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O ESTADO DE DIREITO

Entrevista a Jorge Miranda realizada pelo Jornal «Estado de Direito»

Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa

Lisboa, Abril de 2010


INFORMAÇÃO IMPORTANTE

O texto que se segue é uma reprodução escrita, com


pequenas adaptações e esclarecimentos, da entrevista realizada
por Carmela Grüne ao Professor Doutor Jorge Miranda e
publicada no Jornal «Estado de Direito».

Como tal, cumpre-me esclarecer que se trata de um


documento com fins meramente educativos, sem quaisquer
pretensões económicas, que salvaguarda, na íntegra, os direitos
de autor e zela por uma reprodução fidedigna das palavras do
entrevistado.
O que é o Estado de Direito?

(…) A expressão “Estado de Direito” é o nome que nós damos à forma


de organização do Estado, político, da sociedade, em que há
fundamentalmente um determinado conjunto de grandes princípios:

 Em primeiro lugar, a ideia de direitos fundamentais: a pessoa


humana e a sua dignidade, a protecção da pessoa humana, a sua
liberdade, a sua autonomia frente ao poder político. A pessoa
humana como sujeito e não como objecto do poder político;
 Em segundo lugar, a ideia de que a pessoa humana não deve estar
afastada do exercício do poder político, deve ter uma forma
qualquer de intervenção na conformação do poder político e, daí,
a ligação que hoje se faz (faz a Constituição Brasileira, faz a
Constituição Portuguesa) entre o Estado de Direito e Democracia,
Estado democrático de Direito e Estado de Direito democrático. A
liberdade individual, a liberdade pessoal realiza-se no Estado de
Direito e o Estado de Direito pressupõe Democracia. Não há
Democracia sem Estado de Direito e também a experiência histórica
mostra que não há Estado de Direito sem Democracia;
 Depois, há todo um conjunto de princípios jurídicos que decorrem
da ideia de Estado de Direito:
o o princípio da justiça;
o o princípio da igualdade;
o o princípio da proporcionalidade;
o o princípio da protecção da confiança;
o o princípio do respeito da coisa julgada;
o o princípio da universalidade dos direitos;
o o princípio da responsabilidade do Estado por acções ou
omissões que infrinjam os direitos fundamentais.

Todo esse conjunto de princípios integra o núcleo que nós hoje


consideramos essencial a um Estado de Direito.
O Estado de Direito não é algo que tenha surgido de um momento para
o outro. A ideia foi lançada no século XIX e depois as constituições e a
prática de vários países têm concretizado a ideia de Estado de Direito.
Infelizmente, muitas vezes no meio ou depois de grandes calamidades ou
de regimes totalmente antagónicos ao Estado de Direito. Não é por acaso
que, por exemplo, a Constituição que é considerada paradigmática do
Estado de Direito – a Constituição Alemã de 1949 (a Constituição de Bona)
–, veio a seguir ao regime nazista. Não é por acaso que a Constituição
Portuguesa de 1976 veio a seguir ao regime salazarista ou a Constituição
Espanhola de 1978 a seguir ao regime franquista ou até a Constituição
Brasileira de 1988 a seguir ao regime ditatorial. Há também um avanço
das ideias e da concretização das ideias, há também uma certa dialéctica
histórica, quando há um determinado regime que põe em causa os direitos
fundamentais, a garantia da participação política dos cidadãos e os
princípios que eu há pouco mencionei, então, num momento seguinte, dá-
se um passo mais em frente, quer-se contrariar aquilo que antes se
verificou. Infelizmente, esta situação é a que nós encontramos no Brasil,
em Portugal, em Espanha e em todos os países, um avanço para um
Estado de Direito tem sido dado, muitas vezes, à custa de muitos
sofrimentos. Nós tivemos, em Portugal, a censura à imprensa durante 48
anos, a polícia política, prisões políticas, banimento de pessoas contrárias
ao regime, a impossibilidade de manifestação de ideias contrárias ao
regime. E o Brasil também conheceu, em certo momento, durante menos
tempo, mas em alguns aspectos até agravadamente, com estruturas que
no Brasil houve. E a Alemanha, então, foi um desastre total. Portanto, não
se pense que há uma linha contínua no sentido do Estado de Direito. Não!
As coisas dependem muito da sociedade. O Direito conforme a sociedade,
mas a sociedade não está, muitas vezes, em consonância com o Direito. E
há forças totalitárias, forças populistas, forças de vária natureza que são
opostas a um Estado de Direito. E há depois, também, crises económicas,
financeiras, sociais, crises identitárias que levam a um afastamento do
Estado de Direito. Portanto, o Estado de Direito é algo que nós podemos
dizer que se identifica com o Constitucionalismo Moderno, podemos dizer
que vem desde a Constituição Americana de 1787, a Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, sobretudo do século XIX, mas
até aos nossos dias. Como nos mostra a experiência terrível do século XX,
o Estado de Direito teve de vencer muitos e muitos obstáculos até
chegarmos à situação actual.

A importância de conhecer os meus direitos

Há o direito objectivo e o direito subjectivo:

 O direito objectivo é o conjunto das normas jurídicas que regem a


sociedade e esse, fundamentalmente, é aquele que nós estudamos
nas faculdades e é aquele que caracteriza o jurista, pois o jurista é
aquele que conhece o Direito, que é capaz de interpretar e aplicar
uma Lei;
 O direito subjectivo é o direito de cada pessoa (o meu direito, o seu
direito), o direito de agir ou não agir, o direito de circular
livremente, a liberdade de locomoção, a liberdade de eu me
associar com outra pessoa, a liberdade de reunião, a liberdade de
religião, o direito à habitação, o direito à moradia, o direito à
protecção de saúde.

Ora, estes direitos subjectivos estão em ligação com o direito objectivo,


pois eu só posso conhecer os meus direitos se também, pelo menos,
conhecer a Constituição. No mínimo dos mínimos, eu acho que, numa
sociedade democrática, em que lidamos com exigências de avanço e
progresso, a Constituição deveria ser conhecida por toda a gente, pois é lá
que está a sede básica dos direitos. Eu só posso defender os meus direitos
se conhecer o meu Direito, como é óbvio. Eu só posso defender aquilo que
acho que é a minha liberdade se souber dizer a alguém, “você não pode
passar esta marca, porque aqui está a atingir a minha liberdade”.
Portanto, o acesso ao Direito e o conhecimento dos direitos até já foi
definido por alguém como «o direito dos direitos», antes de mais nada.
Nós temos os nossos direitos, mas também temos o direito de conhecer os
nossos direitos. E isso manifesta-se em muitos casos, aliás a Constituição
Brasileira, como a Portuguesa também, previa que, no caso de prisão, de
detenção, a pessoa que é presa tem o direito de conhecer os seus direitos,
como aliás a gente vê nos filmes americanos, se a cliente pode ficar calada
para não ser prejudicada, porque aquilo que disser pode ser contra si; nós
temos o direito, enquanto administrados, de conhecer os nossos direitos
em relação à Administração; o Direito dos consumidores, pois, no que é
hoje uma sociedade de consumo, o consumidor é, muitas vezes,
enganado, por desconhecer os nossos direitos, enquanto consumidores,
conhecer os nossos direitos enquanto cidadãos.

(…)

Podemos dizer que, quanto mais nós conhecermos os nossos direitos,


por ventura menos recorreremos aos tribunais, porque saberemos
defender os nossos direitos sem a intervenção dos tribunais. Portanto, é
fundamental difundir os direitos (…), dar a conhecer às pessoas, reforçar
uma consciência jurídica, uma consciência cívica. Aliás, a ideia de
cidadania, para utilizar uma expressão forte, é uma ideia que está ligada
ao conhecimento do Direito. O cidadão conhece os seus direitos, como
também conhece os seus deveres, naturalmente, há uma conexão
necessária entre direitos e deveres. Muitas vezes, fala-se só em direitos,
quando há também os deveres, é óbvio, mas a cidadania é conhecer os
direitos e os deveres e saber exercer os direitos e cumprir os deveres. Mas
esse é um processo, em larga medida, de educação cívica, moral. É
extremamente importante que haja educação cívica, que os grandes
meios de comunicação de massas estejam abertos à difusão do Direito.
Eu, pessoalmente, fico espantado com a televisão, que apresenta imensa
publicidade, a respeito de coisas variadíssimas que não interessam
absolutamente nada, e não há programas que digam os nossos direitos:
os direitos ambientais, os direitos sociais, os direitos de liberdade. Isso é
extremamente importante e infelizmente não há, mas devia haver. (…) Em
Portugal, muito pouco se tem feito, embora hoje as pessoas estejam mais
conscientes dos seus direitos, realmente estão, as pessoas estão mais
atentas aos seus direitos. Há hoje, por isso, mais litigância nos tribunais,
mas, mesmo assim, ainda estamos muito longe.

(…)

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