo, budistas e
xintoístas, tudo junto. Porquê adoptar apenas uma das coisas da vida?
Tudo junto!

(JL) Senhor Professor, nós estaremos (não sei se serei correcto em dizer)
num grande parêntesis da História. Temos, para trás, um passado com
referências certas, seguras e temos à frente um futuro que não sabemos o
que é que vai ser. Vai ser aquilo que todos nós fizermos dele. O que é que
pensa que vai acontecer a este Mundo? O que é que vai ser o Mundo?
Fala-se em Fim da História, tenho lido análises estranhíssimas, sobretudo
neste período, que eu acho que é mais apaixonante, porque não é o fim da
História, é o nascimento de qualquer coisa de diferente ou o aproximar de
qualquer coisa mais humano, com sobressaltos, com custos e baixas,
como nas guerras, mas o que é que vem aí?

(AS) Quando nós falamos do Futuro ou quando eu próprio digo que


será de tal maneira, estou apenas a dar a ideia de um Presente melhorado
ao máximo que eu posso imaginar. Mas nada garante que esse seja o
Futuro e que o Futuro não vai para além daquilo que eu não posso nem
sequer imaginar. Uma coisa que hoje se pode anotar como Filosofia e
Física do Universo é que há não só aquilo que nós entendemos dele, mas
outras muitas maneiras de entender. E é curiosíssimo que, se nós
juntarmos e compararmos as duas palavras com que podemos designar
um certo objecto das nossas atenções, podemos chamar ou «Universo» ou
«Mundo». Num «Universo», a palavra indica que todas as coisas estão ali
juntas, é dos vários lados um movimento para o centro, o Universo. E
Mundo, que todos nós tomamos como substantivo, é efectivamente um
adjectivo. «Mundo» significa limpo. É Camões que fala nas «mundas
almas», nas almas que podem ir para o Paraíso Eterno, as «almas
limpas». Então o que é o Mundo diferente do Universo? O Mundo
chamamos nós àquilo que entendemos do Universo, como se
considerássemos o outro exactamente o antónimo da palavra Mundo, isto
é, imundo, a por de lado, a não querer para nada. Então, quando nós
falamos do Mundo e do Futuro do Mundo, estamos falando do que é
previsível, aqui, nesta parte do Universo onde nós vivemos. Mas tem uma
coisa mais grave do que isso: é que o Homem aparece numa das últimas
Idades Geológicas do Mundo, portanto é um ser muito recente na Terra e
já passaram várias qualidades dele, por exemplo o Homem de Neandertal,
em que muita gente viu o começo da abertura para as coisas intelectuais,
para o espírito, etc. Talvez não sejamos mais uma larva de Homem e, a
certa altura, apareça alguma coisa que nos exceda completamente e que
se possa rir das ideias que nós tivemos sobre o Futuro! É, portanto,
necessário ver a ideia do Futuro, nunca como muita gente a vê como uma
coisa impossível de se realizar, mas sobretudo como uma coisa
possibilíssima de ser ultrapassada, de tal maneira, que nós nem a
pudéssemos entender. Há maneiras variadíssimas de ver o Mundo: há
coisas de Matemática, por exemplo, que estão fora de uma nossa
compreensão imediata e que parecem não existir por aí, etc. Isso tudo
pode ser ultrapassado. Mas quando se pergunta a um professor «o que
pensa o que é o Futuro?», cuidado sempre e piedade com ele, porque ele
está apenas imaginando um Presente mais avançado. Tudo pode ser
excedido, em termos tais, que nem a mais ousada das poesias ou das
músicas é capaz de chegar aí. A música com mais probabilidades do que a
poesia…

(JL) Professor Agostinho da Silva, muito obrigado por esta meia hora de
conversa consigo!

(AS) Obrigado por esta nossa conversa!

(JL) Eu é que lhe agradeço!

You might also like