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verve

verve
Revista Semestral do Nu-Sol — Núcleo de Sociabilidade Libertária
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP

7
2005
VERVE: Revista Semestral do NU-SOL - Núcleo de Sociabilidade Libertária/
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, PUC-SP.
Nº7 ( maio 2005 - ). - São Paulo: o Programa, 2005 -
Semestral
1. Ciências Humanas - Periódicos. 2. Anarquismo. 3. Abolicionismo Penal.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos
Pós-Graduados em Ciências Sociais.

ISSN 1676-9090

VERVE é uma publicação do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Co-
ordenadoras: Teresinha Bernardo e Silvana Tótora.

Editoria
Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária.

Nu-Sol
Acácio Augusto S. Jr., Anamaria Salles, Andre R. Degenszajn, Edson Lopes
Jr., Edson Passetti (coordenador), Eliane Knorr de Carvalho, Guilherme C.
Corrêa, José Eduardo Azevedo, Lúcia Soares da Silva, Márcio Ferreira
Araújo Jr., Martha C. Lossurdo, Natalia M. Montebello, Gilvanildo Avelino,
Rogério H. Z. Nascimento, Salete Oliveira, Thiago M. S. Rodrigues, Thiago
Souza Santos.

Conselho Editorial
Adelaide Gonçalves (UFC), Christina Lopreato (UFU), Clovis N. Kassick
(UFSC), Guilherme C. Corrêa (UFSM), Guilherme Castelo Branco (UFRJ),
Margareth Rago (Unicamp), Roberto Freire (Soma), Rogério H. Z. Nascimen-
to (UFPB), Silvana Tótora (PUC-SP).

Conselho Consultivo
Alexandre Samis (Centro de Estudos Libertários Ideal Peres – CELIP/RJ),
Christian Ferrer (Universidade de Buenos Aires), Dorothea V. Passetti
(PUC-SP), Francisco Estigarribia de Freitas (UFSM), Heleusa F. Câmara
(UESB), José Carlos Morel (Centro de Cultura Social – CSS/SP), José Maria
Carvalho Ferreira (Universidade Técnica de Lisboa), Maria Lúcia Karam,
Paulo-Edgard de Almeida Resende (PUC-SP), Plínio A. Coelho (Editora Ima-
ginário), Silvio Gallo (Unicamp, Unimep), Vera Malaguti Batista (Instituto
Carioca de Criminologia).

ISSN 1676-9090
verve
revista de atitudes. transita por limiares e ins-
tantes arruinadores de hierarquias. nela, não
há dono, chefe, senhor, contador ou progra-
mador. verve é parte de uma associação livre
formada por pessoas diferentes na igualdade.
amigos. vive por si, para uns. instala-se numa
universidade que alimenta o fogo da liberda-
de. verve é uma labareda que lambe corpos,
gestos, movimentos e fluxos, como ardentia.
ela agita liberações. atiça-me!

verve é uma revista semestral do nu-sol que


estuda, pesquisa, publica, edita, grava e faz
anarquias e abolicionismo penal.
SU M Á R I O

Émile Henry, o benjamim da anarquia


Jean Maitron 11

Notas para a abolição dos campos de


concentração e de extermínio
Salete Oliveira 43

Prisões: falência e crime social


Emma Goldman 57

Abolicionismo penal, medidas de redução


de danos e uma nota trágica
Edson Passetti 75

A mecanização do
cadáver — a má sorte dos animais
Christian Ferrer 86

Stirner e Foucault: em direção a


uma liberdade pós-kantiana
Saul Newman 101
Mujeres libres: anarco-feminismo e
subjetividade na revolução espanhola
Margareth Rago 132

A educação anarquista na república velha


Eduardo Valladares 153

Os pedreiros da anarquia
Edgar Rodrigues 178

Anarquia e anarquismo
Eduardo Colombo 194
Centro de cultura social,
uma prática anarquista
Entrevista com José Carlos Morel 209
Haikai
Henry D. Thoreau 224

Anarquismo na vida e na
obra de eugene o’neill
Pietro Ferrua 226

Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra: trajetórias


Beatriz Scigliano Carneiro 244
Jean Vigo, a revolta e o devir
Pablo Martins 264

RESENHAS

Anarquismo e crítica pós-moderna


Nildo Avelino 279

Notícias de um pensador: a coragem da verdade e o


pensamento libertário de Michel Foucault
Tony Hara 286

Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista


Jorge Vasconcellos 292

Afirmação da vida e decretação da morte


Acácio Augusto 297

Conectando anarquias
Thiago S. Santos 301
os anarquismos estão vivos como história do presen-
te. um presente composto das memórias de suas lutas,
de suas experimentações, das atuações dos anarquis-
tas no trabalho, no cotidiano jamais modorrento. um
presente feito de atualidade, de reviravoltas diárias.
verve não se interessa pela polêmica; esta apenas
sustenta dogmatismos. interessa-nos rebeldias.
diante do pavor disseminado pelo terrorismo conser-
vador deste início do século XXI, século que também vem
se caracterizando pelo conformismo, verve 7 traz instan-
tes do julgamento de émile henry, no final do XIX, e suas
atuais palavras. é a partir deste jovem anarquista que se
apresenta uma tensa discussão sobre o abolicionismo
penal, os anarquismos, as aproximações com nietzsche,
o teatro de eugene o’neill, o cinema de jean vigo, o con-
tundente ensaio de saul neuwman sobre foucault e stir-
ner, resenhas sobre ética, coragem e verdade, e poesias
de sergio cohn.
diante de tantas forças reativas, contaminando de
boçalidade até os libertários, é sempre corajoso uivar: a
uniformidade é a morte.
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não há como celebrar o raro


sem o encontro

Sergio Cohn

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Émile Henry, o benjamim da anarquia

émile henry1, o benjamim da anarquia

jean maitron*

Nota introdutória, por acácio augusto


O terrorismo anarquista é um importante aconteci-
mento histórico-político, que ocorre entre a Comuna de
Paris (1871) e a primeira Guerra Mundial (1914), larga-
mente ignorado pela historiografia de direita e de es-
querda. A lembrança da postura e da atitude política
destes homens de ação (como gostavam de se autodeno-
minar) ou destes assassinos delicados (utilizando um
termo cunhado por Camus) faz-se necessária, ainda
mais, em nossos dias quando vários acontecimentos in-
ternacionais passam a desencadear uma vasta biblio-
grafia de época, produzida por intelectuais oportunistas
e desavisados polemistas apressados, repleta de negli-
gências históricas.

* Jean Maitron (1910-1987) foi um dos mais importantes historiadores do


movimento operário francês. Professor do ensino médio e depois professor-
assistente na Sorbonne (Paris I) escreveu e organizou diversas obras como
Histoire du mouvement anarchiste en France — 1880-1914 (Paris, Sudel, 1951), Le
mouvement anarchiste en France de 1914 à nous jours (Paris, Gallimard, 1992) e
Ravachol et les anarchistes (Paris, Collection Archives, 1964).
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O texto que segue é uma seleta de um dos capítulos


do livro de Jean Maitron, Ravachol e os Anarquistas,
resultado de uma pesquisa realizada nos arquivos de
polícia da prefeitura de Paris na década de 1950. Mai-
tron reproduz uma série de documentos compostos de
interrogatórios policiais e judiciais, artigos de jornais
e prontuários, documentos que utilizou para escrever
sua História do Anarquismo na França (1880-1914).
Maitron é, junto com o alemão Max Nettlau, um dos
principais historiadores anarquistas.
O julgamento de Émile Henry, trecho que selecio-
namos do livro, é um acontecimento singular no inte-
rior do que foi conhecido como terror anarquista. Na
ocasião do julgamento dos Trinta (1894), resultado de
uma intensa repressão levada a cabo pelo governo fran-
cês para pôr fim aos atentados e ameaças que emer-
giram das resoluções da Internacional Negra (1881) —
uma tentativa de reagrupar internacionalmente os li-
bertários após a cisão com os autoritários no Congres-
so de Haia, em 1872 — Henry, um jovem espanhol
promissor de classe média, deflagra dois atentados
contra a burguesia de Paris e declara que, desde en-
tão, os anarquistas responderiam com violência à vi-
olência da burguesia organizada no Estado. Três fato-
res surpreendem o governo e burgueses franceses no
caso de Henry: um é o fato deste não possuir as carac-
terísticas físicas e sociais de um anarquista exem-
plar, outro é de seus atentados ocorrerem no exato
momento em que se esperava liquidar a ação dos
anarquistas com o julgamento dos Trinta, e, por fim,
a reivindicação estritamente pessoal que Henry faz
de suas ações.
A maneira que Émile Henry entende a anarquia
dispensa apresentações. A leitura desta seleta que pu-
blicamos pela primeira vez no Brasil é suficiente. Im-

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Émile Henry, o benjamim da anarquia

portante ressaltar que algo de muito intenso ocorreu


na França nas décadas de 1880 e 1890: o terror anar-
quista acordou os socialistas acomodados em sindica-
tos e partidos e perturbou o sono da burguesia que es-
perava dormir tranqüila após ter prendido, matado e
exilado os insurgentes da Comuna de Paris. Quando
tudo parecia caminhar para normalidade, os anarquis-
tas explodiram bombas para lembrar que são contra a
representação, o tribunal, o Estado e a propriedade pri-
vada.
O anarquista é uma procedência moderna no terro-
rismo que reivindica para si, e na história, a capacida-
de de se defender contra o contrato fictício — que en-
trega cada um às mãos do Estado, ao seu monopólio
legítimo do uso da força e à pletora de direitos.

*********

Nos dias 27 e 28 de Abril de 1894, numerosos agen-


tes policiais dispersaram-se pelos arredores do Palácio
da Justiça, outros colocaram-se nas entradas, revis-
tando cuidadosamente cada pessoa que entrava.2
O caso sobre o qual o júri do Sena é hoje chamado a
debruçar-se apresenta uma gravidade excepcional.
Desta vez, o acusado não é um homem grosseiro cuja
educação primária tenha sido menosprezada.
Émile Henry é um jovem de vinte e dois anos, de fisi-
onomia fina e doce, de tom pálido. Os cabelos casta-
nhos são cortados à escova. Uma ligeira barba loura
cresce-lhe no queixo. Sentado no banco dos réus, de
costas apoiadas no parapeito, sorri com indiferença.
Está vestido de preto.3

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[O interrogatório]
[...]
Terminada a leitura dos autos de acusação, o presi-
dente procede ao interrogatório do acusado:
Pergunta. A 12 de Fevereiro, entrou no Café Termi-
nus.
Resposta. Sim, às oito horas.
P. A sua bomba ia à cintura de suas calças?
R. Não, no bolso de meu sobretudo.
P. Por que foi ao Café Terminus?
R. Fui primeiro à Casa Bignon, ao Café de la Paix e ao
Americain, mas não havia gente o suficiente; então,
entrei no Terminus e esperei.
P. Havia uma orquestra. Quanto tempo esperou?
R. Uma hora.
P. Por que?
R. Para que aparecesse mais gente.
P. E em seguida?
R. Já o sabem.
P. Estou perguntando.
R. Usei o charuto!, acendi o rastilho e depois, pegan-
do a bomba, saí e à porta, ao deixar o café, lancei a bom-
ba.
P. Despreza a vida humana.
R. Não, a vida dos burgueses.
P. Fez tudo para salvar a sua.

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Émile Henry, o benjamim da anarquia

R. Sim; para recomeçar. Contava sair do café, fechar


a cortina de entrada, comprar um bilhete na estação
Saint-Lazare, fugir e recomeçar no dia seguinte.
P. Ao fugir encontrou-se mais adiante com um em-
pregado do café, um homem de nome Etienne, que ca-
çou-o, dizendo: “Agarrei-te canalha!” — Você respondeu:
“Ainda não”. E o que é que fez?
R. Disparei sobre ele.
P. Ele caiu. O que é que você disse?
R. Que tivera sorte por o meu revólver não ser me-
lhor.
P. Depois foi detido por um funcionário de cabeleirei-
ro; que fez?
R. Desfechei-lhe um tiro de revólver.
P. Foi atingido e está mal. O agente Poisson o seguia.
R. Como nessa altura se juntava gente, parei; espe-
rei o agente Poisson e disparei contra ele os últimos
três tiros do meu revólver.
P. Então foi preso e os policias tiveram dificuldade
em arrancá-lo da fúria da multidão.
R. Que não sabia o que eu tinha feito.
P. Tinha consigo balas que haviam sido fendidas. Por
que?
R. Para causar mais estragos.
P. E um punhal embebido numa preparação.
R. Envenenara a lâmina para esfaquear um delator
de anarquistas.
P. Estava decidido a atacar o agente com essa arma?
R. Certamente.

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P. Achava-se sentado a uma mesa próxima da por-


ta e lançou a bomba para a frente. Por que não atin-
giu mais pessoas com essa explosão, apesar de ter feito
pontaria à orquestra?
R. Lancei a bomba demasiado alto; chocou-se com
o lustre e desviou-se.
P. Então ouviu-se uma explosão surda e o café ficou
completamente destruído: mesas, espelhos, madeiras
são quebrados. Houve muitos feridos: vinte; um deles,
o Sr. Borde, entretanto morreu. Ficara com uma perna
crivada de feridas; um outro, o Sr. Van Herreweghen,
sofreu quarenta ferimentos. Encontravam-se ali mu-
lheres: a Sra. Kingsburg, ainda sobre grande padeci-
mento, bem como outras que ireis escutar. E essas
mulheres ficaram aterrorizadas ao ponto de esconder
os seus ferimentos. Você declarou que quanto mais
burgueses morressem, melhor seria.
R. É isso que penso.
P. Identificou-se primeiro como um tal Breton; pou-
co depois, desmascara-se, diz chamar-se Émile Hen-
ry e descreve a sua bomba. Como é que era feita?
R. Tratava-se de uma pequena marmita de ferro
branco contendo um detonador e um rastilho.
P. Afirmou que tinha experimentado um insuces-
so relativo. O que é que isso significa?
R. Queria ter morto mais gente; mas a marmita
não estava bem fechada.
P. Pôs projéteis dentro dela.
R. Coloquei cento e vinte balas.
P. Vaillant, que dizia querer ferir e não matar, tinha
posto pregos e não balas.

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Émile Henry, o benjamim da anarquia

R. Eu pretendia matar e não ferir.


P. O seu domicílio não era conhecido.
R. Declarei que não tinha domicílio em Paris; afir-
mei vir de Marselha ou de Pequim.
P. Pouco depois, foi assaltado um quarto da casa Fau-
cher; o comissário da polícia, avisado, encontra materi-
ais explosivos e conclui ser aquela a sua residência.
R. Desconheço quem entrou no meu quarto.
P. Advertiram-no que fôra descoberto o seu domicílio
e, então, replicou que deveriam ter encontrado em sua
casa uma certa quantidade de materiais explosivos.
R. Dava para fazer entre doze e quinze bombas.
P. (Aos jurados): Conhecem o crime e o acusado, que
acaba de vos confessar o seu crime com cinismo.
O acusado: Não é cinismo, é convicção.
P. Quis matar Etienne, o empregado do café?
R. Quis matar todos os que se opusessem à minha
fuga.
P. Quis matar o agente Poisson?
R. Certamente; ele erguera o sabre e teria me mata-
do.
P. Quis matar as pessoas do Café Terminus?
R. Certamente, quantas mais melhor.
P. Quis destruir o edifício?
R. Oh! Pouco me importa.
Sr. Presidente (aos jurados): Isto já bastaria para esta-
belecer a culpabilidade do acusado; mas, seja qual for o
crime, a justiça, o que muito nos honra, nunca prescin-

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de das regras habituais. Devemos examinar todos os de-


talhes e debruçarmo-nos ainda sobre um outro fato im-
putado ao acusado.
P. O seu pai morava em Brévannes, depois foi para a
Espanha, tomou parte na Comuna de Paris, em seguida
a sua mãe ficou viúva e com três crianças. Obteve uma
bolsa na Escola J. B. Say4, e aos dezessete anos pôde ser
admitido na Escola Politécnica. Não continuou.
R. Para não ser militar e não ser obrigado a disparar
contra infelizes como em Fourmies.5
P. Arranjou emprego com um empreiteiro, Sr. Borde-
nave, seu parente. Quanto ganhava?
R. Em Veneza, ganhava 100F por mês.
P. Por que é que veio embora?
R. Por motivos que não vêm ao caso.
P. Ele quis obriga-lo — foi você quem o afirmou — a
exercer uma vigilância discreta que lhe repugnou. O
Sr. Bordenave, interrogado, protestou.
R. Reconheceu que tinha havido um mal entendido.
P. Depois arranjou emprego.
R. Passei três meses de miséria, antes disso!
P. Em todo caso, logo arranjou uma ocupação.
R. Ocupação bem medíocre: 100 a 120F por mês.
P. Nesse momento você era influenciado por um dos
seus irmãos. Pouco depois, foi preso, após um comício
de homenagem a Ravachol6; e o seu patrão encontra na
sua escrivaninha obras anarquistas, nomeadamente
uma tradução de um jornal italiano, indicando os méto-
dos de fabricar nitroglicerina, e nos quais se lê: “Viva o
roubo, Viva a dinamite!”. Estão aí as regras que pôs em

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Émile Henry, o benjamim da anarquia

prática no atentado da Rue des Bons-Enfants. Então o


seu patrão despediu-o.
R. Fui despedido quando encontraram esses papéis.
P. Procurou trabalho num relojoeiro. Depois, esteve
empregado no En dehors, dirigido por Matha, condena-
do em 1892, ano em que você entrou para esse jornal,
por incitação à insubordinação militar — recusou tam-
bém ser militar.
R. Estive três anos num batalhão escolar7 e é tudo o
que poderia fazer como tropa.
P. Furtou-se ao serviço militar e a sua mãe não con-
cordou.
R. Temia que eu fosse expatriado.
P. Entrou para casa do Sr. Dupuis recomendado por
Ortiz, um ladrão.8
R. Não estou ao par do que tem feito Ortiz desde que
o conheci.
P. O Sr. Dupuis aumentou o seu salário.
R. Sentia uma grande estima por ele.
P. Quererá repetir diante do júri as confissões que
fez durante a instrução?
Prefiro que você fale.
R. Com certeza. Os motivos do meu ato direi ama-
nhã. A Sociedade de Carmaux é representada em Pa-
ris pela sua administração; depois da greve, comprei
uma marmita; tinha dinamite, uma espoleta e rasti-
lho de mineiro; preferi o sistema da bomba de inver-
são.
O interrogatório prosseguiu. O acusado recusa-se a di-
zer o que fez durante o ano de 1893, que separa os dois

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atentados. Durante uma discussão mais acalorada, o juiz-


presidente gritou:
P. Dane-se com o seu silêncio!
R. É-me indiferente. Não preciso me acautelar com o
meu silêncio; sei bem que serei condenado à morte.
P. Escute: acho que há uma confissão que dói ao seu
orgulho. Vaillant confessou ter aceito 100F de um la-
drão; você não quer reconhecer que estendeu essa mão
para receber dinheiro do roubo, essa mão que vemos
hoje coberta de sangue.
R. As minhas mãos estão cobertas de sangue, tal
como a sua toga! De resto, não tenho que lhe responder.
P. Você é acusado e o meu dever é interrogá-lo.
R. Não reconheço a tua justiça, estou contente com o
que fiz!...
P. Você não reconhece a justiça. Infelizmente para
você está nas malhas dela e os jurados saberão apreci-
ar.
R. Eu sei!
O Sr. Presidente: Sente-se.
A audiência, suspensa às duas horas e meia, reco-
meçou às três horas e quinze.
[...]
Mais algumas testemunhas de acusação e passa-se
aos depoimentos favoráveis.
Brémant, mestre-escola em Fontenay-sous-Bois: Émile
Henry foi meu aluno; era um modelo. Possuía uma matu-
ridade de espírito extraordinária, uma grande doçura. Dei-
xou-nos aos doze anos e mantive excelentes relações com
ele. Chegou a mandar-me uma vez uns versos.

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verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

Le Fermous: Fui condiscípulo de Émile Henry na Escola


J. B. Say. Era um colega excelente, um amigo muito in-
dulgente; tinha por ele um grande afeto.
Philippe, professor particular na Escola Politécnica: Fui
professor de Henry na Escola J. B. Say; era uma criança
perfeita, a mais honesta que é possível encontrar; antes
de se apresentar na Escola Politécnica, perguntou-me o
que deveria fazer; respondi-lhe que o achava perfeitamente
capaz para ser admitido.
P. Teria podido, pelos seus conhecimentos, construir
uma existência honrada e lucrativa como empregado de
um construtor que se interessasse por ele?
R. Poderia ter feito carreira muito boa, sob a orientação
de seu parente. Conhecia mal a vida, menos do que os
rapazes da sua idade.
Brajus, 65 anos: Conheci muito bem o pai, a mãe e os
filhos da família Henry. Sempre se portaram bem e a mi-
nha casa esteve-lhes sempre aberta. Fui acompanhando
Émile. Em 1893, veio ver-me duas ou três vezes.
Sr. Hornbostel [advogado de defesa]: A testemunha deu
dinheiro a Henry?
R. A mãe dele pediu-me algumas vezes que lhe em-
prestasse dinheiro e ele me pagou.
Gauthey (Jules-François), operário metalúrgico: Conhe-
ci Henry em 1891, visitava-me.
P. Viu-o em 1893?
R. Vi-o uma vez; mas procurou-me várias vezes na
minha ausência, vestido de operário.
P. Tinha as mãos sujas?

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R. A minha mulher viu-o e disse-me que ele era ser-


ralheiro. Em 1891, estimava Henry. Ele gostava muito
das crianças.
Goupil, médico.
O Sr. Presidente (dirigindo-se à testemunha para o
convidar a prestar juramento): Levante a mão direita.
O Dr. Goupil coloca a mão direita atrás das costas.
P. Levante a mão direita.
R. Recuso-me a prestar juramento por respeito pela
vossa religião, que não tenho a felicidade de praticar
nem de conhecer.
Não tendo a citação à testemunha sido entregue ao
Ministério Público, o delegado opõe-se a que o Sr. Dr.
Goupil preste juramento, a fim de permitir que possa
ser ouvido sem caráter oficial.
O Doutor Goupil: Conheci o Henry pai. Cheguei a tê-
lo como secretário. Tratei-o no fim da vida. O Émile go-
zou uma juventude excelente; é um jovem muito ner-
voso; já afirmei diante de alguns dos senhores jurados,
refiro-me aos que se dignaram receber-me.
O acusado: Não sou louco.
O Doutor Goupil: Reuni apontamentos que entreguei
à defesa e que indicam qual o estado mental do acusa-
do.
O acusado: Agradeço-lhe, mas tenho consciência do
que fiz; não sou louco. Os resultados obtidos no colégio
foram posteriores à minha febre tifóide. O meu pai mor-
reu em conseqüência de um envenenamento por vapo-
res mercuriais. Agradeço-lhe mais uma vez, mas não
sou um louco; sou responsável pelos meus atos.

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verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

Ogier d’Ivry (conde): Sou parente por afinidade de


Émile Henry. Conheci-o jovem, excelente aluno, sonha-
dor, desequilibrado. Tinha por padroeiro São Luís; de-
pois seguiu as inclinações do pai. Há nestes homens
um extraordinário sentimento de revolta; descendem
dos antigos Camisards9, o pai participou na Comuna. São
mais anarquistas do que a Anarquia ou mais realistas
que o rei sob a monarquia. Sempre na oposição e em
revolta. Convenci-o a entrar para a Escola Politécnica.
O Sr. Presidente: Senhores jurados, antes de mandar
entrar a última testemunha, insisto em perguntar ao
acusado e ao seu defensor se renunciam a ouvi-la.
Sr. Hornbostel: De maneira nenhuma.
Sr. Presidente: Então quero explicar em que circuns-
tâncias esta testemunha foi citada. Recebi de Émile
Henry a carta seguinte:
“Senhor Presidente,
Tendo a minha mãe manifestado o desejo de assistir
ao meu julgamento, tentei em vão dissuadi-la.
Temendo justificadamente que as emoções de dois
dias de audiências lhe sejam demasiado dolorosos, te-
nho a honra de vos solicitar senhor presidente, que lhe
negue qualquer autorização que ela vos possa pedir para
assistir as mesmas.
Queira aceitar, senhor presidente, as minhas sin-
ceras saudações.
Émile Henry
25 de Abril de 94. Prisão do Palácio de Justiça.”
Esta carta foi-me entregue pela defesa. Já aparece-
ra, aliás, nos jornais antes de meu conhecimento. O
advogado pediu-me autorização para fazer entrar a mãe
do acusado na sala de audiência. Recusei energicamen-

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te, declarando que não queria deixar vir aqui uma mãe
para ouvir o acusador público requerer a pena capital
contra o filho. Acrescentei que só havia um meio de a
fazer entrar, que era citando-a como testemunha. Se
esta testemunha for chamada, a lei obriga-me a ouvi-
la.
O acusado: Desconhecia que a minha mãe tivesse
sido citada... Não quero ver aqui a sua dor.
P. É precisamente o que pretendia evitar-lhe. Renun-
cia à audiência da testemunha?
O acusado: Renuncio em absoluto.10
Sr. Hornbostel: Renuncio igualmente.
Esgotado o rol de testemunhas o acusador público pro-
nunciou o seu requisitório. O que mais lhe importa é
saber “como este jovem burguês se tornou um anarquis-
ta”.
Estamos aqui na presença, não de Ravachol, Léauthi-
er e outros, mas na de um burguês. O seu pai possuía
11

bens, coisa singular para um anarquista; foi empreiteiro


de profissão, depois engenheiro, e a infelicidade atingiu-
o juntamente com a doença. Como foi educado o acusa-
do? Condoemo-nos muito com certos anarquistas, com
uma jovem12, esquecendo os órfãos que os atentados
teriam podido causar. Apiedamo-nos também com a má
sorte de Émile Henry; conseguiu uma bolsa, terminou
os estudos secundários e chegou à admissão na Escola
Politécnica, era um burguezinho. Emprega-se na casa
do Sr. Bordenave que aos dezesseis anos e meio lhe ofe-
rece um lugar e quer propiciar-lhe um futuro. Começa
com 75F por mês; isto não foi suficiente para o seu or-
gulho, não chegava, porque queria principiar por onde
os outros acabam.

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verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

É orgulhoso e cruel. Após o caso do Terminus, decla-


ra chamar-se Breton, vindo de Marselha ou Pequim,
como quiserem. Vejam como é um frio ironista. Acres-
centa lamentar não ter morto mais gente e não ter
podido usar seu punhal: “Matei muito pouca gente!
Outros virão depois de mim, que farão melhor”. É isto
que diz. Assistiram, ontem, a sua atitude em presença
das vítimas. Quando depunha o Sr. Herrenweghen, os-
tentava ele a sua indiferença face a esta vítima ainda
débil que chorava a morte do seu amigo [...].
Quero falar-vos das vítimas: Sinto-me cheio de pena
da Sra. Henry cujo luto não começará com o vosso vere-
dicto; o seu luto começou no dia do crime. A Sra. Henry
é sua primeira e mais dolorosa vítima.
Morreram cinco vítimas na Rue de Bons-Enfants; a
sexta faleceu, há pouco tempo, depois de sofrimentos
horríveis. Os feridos: Sr. Van Herrenweghen, ainda com-
balido; Sr. Maurice, empregado de cabeleireiro; essas
senhoras enlouquecidas, escondendo seu terror, e tan-
tas outras. Henry ri destas vítimas! Garin, o funcioná-
rio da Sociedade de Carmaux, deixa viúva grávida e duas
crianças, vivendo de uma pensão. Réuax tinha vinte e
oitos anos; deixa viúva e um bebê. Formarin deixa viú-
va e um jovem rapaz. Touteau deixa viúva e três crian-
ças. Pousset deixa viúva e dois filhos.
Eis o resultado da anarquia: Pousset era filho de um
oficial; educado na Flèche, fôra para Saint-Cyr, tornara-se
oficial; amava uma mulher pobre, casou com ela e teve
que interromper sua carreira; fez um pouco de tudo; es-
tudou direito, licenciou-se, foi secretário de comissário
da polícia e em breve seria comissário. A bomba estúpida
da Rue des Bons Enfants acabou com tudo isso. Foi o que
fez. É esta a solução da questão social segundo os anar-
quistas.

25
7
2005

Os crimes de Henry são crimes atrozes; a opinião


pública sente por eles apenas ódio e desejo de vingança.
Escapou de ser esquartejado por populares. A justiça é
mais fria, mais calma; o que a multidão teria feito sob o
domínio da cólera, fazei-o vós com o sangue frio neces-
sário à justiça. Concordai que só a pena capital pode
igualar-se a seus crimes [...].

[Palavras de Émile Henry]


Suspensa a audiência às cinco horas e quarenta e cin-
co minutos, recomeçou às cinco e dez.
Émile Henry pediu então a palavra, o que lhe foi conce-
dido. Levanta-se e virando-se para os jurados, fala:
Não é uma defesa que vos quero apresentar. Não tento
de forma alguma furtar-me às represálias da sociedade
que ataquei.
De resto, só aceito um único tribunal — eu próprio; e o
veredicto de qualquer outro me é indiferente.
A explicação de meus atos.
Quero simplesmente explicar os meus atos e lhes di-
zer como fui levado a executá-los.
Sou anarquista há pouco tempo. Apenas me lancei no
movimento revolucionário em meados de 1891. Até aí vi-
vera em meios totalmente imbuídos da moral vigente. Ti-
nha sido habituado a respeitar, e até a amar, os princípios
da pátria, família, autoridade e propriedade.
Mas os educadores da geração atual esquecem com
demasiada freqüência uma coisa: que a vida, com suas
lutas e os seus dissabores, as suas injustiças e iniqüida-
des, encarrega-se, indiscreta, de abrir os olhos dos igno-
rantes à realidade. Foi o que me aconteceu, como aconte-
ce a todos. Tinham me dito que esta vida era fácil, larga-

26
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

mente aberta aos inteligentes e vigorosos, mas a experi-


ência mostrou-me que só os cínicos e os bajuladores con-
seguem obter um lugar ao sol.
Haviam me dito que as instituições sociais se basea-
vam na justiça e na igualdade, mas não vi à minha volta
senão mentiras e velhacarias.
Cada dia me tirava uma ilusão.
Onde quer que fosse, testemunhava em alguns as
mesmas dores, noutros os mesmos prazeres.
Não demorei para compreender que as palavras pom-
posas que me tinham ensinado a venerar — honra, abne-
gação, dever — não eram mais do que uma máscara es-
condendo as mais torpes infâmias.
O industrial, que construía uma fortuna colossal à cus-
ta do trabalho dos seus operários, a quem tudo faltava, era
uma pessoa honesta.
O deputado, o ministro de mãos sempre abertas ao su-
borno, servia ao bem público.
O oficial que, experimentava o último modelo de espin-
garda contra crianças de sete anos, cumpriria bem o seu
dever e era, em pleno Parlamento, felicitado pelo presi-
dente do conselho de ministros! Tudo o que vi me revoltou
e o meu espírito entregou-se à crítica da organização soci-
al. Essa crítica foi feita demasiadas vezes para que eu a
repita.

Atraído pelo socialismo


Atraído momentaneamente pelo socialismo, afastei-me
depressa desse partido. Tinha demasiado amor à liberda-
de, demasiado respeito pela iniciativa individual, dema-
siada repugnância pela arregimentação, para aceitar
ser um número a mais no exército do Quarto Estado.

27
7
2005

Percebi, por um lado, que no fundo o socialismo não


altera em nada a ordem atual. Mantém o princípio da au-
toridade, e este princípio, digam o que disserem os pre-
tensos livres pensadores, não passa de um velho resquí-
cio da fé numa potência superior.
Estudos científicos me iniciaram, gradualmente, no
funcionamento das forças naturais.
Ora, eu era materialista e ateu; compreendera que a
hipótese de Deus era repudiada pela ciência moderna, que
dela já não necessitava. A moral religiosa e autoritária,
baseada na falsidade, deveria portanto desaparecer. Qual
era então a nova moral, em harmonia com as leis da na-
tureza, que deveria regenerar o velho mundo e dar à luz
uma humanidade feliz?
Toda esta introdução foi recitada pelo acusado com uma
voz segura, apenas de início atravessada por uma ligeira
emoção.
Nesta altura, a memória falhou-lhe; o Sr. Hornbostel, seu
advogado, passa-lhe então um caderno que seguirá com os
olhos até ao final da intervenção. E recomeça:
É por essa altura que me relacionei com alguns com-
panheiros anarquistas, que ainda hoje considero como dos
melhores que conheci. O caráter desses homens sedu-
ziu-me imediatamente. Apreciava-lhes a grande sinceri-
dade, a absoluta franqueza, um desprezo profundo por to-
dos os preconceitos, e quis conhecer o pensamento que
tornava tais homens tão diferentes de todos os que conhe-
cera até ali.
Esse pensamento encontrou no meu espírito um ter-
reno preparado para o receber, devido a observações e re-
flexões pessoais.
Apenas tornou mais preciso o que havia em mim de
vago e confuso.

28
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

Fiz-me também anarquista.


Não vou desenvolver aqui a teoria da anarquia. Quero
apenas reter o seu lado revolucionário, a sua marca des-
truidora e negativa pela qual compareço diante de vós.
Nesta época de luta aguda entre a burguesia e os seus
inimigos, sinto-me quase tentado a dizer, como Souvari-
ne no Germinal: “Todos os raciocínios sobre o futuro são
criminosos porque se opõem à destruição pura e simples
e entravam a marcha da revolução”.
Trouxe comigo para a luta um ódio profundo, dia a dia
mais intenso devido ao espetáculo revoltante dessa socie-
dade em que tudo é reles, ambíguo, feio, em que tudo é um
entrave à expansão das paixões humanas, às tendências
generosas do coração, ao livre desenvolvimento do pensa-
mento.

Bater com força e precisão


Quis vibrar um golpe com a maior força e precisão pos-
síveis. Passaremos então ao primeiro atentado que come-
ti, a explosão da Rue des Bons-Enfants.
Tinha acompanhado atentamente os acontecimentos
de Carmaux.
As primeiras notícias da greve encheram-me de ale-
gria; os mineiros pareciam enfim dispostos a renunciar
às greves pacíficas e inúteis, em que o trabalhador confi-
ante espera com paciência que a sua meia dúzia de fran-
cos vença os milhões das companhias.
Pareciam ter entrado numa via de violência que se
afirmou resolutamente no dia 15 de Agosto de 1892.
Os escritórios e edifícios da mina foram invadidos por
uma multidão farta de sofrer sem se vingar. O engenhei-

29
7
2005

ro tão odiado pelos seus operários ia ser executado, quan-


do alguns timoratos se interpuseram.

Os timoratos
Quem eram esses homens?
Os mesmos que fazem abortar todos os movimentos
revolucionários, por recearem que o povo, uma vez lança-
do na ação, deixe de obedecer à sua voz; aqueles que le-
vam milhares de homens a sofrer privações durante me-
ses inteiros, para fazer propaganda à custa dos seus sofri-
mentos e ganharem a popularidade necessária à obtenção
de um mandato — refiro-me aos chefes socialistas. Esses
homens, com efeito, tomaram a direção do movimento
grevista.
E viu-se, subitamente, cair sobre a região um enxame
de senhores bem-falantes que se colocaram à inteira dis-
posição da luta, organizaram subscrições, proferiram con-
ferências, enviaram pedidos de fundos para todo o lado. Os
mineiros depuseram nas suas mãos toda a iniciativa. O
que aconteceu, sabemos bem.
A greve eternizou-se, os mineiros travaram conheci-
mento mais íntimo com a fome, sua companheira habitu-
al; esgotaram os magros fundos de reserva do seu sindica-
to e dos que vieram em seu auxílio e, ao fim de dois me-
ses, de orelha murcha, voltaram à fossa, mais miseráveis
do que antes. Desde o princípio teria sido muito simples
atacar a companhia no seu único ponto fraco: o dinheiro;
incendiar o estoque de carvão, destruir as máquinas de
extração, destruir os aparelhos de bomba hidráulica.
Claro que a Sociedade teria capitulado bem depressa.
Porém, os grandes pontífices do socialismo não admitem
esses processos, que são anarquistas. Neste jogo arrisca-
se a prisão e, quem sabe?, talvez uma dessas balas que

30
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

fizeram maravilhas em Fourmies. Nem se ganha nenhum


lugar municipal ou legislativo. Resumindo, a ordem, per-
turbada por instantes, volta a reinar em Carmaux.
Mais poderosa do que nunca, a Sociedade continuou a
sua exploração e os senhores acionistas felicitaram-se pelo
feliz desenlace da greve. Convenhamos que ainda havia
bons dividendos a partilhar.

A voz da dinamite
Decidi então introduzir, nesse concerto de alegres chil-
reios, uma voz que os burgueses já tinham ouvido, mas
que julgavam morta com Ravachol: a voz da dinamite.
Quis mostrar à burguesia que, daí em diante, acabari-
am para ela as alegrias completas, que seus insolentes
triunfos seriam perturbados, que o seu bezerro de ouro
haveria de tremer violentamente no pedestal, até ao safa-
não definitivo que o derrubaria na lama e no sangue.
Ao mesmo tempo, quis fazer entender aos mineiros que
há só uma categoria de homens — os anarquistas — que
sentem sinceramente os seus sofrimentos e estão pron-
tos a vingá-los.
Esses homens não se sentam no Parlamento, como os
senhores Guesde e quejandos, mas caminham para gui-
lhotina.
Preparei pois uma marmita. Por um instante, veio-me
à memória a acusação de Ravachol: e as vítimas inocen-
tes?
Mas resolvi rapidamente o problema. A casa onde se
encontram os escritórios da Sociedade de Carmaux só era
habitada por burgueses. Não haveria, portanto, vítimas
inocentes.

31
7
2005

A burguesia no seu conjunto vive da exploração dos


infelizes; deve em conjunto expiar os seus crimes.
Foi com a certeza absoluta da legitimidade do meu
ato que coloquei a minha marmita na porta dos escri-
tórios da Sociedade.
Expliquei, durante os debates, como esperava que,
no caso do meu engenho ser descoberto antes da ex-
plosão, viesse a rebentar no posto policial, atingindo,
ali, os meus inimigos. Eis os motivos que me levaram
a cometer o primeiro atentado que me censuram.

A caça aos anarquistas


Passemos ao segundo, o do Café Terminus. Vim a
Paris na época do caso Vaillant. Assisti à repressão
formidável que se seguiu ao atentado do Palais-Bour-
bon13. Testemunhei as medidas draconianas toma-
das pelo governo contra os anarquistas.
Espiava-se por todo lado, faziam-se buscas, prendi-
am-se pessoas. Ao acaso, uma multidão de indivíduos
era arrancada da família e lançada na prisão. O que
sucedia às mulheres e aos filhos destes camaradas
durante o seu encarceramento? Ninguém se preocu-
pava com isso.
O anarquista já não era um homem, mas um ani-
mal feroz cercado por todos os lados, para quem a im-
prensa burguesa, escrava infame do poder, pedia o ex-
termínio por todos os meios.
Ao mesmo tempo, os jornais e panfletos libertários
eram confiscados, o direito de reunião proibido.
Mais do que isso: quando queriam se livrar defini-
tivamente de um companheiro, um bufão colava no
seu quarto um embrulho que dizia conter tanino e, no

32
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

dia seguinte, era feito uma busca com um mandato data-


do da antevéspera. Encontravam uma caixa cheia de pós
suspeitos, o camarada ia a julgamento e apanhava três
anos de prisão.
Perguntem se isso não é verdade ao miserável denun-
ciante que se infiltrou na casa do companheiro Mérigeaud.
Mas todos esses processos foram considerados bons.
Atingiam um inimigo do qual se tinha medo e os que ti-
nham tremido queriam passar por corajosos.
Coroando esta cruzada contra hereges, ouvimos o Sr.
Raynal, ministro do Interior, declarar na Assembléia que
as medidas tomadas pelo governo tinham obtido um bom
resultado, que tinham semeado o terror no campo anar-
quista. Não era ainda suficiente. Condenaram à morte
um homem que não matara ninguém, e para parecerem
corajosos até o fim, um belo dia, guilhotinaram-no.
Mas, senhores burgueses, não havíeis contado com este
vosso convidado.
Vocês encarceraram centenas de indivíduos e violen-
taram um sem-números de domicílios; mas ainda havia
fora das vossas prisões homens que vocês ignoravam e
que na sombra assistiam à vossa caça aos anarquistas,
esperando apenas o momento para, por sua vez, caçarem
os caçadores.
As palavras do Sr. Raynal constituia um desafio lança-
do aos anarquistas. O repto foi aceito. A bomba do Café
Terminus foi a resposta a todas as vossas violações da li-
berdade, às vossas prisões, às vossas buscas, às vossas
leis de imprensa, às vossas expulsões em massa de es-
trangeiros, às vossas decapitações. Mas, dirão, porquê ir
atacar clientes tranqüilos que ouviam música e que tal-
vez não sejam nem magistrados, nem deputados, nem
funcionários?

33
7
2005

Porque é que atirei a esmo


Por que? É bem simples — a burguesia fez dos anar-
quistas um bloco. Um só homem, Vaillant, lançou uma
bomba; nove décimos dos companheiros nem sequer o
conheciam. Que importa? Perseguiu-se em massa. Quem
quer que tivesse qualquer relação anarquista foi perse-
guido.
Muito bem. Uma vez que vocês responsabilizaram um
movimento pelos atos de um indivíduo e o atacam em blo-
co, nós também atacamos em bloco.
Devemos apenas atacar os deputados que fazem as leis
contra nós, os magistrados que as aplicam, os polícias que
nos prendem?
Não penso assim.
Todos esses homens são meros instrumentos que não
agem em seu próprio nome. As suas funções foram insti-
tuídas pela burguesia para a sua defesa. Não são mais
culpados do que os outros.
Os bons burgueses que embora não tendo qualquer fun-
ção recebem, no entanto, os seus dividendos, que vivem
na ociosidade com os lucros produzidos pelo trabalho dos
operários, devem também sofrer a sua parte de represáli-
as.
E não só eles, mas todos os que se sentem satisfeitos
com a ordem atual, que aplaudem os atos do governo e que
se tornam seus cúmplices, esses assalariados por 300 ou
500F por mês que odeiam o povo mais ainda que os gran-
des burgueses, essa massa estúpida pretensiosa que se
coloca sempre ao lado do mais forte, clientela habitual do
Terminus e doutros grandes cafés.
E por isso atirei a esmo sem escolher as minhas víti-
mas.

34
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

Que a burguesia compreenda


É necessário que a burguesia compreenda bem que
aqueles que têm sofrido estão finalmente fartos dos seus
sofrimentos, mostram os dentes e atacam tanto mais bru-
talmente quanto mais tiverem sidos brutais para eles.
Eles não têm nenhum respeito pela vida humana, por-
que os próprios burgueses também não se preocupam com
ela.
Não cabe aos assassinos da semana sangrenta e de
Fourmies chamar assassinos aos outros.
Não poupam nem mulheres nem crianças burguesas
porque as mulheres e as crianças que amam também não
são poupadas. Não serão vítimas inocentes essas crian-
ças que, nos subúrbios, morrem lentamente de anemia
porque o pão escasseia em casa? Essas mulheres que de-
finham nas vossas oficinas e se esgotam para ganhar qua-
renta centavos por dia, e muito felizes quando a miséria
não as arrasta para prostituição? Esses velhos que vocês
transformaram em máquinas de produção durante toda a
sua vida e que atiram para a valeta ou para o hospital logo
que as suas forças se exaurem?
Tenham ao menos a coragem dos vossos crimes, se-
nhores burgueses, e admitam que as nossas represálias
são totalmente legítimas.
Porém não me iludo, é claro. Sei que os meus atos não
serão ainda perfeitamente entendidos pelas multidões
insuficientemente preparadas. Mesmo entre os operári-
os, por quem lutei, há muitos que, enganados pelos vossos
jornais, julgam-me seu inimigo. Mas isso pouco me im-
porta. Não me preocupa o juízo de ninguém. Não ignoro
também a existência de indivíduos que se dizem anar-
quistas e se apressam a condenar qualquer solidariedade
com os propagandistas pela ação.14

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7
2005

Tais indivíduos tentam estabelecer uma sutil distin-


ção entre teóricos e terroristas. Demasiado covardes para
arriscarem a sua vida, renegam aqueles que atuam. Mas
a influência que dizem ter sobre o movimento revolucio-
nário é nula. Hoje a hora é de ação, sem fraquezas nem
recuos.
Alexandre Herzen, o revolucionário russo, afirmou: “Das
duas uma, ou fazer justiça e seguir em frente, ou perdoar
e vacilar a meio do caminho”.
Não queremos perdoar nem vacilar e seguiremos sem-
pre em frente até que a revolução, objetivo de nossos es-
forços, venha finalmente coroar a nossa obra, tornando o
mundo livre.
Não imploramos a mínima piedade nesta guerra impi-
edosa que declaramos à burguesia.
Sabemos matar, saberemos morrer.
É pois com indiferença que aguardo seu veredicto.
Estou ciente que a minha cabeça não será a última
que vocês cortarão; outras ainda hão de rolar, pois os mor-
tos-de-fome começam a descobrir o caminho dos vossos
grandes cafés e restaurantes, como o Terminus e o Foyot.
Vocês acrescentarão novos nomes à lista sangrenta
dos nossos mortos.
Vocês enforcaram em Chicago, decapitaram na Ale-
manha, garrotaram em Jerez, fuzilaram em Barcelona,
guilhotinaram em Montbrison e em Paris, mas o que nun-
ca conseguirão destruir é a anarquia.
As suas raízes são demasiado profundas. Nasceu no
seio de uma sociedade podre e em desagregação, é uma
reação violenta contra a ordem estabelecida. Representa
as aspirações igualitárias e libertárias que vêm atacar a

36
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

autoridade atual; está em todo lado, o que a torna inatingí-


vel; acabará por vos liquidar.15 [...]
Menos de um mês depois, a 21 de maio, Émile Henry, con-
denado à morte, era executado.
Em La Justice dois dias depois, Georges Clemenceu, sob o
título “A guilhotina”, fazia a descrição do suplício:
Alguém me disse: “É preciso que assista para poder con-
tar aos que concordam”. Hesitei, em busca de um pretex-
to. Mas depois, bruscamente, decido-me. Vamos lá.
Atravessamos Paris das madrugadas, com seus grupos
de mulheres deslavadas sob os lampiões de gás, e os seus
notívagos em busca de uma aventura. Enervado, procuro
nas coisas um indício estranho. Nada. Um céu de ardósia,
encarneirado pelas nuvens, de uma transparência páli-
da. Um vento seco e cortante que nos gela.
Eis-no na Place du Château-d’Eau, face à grande Re-
pública em barrete frígio, mostrando o seu ramo de oli-
veira que, diz ela, faz a paz entre os homens. E o cute-
lo? No seu íntimo, grita-lhe: “Mentirosa!” Agora é Le-
dru-Rollin16, teatralmente colocado face à câmara do
Fauboug. Mostra, num gesto enfático, a urna do sufrá-
gio popular, dizendo: “Aqui está a salvação. — Sem dú-
vida, amigo, mas é longa a espera para uma vida cur-
ta. Tu próprio sofreste, durante vinte anos, a cruel ex-
periência.”
Todas as ruas que dão para a Place de la Roquette fo-
ram fechadas. A praça encontra-se ocupada por militares.
Lá estão mil homens. São muitos para matar um só. Bar-
ragens mantêm o público no limite da Rue de la Roquette.
Impossível ver alguma coisa do espetáculo iminente. O
Sr. Joseph Reinach17 diverte-se à nossa custa. A praça
não passa de um grande pátio prisional.

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7
2005

Diante da porta da Roquette surgem novas barreiras


para as pessoas com cartão de entrada. Amontoam-se ali,
bem à vontade, uns sessenta jornalistas, entre os quais
uma mulher, uma senhora de idade, de cabelos grisalhos,
que atrai a curiosidade geral, sem mostrar qualquer incô-
modo. Fala alegremente com os mais próximos e com os
guardas que lhe dizem gracejos. Agentes de polícia pas-
seiam, com cigarro ou cachimbo na boca. Todos fumam.
Fala-se a meia voz. A atitude é, sobretudo, de recolhimen-
to. [...]
Três homens de casaca e com cartola dirigem três ope-
rários em roupas de trabalho: camisolão curto, calaças de
pano azul. Os três “burgueses” são o carrasco e os dois
ajudantes. Um dos ajudantes, dizem-me, é genro do car-
rasco, o outro, filho. Jantaram em família e saíram corajo-
samente para o trabalho, olhando cheios de ternura as
crianças adormecidas, beijando, uma a mãe, o outro a
mulher ou a filha, que lhes fazem recomendações afetuo-
sas por temer o frio da noite.
Mal vi o Sr. Deibler, um velhote que arrasta uma per-
na. Seria impressão? Pareceu-me desajeitado, incerto e
sonso. Um dos seus ajudantes, um rapaz louro, gordo, sau-
dável e rosado, contrastava com ele. Todos trabalhavam
sem ruído, com a boa consciência e a decência das pesso-
as que sabem viver.
Pouco a pouco, as traves que se vêem por terra vão ga-
nhando significado. Duas travessas encaixadas em cruz
repousam sobre as lajes do chão. Estão devidamente cal-
çadas e o Sr. Deibler, com o seu nível de água, acaba de
assegurar-se que a sua máquina dispõe de uma base per-
feitamente horizontal. Notam-se que não se usa sequer
um prego. Só parafusos. Nem uma martelada. Que pro-
gresso! As calhas são erguidas, encimadas por uma trave
que suporta uma polia. Fazem subir a lâmina que percor-
re a calha; montam a báscula e experimentam-na. É o

38
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

próprio Sr. Deibler que coloca a banqueta para a cabeça


que envolve com uma espécie de biombo de madeira que
impedirá os salpicos de sangue. O cesto destinado ao cor-
po encontra-se aberto, ao lado da báscula, perto da carreta
que seguirá para Ivry.
Agora é dia, ou quase. Acabam de apagar os bicos de
gás. Olho a prisão e, estupefato, leio por cima da porta:
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Como puderam es-
quecer-se de acrescentar: “ou a morte”? [...]
Um movimento! Um jovem num sobretudo claro sai da
prisão, de charuto nos lábios, e rindo na frente de todos
vem até junto da guilhotina contar uma anedota a um
amigo que lhe acha imensa graça. Disseram-me qual era
sua função. Não a divulgo. Há dois guardas lívidos; dois
novatos, sem dúvida. O jovem soldado de sentinela agita-
se constantemente: balança-se, faz gestos bruscos, ri ner-
vosamente, gira os olhos no vazio. Pensei que se iria sen-
tir mal.
A pequena porta se fechou num gemido agudo. Ouve-
se o barulho das trancas de ferro a cair. A porta grande se
abre e, atrás do capelão que toca uma sineta, surge Émile
Henry, trazido, empurrado pelo grupo do carrasco. Lembra
qualquer coisa como uma visão de Cristo de Munkacsy,
com seu ar louco, a cara extremamente pálida, semeada
de pelos ruivos, escassos e revoltos. Apesar de tudo, osten-
ta ainda uma expressão implacável. A sua cara pálida me
cega. Não consigo olhar para outra coisa. O homem acor-
rentado avança a passo rápido, apesar dos entraves. Lan-
ça um olhar circundante e, com esgar horrível, numa voz
rouca mas forte, grita aconselhável estas palavras: “Cora-
gem camaradas. Viva a Anarquia!”

39
7
2005

Notas
1
Émile Henry, nascido em 1872, um ano depois da Comuna de Paris, em que seu
pai lutou. Foi um terrorista diferente dos demais, com formação intelectual sedi-
mentada, morto na guilhotina, em 1894. Jean Maitron. Ravachol e os anarquistas.
Tradução de Eduardo Maia, Lisboa, Antígona, 1981, pp. 63-96. Adaptado por
Acácio Augusto e Edson Passetti, dividindo o texto em duas partes: “O interroga-
tório” e “Palavras de Émile Henry”.
2
Cf. “Gazzete des Tribunuax”, 27 e 28 de Abril de 1894.
3
Idem.
4
Foi um aluno brilhante: 2o prêmio de Excelência em 1885, 1o prêmio em 1886,
2o prêmio em 1887, 5a distinção em 1888 (ano preparatório na Escola Politécnica).
5
Alusão aos tiros do 1° de Maio de 1891. O exército disparou sobre manifestantes:
dez pessoas foram mortas, entre elas duas crianças de 11 e 13 anos.
6
François Claudius Koeningstein, Ravachol por parte de mãe, nasceu em 1854.
Passou a usar o nome de Leon Léger, em 1891, para praticar atentados tendo sido
preso em março de 1892. Apesar de diversas acusações e prisões, foi condenado à
decapitação pela guilhotina, em 11 de julho de 1892, em Saint Étienne, por uma
morte a ele atribuída. O jornal anarquista Pere Peinard declarou; “A cabeça de
Ravachol caiu aos seus pés, agora temem que ela possa explodir como uma bomba”.
Pobre, foi um intenso ativista e escreveu poucas anotações publicadas, inicialmen-
te, em 1893, pelo jornal anarquista L’ Insurgé. (N.E.).
7
Em 1884-85, E. Henry pertenceu à 3° companhia do batalhão escolar de J. B. Say
e obteve, no fim do ano, a oitava distinção.
8
Ortiz Philippe, Léon, nascido em Paris, a 18 de novembro de 1868. Anarquista,
fundou em 1887, com Malato e alguns outros, o “Révolution Cosmopolite”. Em
1894, foi acusado de participar com outros companheiros em roubos e fez parte
dos acusados que compareceram no Processo dos 30, no tribunal do Sena a 6 de
agosto de 1894. Foi condenado a 15 anos de trabalhos forçados. Na deportação
contou com a comunidade anarquista.
9
Camisards: grupo de camponeses protestantes calvinistas franceses que explodiu
em revolta em 1702 (segundo Voltaire) e 1703 (segundo Philippe Joutard), resis-
tindo, na região das Cévennes, à perseguição do Estado francês católico, que tinha
proibido o culto, em 1685. São considerados dentro do fenômeno das seitas cristãs
comunalistas ou de afronta à Igreja de Roma. Como não faz sentido pensar que o
pai de Henry tenha sido um deles literalmente, mas sim foi participante da Comuna
de Paris, o termo deve ter sido usado com referência a revoltosos de maneira geral.
(N.E.).
10
Um pouco mais tarde, o réu interrompeu violentamente o acusador público:
“não se meta com a minha mãe, proíbo-lhe!”.

40
verve
Émile Henry, o benjamim da anarquia

11
Léon Jules Léauthier, nascido em 1874, era sapateiro e atentou contra a vida do
Ministro da Sérvia Georgevitch, em 13 de novembro de 1892, em Paris. Condena-
do à pena de prisão perpétua, em 1894, foi assassinado na prisão de Iles de Salut,
durante uma rebelião. (N.E.).
12
Sidonie Vaillant, filha do anarquista com o mesmo sobrenome.
13
Câmara dos deputados, onde Auguste Vaillant lançou uma bomba, em Dezembro
de 1893.
14
Tema de sua polêmica com Malatesta em “L’En Dehors” de agosto de 1892.
15
Desde o momento em que foi preso, Henry teve, ainda uma outra vez, a ocasião
de desenvolver as suas teorias. Fê-lo por escrito, a pedido do diretor da prisão do
Palácio da Justiça, depois duma visita que este lhe fez em 18 de fevereiro. Uma
fotocópia do texto redigido pelo jovem anarquista está depositada nos arquivos da
Prefeitura de Polícia, com a cota B a/140.
16
Estátua de Alexandre Auguste Ledru-Rollin, político que promoveu o sufrágio
universal, membro do governo provisório de 1848, exilado após os acontecimentos
de Junho. (N. T.)
17
Outro político (1856-1921), discípulo de Gambetta; defendeu a revisão do
processo Dreyfus. (N. T.)

41
7
2005

RESUMO

Um anarquista no tribunal. Émile Henry, seu julgamento e sua


demolidora crítica ao direito, ao tribunal e à sociedade.

Palavras-chave: Terrorismo, anarquismo, pena de morte.

ABSTRACT

An anarchist in a court. Émile Henry, his trial and his demolishing


critic on the Law, the court and society.

Keywords: Terrorism, anarchism, death penalty.

Indicado para publicação em 7 de abril de 2003.

42
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

notas para a abolição dos campos de


concentração e de extermínio

salete oliveira*

“Eis um filão que é preciso não perder de vista (...) na


realidade, talvez sejam vários, todo um consórcio de tiranos,
divididos entre si no que me concerne, deliberando desde
um bom pedaço de eternidade, escutando-me de tempos
em tempos, depois indo comer e jogar cartas, em segredo,
a expensas do governo, à minha revelia (...).”

Samuel Beckett

Morder, mascar, deglutir


“No ano de 1949, aconteceu-nos, a mim e a alguns
amigos lermos uma nota que nos chamou a atenção na
revista Priroda (Natureza), da Academia das Ciências.
Impressa em caracteres minúsculos, noticiava que na
bacia do rio Kolimá, durante umas escavações, tinha-
se deparado, casualmente, sob uma camada glacial, com
uma corrente congelada, nela tendo sido descobertos,

* Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora-pesquisa-


dora na PUC/SP pelo Prodoc-CAPES.
verve, 7: 43-56, 2005

43
7
2005

também congelados, espécimes de fauna fossilizados


(com várias dezenas de milênios de idade). Esses pei-
xes, ou tritões, conservavam-se tão frescos — testemu-
nhava o correspondente científico — que as pessoas pre-
sentes quebravam o gelo ali mesmo e comiam-nos com
prazer. Não poucos leitores da revista devem ter se es-
pantado bastante pelo fato de a carne de peixe poder con-
servar-se durante tão longo tempo no gelo. Mas foram
menos os que puderam discernir o sentido verdadeira-
mente heróico dessa nota imprudente. Nós compreen-
demos tudo num ápice. Vimos com clareza toda a cena,
nos seus mínimos pormenores: como as pessoas pre-
sentes quebravam o gelo, com exacerbada pressa, e
como, menosprezando os elevados interesses da ictiolo-
gia, se acotovelavam uns aos outros, arrancavam os
pedaços da carne milenária, passavam-na pela chama,
descongelavam-na e saciavam a fome. Compreendemo-
lo porque as pessoas presentes éramos nós próprios, por-
que nós éramos membros dessa poderosa legião de zeks
[detidos], a única na terra que podia comer os tritões
com prazer. Kolimá era a maior e a mais célebre ilha, o
pólo da ferocidade desse assombroso país do Gulag, des-
garrado pela geografia num arquipélago, mas psicologi-
camente ligado ao continente, a esse quase invisível,
quase intangível país habitado pelo povo zek. Este arqui-
pélago, cheio de enclaves, recortava-se polícromo sobre
o outro país, a que estava incorporado, penetrava nas
suas cidades, pairava sobre as suas ruas — e no entan-
to havia quem não se apercebesse de nada, embora
muitos tivessem ouvido falar vagamente de algo; só os
que lá tinham estado conheciam tudo. Entretanto, como
se tivessem perdido o dom da fala nas ilhas do arquipé-
lago, eles guardavam silêncio. Numa inesperada vira-
gem da nossa história, uma parte insignificante desse
arquipélago foi dada a conhecer ao mundo. Mas as mes-
mas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora

44
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

conciliadoramente as palmas e dizem ‘não se deve... não


se deve remexer no passado!... Aquele que recorda o pas-
sado perde um olho!’ E, no entanto, o provérbio acres-
centa: ‘aquele que o esquece perde os dois!’ As décadas
vão correndo e lambem irrecuperavelmente as cicatri-
zes e as úlceras do passado. Outras ilhas, durante esse
tempo, estremeceram, foram-se derretendo, desborda-
ram, e o mar polar do esquecimento vem embater sobre
elas. E um dia, no século futuro, este arquipélago, o seu
ar e os ossos dos seus habitantes, congelados numa ca-
mada glacial, serão apresentados aos descendentes como
um inverossímil tritão.”1
Soljenítisin, passou onze anos de sua vida confinado
em um gulag. Seu Arquipélago Gulag, publicado em rus-
so, em Paris, em 1973, trouxe, pela primeira vez, a pú-
blico a história vivida e documentada dos campos de
trabalho escravo na URSS, relativa ao período de 1918 a
1956. A principal tese do livro diz respeito ao fato de que
os Gulags fizeram parte da constituição do Estado sovié-
tico desde o momento da Revolução Russa, em 1917,
contrariando os argumentos que o justificaram ou o ate-
nuaram sob a alegação de que teriam sido uma criação
distorcida e arbitrária de Stálin.
Paris, janeiro de 1976. Primeira veiculação televisi-
va de imagens do campo de concentração soviético, lo-
calizado na cidade de Riga. No mês seguinte, K. S. Karol
entrevista Michel Foucault; indaga-lhe sobre as ima-
gens que viu.
“Em primeiro lugar, os soviéticos disseram o seguin-
te, o que me chocou muito: ‘não há nada de escandaloso
nesse campo: a prova disso é que está no meio da cida-
de, todo mundo pode vê-lo.’ Como se o fato de um campo
de concentração ser instalado em uma grande cidade —
no caso, Riga — sem que seja necessário dissimulá-lo,
tal como os alemães o faziam, às vezes, fosse uma des-

45
7
2005

culpa! Como se este impudor de não esconder o que se


faz, ali onde se faz, autorizasse a reivindicar o silêncio
em qualquer outro lugar, e a impô-lo aos outros: o cinismo
funcionando como censura. É o argumento de Cyrano: já
que meu nariz é enorme, bem no meio do meu rosto, vo-
cês não têm o direito de falar dele. Como se não fosse pre-
ciso, nessa presença de um campo em uma cidade, reco-
nhecer o brasão de um poder que se exerce sem pudor, tal
como nossas prefeituras, nossos Palácios de Justiça ou
nossas prisões. Antes de saber se os detentos que ali es-
tão são ‘políticos’, a instalação do campo, nesse lugar tão
visível, e o terror que ele exala são, em si, políticos. O ara-
me farpado que prolonga os muros das casas, os feixes de
luz que se entrecruzam e o passos das sentinelas à noite,
isso é político. E é uma política.”2
Em uma entrevista posterior, relativa, ainda, aos
campos soviéticos, concedida a Jacques Rancière, no
ano de 1977, Foucault, aponta para dois desdobramen-
tos distintos: a instituição Gulag e a questão Gulag.3
São apenas dois pequenos apontamentos que podem
ser desdobrados e esgarçados.

A instituição gulag
O termo GULAG refere-se a uma vasta rede de cam-
pos de trabalhos forçados que se espalharam por toda a
URSS. Das ilhas do Mar Branco às costas do Mar Negro.
Do círculo Ártico às planícies da Ásia Central. De Mur-
mansk a Vorkuta e ao Casaquistão. Do centro de Mos-
cou à periferia de Leningrado.4
A palavra GULAG designa “administração geral dos cam-
pos” e refere-se, imediatamente, à instituição de uma
polícia política que, por sua vez, corresponde à divisão
da polícia secreta que gerenciava os campos soviéticos.
Polícia multiplicada e redimensionada inúmeras vezes.5

46
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

Cheka (Comissão Extraordinária), polícia secreta que


vigorou durante a revolução. GPU (Agência Política do
Estado), polícia secreta que sucedeu a Cheka no início
dos anos 1920. OGPU (Agência Política Unificadora do
Estado), polícia secreta do final dos anos 1920 e início de
1930, sucessora da GPU. NKVD (Comissariado do povo
para assuntos internos), polícia secreta que agiu nos
anos 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, su-
cessora da OGPU. MVD (Ministério de Asssuntos Inter-
nos), a polícia secreta responsável pelas prisões e pelos
campos de trabalho forçado no pós-guerra. MGB/KGB
(Ministério/Comitê de Segurança do Estado), responsá-
vel pela segurança interna e externa no pós-guerra.
Uma das procedências do Gulag encontra-se na Rús-
sia czarista, correspondendo às “turmas de trabalho for-
çado” que localizavam-se na Sibéria e operaram desde o
século XVII até o início do século XX. Foi de lá que con-
seguiram fugir vários anarquistas no século XIX, den-
tre eles Bakunin. E dataria desta época sua futura ha-
bilidade em imprimir fantásticas fugas dos gulags sovi-
éticos, já que vieram a ser um de seus alvos principais.
Logo após a revolução, segundo Applebaum, o gulag as-
sume sua forma mais moderna e familiar, tornando-se
parte do sistema soviético.
Tal qual a polícia política e secreta o gulag também
vai sofrer modificações e reacomodamentos em suas
significações e aplicações. Com o tempo passa a indicar
não só a administração dos campos de concentração mas,
também, o próprio sistema de trabalho soviético, traba-
lho escravo, sob as mais diferentes formas e modalida-
des. Campos de trabalho forçado; campos punitivos; cam-
pos criminais e políticos; campos femininos; campos
infantis; campos de trânsito.
O campo se dividia em campos e no interior dos cam-
pos alojavam-se outros campos, respondendo a uma

47
7
2005

multiplicação e alastramento que Soljenítsin denomi-


naria de arquipélago, mesmo termo que Michel Foucault,
não fortuitamente, utilizou para se referir à prisão dis-
positivo — diferindo do internamento considerado isola-
damente — o arquipélago carcerário.6
O gulag não só passou a significar todo o sistema re-
pressivo soviético — os presos o denominavam como o
“moedor de carne”7, referindo-se aos amplos itinerários
que abrangiam, das delações às capturas, das prisões
aos interrogatórios e sessões de tortura; dos translados
em vagões de gado ao trabalho forçado, da destruição de
laços amorosos e amistosos aos anos de degredo, das
mortes prematuras aos extermínios — como, também,
a partir dele, e sem jamais abrir mão dele, foi que este
sistema de poder encontrou sua positividade e a socie-
dade socialista soviética pôde funcionar.

Deslizamentos históricos da instituição gulag


para a questão gulag
Em 1918 Lênin determinava que os “indignos de confi-
ança”, os “inimigos em potencial” fossem encarcerados
em campos de concentração a uma distância considerá-
vel das cidades principais.
Mas antes, mesmo de 1918, isto já estava posto, e neste
ponto Soljenítsin é enfático: “Seria bem mais justo dizer
que o Arquipélago nasceu ao som dos canhões do Aurora.
Como poderia ser diferente? Reflitamos. Marx e Lênin
não ensinaram sobre a necessidade de destruir a antiga
máquina coercitiva da burguesia e substituí-la imedia-
tamente, criando-se uma nova? Ora, a máquina coerciti-
va compreende: o exército (nós não nos espantamos de
ver constituir-se o Exército Vermelho no começo de 1918);
a polícia (renovou-se a polícia antes mesmo do exército);
os tribunais (a partir de 22 de novembro de 1917) — e as

48
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

prisões. Por que então, se deveria demorar em introduzir


uma nova espécie de prisão? Dito de maneira diferente,
de um modo mais geral, retardar em matéria de prisão,
fosse de estilo antigo ou novo, era uma coisa rigorosamente
impossível. Desde os primeiros meses que se seguiram à
Revolução de Outubro, Lênin exigiu ‘as medidas mais re-
solutas e mais draconianas para se restabelecer a disci-
plina. Ora são possíveis medidas draconianas sem prisão?”8
Soljenítsin, ainda, sublinha: não foi o próprio Marx que
em sua Crítica ao Programa de Gotha havia sido enfático ao
afirmar que o único meio de reabilitação dos prisioneiros
era o trabalho produtivo?
Assim foi feito, em maio de 1918 foi criado o Serviço
Penal Central; em março de 1919 os “fundamentos da po-
lítica de trabalho forçado” foram incluídos no novo progra-
ma do Partido. Em 1921 já havia se constituído 84 campos
em 43 províncias diferentes.9
A partir de 1929 os gulags adquirem nova importância.
Stálin utiliza-os para intensificar o processo de industria-
lização da URSS. Nos gulags foram produzidos desde brin-
quedos para crianças até foguetes espaciais. É neste mes-
mo ano de 1929 que a polícia secreta assume o controle do
sistema penal soviético, acoplando o judiciário a todos os
campos e prisões. Entre 1937 e 1938 intensificam-se as
prisões em massa e os gulags alastram-se vertiginosa-
mente. No final da década de 1930 era possível encontrar
inúmeros campos em todos os 12 fusos horários da URSS.10
O Gulag não pára de crescer para atingir seu apogeu na
década de 1950 e passar a ser responsável pela produção
de 1/3 da riqueza da URSS.
Durante a década de 1970 e começo da de 1980 o
gulag passa por reformulações para responder ao encar-
ceramento de ativistas anti-soviéticos e dos designados
criminosos. Durante a existência da URSS foram cria-
dos 476 complexos distintos de campos, perfazendo mi-

49
7
2005

lhares de campos individuais.11


Soljenítsin, lançando mão de várias fontes documen-
tais, fornece a estimativa de que 60 milhões de pessoas
passaram pelo enorme sistema do arquipélago. Levando-
se em conta que sua obra abrange o período entre 1918 e
1956 e ao considerar, de acordo com Applebaum, que os
campos na URSS começam a ser dissolvidos, apenas, em
1987, é possível supor que o número de pessoas tragadas
por este sistema tenha sido muito maior.
Não se assuste leitor se acaso você perguntar a 100
pessoas se elas já ouviram falar nos campos de concen-
tração nazista e 99 assentirem que sim e se para estas
mesmas pessoas você pronunciar a palavra gulag e ape-
nas uma não fizer cara de interrogação. Será que neste
espaço que designam como ocidente, do lado de cá do me-
ridiano central, acima e abaixo do equador, lá e aqui bem
na frente de cada nariz os gulags estão tão distantes as-
sim?

A questão gulag
Nils Christie, um abolicionista penal, em 1998, es-
creve A indústria do controle do crime: a caminho dos
GULAG’s em estilo ocidental, publicado no Brasil no mes-
mo ano.12 Christie sublinha como a Criminologia Positi-
vista foi profícua em sua internacionalização. As idéias
de Lombroso e Ferri na Itália e, posteriormente, as de
von Lizt na Alemanha, constituíram um dos mais fan-
tásticos êxitos da chamada ciência multidisciplinar. A
Associação Internacional de Política Criminal, fundada
em 1889 e que teve em von Lizt sua figura central, asse-
gurou à criminologia alemã o estatuto de locus exporta-
dor do ideário da prevenção geral, modelo preponderante
de política da verdade para o sistema penalizador do sé-
culo XX.

50
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

Christie mostra como no final do século a Nova Penalo-


gia, escola conservadora da Criminologia americana, com
suas teorias sobre o crime e táticas de controle redimen-
siona uma nova política, denominada por ele: “a caminho
dos gulag’s em estilo ocidental”.
Na década de 1980 a direita americana a partir da nova
penalogia, com sua “teoria da vidraça quebrada” e articu-
lação da polícia repressiva com a polícia comunitária ges-
tam o programa de Tolerância Zero implantado na década
seguinte.
Interessa à nova penalogia, segundo Christie, não mais
a recuperação mas o controle e gerenciamento das popu-
lações segregadas.
A prisão, neste sentido, assume a função de gerencia-
mento. Trata-se de um redimensionamento da estatísti-
ca, enquanto linguagem probabilística aplicada às popula-
ções construídas e vinculada à construção civil e ao con-
trole eletrônico. A estatística transformada em norma
legal.
A construção crescente de prisões, constituindo um fér-
til mercado, no qual os lucros ampliam-se no investimen-
to em duas direções: nos consórcios governamentais e não
governamentais; no fluxo de empregos gerados, envolven-
do não só funcionários mas, também, mão-de-obra de pre-
sidiários.
Christie, ainda ressalta os equipamentos disponíveis ao
mercado prisional, que vão desde prisões de segurança
máxima, monitorada informaticamente; dispositivos de
alta tecnologia de contenção, desde instrumentos simples
a equipamentos testados em prisões, para, posteriormen-
te, serem utilizados em guerras cirúrgicas a dispositivos
de controle, como exemplo o código de barras que se tor-
nou algo corriqueiro em nosso cotidiano e cuja proce-
dência situa-se em uma tecnologia criada a partir do

51
7
2005

controle de condenados ao cárcere ou sob monitoramento


a céu aberto.
Por fim, Christie ressalta a gestão das prisões cons-
tituída pela disponibilidade da adminstração em demons-
trar sua eficácia burocrática.
A questão que se coloca diante disto não deve ser
posta em termos de negatividade: qual a distorção teóri-
ca que propiciou o aparecimento dos gulag’s.
É preciso problematizar a questão gulag em termos
de sua positividade. Foucault, já apontava na década de
1970, que o gulag não era uma seqüência, tampouco
um resto. É um presente pleno. Não se trata de buscar
uma linearidade entre o gulag soviético redimensiona-
do pelo programa de tolerância zero, muito menos de
assumir o discurso cômodo que relativiza e formaliza a
denúncia sistemática “todos nós temos um gulag”, pois
isto nada mais é, como já alertara Foucault, do que se
instalar em um ecletismo acolhedor.
Colocar-se a questão gulag implica defrontar-se com
a história e formulá-la para a sociedade socialista — é
sempre pertinente lembrar que China, Cuba, Coréia do
Norte e alhures estão aí — e que desde 1917, nenhuma
delas conseguiu funcionar sem um sistema mais ou
menos derivado de gulag. A positividade de tal questão
reside em enfrentar as perguntas deixadas por Foucault
em relação ao gulag: para que ele serve; qual funciona-
mento ele garante e, por fim, a quais estratégias ele
responde.
Para sociedades como a nossa, para hoje, para o Es-
tado democrático de direito que convive tão bem com o
programa de tolerância zero trata-se de problematizar:
para que servem as prisões e o controle a céu aberto;
em que medida os direitos, não por uma falta de garan-
tia mas pela sua própria condição de direito, fazem fun-

52
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

cionar o gulag redimensionado e, finalmente, quais as


conexões de fluxos de controle ele responde?13
Ainda na pista deixada por Foucault, é preciso não
perder de vista que propor uma outra solução para punir
é colocar-se, inteiramente, recuado em relação ao pro-
blema que não é nem do quadro jurídico nem de sua
técnica, mas do poder que pune.
Da Alemanha ao Brasil dos anos 1920, da criação do
campo de concentração Clevelândia14, no Oiapoque, para
onde eram mandados, sobretudo, anarquistas, à promul-
gação do Código de Menores Melo Matos de 1927, dentre
outras medidas, visava-se constituir uma política profi-
lática. A medicalização da sociedade, sob a prática da
prevenção geral foi redimensionada pela medicalização
do controle da segurança no pós-guerra e se transforma
hoje com o programa de tolerância zero na disputa pelo
controle da segurança.
Guardadas as diferenças específicas, a política dos
Gulags, colocada já para Lênin, era uma questão de “pro-
filaxia social” que devia se estender a crianças e jovens.
A caça aos anarquistas passou a se entrelaçar com a
caça a crianças e jovens.
“Pyotr Yakir, de catorze anos, foi primeiro colocado
numa cadeia comum e depois submetido a um interro-
gatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os
adultos. Seu interrogador o acusou de ‘ter organizado
um bando de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar
atrás das linhas do Exército Vermelho’, citando como
prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida foi con-
denado pelo crime de ser ‘elemento socialmente perigo-
so’.”15 O destino posterior eram os campos infantis e ju-
venis.
Do início da Revolução a 1922 foi colocada em opera-
ção o tribunal da consciência de justiça revolucionária

53
7
2005

que, de acordo com Soljenítsin decidia quem trancafiar,


quem exterminar. O tribunal popular mostrou-se per-
feitamente ajustável ao gulag. O primeiro Código Penal
soviético viria a ser promulgado em 1922 e daria novos
contornos ao tribunal. O Estado socialista não abriu mão
do direito penal burguês e perpetuou os gulags.
Tribunal é tribunal. É uma instituição, é uma ques-
tão. É uma política. Em qualquer parte do planeta é uma
política de julgamento. Todo sentenciado ou à espera de
sentença a ser cumprida no cárcere ou a céu aberto,
sob o pretexto de extermínio, correção, reeducação ou
cura é um preso político.
As crianças sabem disto.
“‘O berçário também era parte do complexo do cam-
po’, escreveria Evgeniya Ginzburg. ‘Tinha sua própria
guarita, seus próprios portões, seus próprios barracões,
seu próprio arame farpado.16 (...) Quando Evgeniya ten-
tou ensinar algo à crianças sob seus cuidados, ela cons-
tatou que apenas uma ou duas — aquelas que haviam
mantido algum contato com as mães — se mostravam
capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experi-
ência dessas poucas crianças era limitadíssima:
‘Olhe’, eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha
que eu desenhara. ‘O que é isso?’
‘Alojamento’, respondeu o menininho, de modo bem
claro.
Com algumas canetadas, pus um gato ao lado da casa.
Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bi-
cho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí dese-
nhei uma cerca rústica, tradicional, em volta da casa.
‘E o que é isso?’
‘A zona prisional’, gritou Vera, encantada.”17

54
verve
Notas para a abolição dos campos de concentração...

Notas
1
Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. I. Tradução de Francisco A.
Ferreira, Maria M. Llistó e José A. Seabra. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel,
1979, pp. 7-8.
2
Michel Foucault. “Crimes e castigos na URSS e eoutros lugares...” in Estraté-
gia, poder-saber, Col. Ditos e escritos. vol. IV. Tradução de Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, pp. 189-190.
3
Idem. “Poderes e estratégia” in op. cit., pp. 240-452.
4
Conforme Anne Applebaum. Gulag: uma história dos campos de prisioneiros sovié-
ticos. Tradução de Mário Vilela e Ibraíma Dafonte. São Paulo, Ediouro, 2004.
5
De acordo com Alexandre Soljenítisin e Anne Applebaum.
6
Michel Foucault. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M.
Pondé Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987.
7
Termo ressaltado por Soljenítisin e por Applebaum.
8
Alexandre Soljenítsin. Arquipélago Gulag, vol. II. Tradução de Leonidas Gon-
tijo de Carvalho. Rio de Janeiro/São Paulo, Difel, 1976, p. 9.
9
Conforme Anne Applebaum, op. cit..
10
Idem.
11
Ibidem.
12
Nils Christie. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAG’s em estilo
ocidental. Tradução de Luís Leiria. Rio de janeiro, Forense, 1998.
13
A este respeito ver Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São
Paulo, Cortez, 2003.
14
A este respeito ver Carlo Romani. “Clevelândia (Oiapoque), Colônia penal ou
campo de concentração?” in Verve, n° 4. São Paulo, Nu-Sol, 2003.
15
Anne Applebaum, 2004, op. cit., p. 382.
16
A palavra zona é uma palavra russa e designa de forma geral campo de concen-
tração, literalmente refere-se à área protegida pela cerca de arame farpado.
17
Anne Applebaum, 2004, op. cit., pp. 374-376.

55
7
2005

RESUMO

Breve exposição histórico-política dos Gulags soviéticos. Alguns


apontamentos sobre o redimensionamento dos campos de concen-
tração instrumentalizados pelo programa de tolerância zero.

Palavras-chave: abolicionismo penal, Gulags, campos de concen-


tração.

ABSTRACT

A short historical-political exposure of the soviet Gulags. Some


appointments about the remodeling of the concentration camps by
the program of zero tolerance.

Keywords: penal abolitionism, Gulags, concentration camps.

Recebido para publicação em 22 de novembro de 2004.

56
verve
Prisões: falência e crime social

prisões: falência e crime social

emma goldman*

Em 1849, Fiodor Dostoievski escreveu na parede de sua


cela na prisão a seguinte história intitulada “O Padre e o
Demônio”.
“Olá, padre gordinho!’ Disse o diabo ao sacerdote’. ‘O
que o fez mentir tanto para essas pessoas pobres e iludi-
das? Que torturas infernais você descreveu? Você não sabe
que eles já estão sofrendo torturas infernais em suas vi-
das na Terra? Não sabe que você e as autoridades do Esta-
do são meus representantes na Terra? É você quem os faz

* Emma Goldman, russa, anarquista e feminista, chegou nos Estados Unidos


com a irmã indo trabalhar como operária têxtil. Em pouco tempo tornou-se uma
militante combativa juntamente com seu companheiro Alexandre Berkman, o
que lhe valeu alguns encarceramentos, um deles por ensinar publicamente o uso
de contraceptivos. Escolhemos este texto (In Emma Goldman. Anarchism and
Other Essays. Toronto, Dover Publication Inc., 1969. pp. 109-126) de 1910 por
mostrar uma reflexão ativista, dirigida aos trabalhadores organizados, situando
os efeitos de uma leitura científica e a necessidade da abolição das prisões. Emma
Goldman participou criticamente da Revolução Russa, da Guerra Civil Espa-
nhola e morreu em 1940, no Canadá. Seu corpo foi sepultado em Chicago, junto
com os dos anarquistas de Haymarket.

verve, 7: 57-74, 2005

57
7
2005

sofrer as dores do inferno com as quais você os ameaça.


Você não sabe disso? Bem, então, venha comigo!’
O diabo agarrou o padre pelo colarinho, ergueu-o
no ar, e o levou a uma fábrica, uma fundição de aço.
Lá, ele viu os trabalhadores correndo, indo de lá pra
cá, e labutando sob um calor escaldante. Rapidamen-
te, o ar denso e pesado e o calor eram demais para o
padre. Com lágrimas nos olhos, ele implorou para o
diabo: ‘Deixe-me ir! Deixe-me sair deste inferno!’
Meu querido amigo, eu vou lhe mostrar muitos ou-
tros lugares. ‘O diabo pegou-o novamente e o arrastou
até uma fazenda. Lá, ele viu os trabalhadores debu-
lhando grãos. O pó e o calor eram insuportáveis. O
administrador carregava um chicote e batia sem pie-
dade em quem caísse ao chão vencido pelo trabalho
duro ou pela fome.
Depois o padre foi levado para as cabanas aonde os
mesmo trabalhadores viviam com suas famílias — su-
jas, frias, esfumaçadas, buracos fedidos. O demônio
sorri. Ele aponta para a pobreza e a miséria que se
encontram à vontade.
Ele pergunta: ‘isto não é suficiente?’ E parece que
até ele, o diabo, tem compaixão dessas pessoas. O pi-
edoso servo de Deus mal pôde suportar isso. Com as
mãos levantadas, ele implora: ‘Deixe-me ir embora
daqui. Sim, sim! Este é o inferno na Terra!’
‘Bem, então, você vê. E ainda promete a eles outro
inferno. Você os atormenta, tortura mentalmente até
o fim e a eles só resta estar fisicamente mortos! Va-
mos! Eu lhe mostrarei mais um inferno — mais um, o
pior de todos.’
Ele o levou a uma prisão e lhe mostrou o calabou-
ço, com seu ar viciado e as diversas formas humanas,

58
verve
Prisões: falência e crime social

despojadas de toda saúde e energia, deitadas no chão,


cobertas por vermes que devoravam os seus pobres
corpos nus e mirrados.
‘Tire suas roupas de seda’, disse o diabo ao padre,
‘coloque nos seus tornozelos as pesadas correntes as-
sim como estes desafortunados as usam; deite-se no
chão frio e sujo — e então fale a eles sobre o inferno
que ainda os espera!’
‘Não, não!’, respondeu o padre, ‘eu não posso pen-
sar em nada mais terrível que isso. Eu lhe suplico,
deixe-me ir embora daqui!’
‘Sim, este é o inferno. Não pode existir nenhum
inferno pior que este. Você não sabia disso? Você não
sabia que estes homens e mulheres os quais você as-
susta com a figura do inferno do além — você não sa-
bia que eles já estão no inferno, antes de morrer?’.
Isto foi escrito há 50 anos na escura Rússia, na
parede de uma das mais horríveis prisões. No entan-
to, quem pode negar que isto se aplica com a mesma
força na atualidade, até mesmo nas prisões america-
nas?
Com todas nossas tão vangloriadas reformas, nos-
sas grandes mudanças sociais, e nossas descobertas
de longo alcance, os seres humanos continuam a ser
enviados para o pior dos infernos, aonde são ultraja-
dos, degradados e torturados, para que a sociedade seja
“protegida” desses fantasmas de sua própria criação.
Prisão, uma proteção social? Que mente monstru-
osa pode ter concebido uma idéia dessa? É como dizer
que a saúde pode ser promovida pela disseminação de
uma epidemia.

59
7
2005

Depois de 18 meses de horror em uma prisão in-


glesa, Oscar Wilde deu para o mundo sua maior obra-
prima The ballad of reading goal:

As ações mais perversas, como as ervas venenosas,


Florescem bem no ar da cela;
Só o que é bom no Homem
Se perde e murcha nela.
A pálida Angústia guarda o pesado portão,
E o desespero é sentinela.1

A sociedade continua perpetuando este ar envene-


nado, não percebendo que disso só podem sair os mais
venenosos resultados. Estamos gastando no presente
$ 3,500,000 por dia, $ 1,000,095,000 ao ano, para man-
ter as instituições prisionais, e isso em um país de-
mocrático — um total quase tão grande quanto a soma
da produção de trigo, que vale $ 750,000,000, e a produ-
ção de carvão avaliada em $ 350,000,000. O professor
Bushnell, de Washington D.C, estima o custo das pri-
sões em $ 6,000,000,000 anuais, e o Dr. G. Frank Lyd-
son, um eminente escritor norte-americano sobre cri-
me, estima, como um valor razoável, $ 5,000,000,000
anuais. É uma despesa incalculável para manter um
vasto exército de seres humanos enjaulados como ani-
mais selvagens!2
No entanto, os crimes aumentam. Assim, sabemos
que na América há 4,5 vezes mais crimes para cada
milhão de habitantes hoje, do que há 20 anos.
O aspecto mais horrível é que nosso crime nacional
é o assassinato, não roubos, desfalques, ou estupros, como
no Sul. Londres é cinco vezes maior que Chicago e, no
entanto, nesta cidade há 118 assassinatos anuais, en-
quanto em Londres há apenas 20. Tampouco é Chicago

60
verve
Prisões: falência e crime social

a cidade líder em crimes; ela é apenas a 7ª da lista lide-


rada por quatro cidades do Sul, São Francisco e Los An-
geles. Diante de uma situação tão terrível, parece ridí-
cula tagarelice dizer que a proteção da sociedade deriva
das prisões.
A inteligência média é vagarosa em apreender a ver-
dade, mas quando a instituição mais completamente
organizada, centralizada, mantida com uma despesa
nacional excessiva mostrou-se um completo fracasso
social, o obtuso deve começar a questionar o seu direito
a existir. Já foi o tempo da satisfação com nossa estru-
tura social simplesmente porque ela é “ordenada por
direito divino” ou pela majestade da lei. As amplas in-
vestigações sobre prisões, agitação e educação nos últi-
mos anos são provas conclusivas que os homens estão
aprendendo a ir fundo nos alicerces da sociedade, às
causas da terrível discrepância entre a vida individual
e social.
Por que, então, são as prisões um fracasso e um cri-
me social? Para responder essa questão vital cabe-nos
procurar a natureza e causa dos crimes, os métodos
empregados para combatê-los e os efeitos que esses
métodos produzem em livrar a sociedade da desgraça e
horror dos crimes.
Primeiro, quanto à natureza do crime. Havelock Ellis3
divide o crime em quarto tipos: o político, o passional, o
insano e o ocasional. Diz que o criminoso político é a
vítima de uma tentativa de um governo mais ou menos
despótico por preservar sua própria estabilidade. Ele não
é necessariamente culpado de uma atitude anti-social;
simplesmente tenta reverter uma certa ordem política
que pode ser ela mesma anti-social. Essa verdade é re-
conhecida em todo mundo, exceto na América onde ain-
da prevalece uma tola noção de que na democracia não

61
7
2005

há lugar para criminosos políticos. No entanto, John


Brown foi um criminoso político, assim como os anar-
quistas de Chicago, assim como todo grevista. Conse-
qüentemente, diz Havelock Ellis, o criminoso político de
nosso tempo ou lugar pode ser o herói, o mártir, o santo
de outra época. Lombroso denomina o criminoso político
como o verdadeiro precursor do movimento progressivo
da humanidade.
“O criminoso passional é comumente um criminoso
bem nascido e de vida honesta, que sob um grande stress,
um incidente, tomou a justiça nas suas mãos”4. Mr. Hugh
C. Weir em The menace of the police, cita o caso de Jim
Flaherty, um criminoso passional que ao invés de ser
salvo pela sociedade, tornou-se um bêbado e um reinci-
dente, tendo como resultado uma família arruinada e
jogada na miséria. Um tipo mais patético é Archie a
vítima da novela de Brand Whitlock, The turn of the ba-
lance, a maior exposição americana da maquinação de
um crime. Archie, mais que Flaherty, foi levado ao cri-
me e à morte pela cruel falta de humanidade do seu
meio, e pela inescrupulosa perseguição da máquina da
lei. Archie e Flaherty são apenas alguns exemplos en-
tre milhares, demonstrando como os aspectos legais do
crime, e os métodos para tratá-los, ajudam a criar a do-
ença que está minando a nossa vida social.
“O criminoso insano, na verdade, não pode ser consi-
derado criminoso mais que uma criança pois está sob
condição mental semelhante à de uma criança ou de
um animal”.5 A lei já reconhece isso, mas apenas em
casos raros de natureza muito flagrante, ou quando a
riqueza do acusado permite o luxo da insanidade crimi-
nal. Ficou na moda ser vítima de paranóia, mas em ge-
ral, a “soberania da justiça” continua a punir os crimes
de insanidade com toda a severidade. Então, o senhor
Ellis cita as estatísticas do Dr. Richter mostrando que

62
verve
Prisões: falência e crime social

na Alemanha 106 loucos, de 144 criminosos insanos,


foram condenados a punições severas.
O criminoso ocasional “representa de longe a maior
parte de nossa população carcerária, portanto, a maior
ameaça ao bem-estar social”. Qual é a causa que com-
pele um vasto contingente da família humana a esco-
lher o crime, de preferir a terrível vida encarcerada à
vida livre? Esta causa, certamente, deve ser inexorá-
vel, pois deixa suas vitimas sem saída, pois até o mais
depravado ser humano ama a liberdade.
Essa incrível força está condicionada por nossa cruel
disposição social e econômica. Não afirmo que se deva
negar os fatores biológicos, fisiológicos ou psicológicos
na realização do crime; mas dificilmente se encontra
um eminente criminológo que não concordará que as
influências sociais e econômicas são as mais implacá-
veis, as sementes mais venenosas do crime. Mesmo
admitindo que existam tendências criminais inatas, não
é menos verdade que estas tendências encontram cam-
po fértil em nosso ambiente social.
Há uma relação próxima, diz Havelock Ellis, entre
crimes contra o indivíduo e o preço do álcool, entre cri-
mes contra a propriedade e o preço do trigo. Ele cita Que-
telet e Lacassagne, o primeiro vendo a sociedade como
fomentadora dos crimes e os criminosos como instru-
mentos de sua execução. O último acha que “o ambien-
te social é o meio de cultivo da criminalidade; que o
criminoso é o micróbio, um elemento que apenas se
torna importante quando encontra o meio, que provoca
sua fermentação; toda sociedade tem os criminosos que
merece”.6
O período industrial mais “próspero” torna impossí-
vel que o trabalhador receba o suficiente para a manu-
tenção da saúde e do vigor. E como a prosperidade é, no
melhor dos casos, uma condição imaginária, milhares

63
7
2005

de pessoas são constantemente adicionadas à multidão


dos desempregados. De leste a oeste, do sul ao norte,
este vasto exército caminha em busca de trabalho ou
comida, e tudo que encontra são reformatórios ou fave-
las. Aqueles que ainda têm uma centelha de auto-res-
peito, preferem o desafio aberto, preferem o crime à po-
sição esquálida e degradada da pobreza.
Edward Carpenter estima que cinco sextos dos cri-
mes sujeitos à sanção penal consistem em alguma vio-
lação ao direito de propriedade; mas este é um número
muito baixo. Uma investigação completa provaria que
nove em dez crimes poderiam ser ligados, direta ou in-
diretamente, às nossas injustiças sociais e econômi-
cas, ao nosso sistema de exploração e usurpação sem
compaixão. Não há criminoso tão estúpido, que não re-
conheça este terrível fato, apesar dele não ser capaz de
dar-se conta disto.
Uma coleção de filosofia criminal, que foi compilada
por Havelock Ellis, Lombroso, e outros homens eminen-
tes, mostra que o criminoso sente de maneira nítida de
que é a sociedade que o leva ao crime. Um ladrão mila-
nês, disse a Lombroso: “Eu não roubo, eu simplesmente
tomo dos ricos seus supérfluos; por outro lado, os advo-
gados e comerciantes não roubam?”. Um assassino es-
creveu: “Sabendo que três quartos das virtudes sociais
são vícios covardes, eu pensei que um assalto aberto a
um homem rico devesse ser menos ignóbil do que a com-
binação cautelosa da fraude”. Outro escreveu: “Eu es-
tou preso por roubar meia dúzia de ovos. Ministros que
roubam milhões são honrados. Pobre Itália!”. Um con-
denado educado disse a Mr. Davitt: “As leis da sociedade
são forjadas com a finalidade de garantir a riqueza do
mundo para o poder e a ponderação, despojando uma lar-
ga porção da humanidade de seus direitos e oportunida-
des. Por que eles deveriam me punir por estar tomando

64
verve
Prisões: falência e crime social

de uma forma similar daqueles que tomaram mais do


que tinham direito?”. O mesmo homem adicionou “A
religião rouba as almas de sua independência; patrio-
tismo é uma adoração estúpida do mundo pelo qual o
bem-estar e a paz dos habitantes foi sacrificada por aque-
les que lucram com ele, enquanto as leis da pátria, re-
primindo desejos naturais, estão travando guerra ao
espírito manifesto da lei de nossos seres. Comparado a
isso”, ele concluiu, “roubar é uma meta honrável”7.
Há certamente uma verdade maior nesta filosofia do
que em todos os livros sobre lei e moral da sociedade.
O fator econômico, político, moral e físico são os mi-
cróbios do crime, então, como pode a sociedade enfren-
tar esta situação?
Os métodos para lidar com o crime têm sem dúvida
passado por muitas mudanças, mas principalmente no
sentido teórico. Na prática, a sociedade tem mantido o
objetivo primitivo ao lidar com o criminoso, que é a vin-
gança. Ela também adotou a idéia teológica, em outras
palavras, punição; e o método legal e “civilizado” consis-
te em retrocesso ou terror, e reforma. Devemos obser-
var, atualmente, que os quatros tipos falharam total-
mente, e que nós não estamos hoje mais perto de uma
solução do que na idade das trevas.
O impulso natural do homem primitivo de revidar um
golpe, de vingar-se de uma ofensa, é anacrônico. Ao invés
disso, o homem civilizado, despido de coragem e audácia,
tem delegado a um organizado maquinário a responsabili-
dade de vingar-se por ele de suas ofensas, baseado na tola
crença que o Estado se justifica ao fazer aquilo para o qual
ele não tem mais a virilidade ou consistência. A “majes-
tade da lei” é algo racional; ela não desce aos instintos
primitivos. Sua missão é de natureza “superior”. Verdade,
ela ainda é impregnada pela confusão teológica, que pro-

65
7
2005

clama a punição como forma de purificação, ou uma indi-


reta reparação do pecado. Mas, legal e socialmente o esta-
tuto exercita a punição, não apenas como aplicação da dor
sobre o criminoso, mas também para provocar um efeito
aterrorizante sobre outros.
Entretanto, qual é a base real para a punição? A no-
ção do livre arbítrio, a idéia que o homem é sempre um
agente livre para o bem ou para o mal; e se ele escolhe
o último, deve pagar o preço. Ainda que esta teoria te-
nha explodido há muito, e tenha sido jogada em um en-
tulho, ela continua a ser aplicada diariamente por toda
a maquinaria do governo, tornando-a o mais cruel e bru-
tal torturador da vida. A única razão para isto continuar
é a noção, ainda mais cruel, que quanto maior a propa-
gação do terror da punição, certamente maior será seu
efeito preventivo.
A sociedade usa os medos mais drásticos ao tratar
com o criminoso social. Por que eles não desistem?
Embora nos Estados Unidos um homem seja considera-
do inocente até que provem sua culpa, os instrumentos
da lei, a polícia, perpetuam o império do terror, aprisio-
nando indiscriminadamente, espancando, esbordoando,
aterrorizando pessoas, usando métodos bárbaros de “ter-
ceiro grau”, sujeitando vítimas desafortunadas ao vicio-
so ar de suas delegacias, e à mais asquerosa, ainda,
linguagem de seus guardiães. Os crimes continuam se
multiplicando rapidamente, e a sociedade paga o preço.
De outro lado, não é segredo que quando o desafortuna-
do cidadão é contemplado com a “misericórdia” da lei, e
para o bem da segurança ele é escondido no pior dos
infernos, inicia-se seu real calvário. Roubado de seus
direitos enquanto ser humano, degradado a um mero
autômato sem desejo ou sensações, totalmente depen-
dente da misericórdia de seus guardiães, passa diaria-
mente por um processo de desumanização, que a ela

66
verve
Prisões: falência e crime social

comparada, a vingança selvagem é brincadeira de cri-


ança.
Não há uma única instituição penal ou reformatório
nos Estados Unidos em que os homens não sejam tortu-
rados para “tornarem-se bons”, por intermédio do cas-
setete, da clava, da camisa de força, da água para o afo-
gamento, do humming bird (uma corrente elétrica que
percorre o corpo humano), a solitária, e a dieta de fome.
Nestas instituições sua vontade é quebrada, sua alma
degradada, seu espírito subjugado pela monotonia mor-
tal e a rotina da vida presidiária. Em Ohio, Illinois, Pen-
silvânia, Missouri, e no sul, estes horrores se tornaram
tão flagrantes que atingiram o mundo exterior, enquanto
na maioria das outras prisões os mesmos métodos cris-
tãos ainda prevalecem. Mas as paredes das prisões ra-
ramente permitem que os gritos aterrorizantes das ví-
timas escapem — as paredes das prisões são espessas,
elas abafam o som.
A sociedade deveria, com grande imunidade, abolir
as prisões de uma vez, do que esperar por proteção des-
sas câmaras de horrores do século vinte.
Ano após ano os portões das prisões infernais devol-
vem ao mundo uma parte náufraga da humanidade,
esquálida, deformada, sem vontade própria, com a mar-
ca de Caim em suas testas, suas esperanças esmaga-
das, todas as suas inclinações naturais frustradas.
Sem nada, mas com a fome e a desumanidade para
recebê-los, estas vítimas logo mergulham novamente
no crime como a única possibilidade de existência. Não
é, de forma alguma, incomum encontrar, homens e
mulheres que passam metade de suas vidas — ou me-
lhor, quase toda sua existência — na prisão. Eu conhe-
ço, uma mulher na ilha Blackwell, que entrou e saiu 38
vezes, e soube por meio de um amigo de um jovem ra-

67
7
2005

paz de 17 anos, de quem ele foi enfermeiro e cuidou, na


penitenciária de Pittsburg, que nunca conheceu o sig-
nificado de liberdade. Do reformatório à penitenciária
foi o caminho da vida deste rapaz, até que, alquebrado,
morreu vítima da vingança social. Estas experiências
pessoais estão substantivadas por extensos dados que
trazem evidências esmagadoras do absoluto fracasso das
prisões como um meio de dissuasão ou reforma.
Pessoas bem intencionadas estão trabalhando por
uma nova orientação na questão da prisão — reclama-
ção, devolver mais uma vez ao prisioneiro a possibili-
dade de se tornar um ser humano. Apesar de louvável,
eu temo ser impossível esperar por bons resultados,
despejando um bom vinho numa garrafa mofada. Nada
menos que uma reconstrução completa da sociedade
livrará a humanidade do câncer do crime. Ainda, se o
fio cego de nossa consciência social fosse afiado, as
instituições penais poderiam ganhar uma nova cama-
da de verniz. No entanto, o primeiro passo a ser dado é
a renovação da consciência social, que está em uma
condição particularmente dilapidada. Ela necessita, de-
sesperadamente, ser despertada para o fato que o cri-
me é uma questão de grau, que todos nós temos o em-
brião do crime dentro de nós, mais ou menos, de acor-
do com nosso ambiente mental, físico, e social; e que o
indivíduo criminoso é somente um reflexo das tendên-
cias da massa.
Com a consciência social despertada, o individuo co-
mum pode aprender a recusar a “honra” de ser o cão de
caça da lei. Ele pode parar de perseguir, desprezar, des-
confiar do criminoso social e lhe dar uma chance de
viver e respirar entre seus companheiros. As institui-
ções são, obviamente, mais difíceis de serem atingi-
das. Elas são frias, impenetráveis e cruéis; no entan-
to, com a consciência social despertada pode ser possí-

68
verve
Prisões: falência e crime social

vel libertar as vítimas das prisões, da brutalidade dos


oficiais, guardas e carcereiros. A opinião pública é uma
arma poderosa; até os guardiões da presa humana a
temem. Eles podem ser educados com um pouco de hu-
manidade, especialmente se perceberem que seus tra-
balhos dependem disso.
Mas o passo mais importante é dar ao prisioneiro o di-
reito de trabalhar durante o aprisionamento, com alguma
recompensa monetária que pode permitir que ele poupe
algo para o dia de sua libertação, o começo de uma nova
vida.
É quase ridículo esperar muito da sociedade atual quan-
do consideramos que um operário, escravo ele mesmo do
salário, opõe-se ao trabalho do condenado.
Eu nem irei entrar no mérito da crueldade dessa obje-
ção, mas vou simplesmente considerar sua impraticabili-
dade. Para começar, a oposição até agora levantada pelo
trabalho organizado tem sido direcionada contra moinhos
de vento. Os prisioneiros sempre trabalharam; apenas o
Estado tem sido seu explorador, da mesma maneira que o
empregador individual é o usurpador do trabalho organiza-
do. Os Estados ou têm usado os condenados para trabalhar
para o governo, ou têm subcontratado o trabalho do conde-
nado para particulares.Vinte e nove dos Estados norte-
americanos seguem o último plano. O governo federal e
dezessete Estados o têm descartado, assim como as na-
ções líderes da Europa, já que levam a um abominável
trabalho pesado e abuso dos prisioneiros, e a um suborno
sem fim.
“A ilha Rhode, Estado dominado por Aldrich, talvez ex-
presse o pior exemplo. Em um contrato de 5 anos, elabora-
do em 7 de julho de 1906, e renovável por mais cinco anos,
por opção dos próprios contratantes, o trabalho dos inter-
nos da Penitenciária da Ilha Rhode e da cadeia do condado

69
7
2005

de Providence são vendidos para a Reliance-Sterling Mfg.


Co., por uma taxa um pouco menor que 25 centavos por
dia e por homem. Esta Companhia é um verdadeiro mono-
pólio gigante do trabalho na prisão, e para isso eles tam-
bém alugam o trabalho de condenados das penitenciárias
de Connecticut, Michigan, Indiana, Nebraska, e Dakota
do Sul, e do reformatório de Nova Jersey, Indiana, Illi-
nois, e Wisconsin, totalizando 11 estabelecimentos.
A enormidade do suborno no contrato de Rhode Is-
land pode ser estimado pelo fato desta mesma Compa-
nhia pagar 62 dólares e meio por dia em Nebrasca pelo
trabalho dos condenados, e que Tennessee, por exem-
plo, ganha $ 1.10 por dia pelo trabalho de um condenado
da Gray-Dudley Hardware Co.; Missouri ganha 70 cen-
tavos por dia da Star Overall Mfg. Co; West Virginia 65
centavos por dia da Kraft Mfg. Co, e Maryland 55 centa-
vos por dia da Oppenheim, a fábrica de camisas Obern-
dorf & Co. A grande diferença nos preços aponta para
um enorme suborno. Por exemplo, Reliance-Sterling Mfg.
Co, manufatura camisas sendo que o custo do trabalho
livre não é menor que $ 1.20 por dúzia, enquanto ela
paga a Ilha Rhode trinta centavos a dúzia. Além disto, o
Estado não cobra deste monopólio aluguel pelo uso das
suas enormes fábricas. Não cobra nada pela eletricida-
de, calor, luz, e até mesmo drenagem e não exige taxas.
Que suborno!”.8
Estima-se que o equivalente a mais de 12 milhões
de dólares de camisas e macacões de trabalhadores
são produzidos, anualmente, neste país, por prisionei-
ros. É uma indústria feminina, e a primeira reflexão
que isto levanta é que uma imensa quantidade de tra-
balho feminino livre está desocupada. A segunda con-
sideração é que prisioneiros masculinos, que deveri-
am estar aprendendo um ofício, o que daria a eles al-
guma chance de se sustentarem após sua libertação,

70
verve
Prisões: falência e crime social

são mantidos neste trabalho com o qual possivelmen-


te não ganharam um dólar. Isto é ainda mais sério
quando consideramos que muitos desses trabalhos são
feitos em reformatórios, que alardeiam estar treinando
seus internos para que se tornem cidadãos úteis.
A terceira, e mais importante consideração é que o
enorme lucro conseguido por meio dos trabalhadores ape-
nados é um constante incentivo para os contratantes
exigirem de suas vítimas infelizes muito além de suas
forças, e para os punir cruelmente quando seu trabalho
não acompanha o aumento excessivo da demanda.
Mais algumas palavras a respeito da condenação dos
apenados e sobre as tarefas com as quais eles não de-
vem ter esperança de poder ganhar a vida. Indiana, por
exemplo, é um estado que tem feito um grande alarde
por estar à frente no quesito aperfeiçoamentos penais
modernos. Porém, de acordo com o relatório produzido
em 1908 pela instituição de treinamento de seu “refor-
matório”, 135 estavam comprometidos na produção de
correntes, 207 na de camisas, e 255 na fundição — um
total de 597, nas três ocupações. Mas neste autodeno-
minado reformatório 59 profissões, eram representadas
pelos internos, 39 das quais ligadas a interesses do país.
Indiana, como outros estados, professa estar treinando
os prisioneiros em seus reformatórios em ocupações com
as quais eles poderão obter seu ganha pão após serem
soltos. Na verdade, os prepara para trabalhar fazendo
correntes, camisas e vassouras, estas últimas para o
lucro da Louisville Fancy Grocery Co. A produção de vas-
souras é uma prática amplamente monopolizada pelos
cegos, a de camisa é feita por mulheres, e há apenas
uma fábrica “livre” de correntes no estado, e nela um
prisioneiro liberto não pode ter esperança de conseguir
empregar-se. Toda a situação é uma farsa cruel.

71
7
2005

Se, então, os estados podem ser instrumentos em


arrancar enormes lucros de suas vítimas indefesas não
está mais do que na hora do trabalho organizado parar
com seu uivo inútil, e começar a requisitar uma remu-
neração decente para o condenado, tal como reivindi-
cam para si mesmos? Desta maneira, os trabalhadores
erradicariam o germe que faz o prisioneiro um inimigo
dos interesses do trabalho organizado. Já disse em ou-
tra ocasião que milhares de prisioneiros, sem compe-
tência ou profissão, sem meios de subsistência, são
anualmente lançados de volta ao meio social. Estes ho-
mens e mulheres devem viver, pois até ex-condenados
tem necessidades. A vida na prisão os tornou anti-soci-
ais e as portas firmemente fechadas que eles encontra-
ram na sua libertação não diminuíram a sua amargu-
ra. O resultado inevitável é que eles formam um núcleo
favorável do qual fura-greves, detetives e policiais são
extraídos e dispostos a cumprir a ordem do mestre. Por-
tanto, o trabalho organizado, pela sua tola oposição ao
trabalho na prisão destrói a si mesmo. Ajuda a criar a
fumaça venenosa que asfixia qualquer tentativa de
melhora econômica. Se o trabalhador deseja evitar es-
ses efeitos ele deveria insistir no direito do condenado
ao trabalho, devia vê-lo como um irmão, trazê-lo para a
sua organização, e com sua ajuda enfrentar o sistema que
os agrilhoa.
Por último, mas não menos importante, é a crescen-
te tomada de consciência da barbárie e da inadequação
da sentença definitiva. Aqueles que acreditam, e seria-
mente se esforçam, numa mudança chegam, rapida-
mente, à conclusão que deve ser dado ao homem a opor-
tunidade de fazer o bem. E como ele fará isso com dez,
quinze ou vinte anos de prisão pela frente? A esperança
de liberdade e de oportunidade é o único incentivo para
a vida, especialmente para a vida de um presidiário. A
sociedade tem pecado há muito contra eles e isto é o

72
verve
Prisões: falência e crime social

mínimo que ela deve deixar-lhes. Eu não estou muito


esperançosa que isto ocorrerá, ou que qualquer mudan-
ça real nesta direção possa acontecer até que as condi-
ções que originam a ambos, o prisioneiro e o carcerei-
ro, sejam abolidas para sempre.
Da sua boca, uma rubra, rubra rosa!
Do seu coração, uma branca!
Para quem pode dizer por qual estranha via
Cristo traz sua vontade à luz do dia,
Do cajado estéril que o peregrino portava
Floriram diante do Papa.9

Tradução do inglês por Anamaria Salles.


Tradução das poesias por Thiago Rodrigues.

Notas
1
The Ballad of Reading Goal:
The vilest deeds, like poison weeds,
Bloom well in prison air;
It is only what is good in Man.
That wastes and withers there.
Pale Anguish keeps the heavy gate,
And the Warder is Despair
2
W. Owen. Crime and criminals.
3
Havelock Ellis, foi um membro dos fabianistas ingleses, psicólogo, defensor
da eugenia, e escreveu em 1890, The criminal. Em 1892, publicou The Nationa-
lisation of Health, entre outros. Foi um estudioso do homossexualismo, escre-
vendo o controvertido Studies in the Psychology of Sex, entre 1897-1928, em 7
volumes. (N.E.).
4
Havelock Ellis. The criminal.
5
Ibidem

73
7
2005

6
Ibidem
7
Ibidem
8
Extraído das publicações do National Committee on Prison Labor.
9
Out of his mouth a red, red rose!
Out of his heart a white!
For who can say by that strange way;
Christ brings his will to light;
Since the barren staff the pilgrim bore;
Bloomed in the great Pope’s sight.

RESUMO

Contundente reflexão da anarquista Emma Goldman sob as condi-


ções carcerárias e a necessidade da abolição das prisões.

Palavras-Chave: Abolição da prisão, anarquismo, trabalho na pri-


são.

ABSTRACT

Strong reflexion by the anarchist Emma Goldman about the prison


conditions and the urgency in abolishing them.

Keyword: abolishment of prison, anarchism, work in prison.

Indicado para publicação em 10 de março de 2003.

74
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

abolicionismo penal, medidas


de redução de danos e uma nota trágica1

edson passetti*

1.
As práticas anti-proibicionistas às drogas levam a
uma política de descriminalização, e como tais, devem
ser saudadas pelo abolicionista penal. Medida de redu-
ção de danos é, portanto, mais do que uma política sani-
tária.
Reconhecer que não há universalidade e uma gene-
ralidade da lei aplicada, uniformemente, como resulta-
do de uma suposta igualdade jurídico-formal é mais do
que um avanço significativo anti-repressão. Sexo não é
o mesmo que sexualidade; e estados alterados de cons-
ciência podem ser atingidos com ou sem o uso das subs-
tâncias proibidas. Reduzir danos é também uma políti-

* Professor no Departamento de Política e no Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sociais e Coordenador do Nu-Sol.

verve, 7: 75-85, 2005

75
7
2005

ca abolicionista que lida com situações-problema, com-


pondo parcerias com interessados.
2.
Droga designa o proibido em lei por meio da atuação
de uma moral conservadora criada e revivida pelas for-
ças sociais. Droga é perigo e risco; nela habitam as sur-
presas da vida. Mas não só. Nas drogas estão, também,
a rotina e o mal digerido cotidiano. Assim sendo, droga
caracteriza um conjunto de medicamentos receitados
por médicos, combinados ou não com terapêuticas (psi-
cológicas, de controle de peso, de animação da muscu-
latura, segundo uma estética do corpo saudável, o atual
hedonismo de academia), legitimado pelo Estado, res-
paldado na lei. Droga é o permitido e o impedido, é ma-
rasmo e surpresa, é legal e ilegal.
Atletas são cobaias de novas drogas para o corpo. Des-
conhecidas dos agentes de punição e sem regulamen-
tações legalizadas quando usadas, geram quebras de
recordes, agilidade, explosão muscular, elasticidades,
fôlego, um corpão cobiçado, um atestado de saúde. Um
belo dia elas passam a ser consideradas proibidas. Aca-
bam os medalhistas, os recordistas, o semblante do sau-
dável em nome da verdadeira saúde. Mais uma roda-
vida, nada cessa: o mesmo corpão começa a ser refeito,
moto continuum. Quem produz cria e recria; quem usa
paga o pato; e são os mesmos produtores e consumido-
res, os alucinados cidadãos, que desejam proibições,
regulamentações, leis, punições, internações, prisões,
confinamentos.
Além das drogas proibidas, super conhecidas, que vão
da maconha ao ecstasy, há aquelas destinadas à tera-
pêutica. Nestes casos, é preciso o uso medicalizado de
drogas administrado segundo receitas ou acompanha-
mentos de psi (quiatra, cólogo, canalista, co-pedagogo,

76
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

etc. e tal), dentro ou fora de clínicas, para acalmar, rela-


xar a tensão e gerar concentração a trabalhadores pro-
dutivos. Não só. É preciso saber docilizar rebeldes, acal-
mar adolescentes, administrar a saúde mental. Mais
ainda. É urgente, na atualidade, estimular a pessoa a
participar de programas, na economia informático-com-
putacional, na política, no dia-a-dia, livre de apatias,
depressões, síndromes do medo. Enfim, em poucas pala-
vras, o que é droga depende do momento histórico para
ser definida; não é apanhada por um conceito univer-
sal, mas designa quem deve ser curado, cuidado da saú-
de, docilizado ou potencializado como ser produtivo. Fa-
lar droga é o mesmo que identificar um crime. E é tão
impossível uma ontologia da droga como do crime.
Um usuário ontem, pode ser, neste instante, um pa-
ciente numa clínica que usa maconha para o cliente aban-
donar o crack. O que era tráfico em toneladas de maco-
nha ou cocaína, no passado recente, hoje vai se transfor-
mando, com leves grandes quantidades de drogas
sintéticas carregadas em pequenas bolsas, carteiras e
porta-níqueis, por jovens de classes emergentes. Deixa
de ser trabalho de miserável e recebe novo status.
A diversificação do comércio de drogas estabeleceu
uma distinção entre os trabalhadores: o serviçal do nar-
cotráfico, confinado e sob ameaça de prisão e morte pela
polícia ou choque de gangues, passou a ser um potenci-
al jovem empresário das drogas sintéticas que faz de
uma ou duas viagens o trampolim para seu próprio ne-
gócio legal. O dinheiro ainda continua sendo lavado e
não é em nenhuma lavanderia.
Verso e avesso vão realizando o rodízio. O que era
política anti-narcoterrorismo vai virando combate ao
narcotráfico; sobre o que demarcou nos anos 1980 a di-
cotomia país consumidor/país devedor, hoje se situa
uma diplomacia que envolve empréstimos vultuosos em

77
7
2005

dólares, influência indireta no regime das fronteiras,


participação equilibrada no acesso aos satélites de se-
gurança e vigilância, intervenção em programas anti-
drogas ministrados por policiais a crianças escolariza-
das nas periferias das metrópoles.
A lei pune mais; as boas pessoas que defendem a
sociedade assim o desejam. Enfim, novamente, e cho-
vendo no molhado, sempre haverá drogas e sua comer-
cialização proibida enquanto perdurar a moral do bom
senhor que zela pelo rebanho. Cada época gera suas dro-
gas (as naturais, as transformadas pela farmacologia,
as criadas em laboratórios), e não raras vezes, umas
são somadas às anteriores, da mesma maneira que as
políticas repressivas não param de proliferar. Na mes-
ma proporção, repete-se a mesma constatação secular:
quanto mais baixa a qualidade das drogas comercializa-
das, maiores serão os riscos para a saúde do usuário.
A era do álcool odiada pelos puritanistas norte-ame-
ricanos, do final do XIX e início do século XX, rende hoje
em dia a extraordinária máquina de fazer dinheiro cha-
mada cerveja, bebida estimulada a qualquer jovem tan-
to pela propaganda (regulada pelo politicamente correto,
sugerindo beber moderadamente ou com responsabili-
dade). O sexo entre homens, de início, alvo escolhido
como disseminador da nova peste, o então chamado cân-
cer gay, transforma-se em mais de uma década numa
recomendada relação normalizada pelo casamento com
camisinha, e expõe, durante o percurso de sua pacifica-
ção, a ferida do próprio casamento: é entre heterosse-
xuais que na atualidade a aids prolifera e mata mais. A
religião dissemina pela África adentro o imperativo re-
acionário do sexo confinado ao casamento e para a re-
produção. É uma política moralizadora mais trágica e
mortal do que na Europa e nas Américas. Está na nor-
malização o itinerário moderno da peste. Opor certo a

78
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

errado, fundir o proibido no legítimo, consagrar o livre


pela regulamentação, difundir o sexo restrito ao casa-
mento com ou sem eloqüência das culpas religiosas, não
livra ninguém de alcoolismo, de aids, de peste. Uma
amiga minha, Salete Oliveira, também abolicionista
penal, sempre lembra Artaud dizendo que é preferível
morrer de peste do que de mediocridade.

3.
Os sarados, os curados, os potencializados, os docili-
zados, os aditivados, os saudáveis e os viciados, os da
ordem e os da desordem, os puritanos e os desajustados,
carolas e putas, governantes e governados, juízes, pro-
motores e advogados, pessoa qualquer, aqui, ali ou aco-
lá já cometeu alguma infração. Quem a negar não é uma
pessoa sincera. Nem um juiz, muito menos um sacer-
dote das almas está isento da infração. Não surpreende
que é pela moralidade que eles se isentam de culpas e
as esquadrinham como crimes, punições, policiamento
extenso, tolerância zero.
Transcendência religiosa e racional não se apartam,
caminham juntas na consagração da moral. A política
de tolerância zero (que por definição é anti-religiosa e
antidemocrática, supõe que religiosos e democratas
devam ter compaixão e conviver com vizinhos) apare-
ceu entre a direita estadunidense e migrou para as es-
querdas.
A luta por liberdades cedeu lugar à garantia de segu-
rança. Vivemos uma era de globalização que se pauta
na esperada conduta conformista enaltecedora da vida
democrática, a vencedora do socialismo, a mais justa, a
verdadeira maneira de saborear a mobilidade social, e
ao mesmo tempo, zelar pelos necessitados. Em nome da
democracia como panacéia modula-se o planeta.

79
7
2005

Passemos a outros brevíssimos casos. Não se quer


mais acabar com favelas, mas melhorar sua imagem.
Recuperam-se os argumentos racistas quando a própria
população das periferias identificam os sangue ruins
entre os seus. Proliferam ong’s patrocinadas por empre-
sas difundindo a necessidade de integração pela imobi-
lidade, a permanência na periferia e a sua glorificação,
a construção de equipamentos sociais mínimos, confi-
gurando uma política de confinamento, filosoficamente
uma política de campo de concentração. É exigido o tri-
bunal local, mais ágil; legislação mais punitiva; polícia
equipada e cidadã: prender mas não matar; escola em
tempo integral para evitar que as crianças sejam con-
taminadas pelos desajustados; é necessário vigiar com
a ajuda da eletrônica, criar mais prisões de segurança
máxima, edifícios monitorados: controle total.
Recomenda-se não resistir e se integrar na política
institucional; não fazer passeatas senão para comemo-
rar direitos multiculturais e/ou passeatas críticas am-
paradas e asseguradas pela polícia. Tudo na mais per-
feita ordem. Chegamos a um ponto em que as relações
entre burocracia estatal, empresários e sindicatos pôde
ser refeita com novas legislações trabalhistas voltadas
para a produtividade e a disseminação da filantropia.
Foi-se o tempo neoliberal para dar entrada ao liberalis-
mo social: o espaço de superfície foi redesenhado, expli-
citando novas fronteiras e abolição do nomadismo; ao
mesmo tempo, a conquista sideral ampliou o nomadis-
mo para espaços sem fronteiras, novas ocupações pla-
netárias. Muitos ficaram, alguns irão.
A liberdade de mercado continua sendo a liberdade
capitalista que não sobrevive sem intervenção estatal
em seu benefício, atuando a favor de consórcios e mo-
nopólios, e também, administrando miseráveis e o tra-
balho informal: cuidando dos saudáveis e contabilizando

80
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

os improdutivos, desajustados, drogados, viciados, pri-


sioneiros. Esse enorme contingente foi agregado à gran-
de massa sob a forma de desmembramentos estatísti-
cos. Os formuladores e alimentadores dos esquadrinha-
mentos e percentuais, viajam por internet e aviões,
segundo os resultados de aplicação de programas de con-
tenção da insatisfação, dinamizando o turismo dos es-
pecialistas burocráticos. Para estes qualquer coisa pode
ser traduzida em papers, resultados geradores de mais
verbas, outras intervenções possíveis, administração da
desgraça banhada em utopias, compaixões, acusações à
globalização, enaltecimento à cidadania, à “ética”, com-
pondo um discurso generalizante e oco o suficiente para
gerar novos investimentos. Todos devem convencer os
miseráveis e a si mesmos que as soluções são jurídico-
políticas, portanto, institucionais, e que em nome das
soluções, antes de resistir, é preciso integrar. A socie-
dade de controle requer a participação de cada um, como
eleitor, liderança local, monitor, criador de ong, um fi-
lantropo, uma vítima e um Estado totalizador.
Reduzir danos sob estas relações é uma ponta de um
iceberg abolicionista; é uma política que atua com a po-
tencialidade de cortar o casco de um Titanic repressor.
As políticas de redução de danos têm tudo para potenci-
alizar a luta pela liberação das drogas. Seus usuários e
ativistas sabem mais do que qualquer especialista de
gabinete com um título de doutor a tiracolos obtido com
base em estudos estatísticos milimétricos. Eles lidam
em cima das fronteiras e inventam espaços de relacio-
namentos e liberdades.
O abolicionista trata cada caso como algo especial,
como situação-problema e não crime ou infração. Pro-
cura compreender a situação dos envolvidos, algozes e
vítimas, tomando partido de ambos. Anti-universalista,
reconhece a verdade em cada parte e busca a solução

81
7
2005

pelo lado de fora, o da conciliação capaz de propiciar uma


resposta-percurso que evita a prisão e, ao mesmo tem-
po, incentiva a indenização. Uma resposta-percurso que
não se transforma em modelo, que é avessa à filantro-
pia, que não seqüestra a palavra ou as vontades das par-
tes, não as submetem a autoridades superiores de juí-
zes, promotores, advogados, técnicos de humanidades,
lideranças, etc. e tal. Promove, isso sim, uma conversa-
ção entre envolvidos e pessoas diretamente relaciona-
das ao caso, autoridades despojadas de seu poder univer-
salizador de julgar.
O dinheiro do Estado é meu, é seu, é de cada um. Se o
gasto com prisões é imenso e ineficaz, porque não atuar
de outra maneira? Não como alternativa punitiva à pri-
são. Para este caso já existe o regime das penas alterna-
tivas. Mas pela disseminação de práticas de redução de
danos, respostas–percurso capazes de afirmar outras pos-
sibilidades de se conviver com drogas, sejam elas legais
ou ilegais. A busca por drogas não cessará, pois indepen-
de da motivação que leva um jovem a consumir cocaína,
maconha, ecstasy ou crack, uma senhora de prendas do
lar a ingerir antidepressivos, um trabalhador a buscar
estimulantes ilegais para produzir mais, muitos progra-
mas assistenciais a docilizar clinicamente jovens, cer-
tos atletas a buscar ouro olímpico ou similares. Estimula-
do ou não pelos laboratórios farmacêuticos associados aos
ditames de controle do trabalho, pelas idealizações do
corpo saudável, pelas pacificações das almas sofridas, pelo
prazer incomensurável, cada usuário encontrará sua
maneira de chegar às drogas, aos melhores fornecedo-
res. Reduzir danos é uma política que reconhece essa
milenar história do uso das drogas e atua segundo o in-
teresse do usuário. É anti-repressiva, não idealiza a saú-
de, lida com o acontecimento no instante.

82
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

Sabemos que o sistema penal é incapaz de apanhar


todas os infratores. Ele opera por seletividade sócio-eco-
nômica, sim, e além disso, diversos encaminhamentos
feitos às delegacias jamais chegam ao sistema, gerando
a cifra negra. O sistema penal não pode e não quer dar
conta de todas as infrações cometidas ou denunciadas.
Se desse, acabaria com a ilegalidade necessária à exis-
tência do capitalismo e do Estado, pois ambos não vivem
sem corrupções. A cultura da punição (extensa ou inten-
sa), jamais consegue dar conta das ondas de infrações.
Quando o capitalismo defrontava-se com o socialismo, o
welfare-state, uma forma democrática de intervenção
estatal conseguia, com políticas sociais, prender menos;
com o neoliberalismo e a difusão da inevitável democra-
cia, com base na idealização da economia livre de mer-
cado que manteve a intervenção governamental, criou-
se a autoritária política de tolerância zero. Por ela se prende
mais, confina mais, ameaça mais, policia demais e não
se chega a um efeito melhor no Estado Penal que no Es-
tado de Bem-Estar Social. Trata-se apenas de uma nova
política para o rebanho, bêbado, drogado, sarado, em bus-
ca da volta do Messias, lambendo os calcanhares de pas-
tores e sacerdotes, as mãos de governantes, o caminho
dos líderes de ong’s.
Experimentar o abolicionismo é antes abolir o castigo
dentro de si, inventar novos costumes libertários, lidar
com o presente sem medo e com riscos. É praticar liber-
dades; é não tolerar prisões para os jovens.

4.
Trarei uma pequena lembrança para encerrar. Há 40
anos, em dezembro de 1964, foi inaugurada uma nova
política de segurança no Brasil, chamada política nacio-
nal do bem-estar do menor, que criou as Febem’s sempre

83
7
2005

em reformas, o atendimento bio-psico-social para caren-


tes e infratores menores de idade, uma burocracia monu-
mental a ponto de, hoje em dia, o sindicato dos carcerei-
ros da Febem ser mais importante do que um jovem lá
internado. Tudo em nome da segurança nacional e de uma
integração segura para excluídos, potencialmente perigo-
sos, habitantes não escolarizados das periferias, portado-
res de uma cultura da pobreza. Durante a ditadura militar
se questionou a Febem, seus métodos e se deu legitimi-
dade às rebeliões. A ditadura acabou e uma instituciona-
lização democrática apareceu.
As periferias permanecem miseráveis, crianças e jo-
vens foram escolarizados e na medida em que isso acon-
teceu ficou evidente que a escola é lugar para aprender a
obedecer (critério uniforme para acionar a evasão); para
integrar no mundo globalizado é preciso a escola eletrôni-
ca e essa não é para todos. A Febem, enfim, passou a ser
uma prisão reconhecida.
O tráfico tradicional de drogas permanece recrutando
os seus serviçais nas periferias (para comercializar e
matar). A polícia lá recruta para prender e matar. As orga-
nizações filantrópicas ali atuam para docilizar e imobili-
zar. Não se questiona o racismo de Estado tanto por meio
da identificação naturalizada de quem é mau, quanto pela
difusão de políticas de cotas entre os bons com o intuito de
gerar uma elite no interior da mesma periferia; enfim,
onde há muito direito multiculturalista há, também, bas-
tante racismo e confinamentos. Não há direito, dizia Ni-
etzsche, que não emerja de um ato de violência.
Vivemos uma era em que o campo de concentração se
anuncia como um modelo de administração governamen-
tal. No passado as resistências libertárias afirmavam que
cada um era dono do seu próprio corpo, dele podendo dispor
como bem desejasse, inclusive para consumir drogas. Hoje,

84
verve
Abolicionismo penal, medidas de redução de danos...

sob o conservadorismo, apropria-se daquela prática liber-


tária transformando-a em um lema da moralidade indivi-
dualista: “você pode fazer o que quiser de seu corpo, inclu-
sive consumir drogas, mas saiba que é sua responsabili-
dade alimentar a continuidade do tráfico”.
Numa época em que se procura anular resistências,
medidas de redução de danos expressam liberações alhei-
as à conduta dos polidos zeladores da moral, dos pastores
religiosos e ongueiros, dos participantes cidadãos. O abo-
licionista penal está ao lado dos ativistas das medidas de
redução de danos, convidando-os a lutarem, também, pelo
fim das prisões para jovens.

Nota
1
Palestra realizada na I Conferência de Redução de Danos da América Latina
e do Caribe, RELARD-IHRA-REDUC, São Paulo, 11 de fevereiro de 2004.

RESUMO

Uma perspectiva abolicionista que vê a política de redução de danos


como uma resistência estratégica à prática proibicionista e um parcei-
ro tático para potencializar a luta pela liberação das drogas.

Palavras-chave: abolicionismo penal, drogas, política de redução de


danos.

ABSTRACT

The abolitionist perspective sees the harm reduction policies as a


strategic resistance to the prohibitionist practice and as a tactical ally
to enforce the fight for drug liberation.

Keywords: penal abolitionism, drugs, harm reduction policy.

Recebido para publicação em1 de março de 2004.

85
7
2005

a mecanização do cadáver
— a má sorte dos animais

christian ferrer*

Na ocasião do dilúvio universal, foram anunciadas a


Noé duas missões: salvar um pequeno núcleo humano
e todos os animais da terra, e não somente durante a
catástrofe, mas o tempo suficiente para sua posterior
conservação e reprodução. Na arca, emblema da comu-
nidade de todos os seres vivos em momentos difíceis, os
animais são cuidados, pois desconhecem a causa de sua
má sorte. Eles foram extirpados de seu ambiente natu-
ral apesar de serem inocentes.

Como um cão
Era um vira-lata e respondia unicamente ao nome
de “Dash”. Fora entregue à ciência com a finalidade de
testar a eficácia da eletricidade aplicada à arte de ma-
tar. Descarregaram-se primeiro 300 volts no corpo do
cachorro, fazendo-o estremecer até o uivo, seguiu-se
depois com 400 volts, que também não acabaram com

*Professor na Universidade de Buenos Aires.

verve, 7: 86-99, 2005

86
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

sua vida, e assim a corrente chegou aos 700 volts e,


mesmo que sua língua pendesse como um badalo, ain-
da continuava vivo. Na quarta tentativa, sucumbiu, em
Nova Iorque, no dia 30 de junho de 1888. A comissão
estatal encarregada de selecionar um método alterna-
tivo à forca — o predileto até então — considerou trinta
e quatro propostas diferentes, que contemplavam ser
lançado de um canhão, ser fervido em carne viva e ser
jogado numa horda de animais selvagens. O leque foi
fechado sobre quatro propostas: o vil garrote, a guilhoti-
na, a injeção subcutânea (possibilidade descartada por-
que “a morfina poderia eliminar no réu o grande medo
da morte”) e a eletrocussão, que terminou por satisfa-
zer os membros da comissão. Dois anos mais tarde,
Francis Kemmler seria sua primeira cobaia humana:
levantara a mão contra sua esposa, fatalmente. Na nova
fórmula judicial que lhe fôra lida estipulava-se o seguin-
te: “Você foi condenado a sofrer a pena de morte por meio
da eletricidade”. O condenado respondeu ao tribunal:
“Estou disposto a morrer pela eletricidade. Sou culpado
e devo ser castigado. Estou pronto para morrer. Estou
contente porque não serei enforcado. Acredito ser mui-
to melhor morrer pela eletricidade do que por enforca-
mento. Não me provocará nenhuma dor”. Estava errado,
e muito.
A sentença não foi executada imediatamente, pois
Kemmler recorreu da resolução, que seria depois con-
firmada. Entre grades foi batizado na fé metodista e in-
clusive aprendeu a ler, pois tivera ingressado analfabe-
to à prisão. Sua execução não foi simples. Tampouco a
dos sucessivos cachorros, e também cavalos, com os
quais se acabou de aprontar o carrasco de quatro pés. A
guilhotina, em seu momento, foi tida como considerá-
vel melhora em relação aos enforcamentos e fuzilamen-
tos de costume, e a cadeira elétrica agora prometia dar
uma morte tão veloz que inclusive passaria inadvertida

87
7
2005

para o condenado. Este artefato fatal ingressava suave-


mente na consideração progressista das invenções ci-
entíficas: precisas, infalíveis, “modernas”; e sem dúvi-
da não foram seres mascarados os que aprontaram a
primeira execução, mas sim engenheiros e eletricis-
tas. Quando foi levado para o último lugar que veria em
vida, Francis Kemmler disse aos curiosos presentes:
“Cavalheiros, lhes desejo boa sorte. Acredito que vou para
um lugar melhor e estou pronto para partir. Só quero
acrescentar que muito se disse sobre a minha pessoa
que não é verdade. Sou bastante ruim, mas é cruel me
tirar deste mundo pior do que eu”. Estando sentado e de
mãos amarradas foi dada a ordem de descarregar os 1000
volts combinados. Segundo relataram as testemunhas,
o corpo de Kemmler enrijeceu repentinamente, os olhos
saíram das órbitas, e a pele empalideceu. Um médico
certificou a morte do réu dezessete segundos depois.
Entretanto, Francis Kemmler não tinha morrido e vári-
os dos que assistiam disto deram aviso. Então foi eleva-
da a corrente a 2000 volts e a saliva começou a fluir
pela boca, e suas veias romperam-se e as mãos se en-
cheram de sangue. No final, o corpo todo ardia em cha-
mas. Aconteceu no dia 6 de agosto de 1890.

Paleontologia e política
Charles Darwin publicou A origem das espécies em
1859, e seu complemento em 1871, com A orígem do
homem. Dois raios cravados sobre um céu sereno. Ani-
mal “evoluído”, o homem seria uma pirueta autoprovo-
cada por um macaco. Logo após a morte de Darwin, foi
iniciado na Europa um áspero debate não isento de se-
qüelas políticas em torno ao “darwinismo social”, que se
sobrepôs à polêmica paralela entre evolucionistas e cre-
acionistas. Por certo, “a sobrevivência do mais apto” não
é um lema que resulte de imediato agradável para des-

88
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

crever a promoção das espécies. Houve aqueles que pri-


vilegiaram a condição “gladiatorial” dessa luta e lhe de-
ram significados políticos e morais à hipótese de Da-
rwin: a natureza, um quadrilátero; as espécies, boxea-
dores solitários. O príncipe Piotr Kropotkin, anarquista
e cientista, confronta-os em 1902. Em O apoio mútuo,
obra que recebeu certa consideração pública, Kropotkin
identificou dois tipos distintos de luta. A do organismo
contra o organismo pelos recursos limitados, uma postal
de coliseu romano que podia satisfazer a impressioná-
vel sensibilidade burguesia do século XIX; e a do orga-
nismo e a espécie unidos contra o meio ambiente, comu-
nhão que garante melhor a sobrevivência do que o com-
bate. Bandos e manadas cooperam, e assim prosperam.
Aquele príncipe profetizou, retroativamente e com lógi-
ca tenebrosa, que a dominação do homem pelo homem
era uma conseqüência deslocada da dominação, mal-
trato e matança dos animais por parte do homem.

Tábula rasa
Seria pronunciado o auto de fé dos cultos e atualiza-
dos: o corpo se sustenta na cultura, não na dotação bio-
lógica. Mas se a história se inscreve no volume de car-
ne como se este fosse uma lousa límpida, a linhagem
animal perde seu elo. Ironicamente, aquela certeza
humanista culmina agora em numerosos sociólogos e
filósofos que depositam na biotecnologia a esperança de
uma mudança positiva para o destino histórico da espé-
cie. Já são legião: uns comemoram a continuidade “ir-
reversível” entre máquinas e homens, e outros deliram
com artefatos que reproduziriam “inteligência” e “emo-
ções” humanas. Todos entendiam. Negada a designa-
ção “animal” no ser humano, a descontinuidade se tor-
na abissal e, então, encurralar o resto do reino animal
contra o precipício é questão de tempo. Na vida social, o

89
7
2005

“drama da diferença” pode conduzir à negação ou ao des-


respeito de direitos, à tolerância ou à aceitação do alheio,
e também ao reconhecimento dos atributos do “outro” que
há em “mim”. Estas operações emocionais e políticas se
tornam raras quando se aborda a diferença animal. Domí-
nio, piedade, concessão de “direitos”? A questão nos con-
cernirá unicamente quando se assuma que a destruição
do corpo humano está diretamente vinculada ao tratamen-
to dado ao resto dos seres vivos. O bumerangue costuma
retornar violentamente ao braço que o lançou. Depois de
tudo, o ser humano bem poderia ser uma errata da natu-
reza, e a história humana sua persistência fatal. Mas os
animais estavam antes.

Descuido
Milhões de anos atrás, a massa continental original se
fragmentou em vários pedaços e foi quando a Oceania fi-
cou desvinculada da sorte ecológica das outras terras.
Quando os maori chegaram desde a Polinésia ao que hoje
chamamos Nova Zelândia, perto do ano 1300 depois de
Cristo, se encontraram com o moa, o maior pássaro que
existia no mundo, que não podia voar. Sendo um dos ali-
mentos preferidos dos maori, foi extinto no século XVII.
Porém, em 1893 descobriu-se que numa pequena ilha
chamada Stephens, localizada no Estreito de Cook, que
separa as duas grandes ilhas, a Ilha do Norte da Ilha do
Sul, tinham sobrevivido algumas espécies de aves, algu-
mas do tamanho de um frango e incapazes de voar, que
havia séculos estavam extintas no resto do arquipélago.
Rapidamente, o governo neozelandês proibiu as pegadas
humanas nessa cápsula isolada no tempo, a declarou “re-
serva natural” e mandou construir um farol. Um ano de-
pois, todos os pássaros estavam mortos. O assassino, en-
tretanto, era inocente. O encarregado do farol tinha de-
sembarcado na ilha junto com um gato que levou apenas

90
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

um ano para acabar com todos os pássaros. Apenas um


ciclo de contato com a cultura humana dera baixa a cem
milhões de anos de evolução. Para sempre.

Defensores
As primeiras vítimas defendidas não foram cachorros
e gatos, muito menos baleias, mas cavalos, asnos e mu-
las. As sociedades filantrópicas de “proteção aos animais”
foram criadas no rescaldo da revolução industrial, quando
a “tração a sangue” era o meio de viabilidade mais habitu-
al e o maltrato era contínuo e à vista de todos. No final do
século XIX, foram fundadas organizações contra a vivisse-
ção, dedicadas majoritariamente a “criar consciência” em
uma época na qual a experimentação científica estava se
“profissionalizando”, na qual se requeriam maiores quan-
tidades de animais a modo de cobaias “de índias” e na qual
destripar animais nas escolas públicas resultava ser um
tópico do currículo. Suas conquistas foram escassas por-
que na Europa e nos Estados Unidos, onde chegaram a ser
ricas e poderosas, a renúncia à ação política foi pobremente
compensada pelo recurso da “campanha de conscientiza-
ção”. Mas, uma época na qual se criava intensivamente o
gado com a finalidade de assassiná-lo e na qual se conta-
vam aos milhões os animais com os que se experimenta-
va em laboratórios, já precisava de outro tipo de orienta-
ção política. O “Movimento de Libertação dos Animais” pro-
pagou uma nova definição política da relação entre homem
e animal. Isso aconteceu perto de 1970.

Sub-humanos
A vida — e a morte — dos animais tem sido mecani-
zada: já são produtos cujo controle de qualidade exige a
imposição de certas doses de crueldade. Os cepos e arma-

91
7
2005

dilhas provocam um imenso padecimento, além de pro-


longar a agonia do animal durante dias. A compra e venda
de espécies “exóticas” resulta ser o prelúdio de sua extin-
ção, ao provocar o retrocesso da diversidade genética ne-
cessária para sua promoção. E, enquanto os potentados do
extremo oriente continuem adquirindo ilegalmente pó de
corno a modo de afrodisíaco, será muito difícil salvar a atual
população de rinocerontes negros. E afinal, a criação de
gado, que supõe castração, separação de mãe e filho, mar-
cação, transporte ao matadouro e morte prematura, ativi-
dades interditas para com os seres humanos, salvo que se
quebre o laço de continuidade com algum grupo humano es-
pecífico, fato acontecido sessenta anos atrás na Europa com
milhões de homens e mulheres inermes. Relembre-se:
até século e meio atrás, e nos Estados Unidos, era perfei-
tamente legal separar as mães de seus filhos, transportar
estes últimos ao mercado, e também matá-los antes de
tempo. Durante o ciclo da escravatura, as mães não cos-
tumavam desenvolver afetos fortes com suas crianças,
pois com a idade de seis anos já podiam ser comercializa-
dos. Por certo, naqueles tempos os proprietários costuma-
vam fazer com que seus escravos lutassem entre si, com
argola ao pescoço e em combates a morte. E apostavam,
como ainda se faz nas brigas de galo ou de cachorros de
luta.

Estômago
Nada mais errôneo do que entendê-lo como invenção
contemporânea. O naturismo foi uma doutrina amplamen-
te difundida desde o final do século XIX, no Ocidente, e
atiçada, em especial, pelos anarquistas, sempre preocu-
pados por melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores.
Distintas veias confluíam nessa esquecida ecologia soci-
al dos pobres: ideais existenciais de “boa vida”; a propa-
ganda da alimentação “protéica-racional” nos bairros ope-

92
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

rários; a difusão da “biofilia”, o nudismo e o vegetarianis-


mo; a criação de centros de medicina natural; a promoção
da “procriação consciente”. Não faltaram, entre os anar-
quistas, comunas e restaurantes vegetarianos ou tam-
pouco piquetes contra açougues. Para suas escolas, tam-
bém chamadas “racionalistas”, a vivisseção era alheia.
Pelo contrário, ensinavam a vida da natureza por meio de
passeios pela cidade destinados a identificar e escutar os
pássaros, ou também inspecionando os prósperos nichos
de insetos sob os azulejos.
Vegetarianismo e anarquismo não conformaram uma
excentricidade ideológica, mas uma aliança entre política
e cultura popular. Os pobres sempre alimentaram-se com
vegetais, pois a carne animal foi, e continua sendo, um
privilégio de ricos. Na China e na Índia, faz milhares de
anos que a comida está confeccionada na base de vege-
tais. Por certo, os indianos reverenciam as vacas mas não
deixam de ordenhá-las. Entretanto, o disparate não pára
de se expandir: o gado precisa de alimento proveniente de
terras de cultivos que poderiam ser usadas para alimen-
tar a espécie humana com proteína vegetal; são destruí-
dos bosques para dar lugar a terras de pastoreio; e as fro-
tas pesqueiras capturam um cinqüenta por cento de pes-
ca imprestável que sucumbe no navio fábrica. Ao
considerar que os vegetais produzem dez vezes mais pro-
teínas do que a carne, cabe concluir que a indústria da
proteína animal colabora com o aumento da fome no mundo.
Só um boicote poderia deter esta trituradora.

O especismo
A palavra “especismo” resume a contribuição de Peter
Singer para a história das idéias. Em seu Animal Liberati-
on, de 1975, argumentou que ao nos orientar por princípi-
os éticos que promovem a diminuição do sofrimento e

93
7
2005

o aumento do bem-estar, não seria aceitável provocar


dor a uma espécie em função dos interesses de um
grupo definido por seu estatuto superior. E, na suposi-
ção de que os animais tenham interesses, o primeiro
deles seria não sofrer. Mas se diz que os animais não
têm inteligência, sem a qual é impossível estabele-
cer uma simetria de interesses. Mas um macaco de-
monstra maior inteligência do que um bebê, e não
por isso consideramos este último um inferior. E tam-
bém, que os animais não têm autonomia fora do seu
ciclo instintivo. Mas um doente grave ou um bebê tam-
pouco a têm, e não por isso descuidamos deles. E tam-
bém, que os direitos supõem reciprocidade, e os ani-
mais não a concedem. Mas tampouco as crianças cos-
tumam outorgá-la, nem podem concedê-la aqueles que
experimentam uma “vida vegetativa”, e o fato de que
as futuras gerações não existam ainda não é critério
para fazer da terra um pântano. Enfim, que ausente
nos animais uma linguagem auto-reflexiva, não ha-
veria laço possível com o humano. Mas tampouco os
bebês podem se expressar de tal maneira ainda que
disponham da faculdade para o fazer no futuro, e em
outras épocas os surdos-mudos também careciam de
linguagem. Não há provas científicas para “compro-
var” a necessidade de acabar com a destruição dos
animais. Trata-se, apenas, de um ideal orientador.
No passado, foram publicados livros “científicos” que
“provavam” a inferioridade “natural” dos escravos, ou
das mulheres, ou dos que não fossem brancos. Justa-
mente, o especismo nega os interesses de outras es-
pécies a partir de preconceitos favoráveis à própria.
Mas a negação a levar em consideração outros pade-
cimentos requer do encobrimento do processo. É uma
condição prévia afetiva imprescindível para engolir
cadáveres.

94
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

Não
Em 1988, uma adolescente chamada Jennifer
Graham negou-se a realizar uma vivisseção em sua aula
de biologia. Tendo sido abaixada sua nota devido à sua
negação, a jovem iniciou um julgamento ao Estado da
Califórnia, e venceu. A dissecção em vivo já não seria
obrigatória nesse estado a partir de então. Uma lei caí-
da por causa da palavra não.

Um só homem
“Quantos coelhos Revlon deixa cegos por causa da
beleza?”. Esta pergunta, publicada em primeira página
no New York Times do dia15 de abril de 1980, conseguiu
que milhões de dólares em ações da corporação hege-
mônica no mercado da cosmética despencassem em
menos de vinte e quatro horas. Até então, a pasta de
blush ou de rímel era testada em coelhos, nos quais se
aplicavam em profusão os produtos na mucosa ocular
com a finalidade de pesquisar se o excesso de substân-
cia cosmética produzia algum efeito. A conseqüência
era a cegueira final do animal, prévia ulceração pro-
gressiva do olho. O aviso se repetiria duas vezes mais
até curvar a Revlon. Daí em diante, o “animal testing”
foi abandonado e o “controle de qualidade” se fez em
imitação artificial da carne vivente. O mesmo caminho
foi seguido pelo resto da indústria cosmética, temerosa
do custo a ser pago em publicidade negativa. Henry Spi-
ra, membro exclusivo de uma organização dedicada à
“libertação animal”, havia pagado por esse aviso.
Em dezembro de 1955, e na cidade de Montgomery,
uma mulher chamada Rosa Parks negou-se a ceder seu
lugar a um passageiro branco, roque forçado contempla-
do pelas leis do Estado de Alabama. O homem branco
reclamou ao motorista, quem não pôde persuadir a mu-

95
7
2005

lher de abandonar sua atitude. Obstinado, o homem le-


vou a juízo a empresa de transportes. A resposta foi o
boicote: durante sete meses milhares de pessoas foram
e voltaram caminhando até conseguir derrogar a orde-
nança municipal. Foi o começo do movimento de luta
pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Henry
Spira, um jovem trotskista, cobriu o conflito para seu jor-
nal, e da simples observação dos acontecimentos apren-
deu algumas coisas. Depois, deixaria o partido e seu ofí-
cio de marinheiro mercante e se transformaria em pro-
fessor de escola. E assim até 1973.
Em abril de 1973, a The New York Review of Books pu-
blicou um comentário favorável à edição recente de li-
vros que tratavam o tema dos direitos dos animais. O
autor da resenha era Peter Singer. Meses depois, Henry
Spira lê numa publicação trotskista de escassa tiragem
uma crítica à crítica de Singer; basicamente uma de-
núncia da “bancarrota - intelectual - dos - intelectuais -
de - esquerda - que - em - lugar - de - defender - os -
trabalhadores - se - dedicam - a - causas - supérfluas”.
Mas Spira, muito treinado na arte de ler entrelinhas,
interessou-se, e participou de um curso de “extensão”
na Universidade de Nova Iorque no qual Singer expôs
avances de seu Animal Liberation. Compareceram vinte
pessoas e Henry Spira era uma delas. Nesse âmbito foi
fundada a Animal Rights International.
Era preciso escolher onde golpear. Em 1975 o Museu
Americano de História Natural guardava arquivos e ob-
jetos, mas também um laboratório onde se experimen-
tava com felinos, aos que se lhes extirpavam os órgãos
sexuais e se lhes induziam lesões cerebrais com a fi-
nalidade de investigar sua conduta reprodutiva. Cons-
tatação tão cruel como desnecessária para o mundo. O
grupo começou com cartazes e distribuição de panfletos
na entrada do Museu. Aos poucos, as rádios começaram

96
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

a se ocupar do caso. Num primeiro momento, o Museu


ignorou as reclamações, mas logo teve de se defender,
pois uma comissão parlamentária decidiu inspecionar
o laboratório. Ed Koch, futuro prefeito de Nova Iorque,
inquiriu sobre a natureza das experiências e lhe foi
mostrado um gato macho com lesões cerebrais induzi-
das encerrado numa jaula onde também havia uma gata
e um coelho fêmea. Koch perguntou pelas seqüelas da
experiência: acaso a preferência sexual do felino seria
afetada pela lesão? Foi a resposta que o gato ia indistin-
tamente com a coelha ou com a gata. Koch voltou a per-
guntar: “E o que opina a coelha de tudo isto?”.
O clima de opinião daqueles anos não favorecia este
tipo de ativismo. Os “líderes de opinião”, políticos e jor-
nalistas não levavam a sério a questão; e o desprezo da
comunidade científica em relação aos opositores de ex-
periências com animais era incomensurável. Entretan-
to, Henry Spira teve sempre cuidado de se confrontar
com a ciência em si mesma. Afinal, a pressão da opi-
nião pública conseguiu que o museu fosse obrigado a
suspender as experiências e a se desfazer dos pesqui-
sadores. O epitáfio dos mesmos foi cinzelado em outu-
bro de 1976 pela influente revista Science, que deu o
golpe de misericórdia. Science abandonou o Museu à sua
sorte talvez porque já se tornava evidente que não era
possível defender qualquer experiência realizada com
animais, e também porque naquele laboratório costu-
mavam dar nomes de famosos cientistas vivos aos feli-
nos lobotomizados ou castrados; entre outros, o do dire-
tor da revista Science.
Foi o começo. Seguiria a confrontação com a indús-
tria cosmética. Nos anos noventa Spira lançou uma cam-
panha destinada a humilhar um gigante, Mc Donald’s,
pois se as experiências “científicas” realizadas no Mu-
seu de História Natural supunham a castração e dano

97
7
2005

de centenas de felinos, e se a experimentação em cos-


mética dizia respeito à sorte de milhares e milhares de
coelhos, a produção de carne de vaca ou de frango para
hambúrguer implicava a mecanização da vida e a mor-
te de milhões de animais. A campanha culminou em
um julgamento iniciado e ganho pela empresa, ainda
que o veredicto se constituiu numa falsa vitória para a
Mc Donald’s, que sequer tentou cobrar as centenas de
milhares de dólares creditados na conta do defensor dos
animais. Henry Spira morreu no ano de 2001. As mui-
tas conquistas que conseguiu para sua causa se des-
prendiam do potencial político da palavra “libertação”,
olho da fechadura dos anos sessenta e setenta, estendi-
da agora ao reino animal.

Hominização
O longo processo de hominização culminou num de-
sequilíbrio. Transformado no árbitro de todas as espéci-
es, o homem as submeteu ao seu arbítrio. É um aconte-
cimento que não pode ser revertido, nem redimido, e
talvez tampouco possa ser detido. A progressão da histó-
ria humana, e o nível de suas necessidades, assim o
exigem. É uma experiência imensa e cruel desenhada
para antedatar a chegada do Apocalipse, começando com
o dos animais. Tratar-se-ia de remover a ordem dada a
Noé: não a conservação e cuidado da vida, mas seu ho-
locausto.

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

98
verve
A mecanização do cadáver — a má sorte dos animais

RESUMO

Uma analítica da história desenha territórios de saberes que evi-


denciam a atualidade de se pensar a espécie como problema polí-
tico e o corpo como extensão onde a política instaura verdades.
Dimensionada assim, a política permite combinar práticas sobre a
pena de morte, sobre o homem como espécie diante de outras es-
pécies, sobre saberes evolucionistas e criacionistas, como experi-
mentação histórica sobre o presente.

Palavras-chave: evolucionismo, espécies, direitos

ABSTRACT

An analysis of History draws territories of knowledge that highli-


ght the importance of thinking the species as a political problem
and the body as an extension where politics states truths. Put in
that way, politics is able to mix practices over death penalty, the
Man as a specie facing other ones, evolutionism and creationism
as historical experimentations over the present.

Keywords: evolutionism, species, rights

Recebido para publicação em 19 de maio de 2004.

99
7
2005

assim também
seu corpo para
mim:

o que se abre,
o que se reflete
em sorriso.

nenhum crime, nenhum castigo.

Sergio Cohn

100
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

stirner e foucault: em direção a uma


liberdade pós-kantiana

saul newman*

Max Stirner e Michel Foucault são dois pensadores que


raramente são analisados juntos. No entanto, já foi suge-
rido que o tão ignorado Stirner pudesse ser visto como o
precursor do pensamento pós-estruturalista contemporâ-
neo.1 De fato, há muitos extraordinários paralelos entre a
crítica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racio-
nalidade universal e as identidades essenciais, e as críti-
cas similares realizadas por pensadores como Foucault,
Jacques Derrida, Gilles Deleuze, e outros. Contudo, o pro-
pósito deste artigo não é meramente situar Stirner na
tradição “pós-estruturalista”, mas analisar seu pensamen-
to a respeito da liberdade, e pesquisar as conexões com o
próprio desenvolvimento do conceito de Foucault no con-
texto das relações de poder e subjetividade. Em linhas ge-
rais, os dois pensadores enxergam a clássica idéia kanti-

* Professor no Departamento de Ciência Política da University of Western


Australia.

verve, 7: 101-130, 2005


101
7
2005

ana de liberdade como extremamente problemática, por


envolver pressupostos essencialistas e universais que
são freqüentemente opressivos. O conceito de liberdade
deve ser repensado. Este não pode ser visto exclusiva-
mente em termos negativos, como a liberdade de coa-
ção, mas deve envolver mais noções positivas de auto-
nomia individual, particularmente a liberdade do indi-
víduo para construir novas formas de subjetividade.
Stirner, como veremos, dispensa a noção clássica de
liberdade como uma totalidade e desenvolve a teoria da
(Eigenheit)2 para descrever esta autonomia radical do
indivíduo. Eu proponho, neste artigo, que tal teoria da
propriedade de si como uma forma não essencialista de
liberdade tem muitas similaridades com o próprio pro-
jeto de liberdade de Foucault, que envolve um ethos crí-
tico e uma esteticização de si. De fato, Foucault questi-
ona os fundamentos racionais universais e antropoló-
gicos do discurso de liberdade, redefinindo-os em termos
de práticas éticas.3 Tanto Stirner quanto Foucault são,
portanto, cruciais para o entendimento da liberdade na
contemporaneidade — eles mostram que a liberdade não
pode mais ser limitada por absolutos racionais e cate-
gorias morais universais. Eles tomam o entendimento
de liberdade para além dos limites do projeto kantiano
— apoiando-se em estratégias concretas e contingen-
tes de si.

Kant e a liberdade universal


Para compreender como esta reformulação radical da
liberdade pode acontecer, devemos ver como o conceito de
liberdade está situado no pensamento iluminista. Neste
paradigma, o exercício da liberdade é visto como a heran-
ça de uma propriedade racional. Segundo Immanuel Kant,
por exemplo, a liberdade humana pressupõe uma lei mo-
ral que é racionalmente entendida. Na Crítica da razão

102
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

prática, Kant busca estabelecer um fundamento racional


absoluto para o pensamento moral além dos princípios
empíricos. Argumenta que os princípios empíricos não
são uma base apropriada para as leis morais, por não
permitirem que sua verdadeira universalidade seja es-
tabelecida. A moralidade deveria, ao contrário, ser ba-
seada em uma lei universal — um imperativo categóri-
co — que pode ser racionalmente compreendido. Para
Kant existe, então, apenas um imperativo categórico, o
qual sustenta o fundamento para todas as ações racio-
nais do homem: “Age somente pela máxima segundo a
qual tua ação e vontade tornam-se uma lei universal”.4
Noutras palavras, a moralidade de uma ação está deter-
minada pela lei universal quando aplicável a todas as
situações. Kant traça três características de todas as
máximas morais. Em primeiro lugar, elas devem ter um
formato universal. Em segundo lugar, devem ter um fim
racional. E, em terceiro, as máximas que provém de le-
gislações autônomas do indivíduo, devem estar de acor-
do com uma certa teologia de fins.
Este último ponto trás conseqüências importantes
para a questão da liberdade humana. Para Kant, a lei
moral é baseada na liberdade — o indivíduo racional
escolhe livremente pelo senso de dever aderir às máxi-
mas morais universais. Dessa maneira, para que as
leis morais sejam racionalmente fundamentadas, elas
não podem estar baseadas em qualquer forma de coer-
ção ou constrangimento. Elas têm que estar livremente
incorporadas como um ato racional do indivíduo. A li-
berdade é vista por Kant como uma autonomia da von-
tade — a liberdade do indivíduo racional para seguir os
preceitos de sua própria razão pela adesão a estas leis
morais universais. Esta autonomia da vontade, então,
é para Kant o princípio supremo da moralidade. Ele a
define como “aquela propriedade pela qual ela é uma lei
para si mesma (independentemente de qualquer pro-

103
7
2005

priedade dos objetos da vontade)”.5 A liberdade é, portan-


to, a habilidade do indivíduo em legislar para si, livre de
forças externas. No entanto, esta liberdade da auto-le-
gislação deve estar de acordo com as categorias morais
universais. Por conseguinte, segundo Kant, o princípio
da autonomia é: “nunca escolher, exceto quando estiver
numa condição em que as máximas da escolha estejam
compreendidas na mesma vontade como uma lei uni-
versal”.6 Pode parecer que há um paradoxo central nesta
idéia de liberdade — você é livre para escolher desde que
faça a escolha certa, desde que escolha as máximas da
moral universal. Porém, para Kant, aqui não há contra-
dição, pois apesar da adesão às leis morais ser um dever
e um imperativo absoluto, ela continua sendo um dever
livremente escolhido pelo indivíduo. Leis morais são ra-
cionalmente estabelecidas, e pelo fato da liberdade ape-
nas poder ser exercida por indivíduos racionais, eles irão
necessariamente, ainda que livremente, escolher obe-
decer estas leis morais. Noutras palavras, uma ação é
livre somente na medida em que está de acordo com a
moral e os imperativos racionais — caso contrário ela é
patológica e, portanto, “não-livre”. Neste sentido, a liber-
dade e o imperativo categórico não são antagônicos, mas
antes, conceitos mutuamente dependentes. A autono-
mia individual é para Kant a principal base das leis mo-
rais. “Mas este princípio da autonomia (...) é o único prin-
cípio das morais que pode ser mostrado prontamente por
uma mera análise dos conceitos da moralidade; por esta
análise nós descobrimos que este princípio tem que ser
um imperativo categórico, e este (o imperativo) coman-
da, nem mais nem menos, que sua própria autonomia”.7

O reverso autoritário
Todavia, pode parecer haver um autoritarismo es-
condido na formulação da liberdade de Kant. Enquanto o

104
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

indivíduo é livre para agir de acordo com os preceitos de


sua própria razão, ele deve, contudo, obedecer às máxi-
mas da moral universal. A filosofia da moral de Kant é
uma filosofia da lei. Este é o porquê Jacques Lacan foi
capaz de diagnosticar um jouissance escondido — ou a
apreciação em excesso da lei — que anexou ao impera-
tivo categórico de Kant. Segundo Lacan, Sade é o com-
plemento necessário a Kant — o prazer perverso incor-
porado às leis se torna, no universo sadiano, a lei do
prazer.8 O que une a liberdade kantiana à lei são suas
vinculações a uma racionalidade absoluta. É porque a
liberdade deve ser exercida racionalmente que o indiví-
duo se encontra obedecendo, obrigatoriamente, as leis
morais universais, racionalmente fundamentadas.
Contudo, tanto Foucault quanto Stirner colocaram em
questão tais categorias universais, racionais e morais,
centrais para o pensamento iluminista. Eles insistem
que categorias absolutas da moralidade e racionalidade
sancionam diversas formas de dominação e exclusão, e
negam a diferença no indivíduo. Para Foucault, por
exemplo, a centralidade da razão em nossa sociedade
está baseada na exclusão violenta e radical da loucura.
As pessoas permanecem excluídas, encarceradas e opri-
midas devido a esta arbitrária divisão entre a razão e a
não-razão, racionalidade e irracionalidade. Do mesmo
modo, o sistema penitenciário está baseado na divisão
entre bem e mal, inocência e culpa. O encarceramento
do prisioneiro é possível somente pela universalização
de códigos morais. O que deve ser contestado, segundo
Foucault, não são apenas as práticas de dominação que
se encontram nas prisões, mas também a moralidade
que justifica e racionaliza tais práticas. O foco principal
da crítica de Foucault sobre as prisões não é necessari-
amente relativa à dominação interna, mas no fato de
que esta dominação está justificada em bases morais
absolutas — a base moral que Kant busca para cons-

105
7
2005

truir o universal. Foucault quer romper com a “serena


dominação do Bem sobre o Mal”, central nos discursos
morais e práticas de poder.9
Este é o absolutismo moral ao qual Stirner também se
opõe. Ele vê a moralidade como um “fantasma” — um
ideal abstrato colocado além do indivíduo e que age sobre
ele de forma opressiva e alienante. Moralidade e racio-
nalidade se tornam “idéias fixas” — idéias tidas como
sagradas e absolutas. Uma idéia fixa, de acordo com Stir-
ner, é um conceito abstrato que governa o pensamento
— uma ficção discursivamente fechada que nega a dife-
rença e a pluralidade. Estas são idéias abstraídas do
mundo e que continuam a dominar o individuo pela com-
paração de cada um a uma norma ideal impossível de ser
atingida. Noutras palavras, o projeto de Kant de retirar as
máximas morais do mundo empírico para o interior de
um reino transcendental, em que poderiam ser aplica-
das universalmente, isto poderia ser visto por Stirner
como um projeto de alienação e dominação. A invocação
da obediência absoluta às máximas morais universais
de Kant, seria vista por Stirner como a pior negação pos-
sível da individualidade. Para Stirner, o indivíduo é su-
premo, e qualquer coisa que pretenda se aplicar a ele ou
falar por qualquer um, universalmente, é uma anulação
da diferença da unicidade do indivíduo. O indivíduo está
infestado por estes ideais abstratos, estas aparições que
não são criações suas e a ele impostas, confrontando-o
com padrões racionais e morais impossíveis. Como vere-
mos, além disso, o indivíduo para Stirner não é uma iden-
tidade ou essência fixa e estável — isto seria uma abs-
tração idealista assim como os espectros que o oprimem.
A individualidade deve ser vista, neste caso, em termos
similares aos de Foucault — como uma forma radical-
mente contingente de subjetividade, uma estratégia aber-
ta que se empenha em questionar e contestar os limites
do essencialismo.

106
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

A crítica ao essencialismo
O exorcismo que Stirner executa neste “espírito do
reino” de absolutos morais e racionais é parte de uma
crítica radical do humanismo iluminista e do idealis-
mo. Seu “rompimento epistemológico” com o humanis-
mo pode ser visto mais claramente em seu repúdio a
Ludwig Feuerbach. Em A essência do cristianismo, Feu-
erbach aplicou a noção de alienação para a religião. A
religião é alienante, de acordo com Feuerbach, pois ela
exige que o homem abdique de suas qualidades e pode-
res essenciais para projetá-los em um Deus abstrato,
além da compreensão da humanidade. Para Feuerbach,
os predicados de Deus, eram somente os predicados do
homem como espécie. Deus era uma ilusão, uma proje-
ção fictícia das qualidades essenciais do homem. Nou-
tras palavras, Deus era uma reificação da essência
humana. Como Kant, que tentou transcender o dogma-
tismo da metafísica reconstruindo sobre bases racionais
e científicas, Feuerbach procurou superar a alienação
religiosa restabelecendo as capacidades morais e racio-
nais universais do homem como base essencial para a
experiência humana. Feuerbach corporifica o projeto
humanista do Iluminismo de restaurar ao homem seu
justo lugar no centro do universo, fazendo do humano o
divino, o finito, o infinito.
Stirner argumenta, contudo, que por meio da busca
do sagrado na “essência humana”, posicionando um
sujeito essencial e universal, e atribuindo-lhe, certas
qualidades que foram, até agora, de Deus, Feuerbach
somente re-introduziu a alienação religiosa, substitu-
indo o conceito abstrato de homem na categoria do Divi-
no. Por meio da inversão feuerbachiana o homem se
torna Deus, e apenas como homem foi rebaixado sob
Deus, então o indivíduo é posto abaixo deste ser perfei-
to, o homem. Para Stirner, o homem é tão opressivo, se

107
7
2005

não mais, que Deus. O homem se torna o substituto da


ilusão cristã. Feuerbach argumenta Stirner, é o sacer-
dote de uma nova religião universal — o humanismo:
“A religião humana é somente a última metamorfose
da religião cristã”.10 É importante notar que o conceito
de alienação de Stirner é essencialmente diferente da
compreensão humanista feuerbachiana da alienação da
essência do indivíduo. Stirner radicaliza a teoria de ali-
enação para ver a essência por si só alienante. Salien-
to, que a alienação neste exemplo pode ser vista muito
além da noção foucaultiana de dominação — como um
discurso que amarra o indivíduo a certa subjetividade
por meio da convicção de que dentro de qualquer um
existe uma essência para ser revelada.
Para Stirner é esta noção de uma essência humana
universal que estipula as bases para a absolutização da
moral e das idéias racionais. Estas máximas tornaram-
se sagradas e imutáveis porque estão agora fundadas
na noção de humanidade, na essência humana, e trans-
gredi-las seria uma transgressão na essência. Neste
sentido o tema é levado a um conflito consigo mesmo. O
homem é, de certa forma, perseguido e alienado por ele
mesmo, por meio do espectro da “essência” dentro dele:
“A partir de agora, em casos típicos, o homem não mais
estremecerá diante de fantasmas externos, mas diante
de si mesmo; ele está aterrorizado por si mesmo”.11 Para
Stirner, a “insurreição” de Feuerbach não destruiu a
categoria da autoridade religiosa — apenas instalou o
homem dentro dela, revertendo a ordem do sujeito e do
predicado. Da mesma forma, podemos sugerir que a “in-
surreição” metafísica de Kant não destruiu as estrutu-
ras dogmáticas da crença, mas apenas instalou a mora-
lidade e a racionalidade dentro delas.
Enquanto Kant procurava retirar a moralidade do do-
mínio da religião, fundamentando-a na razão, Stirner

108
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

sustenta que a moralidade é apenas o velho dogmatis-


mo religioso em um novo e racional aspecto: “A fé moral
é tão fanática quanto a fé religiosa!”.12 Stirner não se
opõe à moralidade em si, mas o fato que esta se tornou
uma lei sagrada e indestrutível, e expõe o desejo pelo
poder, a crueldade e a dominação por trás das idéias
morais. A moralidade está baseada na profanação, na
destruição da vontade do indivíduo. O indivíduo deve se
conformar aos códigos morais; senão, ele se torna alie-
nado de sua essência. Para Stirner, a coerção moral é
tão viciosa quanto a coerção realizada pelo Estado, só é
mais insidiosa e perspicaz, pois não exige o uso da força
física. O guardião desta moralidade está instalado na
consciência do indivíduo. Esta moral internalizada da
vigilância também se encontra em Foucault na discus-
são sobre o panoptismo — na qual ele argumenta, re-
vertendo o paradigma clássico, que a alma se torna a
prisão para o corpo.13
Uma crítica similar deve estar relacionada à racio-
nalidade. Verdades racionais são sempre colocadas aci-
ma das perspectivas individuais, e Stirner sustenta que
isto é apenas uma outra forma de dominar o indivíduo.
De maneira similar ao que afirmou sobre a moralidade,
Stirner não é necessariamente contra a verdade racio-
nal em si, mas contra o modo como ela se torna sagra-
da, transcendental e deslocada da compreensão indivi-
dual, anulando o poder do indivíduo. Stirner diz: “enquan-
to você acreditar na verdade, você não acredita em si
mesmo, e você é um servo, um homem religioso”.14 A
verdade racional, para Stirner, não possui nenhum real
significado para além das perspectivas individuais — é
algo que pode ser usado pelo indivíduo. Sua verdadeira
base, assim como para a moralidade, é o poder.
Enquanto para Kant as máximas morais são racio-
nais e livremente obedecidas, para Stirner elas são pa-

109
7
2005

drões coercitivos, baseadas em uma noção alienante de


“essência” humana compelida sobre o indivíduo. Além
disso, elas se tornam a base para práticas de punição e
dominação. Por exemplo, em resposta à idéia iluminis-
ta que o crime era antes uma doença a ser curada do
que uma moral enfraquecida a ser punida, Stirner afir-
ma que estratégias de cura e punição são dois lados do
mesmo velho preconceito moral. Ambas estratégias con-
tam com a adesão a uma norma universal: “meios de
cura’ sempre anunciam inicialmente que indivíduos
serão supervisionados ao serem ‘chamados’ para uma
‘salvação’ específica e tratados de acordo com as exi-
gências deste ‘chamado humano’”.15 Para Kant, o indi-
víduo não é também, “chamado” para uma “salvação”
específica quando solicitado a cumprir uma de suas obri-
gações ou a obedecer aos códigos morais? Neste senti-
do, o imperativo categórico kantiano não seria também
um “chamado humano”? Noutras palavras, a crítica de
Stirner sobre a moralidade e a racionalidade pode ser
aplicada ao imperativo categórico de Kant. Para Stirner,
embora as máximas morais possam ser livremente se-
guidas, elas continuam ocultando uma coerção e um
autoritarismo. Isto porque, na formulação kantiana, elas
foram universalizadas como normas absolutas que re-
servam um pequeno espaço para a autonomia do indiví-
duo, e que não podem ser transgredidas, pois isto signi-
ficaria ir contra o próprio “chamado humano” racional e
universal.
A crítica de Stirner à moralidade e à sua relação com
a punição possui similaridades impressionantes com
os escritos do próprio Foucault sobre a punição. Para
Stirner, como já vimos, não há diferença entre cura e
punição — a prática da cura é a re-aplicação dos velhos
preconceitos morais sob uma nova máscara ilumi-
nada: “os meios de cura ou tratamento são o reverso da
punição, a teoria da cura segue paralela à teoria da pu-

110
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

nição; se esta última enxerga em uma ação um pecado


contra o direito, o primeiro entende isso como um peca-
do do homem contra si mesmo, deixando de lado a sua
saúde”.16
Isto é muito próximo ao argumento de Foucault so-
bre o preceito moderno da punição — em que as normas
médicas e psiquiátricas são apenas a velha moralidade
em uma nova roupagem. Enquanto Stirner considera
os efeitos de tais formas da higiene moral na consciên-
cia do indivíduo, o foco de Foucault está mais na mate-
rialidade do corpo e a fórmula de cura e punição são as
mesmas: é a noção do que é propriamente “humano”,
que autoriza uma série de exclusões, práticas discipli-
nares, moral restritiva e normas racionais. Tanto para
Foucault, como para Stirner, a punição é possível por
meio do sagrado ou do absoluto — no sentido que Kant
faz da moralidade uma lei universal. Há inúmeros pon-
tos a serem sublinhados. Primeiro, Stirner e Foucault
vêem os discursos racionais e morais como problemáti-
cos — eles geralmente excluem, marginalizam, e opri-
mem aqueles que não vivem sob as normas implícitas
destes discursos. Segundo, os dois pensadores vêem a
racionalidade e a moralidade implicadas nas relações
de poder, mais do que constituindo um ponto crítico epis-
temológico fora do poder. Não somente estas normas se
tornam possíveis por práticas de poder, por meio da ex-
clusão e dominação do outro, mas também, justificam e
perpetuam práticas de poder como as encontradas em
prisões e asilos. Terceiro, ambos os pensadores vêem
na moralidade uma relação ambígua com a liberdade.
Enquanto Stirner discute que superficialmente as nor-
mas morais e racionais são livremente admitidas, elas
impõem, contudo, uma opressão sobre nós mesmos —
uma autodominação — que é muito mais incidiosa e
efetiva que a coerção explícita. Noutras palavras, em
conformidade com a prevalência universal da moral e

111
7
2005

da norma racional, o indivíduo abdica de seu próprio po-


der e se deixa dominar. Foucault, também, desmascara
esta dominação oculta da moral e da norma racional que
é encontrada atrás do calmo semblante da liberdade hu-
mana. A clássica idéia iluminista da liberdade, argumen-
ta Foucault, permite apenas uma pseudo-soberania. Isto
clama pela posse da soberania “conscientemente (sobe-
rania no contexto do julgamento, mas sujeita às neces-
sidades da verdade), o indivíduo (um controle nominal de
direitos pessoais sujeitos às leis da natureza e da socie-
dade), a liberdade básica (a soberania interna, mas acei-
tando as demandas de um mundo externo e ‘alinhado
com o destino’)”.17 Noutras palavras, o humanismo ilu-
minista clama pela liberdade individual sobre qualquer
forma de opressão institucional enquanto, ao mesmo tem-
po, exige uma intensificação da opressão sobre o indiví-
duo e a negação do poder de resistir a esta sujeição. Esta
subordinação no coração da liberdade pode ser vista no
imperativo categórico kantiano: mesmo baseada em uma
liberdade de consciência, esta liberdade está ainda as-
sim sujeita a categorias morais e racionais absolutas. A
liberdade clássica permite somente uma certa forma de
subjetividade, ao intensificar a dominação sobre o indi-
víduo subordinado a estes critérios morais e racionais.
Enfim, o discurso de liberdade está baseado em uma for-
ma específica de subjetividade — o homem autônomo e
racional do iluminismo e do liberalismo. Como mostram
Foucault e Stirner, esta forma de liberdade só se faz pos-
sível por meio da dominação e exclusão de outros modos
de subjetividade que não se encaixam neste modelo ra-
cional. Noutras palavras, enquanto a moralidade não nega
ou constrange a liberdade de forma evidente — no caso
de Kant as máximas morais estão baseadas na liberdade
de escolha do indivíduo — esta liberdade está, não obs-
tante, restrita a um modo mais sutil por necessitar se
conformar a absolutos morais e racionais.

112
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

Para Foucault e Stirner, a idéia clássica de liberdade


em Kant é profundamente problemática. Ela constrói o
indivíduo como “livre” e “racional” enquanto o assujeita
a normas morais e racionais absolutas, e o divide em
seres racionais e irracionais, morais e imorais. O indi-
víduo se adapta livremente a estas normas racionais, e
neste sentido sua subjetividade é construída como um
lugar para sua própria opressão. A tirania silenciosa da
norma auto-imposta se torna o principal modo de sujei-
ção. Enquanto para Kant as máximas morais e as nor-
mas racionais existem em uma relação complementar à
liberdade, para Stirner e Foucault a relação é muito mais
paradoxal e conflituosa. A moral transcendental e as nor-
mas racionais não negam a liberdade em si — no para-
digma kantiano elas pressupõem a liberdade. A forma de
liberdade trazida por meio destas categorias absolutas,
implica outras formas de dominação muito mais sutis.
Esta dominação é possível precisamente porque a rela-
ção da liberdade com o poder é mascarada. Para Kant,
como já vimos, a liberdade é uma ausência de coerção.
Entretanto, para Stirner e Foucault, a liberdade implica
sempre em relações de poder — relações de poder tão
criativas quanto restritivas. Ignorar isso, e ainda, perpe-
tuar a ilusão confortante de que a liberdade assegura uma
liberação universal do poder, significa atirar-se direta-
mente nas mãos da dominação. Pode-se argumentar,
então, que Foucault e Stirner, de maneiras diferentes,
decifram o autoritário lado obscuro, ou a “outra face”, da
liberdade kantiana.

A liberdade foucaultiana: o cuidado de si


Stirner e Foucault não rejeitam a idéia de liberdade.
Ao contrário, eles interrogam os limites do projeto ilu-
minista de liberdade, de modo a expandi-lo — para in-
ventar novas formas de liberdade e autonomia que vão

113
7
2005

além das restrições do imperativo categórico. Como


mostra Olívia Custer, Foucault está tão engajado quan-
to Kant na problemática da liberdade. Entretanto, como
veremos, ele procura levar a questão da liberdade por
um caminho diferente — por meio de estratégicas éti-
cas concretas e práticas de si.
Para Foucault, a ilusão do estado de liberdade para
além do mundo do poder deve ser dissipada. Além disso,
o vínculo entre liberdade e categorias essencialistas e
coordenadas morais e racionais pré-ordenadas, devem
ser pelo menos questionadas. Porém, o conceito de li-
berdade é muito importante para Foucault — ele não
prescinde do conceito, mas antes o situa no domínio das
relações de poder que necessariamente o fazem inde-
terminado. É somente repensando a liberdade neste
sentido, que esta pode ser arrebatada do mundo metafí-
sico e trazida para o nível do indivíduo. Melhor que a
noção abstrata de liberdade kantiana como uma esco-
lha racional além de constrangimentos e limitações, a
liberdade para Foucault existe em situações mútuas e
recíprocas de poder. Mais do que uma liberdade pres-
suposta por uma máxima moral absoluta, ela é na reali-
dade pressuposta pelo poder. Segundo Foucault, o poder
pode ser entendido como uma série de “ações sobre a
ação dos outros”, nas quais múltiplos discursos, contra-
discursos, estratégias e tecnologias confrontam-se umas
com as outras — relações específicas de poder sempre
provocam relações de resistências específicas e locali-
zadas. A resistência é algo que excede o poder e é ao
mesmo tempo algo integrado à sua dinâmica. O poder
se baseia numa certa liberdade de ação, numa certa
escolha de possibilidades. Neste sentido, “o poder é exer-
cido somente sobre sujeitos livres, e somente na medi-
da que estes são livres”.18 Diferentemente do esquema
clássico no qual a liberdade e o poder são diagramatical-
mente opostos, o pensamento foucaultiano sustenta a

114
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

total dependência de um ao outro. Onde não há liberda-


de, onde o campo de ação é absolutamente restrito e
determinado, de acordo com Foucault, não pode haver
poder: a escravidão, por exemplo, não é uma relação de
poder.19

A noção de liberdade em Foucault é uma quebra ra-


dical com a noção de Kant. Enquanto, para Kant, a liber-
dade é abstraída dos constrangimentos e limitações do
poder, para Foucault, é a principal base destes limites e
constrangimentos. Liberdade não é um conceito meta-
físico e transcendental. Ela pertence inteira a este mun-
do e existe em uma relação complicada e emaranhada
com o poder. De fato, não existe possibilidade de um
mundo sem relações de poder, assim como poder e li-
berdade não existem um sem o outro.

Foucault percebe a liberdade implicada nas relações


de poder, pois para ele liberdade é muito mais que so-
mente ausência ou negação do constrangimento. Ele re-
jeita o modelo “repressivo” de liberdade que pressupõe a
essência de si — uma natureza humana universal —
que é restrita e precisa ser liberada. A liberação de uma
subjetividade essencial é a base das noções clássicas de
liberdade para o iluminismo e continua sendo central
para o nosso imaginário político. Foucault e Stirner re-
jeitam esta idéia da essência de si — isto é meramente
uma ilusão criada pelo poder. Como diz Foucault: “O ho-
mem descrito para nós e que somos convidados a liber-
tar, já é em si o efeito de um assujeitamento muito mais
profundo que ele próprio”.20 Enquanto ele não reduz os
atos de liberação política — por exemplo, quando um povo
tenta se libertar das regras coloniais — isto não pode ope-
rar como a base de um modo contínuo de liberdade. Su-
por que a liberdade pode ser estabelecida eternamente
na base deste ato de libertação inicial significa apenas
um convite para novas formas de dominação. Se a liber-

115
7
2005

dade deve ser um aspecto permanente de qualquer so-


ciedade política, ela deve ser tida como uma prática —
um modo de ação e uma estratégia em curso, que desa-
fia e questiona continuamente as relações de poder.
Esta prática de liberdade é também uma prática cri-
ativa — um processo contínuo de auto-formação do su-
jeito. É neste sentido que a liberdade pode ser vista como
positiva. Um dos aspectos que caracteriza a modernida-
de, segundo Foucault, é uma atitude “heróica” baudele-
riana em relação ao presente. Para Baudelaire, o con-
tingente, a natureza fugaz da modernidade deve ser con-
frontada com uma certa “atitude” em relação ao presente
que é concomitante ao novo modo de relação que se tem
consigo. Isso envolve a reinvenção de si: “esta moderni-
dade não ‘liberta o homem em seu próprio ser’; obriga-o
a encarar a tarefa de produzir a si próprio”.21 Antes da
liberdade ser uma libertação da essência do homem de
coações externas, ela é uma prática ativa e deliberada
da invenção de si. Esta prática de liberdade pode ser
encontrada no exemplo do dandy ou do flanêur, “que faz
do seu corpo, do seu comportamento, dos seus sentimen-
tos e paixões, de sua própria existência, uma obra de
arte”.22 É esta prática de auto-esteticização que nos per-
mite, de acordo com Foucault, refletir criticamente so-
bre os limites de nosso tempo. Não se procura um lugar
metafísico além de todos os limites, mas obras dentro
dos limites e coerções no presente. Mais importante,
no entanto, é também uma obra conduzida sobre os nos-
sos limites e nossas próprias identidades. Pelo fato do
poder operar por meio do processo de assujeitamento —
amarrando o indivíduo a uma identidade essencial — a
reconstituição radical de si é um ato de resistência ne-
cessário. Esta nova forma de liberdade define, então, uma
nova forma de política mais relevante aos regimes con-
temporâneos de poder: “o problema político, ético, social
e filosófico de nossos dias não é libertar o indivíduo do

116
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

Estado e suas instituições, mas de nos libertar do Esta-


do e do tipo de individualização ligada a ele”.23

Para Foucault, além disso, a libertação de si é uma


prática ética distinta. Ela envolve a noção de “cuidado
de si”, pela qual o desejo e o comportamento são regula-
dos por si próprios de modo que a liberdade possa ser
praticada eticamente. Esta sensibilidade com o cuidado
de si e a prática ética da liberdade pode ser encontrada,
sugere Foucault, entre os gregos e romanos da antigui-
dade. Para eles a liberdade do indivíduo era um proble-
ma ético. O desejo pelo poder sobre os outros era tam-
bém uma ameaça à própria liberdade, e o exercício do
poder era algo que tinha que ser regulado, monitorado,
e limitado. Ser escravo de seus próprios desejos era tão
ruim quanto ser escravo do desejo de outros. Esta regu-
lação de práticas e desejos requer um comportamento
ético que cada um constrói para si. Para praticar a li-
berdade eticamente, para ser sinceramente livre, é pre-
ciso obter o poder sobre si mesmo, sobre os próprios de-
sejos. Foucault mostra, no antigo pensamento grego e
romano que “o bom governante é precisamente aquele
que exerce seu poder corretamente, ou seja, exercendo
ao mesmo tempo o poder sobre si mesmo”.24
Esta prática ética da liberdade associada ao cuidado
para si começa, entretanto, a soar de certo modo como o
pensamento kantiano. Na realidade, como diz Foucault,
“para que a ética, senão para a pratica da liberdade? [...]
A liberdade é a condição ontológica da ética”.25 Isso não
parece re-invocar o imperativo categórico onde, para
Kant, a moralidade pressupõe e é fundada na liberdade?
Será que Foucault, em sua tentativa para escapar do
absolutismo da moralidade e racionalidade, re-introdu-
ziu o imperativo categórico nesta cuidadosa regulação
do comportamento e do desejo? Não há dúvidas sobre o
rigor desta forma de ética. Em O uso dos prazeres e O cui-

117
7
2005

dado de si, Foucault descreve as prescrições gregas e ro-


manas sobre tudo, da dieta ao exercício do sexo. Entretan-
to, eu sugeriria que há uma diferença importante entre a
ética do cuidado e as máximas morais universais insisti-
das por Kant. A regulação do comportamento e a proble-
matização da liberdade, central para a ética do cuidado,
são coisas que cada um aplica a si mesmo, não é algo
imposto externamente por uma perspectiva universal fora
do indivíduo. A prática de liberdade em Foucault é, portan-
to, uma ética mais do que uma moralidade. Supõe uma
coerência de modos e comportamentos que têm como ob-
jeto a consideração e a problematização de si. Noutras pa-
lavras, permite que o sujeito seja visto como um projeto
aberto a ser constituído por meio de práticas éticas do
indivíduo, e não como algo definido a priori por leis univer-
sais e transcendentais. Leis morais não se aplicam aqui
— não há nenhuma autoridade transcendental ou impe-
rativos universais que sancionem estas práticas éticas e
penalize infrações. Segundo Foucault, a moralidade é de-
finida pelo tipo de assujeitamento que ela acarreta. De
um lado há a moralidade que faz com que os códigos sejam
cumpridos, por meio de interdições, e que exige uma for-
ma de subjetividade que se refere à conduta do indivíduo
sob estas leis, submetendo-o à uma autoridade universal.
Isso, que pode ser discutido, é a moralidade do imperativo
categórico de Kant. De um outro lado, afirma Foucault,
existe a moralidade na qual “a ênfase é colocada na rela-
ção consigo que permite não se deixar levar pelos apetites
e pelos prazeres, manter uma superioridade sobre eles,
manter seus sentidos num estado de tranqüilidade, per-
manecer livre de qualquer escravidão interna das paixões,
e atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo ple-
no gozo de si ou pela supremacia de si sobre si mesmo”.26
A noção de Foucault de liberdade como uma prática éti-
ca é radicalmente diferente da idéia de Kant de liberdade
como base da lei moral universal. Para Foucault, a liber-

118
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

dade é ética porque implica um projeto em aberto conduzi-


do sobre a pessoa, com o intuito de expandir o poder que se
exerce sobre si mesmo, e limitar e regular o poder em
exercício sobre os outros. Desta forma, a liberdade e a au-
tonomia da pessoa são expandidas. Para Kant, por sua vez,
a liberdade é a base de uma moralidade metafísica que
deve ser obedecida universalmente. Para Foucault, a éti-
ca intensifica a liberdade e a autonomia, enquanto para
Kant, liberdade e autonomia estão circunscritas princi-
palmente pela máxima moralidade possível.
Há, portanto, dois aspectos relacionados com o concei-
to de liberdade de Foucault que devem, aqui, ser enfatiza-
dos. Primeiro, existe a prática de liberdade que permite à
pessoa libertar-se, não dos limites externos que reprimem
a sua essência, mas dos limites impostos pela própria es-
sência. Exige a transgressão destes limites por meio de
uma transgressão e re-invenção de si. Esta forma de li-
berdade opera dentro dos limites do poder, permitindo ao
indivíduo fazer uso destes limites na invenção de si mes-
mo. Segundo, existe o aspecto da liberdade claramente
ético — é a prática do cuidado de si que tem como intuito
o aumento do poder de si sobre seus desejos, colocando em
cheque, desta forma, o poder de um sobre os outros. A prá-
tica do cuidado de si permite ao indivíduo navegar um per-
curso ético de ação por dentro das relações de poder, com o
objetivo de intensificar a liberdade e a autonomia pessoal.
Portanto, a liberdade é concebida como uma prática de si
contingente e em curso que não está determinada por
uma moral fixa e por leis racionais.

Os dois iluminismos
Em seu último ensaio “O que são as Luzes?”, Foucault
considera a insistência de Kant em um uso livre e públi-
co da razão autônoma como uma evasão, uma saída do

119
7
2005

homem do estado de imaturidade e subordinação. Fou-


cault acredita que esta razão autônoma é útil por per-
mitir um ethos crítico sobre a modernidade, mas recusa
a “chantagem” do iluminismo — a insistência com que
este ethos crítico, no coração do iluminismo, é inscrito
em uma moralidade e racionalidade universais. O pro-
blema de Kant é que ele abre caminho para uma auto-
nomia individual e reflexão crítica nos limites do sujei-
to, apenas para reinscrevê-lo no espaço fechado por uma
noção transcendental de racionalidade e moralidade que
requer obediência absoluta. Para Foucault a herança do
iluminismo é extremamente ambígua. Segundo Colin
Gordon, para Foucault há dois iluminismos — o ilumi-
nismo da certeza racional, identidade absoluta, e do des-
tino, e o iluminismo do questionamento contínuo e da
incerteza. Segundo Foucault, esta ambigüidade está
refletida no próprio pensamento de Kant sobre o ilumi-
nismo.
Talvez exista um momento kantiano em Foucault (ou
deveríamos dizer um momento foucaultiano em Kant?).
Foucault mostra, como Kant pode ser lido de uma forma
heterogênea, enfocando o aspecto mais oscilante de seu
pensamento — em que somos encorajados a interrogar
os limites da modernidade, a refletir criticamente so-
bre como somos constituídos como sujeitos. Como mos-
tra Foucault, Kant vê o iluminismo (Aufklärung) como
uma condição crítica, caracterizada por uma “audácia
de saber” e um uso público livre e autônomo da razão.
Esta condição crítica é concomitante com uma “vontade
de revolução” — com a tentativa de entender a revolu-
ção (no caso de Kant a Revolução Francesa) como um
evento que permite interrogar as condições da moder-
nidade — “uma ontologia do presente” — e a forma, como
sujeitos, que lidamos com isso.27 Foucault sugere que
adotemos esta estratégia crítica para refletir sobre os
limites do discurso do iluminismo em si e de suas in-

120
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

terdições morais e racionais universais. Deveremos,


neste sentido, usar as capacidades críticas do iluminis-
mo contra ele mesmo, abrindo caminho, deste modo,
para a autonomia individual dentro de seus edifícios,
além da compreensão de leis universais.
A postura crítica relativa ao presente e a prática do
“cuidado de si” com a qual está ligada, esboça uma es-
tratégia genealógica da liberdade — uma estratégia,
como afirma Foucault que “não procura tornar possível
uma metafísica que finalmente se tornou uma ciência;
procura dar novo ímpeto [...] para o trabalho indefinido
da liberdade”.28

A teoria da propriedade de si de Stirner


É o desejo de dar um novo ímpeto à liberdade, de a
tirar do domínio de promessas e sonhos vazios, que se
reflete na teoria da propriedade de si de Stirner. Ele adota
um caminho “genealógico”, próximo ao de Foucault, tra-
zendo o foco da liberdade de si e situando a liberdade no
interior das relações de poder.
A idéia de transgredir e reinventar-se — libertando-se
de identidades fixas e essenciais — é também o tema cen-
tral do pensamento de Stirner. Como já vimos, Stirner
mostra que a noção de essência humana é uma ficção
opressiva derivada de um idealismo cristão invertido, que
tiraniza o indivíduo e está ligada a várias formas de domi-
nação política. Stirner descreve um processo de assujei-
tamento que é muito similar ao de Foucault: mais do que
o poder operar com uma repressão depressiva, esta gover-
na o assujeitamento do indivíduo, definindo-o de acordo
com uma identidade essencial. Stirner afirma: “o Estado
denuncia sua inimizade a mim, exigindo que eu seja um
homem... ele impõe ‘ser um homem’ como um dever”.29 A
essência humana impõe uma série de morais fixas e

121
7
2005

idéias racionais no indivíduo, que não são parte de sua


criação e que reduz a sua autonomia. E é precisamente
esta noção de dever, de obrigação moral — o mesmo sen-
tido de dever que está na base dos imperativos categóri-
cos — que Stirner considera opressiva.
Para Stirner, o indivíduo deve se livrar — destas idéias
opressivas e obrigações livrando-se, em primeiro lugar,
da essência — da identidade essencial que lhe é impos-
ta. A liberdade envolve, portanto, a transgressão da es-
sência, a transgressão de si. Mas como deve ser esta
transgressão? Como Foucault, Stirner desconfia da lin-
guagem de libertação e da revolução — baseadas na
noção de um ser essencial que supostamente joga fora
as correntes da repressão externa. Para Stirner, é pre-
cisamente esta noção de essência humana que é opres-
siva. Além disso, busca diferentes estratégias de liber-
dade — que abandonam o projeto humanista de liberta-
ção e procuram reconfigurar o sujeito em caminhos
novos e não-essencialistas. Para este fim, Stirner con-
vida a uma insurreição: “Revolução e insurreição não
devem ser vistas como sinônimos. A primeira consiste
na derrubada das condições, das condições estabeleci-
das ou posições, do estado ou da sociedade, um ato polí-
tico ou social; a outra tem de fato, por suas conseqüên-
cias inevitáveis, uma transformação das circunstânci-
as, começa pelo descontentamento dos homens consigo
mesmos, não é um levante armado, mas um levante
dos indivíduos, um levante sem se incomodar com as
implicações daí decorrentes. A revolução pretendia no-
vas disposições; a insurreição nos leva a não mais dei-
xarmo-nos ser arranjados, mas nos arranjar sem aca-
lentar uma esperança nas “instituições”. Não é uma
luta contra o estabelecido, pois se este prospera ele se
arruína a si mesmo, é apenas um trabalho além de mim
e do estabelecido”.30

122
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

Enquanto a revolução pretende que a essência hu-


mana prospere, a partir da transformação das condições
sociais e políticas existentes, uma insurreição procura
libertar o indivíduo da essência. Como a prática de li-
berdade em Foucault, a insurreição procura transfor-
mar a relação que o indivíduo tem consigo. A insurrei-
ção começa, portanto, com a recusa do indivíduo em fa-
zer cumprir sua identidade essencial: começa, segundo
Stirner, com o descontentamento dos homens com eles
mesmos. A insurreição não tem como objetivo destruir
instituições políticas. Ela procura, de certo modo, trans-
gredir no indivíduo sua própria identidade — o resulta-
do, contudo, é uma mudança na ordem política. A insur-
reição, portanto, não é o tornar-se — humano, homem
— mas tornar-se o que não é.
Este ethos de escapar das identidades essenciais por
meio da reinvenção de si, tem muitos paralelos impor-
tantes com a estetização de si baudelairiana, que inte-
ressa a Foucault. Como na afirmação de Baudelaire em
que o sujeito deve ser tratado como uma obra de arte,
Stirner vê o sujeito — ou o eu — como “um nada criati-
vo”, um vazio radical que cabe somente ao indivíduo
definir: “eu não me pressuponho, pois estou a cada mo-
mento posicionando ou criando a mim mesmo”.31 O su-
jeito, para Stirner, está em processo, um fluxo contínuo
de auto-criação — este é um processo que se esquiva da
imposição de identidades fixas e essências: “nenhum
conceito me expressa, nada designado como minha es-
sência me exaure”.32
A estratégia insurrecional de Stirner e o projeto do cui-
dado de si de Foucault são ambas práticas contingentes de
liberdade, que envolvem a reconfiguração do sujeito e sua
relação consigo. Para Stirner, assim como em Foucault, a
liberdade é um projeto indefinido e sem uma finalidade
na qual o indivíduo se empenha. A insurreição, como afir-

123
7
2005

ma Stirner, não confia em instituições políticas para sub-


sidiar a liberdade do indivíduo, mas procura, que o indiví-
duo invente suas próprias formas de liberdade. É uma ten-
tativa de construir espaços de autonomia dentro das rela-
ções de poder, limitando o poder que é exercido sobre o
indivíduo pelos outros, e aumentando o poder que o indiví-
duo exerce sobre si mesmo. O indivíduo, além disso, é li-
vre para reinventar-se de formas novas e imprevisíveis
escapando dos limites impostos pela essência humana e
as noções universais de moralidade.
A noção de insurreição envolve uma reformulação do
conceito de liberdade de maneira radicalmente pós-kan-
tiana. Stirner sugere, por exemplo, que não pode haver
nenhuma idéia universal de liberdade; a liberdade é sem-
pre uma liberdade particular disfarçada de universal. A
liberdade universal que é, para Kant, o domínio de todos os
indivíduos racionais, mascararia interesses particulares
ocultos. Liberdade, segundo Stirner, é um conceito ambí-
guo e problemático, um “sonho lindo e encantado” que se-
duz o indivíduo, mesmo sendo inatingível, e do qual o indi-
víduo deve acordar.
Além disso, liberdade é um conceito limitado. Só é vis-
ta em seu sentido mais estreito e negativo. Stirner quer,
ao contrário, ampliar este conceito para o de uma liberda-
de mais positiva. Liberdade em seu sentido negativo en-
volve apenas uma auto-renúncia — pra livrar-se de algo,
para negar a si mesmo. Segundo Stirner, quanto mais
ostensivamente livre o indivíduo se torna, de acordo com
os ideais emancipadores do humanismo iluminista, mais
ele perde o poder que exerce sobre si mesmo. De outro
lado, a liberdade positiva — ou da propriedade de si — é
uma forma de liberdade criada pelo indivíduo para ele
mesmo. Diferente da liberdade kantiana, a propriedade
de si não é garantida por ideais universais ou imperativos
categóricos. Se assim fosse, isto só poderia resultar em

124
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

mais dominação: “um homem que é colocado em liberda-


de, não é nada além de um homem libertado [...] ele é um
homem não-livre travestido com liberdade, como o asno
na pele do leão”.33
A liberdade deve antes ser apoderada pelo indivíduo.
Para que a liberdade tenha algum valor ela deve estar ba-
seada no poder do indivíduo para criá-la. “Minha liberdade
só se torna completa somente quando é a minha própria
força; mas a partir disso eu deixo de ser meramente um
homem livre e me torno e sou este homem”.34 Stirner foi
um dos primeiros a reconhecer que a verdadeira base da
liberdade é o poder. Ver a liberdade como uma universal
ausência do poder é mascarar sua base principal no po-
der. A teoria da propriedade de si é o reconhecimento, e de
fato a afirmação, da relação inevitável entre poder e liber-
dade. A propriedade de si é a realização do poder do indiví-
duo sobre si mesmo — a habilidade de criar suas próprias
formas de liberdade, que não estão circunscritas pela
metafísica ou categorias essencialistas. Neste sentido, a
propriedade de si é uma forma de liberdade que vai além
do imperativo categórico. Está baseada na noção de si como
um contingente e um campo aberto de possibilidades, e
não numa adesão absoluta e submissa às máximas mo-
rais externas.

Conclusão
Esta noção de propriedade de si é crucial na formula-
ção de um conceito de liberdade pós-kantiano. Talvez,
nas palavras de Stirner, “a propriedade de si cria uma nova
liberdade”.35 Primeiro, a propriedade de si permite que a
liberdade seja considerada além dos limites da moral uni-
versal e das categorias racionais. A propriedade de si é a
forma de liberdade que o sujeito inventa para si mesmo,
ao contrário daquela garantida por ideais transcendentais.

125
7
2005

Foucault, também, procurou “libertar” a liberdade destes


limites opressivos. Em segundo lugar, a propriedade de si
aproxima-se do argumento de Foucault sobre a liberdade
situada nas relações de poder. Foucault, assim como Stir-
ner, mostra como é ilusória a noção de liberdade como
algo que possa acarretar uma abstenção total do poder e
da coação. O indivíduo está sempre envolvido em uma rede
complexa de relações de poder, e a liberdade deve ser ba-
talhada, reinventada, e renegociada dentro destes limi-
tes. A propriedade de si deve ser vista, portanto, como
criadora de possibilidades e resistências ao poder. Próxi-
mo a Foucault, Stirner defende que a liberdade e a resis-
tência podem existir sempre, mesmo nas mais opressi-
vas condições. Neste sentido, a propriedade de si é um
projeto de liberdade e resistência dentro dos limites do
poder — é o reconhecimento da natureza fundamental-
mente antagônica e ambígua da liberdade. Em terceiro
lugar, a propriedade de si não é somente uma tentativa
para limitar a dominação do indivíduo, mas também um
modo de intensificar o poder que o sujeito exerce sobre si.
Para Stirner e Foucault, a liberdade universal em Kant
está baseada numa moral absoluta e em normas racio-
nais que limitam a soberania do indivíduo. Foucault e Stir-
ner estão interessados, de formas diferentes, em refor-
mular o conceito de liberdade: por meio da prática ética do
cuidado de si e por meio da estratégia da propriedade de
si, que pretendem aumentar o poder que o indivíduo tem
sobre si mesmo.
Estas duas estratégias nos permitem conceituar a li-
berdade de uma forma mais contemporânea. A liberdade
não pode mais ser vista como uma emancipação univer-
sal, a promessa eterna de um mundo além dos limites do
poder. A liberdade que forma a base do imperativo categó-
rico, a liberdade exaltada por Kant como a providência da
razão e da moralidade, não pode mais servir como base
para as noções contemporâneas de liberdade. Tanto Stir-

126
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

ner quanto Foucault mostraram que ela exclui e oprimi


onde inclui, e escraviza onde também liberta. A liberdade
deve ser vista não mais como subserviente às máximas
absolutas de moralidade e racionalidade, aos imperativos
que invocam a fria, a sombria inevitabilidade da lei e da
punição. Para Stirner e Foucault, a liberdade deve ser “li-
berada” destas noções absolutas. Antes de ser um privilé-
gio garantido ao indivíduo por um ponto metafísico, a li-
berdade deve ser vista como uma prática, uma crítica do
ethos e do eu, e uma batalha que é assumida pelo indiví-
duo dentro da problemática do poder. Isso abrange neces-
sariamente uma reflexão sobre os limites de si e das con-
dições ontológicas do presente — uma problematização e
reinvenção constante da subjetividade. Uma liberdade pós-
kantiana, neste sentido, não é apenas um reconhecimento
do poder, mas uma reflexão sobre os limites do poder —
uma afirmação das possibilidades da autonomia individu-
al dentro do poder e das capacidades críticas da subjetivi-
dade moderna.

Tradução do inglês por Anamaria Salles e Eliane Knorr de


Carvalho.

Notas
1
ver Andrew Koch. “Max Stirner: The Last Hegelian or the First Poststructu-
ralist.” Anarchist Studies 5 (1997): 95-107.
2
O termo alemão Eigenheit foi traduzido para a língua inglesa como Owness,
porém tal termo é inexistente no vocabulário inglês. Nesta tradução Eigenheit
será referido como “Propriedade de Si”, forma que consideramos mais adequa-
da, lembrando que o conhecido livro de Max Stirner chama-se Einzige und Sein
Eigentum (O único e a sua propriedade). (N.T.).
3
Esta rejeição de fundamentos antropológicos da liberdade é discutida tam-
bém por Rajchman. Na realidade Rajchman vê o projeto de liberdade de
Foucault como uma atitude ética de um questionamento contínuo das margens
e limites de nossa experiência contemporânea — uma liberdade da filosofia

127
7
2005

assim como uma filosofia da liberdade. Minha discussão sobre a re-configura-


ção da problemática da liberdade em Foucault em termos de estratégias éticas
concretas de si, também pode ser vista neste contexto.
4
Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Tradução de Thomas Kingsmill
Abbot. London, Longmans, 1963, p. 38.
5
Idem.
6
Ibidem.
7
Ibidem.
8
Ver Lacan. Neste ensaio, Lacan mostra que a lei produz suas próprias trans-
gressões, e que esta só pode operar por meio de suas transgressões. O excesso
de Sade não contradiz os mandatos, leis, e imperativos categóricos de Kant;
antes, eles estão inexoravelmente ligados a estes. Como a discussão de Fou-
cault sobre as “espirais” do poder e prazer, na qual o poder produz o próprio
prazer que este deve reprimir, Lacan sugere que a negação do gozo — incor-
porado na lei, no imperativo categórico — produz sua própria forma de
satisfação perversa, ou um gozo a mais — le plus de jouir. Sade, segundo
Lacan, expõe este prazer obsceno revertendo o paradigma: ele torna este
perverso prazer como uma lei, uma espécie de imperativo categórico kantia-
no ou princípio universal: “Deixe-nos enunciar a máxima: ‘Eu tenho o direi-
to de prazer sobre o seu corpo, qualquer um pode me dizer, e eu exercerei este
direito, sem nenhum limite que me intercepte a satisfação da exatidão dos
caprichos’”. Desta forma o prazer obsceno da lei que está desmascarado em
Kant é revertido na lei do prazer obsceno por Sade. Como Zizek aponta, em
“Kant com (ou contra) Sade”, o “insight” crucial do argumento de Lacan
aqui não é que Kant é um “sadista em segredo”, mas ao contrário, que Sade
é um “kantiano em segredo”. O excesso em Sade é levado a tal extremo que
se torna esvaziado de prazer, e toma a forma de um sangue frio, triste lei
universal.
9
Michel Foucault. Intellectual and Power: a conversation between Michel Foucault and
Gilles Deleuze. Foucault, Language, pp. 204-217.
10
Max Stirner. The Ego and Its Own. Tradução de David Leopold. Cambridge
and London, University of Cambridge Press, 1995, p. 158.
11
Idem.
12
Ibidem.
13
Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Tradução de
Alan Sheridan. London, Penguin, 1977, pp. 195-228.
14
Max Stirner, op. cit., p. 312.
15
Idem., p. 213.

128
verve
Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana

16
Ibidem.
17
nota 17: Michel Foucault. “Revolutionary Action: ‘Until Now.’” in Langua-
ge, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ed. Donald
Bouchard. Oxford: Blackwell, 1977, p. 221.
18
Michel Foucault. “The Subject and Power.” Michel Foucault: Beyond Struc-
turalism and Hermeneutics. By Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow. Chicago,
University of Chicago Press, 1982, pp. 208-226.
19
Idem, p. 221.
20
Michel Foucault, op. cit., 1977, p. 30.
Michel Foucault. “What is Enlightenment?” The Foucault Reader. Ed. Paul
21

Rabinow. New York, Pantheon, 1984, p. 42.


22
Idem, pp. 41-42.
23
Michel Foucault, op. cit., 1982, p. 216.
24
Ethics: Subjectivity and Truth. Essential Works of Michel Foucault, 1954-
1984. Ed. Paul Rabinow. Trad. Robert J. Hurley. Vol. 1. London, Penguin,
1997. p. 288.
25
Idem., 1997, p. 284.
26
Michel Foucault. The Use of Pleasure: The History of Sexuality, Volume 2.
Tradução de Robert Hurley. New York, Pantheon, 1985, pp. 29-30.
27
Michel Foucault. Kant on Enlightenment and Revolution. Tradução de Colin
Gordon. Economy and Society 15.1, 1986, pp. 88-96.
28
Michel Foucault, op. cit. 1984, p. 46.
29
Max Stirner. op. cit., p. 161.
30
Idem, pp. 279-180.
31
Ibidem, p. 135.
32
Idem, p. 324.
33
Ibidem, p. 152.
34
Idem, p. 151.
35
Ibidem, p. 147.

129
7
2005

RESUMO

A filosofia universalista de Kant é problematizada por meio das


intensas aproximações entre as reflexões de Max Stirner e Michel
Foucault, as noções de propriedade de si e cuidado de si, e os
desdobramentos políticos de resistências disseminando éticas de
liberação. A atualidade de Stirner e Foucault ao liberarem a liber-
dade da moral.

Palavras-chave: Propriedade de si, cuidado de si, liberação.

ABSTRACT

The universalist philosophy of Kant is questioned when faced


with the reflections by Max Stirner and Michel Foucault, the con-
cepts of property of the self and care of the self, and the political
unfold of resistances that spreads ethics of liberation. The verve
of Stirner and Foucault when they free liberty from moral.

Keywords: Property of the self, care of the self, liberation.

Indicado para publicação em 1 de março de 2004.

130
verve

as vozes ardem
contra a mente
esta noite

e lá fora a chuva
é o silêncio
de todas as coisas

Sergio Cohn

131
7
2005

mujeres libres: anarco-feminismo e


subjetividade na revolução espanhola

margareth rago*

Que el pasado se hunda en la nada!


Qué nos importa del ayer?
Queremos escribir de nuevo
la palabra MUJER!

Hino das Mujeres Libres, de Lucía Sanchez Saornil, 1937.

Não é novidade dizer que as experiências femininas


na Revolução Espanhola, entre 1936 e 1939, foram obscu-
recidas por narrativas que não valorizam a dimensão do
gênero. Na tradição histórica que se constituiu em nosso
país, por exemplo, os estudos sobre esse importante movi-
mento revolucionário foram marcados por um olhar que
não só privilegiou a atuação dos homens, como deu maior
visibilidade às lutas antifascistas, focalizando, na maior
parte das vezes, grupos comunistas e trotskistas em luta

* Professora no Departamento de História da Unicamp.


verve, 7: 132-152, 2005

132
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

contra os franquistas, apesar do reconhecimento da parti-


cipação de outros setores políticos importantes, como os
anarquistas. Daí a grande desinformação a respeito das
criações revolucionárias, nesse movimento político e so-
cial, tanto quanto sobre a atuação das mulheres. Como
observa Shirley Mangini, saindo dos marcos nacionais:
“Dos milhares de artigos e livros sobre a Guerra Civil
espanhola, poucos contêm informações sobre o papel das
mulheres na guerra e no período seguinte, exceto algu-
mas descrições ou simples referências em notas de roda-
pé. E, no entanto, (...) a oportunidade mais revolucionária
para a emergência das mulheres na cena intelectual e
política ocorreu nesse momento.”1
Para muitos e muitas, portanto, a Revolução Espanhola
constitui um marco histórico fundamental, pelas rupturas
profundas que promoveu na ordem social burguesa e pelas
possibilidades de invenção da liberdade que revelou ao
mundo capitalista, especialmente com suas experiências
autogestionárias nas cidades e nos campos. Muitos
militantes libertários, entre mulheres e homens, ainda
hoje, indignam-se com esse esquecimento, pois compar-
tilham o sentimento de terem participado de uma
“genuína revolução popular, como dificilmente se repetirá
na História”, como afirmou um deles, em entrevista
recente.2 Afinal, os anarquistas tinham construído toda
uma história de resistências e lutas, formado gerações
no mundo do trabalho com seus ateneus, bibliotecas,
escolas modernas, centros culturais e grupos artísticos,
e já tinham 70 anos, quando surge o Partido Comunista
Espanhol.
“Para os anarquistas tudo se referia à Espanha de 1936,
1939, tudo era exemplificado com a Espanha. Só que ha-
via uma diferença. Entre os anarquistas, muitos partici-
param da Guerra Civil na Espanha, realmente ...” obser-
va, em suas lembranças, Maurício Tragtenberg.3

133
7
2005

Evoco, ainda, a memória de duas militantes libertári-


as, profundamente, comprometidas com a preservação
histórica dessas lutas: a espanhola Federica Montseny
e a escritora italiana Luce Fabbri. A primeira, prota-
gonista dos eventos revolucionários da Espanha, foi
nomeada ministra da Saúde e da Assistência Social,
no gabinete de Francisco Largo Caballero, em novem-
bro de 1936; como tal, propôs implementar uma am-
pla reforma na saúde, descentralizando o atendimen-
to médico, reorganizando os hospitais, legalizando o
aborto, criando casas para abrigar as mulheres ca-
rentes.4 A segunda, radicada no Uruguai, acompanhou
entusiasticamente cada minuto da Revolução, mobi-
lizando diversos tipos de apoio e solidarização em seu
meio; produziu, além de vários artigos políticos para
os jornais libertários, uma coletânea intitulada 19 de
Julio, com o pseudônimo de Luz D. Alba, em que reúne
depoimentos e outros documentos de vários comba-
tentes, testemunhando as criações coletivas da Re-
volução, a coletivização das fábricas e dos campos, a
reforma pedagógica, assim como as perseguições e as
mortes ocorridas no processo político revolucionário.5
A primeira registra o evento em sua autobiografia
e reivindica sua reatualização no presente:
“As semanas vividas em Madri naquele período,
aqueles meses de novembro e dezembro de 1936 per-
manecem em minha memória como os mais extraor-
dinários de minha vida. Ver todo um povo espontane-
amente mobilizado, trabalhando febrilmente para or-
ganizar sua defesa não é um fato histórico que se veja
todos os dias”, afirma em Mis primeros cuarenta años.6
Do mesmo modo, Luce Fabbri se refere à Revolu-
ção Espanhola como o acontecimento mais marcante
de seu passado: “Foram três anos em que vivemos

134
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

mais na Espanha do que aqui, com o coração; na rea-


lidade, tudo o mais havia desaparecido...”.7
Não são apenas as histórias da desapropriação das
extensas propriedades de terra e da autogestão efetiva-
da por milhares de pessoas nas fábricas e nos campos,
que mal conhecemos. Muitas experiências sociais e
culturais, como as promovidas pela Agremiação anar-
co-feminista “Mujeres Libres”, fundada por três ativis-
tas libertárias, também foram silenciadas por várias
décadas e, na verdade, vieram à tona, em grande parte,
pela ação de suas próprias antigas militantes, desde o
final do franquismo, em 1975.8
Em linhas gerais, a história desse grupo anarco-fe-
minista começa em abril de 1936, às vésperas da eclo-
são da guerra civil, quando três combativas anarquis-
tas, a jornalista e poetisa Lucía Sanchez Saornil, a ad-
vogada Mercedes Comaposada e a médica Amparo Poch
y Gascón se unem para criar o grupo “Mujeres Libres”,
dedicado à luta pela emancipação feminina no mundo
do trabalho.
Lucía Sanchez Saornil, nascida em Madri, em 1895,
trabalhara na Companhia Telefônica de Barcelona e
durante uma série de greves de que participa, adere à
CNT – Confederação Nacional do Trabalho, de orienta-
ção anarquista. A partir daí, radicaliza sua participa-
ção, escrevendo nos periódicos libertários Solidaridad
Obrera e Tierra y Libertad. Em fins de 1935, anuncia seu
projeto de criação de uma agremiação política dedicada
à causa das mulheres. Mercedes Comaposada, filha de
um ativo sapateiro anarquista, nasce em Barcelona, em
1901, e aprende desde cedo a montar películas; mais
tarde, ao participar da CNT – Confederação Nacional do
Trabalho, encontra o escultor Balthasar Lobo, a quem
se une. Enquanto advogada, desgostosa com o compor-
tamento dos trabalhadores num curso que oferecia em

135
7
2005

um dos sindicatos da CNT, em 1933, encontra Lucía,


com quem logo passa a discutir a questão feminina no
anarquismo. Amparo Poch y Gascón, nascida em Sara-
goça, em 1902, torna-se médica pediatra e também as-
sina como a Dra. Salud Alegre. Assim como as outras
duas, defende a liberdade sexual, a maternidade cons-
ciente e o aborto.9
As três libertárias já traziam uma bagagem política
expressiva, como militantes de esquerda, tanto quanto
ideais feministas, sobre os quais escreviam nos jornais
Tierra y Libertad e Solidaridad Obrera, ou nas revistas
Estudios, Generación Consciente e Umbral. Revoltavam-
se com as dificuldades e com a opressão sexual enfren-
tadas pelas mulheres pobres, mesmo no meio libertá-
rio, mais oxigenado, em que eram solicitadas e incenti-
vadas a participar no espaço público. Desde o último
quarto do século XIX, os anarquistas haviam consegui-
do forte penetração social, fundando sindicatos, criando
ateneus libertários, promovendo inúmeras atividades
culturais por toda a Espanha. Apesar de suas críticas
contundentes às instituições sociais, como a Igreja e a
família, apesar dos ataques ao casamento, às desigual-
dades sexuais, à educação coercitiva para as crianças,
na prática, a situação feminina continuava fortemente
opressiva e poucas melhoras haviam sido feitas.
Portanto, quando o pequeno grupo se constitui, não
demora a encontrar-se com outras companheiras, que
também começavam a atuar em Barcelona, na “Agru-
pación Cultural Feminina”, formada por anarquistas
como Pilar Grangel, professora racionalista e militante
da CNT e Áurea Cuadrado. Rapidamente, novos grupos
locais são criados por toda a Espanha e inúmeras mu-
lheres aderem à organização. Muitas são operárias anal-
fabetas; outras autodidatas, como Lola Iturbe, ou forma-
ram-se nos ateneus libertários. Espanholas, na grande

136
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

maioria. A anarquista Etta Federn, por sua vez, vinha


da Alemanha e também opta por unir-se ao grupo.
Mudar as condições de existência das mulheres po-
bres da Espanha, capacitando-as para o trabalho e para
a vida pública, retirando-as do confinamento doméstico
e do obscurantismo religioso, proporcionando-lhes mei-
os práticos para a participação na vida social, política e
cultural foi uma preocupação constante nas propostas e
realizações do Grupo. Assim, além do “Instituto Muje-
res Libres” e das centenas de agrupamentos locais es-
palhados pelo país, elas fundam o “Casal de la Dona Tra-
balladora”, no Paseo de Gracia, em Barcelona, espaço
cultural destinado aos cursos, palestras e oficinas que
realizam para cerca de 600 mulheres. No bairro de Sans,
nesta cidade, criam um “Instituto nocturno”, também
chamado “Mujeres Libres”. Segundo um anúncio publi-
cado no jornal CNT, de 1937, ficamos sabendo que ali
eram oferecidos cursos de Aritmética, Gramática, His-
tória da Literatura, Geografia, História, Contabilidade,
Ciências Naturais, Anatomia, Idiomas, Desenho, cur-
sos de Agricultura, Puericultura, Enfermagem, forma-
ção de secretárias, mecanografia, taquigrafia, redação
e cursos em Propaganda. Além disso, poderiam estudar
mecânica na escola de transporte, entre outros ofícios
que não eram tradicionalmente oferecidos às mulhe-
res, mesmo que estas já ocupassem um largo espaço no
mercado de trabalho industrial.
Contudo, mais do que isso, a mudança que essas
militantes visavam enquanto anarco-feministas apon-
tava para a criação de novos estilos de vida, fundados
em uma ética capaz de propor novas formas de sociabi-
lidade e de produzir subjetividades mais libertárias.10
A questão da produção da subjetividade se colocou en-
faticamente, sobretudo nesse contexto revolucionário,
em que as/os anarquistas lutaram não apenas para

137
7
2005

destruir o poder político concentrado no Estado e forta-


lecido pela ajuda material de outros países, mas tam-
bém investiram fortemente para transformar radical-
mente a vida econômica, as relações sociais hierárqui-
cas e desiguais e garantir as manifestações culturais
populares. De fato, a população mobilizada, ao lado dos
libertários, transformou a luta antifascista numa revo-
lução social, como observam vários historiadores11 — e
esquecem outros — tratando de criar organismos eco-
nômicos autogestionários e de incentivar formas soli-
dárias de sociabilidade por toda a parte.
Em se tratando da experiência do “Grupo Mujeres
Libres”, as questões sociais se aliaram às lutas pela li-
bertação feminina e, nesse sentido, elas procuraram
promover novos modos de constituição de si, capazes de
subverter os códigos burgueses de definição das mulhe-
res como esposas, mães, exclusivas do lar, ou como seu
avesso. Mas não de uma maneira apenas negativa, isto
é, como formas de reação ao poder, já que essas lutado-
ras implementaram muitas iniciativas pioneiras, como
a criação de cursos de capacitação das operárias, nos
quais desejavam “despertar a consciência feminina para
as idéias libertárias”, como afirmavam; cursos de alfa-
betização e profissionalizantes, visando criar novas for-
mas de inserção social para as mulheres pobres; cen-
tros de assistência médica e de educação sexual; cre-
ches; liberatórios de la prostitución, isto é, casas
destinadas às que desejassem sair da prostituição e tam-
bém “para que as prostitutas pudessem ter tratamento
médico e orientação para melhorar suas vidas”, como
afirmava Pura Perez12, além de espaços, como os da re-
vista que leva o nome do Grupo, em que puderam refle-
tir sobre si mesmas e criar toda uma cultura feminista
entre as militantes e simpatizantes do anarquismo.

138
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

A revista, da qual existem apenas 13 números, era


escrita, feita e subvencionada só por mulheres, pois “sa-
bemos por experiência que os homens, por muito boa
vontade que tenham, dificilmente atinam com o tom
preciso”13. Abordava temas variados relativos ao universo
feminino, como maternidade consciente, prostituição,
puericultura e infância, moda, ginástica, e discutia a
constituição de uma nova moral sexual. Revelando uma
preocupação estética, para além de ética, a revista di-
vulgava as realizações do grupo, propagava as idéias li-
bertárias, chamava as trabalhadoras para a reflexão e
militância anarco-feminista.
Vale notar que as possibilidades criadas de outras
formas de produção da subjetividade não se efetivaram
num marco individualista, como se poderia supor, e aqui
recorro às conceitualizações de Foucault, pois visavam
a uma intensificação das relações consigo mesmas, mas
não no sentido corrente de uma valorização da vida pri-
vada em detrimento da esfera pública, nem no de uma
acentuação do valor do indivíduo sobreposto em relação
ao grupo.14 Longe de estimular o apego à esfera privada
como refúgio em relação ao mundo competitivo dos ne-
gócios e da política, como defendia a ideologia da domes-
ticidade contra a qual, aliás, elas se batiam, essa “cul-
tura de si” do anarco-feminismo, se assim podemos cha-
mar, passava pelo estabelecimento de novas relações
consigo, mas também com o outro, relações solidárias,
de amizade, de companheirismo político, anti-hierárqui-
cas, num meio bastante sofrido como o operário. Visa-
va, portanto, fortalecer as redes da militância política
tanto entre elas mesmas, como com os companheiros
ligados a outras entidades, sobretudo nesse momento
de intensa movimentação revolucionária em que um
novo mundo parecia totalmente possível.

139
7
2005

Essa questão não passou desapercebida para algu-


mas historiadoras, como a norte-americana Temma
Kaplan, que registra a preocupação dessas ativistas li-
bertárias com as dimensões psico-sociais, em geral ig-
noradas pelos homens. Evidenciadas em investimentos
para “ensinar as mulheres a agir politicamente, a as-
sumir posições de liderança e a desenvolver novas ima-
gens de si como povo potencialmente autônomo (...).”15
Segundo ela, esses temas escapavam aos militantes do
sexo masculino, que, como outros revolucionários, acre-
ditavam firmemente que o sucesso da Revolução em
termos econômicos e sociais levaria necessariamente
ao fim da opressão sexual e da desigualdade de gênero.
O que significa que muitas mulheres continuavam a
enfrentar imensas dificuldades tanto diante da tirania
dos pais, maridos e irmãos, quanto pela proliferação da
prole, ou pelas situações de abandono, já que eram po-
bres e sem dote.
Contudo, há que se relativizar essas afirmações, pois
mais do que em qualquer outro país, a cultura anar-
quista espanhola contou com a adesão de médicos e psi-
quiatras libertários, que lutaram pela transformação da
moral sexual conservadora e preconceituosa, tanto ide-
ologicamente, através de livros, folhetos e artigos publi-
cados na imprensa anarquista, quanto por iniciativas
práticas. A revista Estudios, por exemplo, possuía uma
seção intitulada “Consultório Psico-sexual”, em que o
Dr. Felix Martí Ibáñez, especialista em Psicologia Sexu-
al e em Sexologia, respondia às cartas dos trabalhado-
res, procurando apresentar soluções para seus proble-
mas sexuais e sentimentais, ou prestar esclarecimen-
tos sobre distúrbios físicos e psicológicos.16 O Dr. Isaac
Puente, assassinado em 1936, pelos franquistas, publi-
cava nas revistas Generación Consciente, La Revista Blan-
ca, Umbral e nos jornais Solidaridad Obrera, CNT, Tierra

140
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

y Libertad, entre outros, divulgando suas concepções fi-


losóficas e sociais libertárias.
O próprio nome escolhido pelo Grupo para se identifi-
car e ser identificado é surpreendente e revelador: “Mu-
jeres Libres” demarca com ousadia um espaço próprio,
já que assumido no contexto de uma Espanha católica,
machista e ultraconservadora, em que a liberdade fe-
minina era associada à degeneração moral pelo discur-
so religioso e pelo científico. Enquanto a Igreja abenço-
ava as mulheres puras e santificadas, associadas à
imagem de Santa Maria, os médicos burgueses, influ-
enciados pelas teorias lombrosianas da degenerescên-
cia, afirmavam cientificamente que elas haviam nas-
cido para a maternidade e para o lar. No rol das trans-
gressoras, alinhavam-se prostitutas, lésbicas, femi-
nistas, anarquistas e socialistas. Esse pensamento pre-
dominava no mundo ocidental naquele período, e vale
lembrar que até os anos 1970, não apenas no Brasil, o
termo mulher pública era sinônimo de prostituta. Nos
inícios do século XX, não era raro que costureiras, flo-
ristas, chapeleiras, trabalhadoras das fábricas de tecido
e artistas fossem percebidas como prostitutas, não ape-
nas na Espanha. Portanto, as palavras de Lucía, refle-
tindo a respeito do nome dado ao grupo são esclarecedo-
ras:
“Pretendíamos dar ao substantivo ‘mulheres’ todo um
conteúdo que reiteradamente se havia negado, e ao as-
sociá-lo ao adjetivo ‘livres’, além de nos definirmos como
totalmente independentes de toda seita ou grupo políti-
co, buscávamos a reivindicação de um conceito — mu-
lher livre — que até o momento havia sido preenchido
com interpretações equívocas, que rebaixavam a condi-
ção da mulher ao mesmo tempo que prostituíam o con-
ceito de liberdade, como se ambos os termos fossem in-
compatíveis”.

141
7
2005

Mulher e direito à liberdade são associados em seu


discurso contestador. O feminismo que defendiam, contu-
do, difere muito do feminismo liberal vigente então. Na
tentativa de diferenciarem-se das liberais, que lutavam
pelo direito do voto, pelo acesso à esfera pública, deixando
inquestionados os códigos da feminilidade da época, as
“Mujeres Libres” chegaram, às vezes, a declararem-se não-
feministas, ambigüidade que se expressa nos próprios ar-
tigos publicados em sua revista. Assim, se de um lado, a
própria revista Mujeres Libres afirmava desejar “reforçar a
ação social da mulher, dando-lhe uma nova visão das coi-
sas, evitando que sua sensibilidade e seu cérebro se con-
taminem com os erros masculinos. E entendemos por er-
ros masculinos todos os conceitos atuais de relação e con-
vivência (...)” (no.1, maio de 1936); de outro, criticava o
feminismo que, segundo elas, havia levado as mulheres à
guerra, “feminismo que buscava sua expressão fora do fe-
minino, tratando de assimilar virtudes e valores estra-
nhos (...)”.
Propunham, portanto, um outro feminismo, como dizi-
am claramente: “é outro feminismo, mais substantivo, de
dentro para fora, expressão de um modo, de uma nature-
za, de um complexo diverso frente ao complexo, à expres-
são e à natureza masculinos. Está claro que elas defendi-
am uma afirmação das mulheres e, por isso mesmo, re-
cusavam a publicação de quaisquer artigos escritos por
homens, na revista, reservando e preservando o espaço
feminino que construíam e queriam fazer expandir. Como
observam: “[a revista] quer (...) fazer ouvir uma voz since-
ra, firme e desinteressada: da mulher, porém uma voz
própria, a sua, a que nasce de sua natureza íntima (...)”
Ao mesmo tempo, se de um lado o discurso do Grupo
aparece muitas vezes como essencialista, ao invocar uma
natureza feminina diferenciada da masculina e, por isso
mesmo, capaz de trazer novas formas para modelar a vida

142
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

social e cultural, de outro, destaca-se por sua crítica ao


modelo hegemônico de feminilidade, como aparece em
vários números dessa publicação. Assim, enquanto defen-
diam a igualdade de direitos entre mulheres e homens,
também questionavam a maternidade como função es-
sencial da mulher: “que a mulher cuja vocação não for
doméstica e sua ampla realização, a maternidade, tenha
as mesmas facilidades que o homem para buscar e obter
outras oportunidades que lhe permitam conseguir sua li-
beração econômica” (n.5) Aliás, num artigo de Lucía San-
chez Saornil, que não quis ser mãe, no qual critica certas
organizações feministas, a maternidade aparece identifi-
cada negativamente pela metáfora animal. Diz ela: “(...)
recolhendo ao sentido tradicional da feminilidade, (aque-
las organizações) pretendiam que a emancipação femini-
na só estivesse no fortalecimento daquele sentido tradi-
cionalista que centrava toda a vida e todo o direito da mu-
lher em torno da maternidade, elevando esta função animal
até sublimações incompreensíveis. Nenhuma nos satis-
fez”.17
Segundo o depoimento de Sara Berenguer, dado mui-
tas décadas depois, “Mujeres Libres” foi um grupo atuante
dedicado à luta pela autonomia feminina, mas não tendo
em vista excluir a outra parte, os homens. Segundo ela, —
que se uniu a um companheiro e teve vários filhos e ne-
tos —, como um grupo revolucionário, este lutou pela
emancipação dos dois sexos. Ao comparar o “Mujeres Li-
bres” aos grupos feministas norte-americanos da atuali-
dade, delimita claramente as diferenças:
“Este não é o caso dos grupos feministas na América do
Norte e em outras partes do mundo, os quais tendem a
dispersar sua energia e seu tempo discutindo e escreven-
do acerca da teoria da opressão da “pobre mulher” pelo “ho-
mem malvado”, mantendo-se deste modo demasiado ocu-
padas para ajudar às mulheres pertencentes às classes

143
7
2005

sociais com mais desvantagens e menos oportunidades,


como são as minorias, as pessoas pobres e as mulheres
da classe operária, que necessitam de ajuda prática,
educação e informação.”18
As concepções de gênero que orientavam as práti-
cas e as representações que essas ativistas construí-
ram de si mesmas e em relação ao outro foram bas-
tante subversivas e radicais. Longe dos ideais de femi-
nilidade e de masculinidade que vigoravam na Espanha
dos anos trinta, o Grupo “Mujeres Libres” defendia o
fim das hierarquias sexuais e sociais, o amor livre, a
maternidade consciente, o direito ao aborto, além dos
direitos de acesso à cultura, ao trabalho e à educação.
Se não se pode generalizar essas concepções para to-
das as mulheres que se envolveram com o Grupo, ao
examinar a biografia das três fundadoras, observa-se
que apenas Mercedes teve um companheiro fixo, o es-
cultor Balthazar Lobo e desenhista da Revista. Lucía
viveu com sua amiga América Barroso a vida toda,
enquanto a dra. Amparo, que defendia claramente o
amor livre, não se fixou com nenhum homem. Nenhu-
ma teve filhos.
Os discursos e as práticas do Grupo soam, hoje, com
uma impressionante atualidade e parecem bem mais
próximos das questões formuladas pelo feminismo con-
temporâneo do que os de suas precursoras institucio-
nalmente reconhecidas, ou seja, as antigas feminis-
tas liberais. Num debate relativamente recente, ques-
tionando as políticas afirmativas da identidade,
Elizabeth Grosz sustenta que o feminismo precisa re-
conceitualizar o que entende por subjetividade, discor-
dando que se trata de libertar as mulheres, pois reco-
nhecer identidades seria defender uma política servil.
Segundo ela:

144
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

“O feminismo (...) é a luta para tornar mais móveis,


fluidos e transformáveis, os meios pelos quais o sujei-
to feminino é produzido e representado. É a luta para
se produzir um futuro, no qual as forças se alinham de
maneiras fundamentalmente diferentes do passado e
do presente. Essa luta não é uma luta de sujeitos para
serem reconhecidos e valorizados, para serem ou se-
rem vistos, para serem o que eles são, mas uma luta
para mobilizar e transformar a posição das mulheres,
o alinhamento das forças que constituem aquela ‘iden-
tidade’ e ‘posição’, aquela estratificação que se estabi-
liza como um lugar e uma identidade.”19
Outra conhecida feminista, Rosi Braidotti, afirma
que “figurações de subjetividade nômade, complexas e
mutantes estão aqui para ficar, e propõe abandonar o
lar, porque o lar é frequentemente local de sexismo e
racismo — um local que nós precisamos retrabalhar
política, construtiva e coletivamente.”20
E´ possível sugerir que essa discussão se encontra
em parte com as posições que, nos anos trinta, formu-
la Amparo Poch y Gascón, em seu Elogio del amor libre,
consciente dos efeitos nocivos e paralisantes da vida
doméstica e do modelo romântico de feminilidade:
“I. Eu não tenho Casa. Tenho, sim, um teto amável
para me guarnecer da chuva e um leito para que descan-
ses e me fales de amor. Mas não tenho Casa. Não quero!
Não quero a insaciável ventosa que alinha o Pensamen-
to, absorve a Vontade, mata a Imaginação, rompe a doce
linha da Paz e do Amor. Eu não tenho Casa.Quero amar
no largo ‘além’ que nenhum muro fecha e nenhum ego-
ísmo limita. (...)
Eu não tenho Casa, que tira de ti como uma incom-
prensiva e implacável garra; nem o Direito, que te limi-

145
7
2005

ta e te nega. Mas tenho, Amado, um carro de flores e


horizonte, onde o sol se põe quando tu me olhas...”21
Se pensarmos na casa, como símbolo da domestici-
dade, associado à idealização romântica da mulher
como rainha do lar, nascida para a maternidade e para
a esfera do mundo privado, ou da privação, como diz
Hannah Arendt, o discurso de Amparo soa totalmente
radical e transgressivo, aliás, como foi sua própria ex-
periência de vida.
Para Mercedes Comaposada, no entanto, “Mujeres
Libres” não era uma “entidade feminista, mas um cen-
tro de capacitação da mulher em todos os terrenos cul-
tural, econômico, social...”. Enfim, se há várias posi-
ções internas em relação à questão feminista, politi-
camente se colocam contra o sistema capitalista, pela
abolição do Estado, pela direção da economia pelos sin-
dicatos, a favor da implantação do “comunismo libertá-
rio”. No entanto, o principal alvo do Grupo foi a questão
específica da mulher, acreditando-se que a libertação
feminina era condição sine qua non para a mudança
revolucionária da sociedade. Daí, as críticas contun-
dentes aos homens anarquistas, que, segundo Lucía,
se consideram “o umbigo do mundo”.
Em relação à comunidade de mulheres que criaram,
todas se referem, em suas memórias, às fortes rela-
ções de solidariedade estabelecidas entre elas. Segun-
do Conchita Liaño: “absolutamente todas as mulheres
integrantes de MM.LL. havíamos feito da solidariedade
à mulher da Espanha um valor essencial. Tudo girava
ao redor da solidariedade, porque, volto a dizer, não ha-
via líderes. (...) Teria sido possível comparar-nos a uma
colméia de abelhas, cada qual em seu lugar desempe-
nhava sua tarefa”.22

146
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

É interessante notar como ela questiona o modo pelo


qual as mulheres então criavam seus filhos, dando pri-
vilégios especiais aos meninos em relação às meni-
nas. Segundo Liaño: “(para) nós, as fundadoras de
MM.LL., era imperativo que as mulheres compreen-
dessem que não era impossível sacudir esse condicio-
namento atávico e deviam começar a modificar os es-
quemas a partir de si mesmas e de seu próprio lar,
começando por sua descendência filial, não outorgan-
do aos varões privilégios sobre as meninas. Por que
deviam as meninas serem empregadas de seus ir-
mãos?”
Aliás, depois de um ano de existência, o Grupo con-
segue realizar a Primeira Conferência Nacional, em Va-
lência, em 22 de agosto de 1937, o que revela seu rápi-
do crescimento. Em seguida, constitui uma “Federa-
ção Nacional de Mujeres Libres”, em bases anarquistas.
A historiadora Mary Nash indica um total de 153 agru-
pamentos locais de Mujeres Libres, criados entre 1937
e 1938.
Não vinculado oficialmente a nenhum organismo
político e defendendo tenazmente a autonomia políti-
ca, “Mujeres Libres” se declarava anarquista e se dizia
identificado com a CNT – Confederação Nacional dos
Trabalhadores e FAI – Federação Anarquista Ibérica,
também anarquistas. Nem por isso as relações que
mantiveram com esses grupos políticos deixaram de
ser tensas. “Os militantes das Juventudes Libertári-
as”, em especial, tiveram muitas restrições ao grupo,
visto como separatista, pois temiam sua concorrência
na cooptação das jovens militantes femininas.
Em suas memórias, uma das participantes do gru-
po, Conchita Liaño, estranha essa atitude, afirmando
que a reação dos anarquistas em não querer reconhe-

147
7
2005

cer politicamente o grupo havia sido muito decepcio-


nante, pois até mesmo os comunistas tinham criado
uma organização feminina, a “Mujeres Antifascistas”.
No entanto, também admite que isso não os impedia
de dar-lhes um importante apoio econômico.
Outra ativista, Pepita Cárpena, afirma em suas me-
mórias: “Tampouco entendo o porquê da rejeição de
Mujeres Libres, que nunca os companheiros quise-
ram integrar em seu seio (como fizeram com a F.I.J.L.
– Federação Ibérica de Juventudes Libertárias) ape-
sar do apoio de nossa querida Emma Goldman, que
intercedeu em nossa causa”.
Em seguida, valoriza a fundação da organização:
“Quando estive entre as companheiras pude compre-
ender quão bem-fundado foi esse grupo, a visão que
tiveram e como entre todas era mais fácil expressar-
se. Não esqueçamos que ainda pesavam os precon-
ceitos sobre nós. Não é em vão que se recebe uma
educação permanente para que de repente caiam to-
dos os tabus.”23
Maria Rodrigues Gil, também militante, estabele-
ce a diferença de seu grupo com outros do mesmo pe-
ríodo: “À diferença dos setores femininos dos partidos
políticos, Mujeres Libres foi sempre uma organização
completamente autônoma da CNT e do movimento
anarquista em geral. Também, à diferença dos seto-
res femininos dos partidos ( e de todos os grupos de
feministas que eu conheci, em Mujeres Libres, as-
sim como na CNT, não existiu hierarquia de nenhum
tipo, sendo uma organização verdadeiramente anar-
quista e democrática em seu mais puro sentido, sem
permitir que a adesão ao poder ao controle frustasse
seus esforços para ajudar a mulher e a humanidade
em geral”. 24

148
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

Valendo-me de alguns conceitos de Foucault, creio


que se pode afirmar que com suas artes da existência,
ou técnicas de si e de relação com o outro profunda-
mente renovadas, feministas e libertárias, as práti-
cas do Grupo “Mujeres Libres” se conectam com nos-
sas preocupações atuais e podem, por isso mesmo,
constituir-se num importante repertório para nossa
atualidade. Vale notar que, num momento em que as
portas têm-se aberto para a participação feminina no
mundo político, cultural e social e em que o feminis-
mo é considerado, até mesmo por aqueles que pouco
se ocuparam com as questões femininas, como a úni-
ca revolução que deu certo no século XX, também cau-
sa polêmica a emergência de subjetividades ambicio-
sas, autoritárias e até mesmo bélicas, que contrari-
am as propostas libertárias do feminismo. Afinal, a
aposta maior do feminismo na importância de liber-
tação das mulheres, na conquista de seu direito à ci-
dadania vinculava-se à crença de que as mulheres
haviam passado por experiências muito diferencia-
das das masculinas, o que as aproximava mais dos
valores positivos de construção social.
Finalmente, se como propõe Gaddis, uma maneira
de valorizar a história e de mostrar suas valiosas con-
tribuições decorre de sua capacidade de oferecer ma-
pas, um pouco como os geógrafos, transmitindo expe-
riências do passado, “único banco de dados que possu-
ímos”25, então faz todo sentido ouvir atentamente o
que as “Mujeres Libres” têm a nos contar, pelo que
podem nos enriquecer e aumentar nossa capacidade
de crítica e de invenção ética.

Tradução de Elogio del amor libre, por Paula Sibilia.

149
7
2005

Notas
1
Shirley Mangini. Memories of resistance: Female Activists of the Spanish Civil War.
Chicago, University of Chicago Press/Signs, 1991, p.171.
2
Refiro-me à entrevista realizada em Barcelona, em agosto de 2001, com o anar-
quista espanhol Heleno Iturbe, filho da militante anarquista Lola Iturbe, do Grupo
“Mujeres Libres”, já falecida.
3
Maurício Tragtenberg. Memórias de um autodidata no Brasil. São Paulo, Ed. Unesp/
Escuta/Fapesp, 1999, p. 57 .
4
Patricia Greene. “Federica Montseny: Chronicler of an Anarco-feminist Genealo-
gy” in Letras Peninsulares. USA, Davidson College, fall 1997.
5
Luz D´Alba (pseudônimo de Luce Fabbri). Antologia de la Revolucion Espagnola.
Montevidéo, Colección Esfuerzo, 1937.
6
Federica Montseny. Mis Primeros Cuarenta Años. Barcelona, Plaza e Janes Ed.
S.A.,1987, p. 107.
7
Margareth Rago. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o Anarquismo contempo-
râneo. São Paulo, Editora da UNESP, 2001, p. 188.
8
É de 1991 o principal estudo sobre as “Mujeres Libres”, escrito pela historiadora
norte-americana Martha Ackelsberg, e traduzido para o espanhol apenas em 1999.
9
Recentemente foi publicada uma cuidadosa biografia de Amparo Poch y Gascon
por Antonina Rodrigo.
10
Edson Passetti. Éticas dos Amigos. São Paulo, Editora Imaginário, 2003.
11
Murray Bookchin. Los anarquistas españoles en los heroicos 1868-1936. Valencia,
Numa Ediciones, 2000.
Depoimento de Pura Perez, em 1993, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias.
12

Madrid, Fundación Anselmo Lorenzo, 1999, p. 65.


13
Carta de Mujeres Libres a Hernandez Domenech, 27 de maio de1936, apud Nash,
1981, p. 86.
Michel Foucault. História da sexualidade III. O cuidado de si. Rio de Janeiro, Graal,
14

1985, cap.II.
Temma Kaplan. “Other scenarios: Women and Spanish Anarchism”. In Renate
15

Bridenthal; Claudia Koonz. Becoming Visible. Women in European History. Atlanta,


Houghton Miffling Company, 1977, p. 418.
16
Margareth Rago. “ Es que no es digna la satisfacción de los instintos sexuales? Amor, sexo
e anarquia na Revolução Espanhola.”, in Carmen L. Soares (org.). Corpo e História.
Campinas, Editora Autores Associados, 2001, pp. 145-161.
17
Lucía Sanchez Saornil, CNT, 1937, In Mujeres Libres: luchadoras libertarias. op.cit,
p. 41.

150
verve
Mujeres libres: anarco-feminismo e subjetividade...

18
Idem, p. 101.
19
Elizabeth Grosz. “Futuro feminista ou o futuro do pensamento”, in Labrys,
estudos feministas, nos.1-2, jul-dez.2002.
20
Rosi Bradotti. “Diferença, Diversidade e Subjetividade Nômade”, in Labrys,
estudos feministas, nos.1-2, jul-dez,2002, p. 14.
Amparo Poch y Gascón, Mujeres Libres, no.3, julio 1936, in Antonina Rodrigo,
21

op. cit., p. 95-101.


“I. Yo no tengo Casa. Tengo, sí, un techo amable para resguardar-te de la lluvia y un
lecho para que descanses y me hables de amor. Pero no tengo Casa. No quiero! No
quiero la insaciable ventosa que ahila el Pensamiento, absorbe la Voluntad, mata el
Ensueño, rompe la dulce línea de la Paz y el Amor. Yo no tengo Casa. Quiero amar
en el anchucroso ‘más allá’ que no cierra ningún muro ni limita ningún egoísmo. (...)
Yo no tengo Casa, que tira de ti como una incomprensiva e implacable garra; ni el
Derecho, que te limita y te niega. Pero tengo, Amado, un carro de flores y horizonte,
donde el Sol se pone por rueda cuando tú me miras.”
22
Conchita Liaño Gil, 1994, in Mujeres Libres: luchadoras libertarias, op. cit. p. 60.
23
Idem, p. 76.
24
Ibidem, p. 102.
25
John Lewis Gaddis. Paisagens da História. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2003, p. 23.

151
7
2005

RESUMO
Partindo das questões levantadas pelas teóricas feministas pós-
estruturalistas, relativas à produção da subjetividade, focalizo a
experiência das militantes anarquistas do Grupo Mujeres Libres,
durante a Revolução Espanhola, entre 1936-39. Considerando a ampla
e revolucionária experiência política do Grupo, pergunto se e como o
anarco-feminismo praticado por elas criou um modo específico de exis-
tência, mais integrado e humanizado, já que crítico das oposições
binárias como a que hierarquiza razão e emoção, masculino e femini-
no; se e como inventou eticamente; se e como pode operar no sentido
de reatualizar o imaginário político e cultural de nossa época. Na
direção dessas colocações, os conceitos de “subjetivação” e de “ar-
tes da existência”, que norteiam as problematizações de Foucault
sobre a produção da subjetividade e inspiram as reflexões do femi-
nismo pós-estruturalista são de fundamental importância.
Palavras-chave: anarco-feminismo, subjetividade. artes da existên-
cia.
ABSTRACT
Drawing on the issues raised by post-structuralist feminist
thinkers, in relation to the production of subjectivity, I concentrate on
the experience of anarchist activists from the group Mujeres Libres,
during the Spanish Revolution from 1936-39. Considering the wide
and revolutionary political experience of the Group, I raise the ques-
tion of why and how the anarchic feminism developed by them has
created a particular way of existence, more integrated and humane,
critic of binary oppositions such as the one that hierarchizes reason
and emotion, masculine and feminine. I also present the question on
if and how anarchic feminism has invented ethically; on if and how
can it operate re-updating the political and cultural imaginary of our
time. In this way, the concepts of “subjectivation” and “arts of exis-
tence”, which direct Foucault’s problematizations on the production
of subjectivity and inspire reflections of the post-structuralist femi-
nism, are of utmost importance.
Keywords: Anarchic feminism, subjectivity, arts of existence
Recebido para publicação em 26 de junho de 2004.

152
verve
A educação anarquista na república velha

a educação anarquista
na república velha

eduardo valladares*

“Nossa missão é semear o bem, difundir a luz por meio


da instrução livre de todos os preconceitos da rotina, criar
corações que odeiem a tirania e que desde a infância
maldigam todos os exploradores.”
Kropotkin

Os temas cultura e educação eram, e continuam


sendo, de grande importância no projeto de Revolução
Social defendido pelos anarquistas. Desde o século XIX,
o movimento ácrata internacional vinha se ocupando
dessas questões, pensadas fundamentalmente como
meios de emancipação. Muitos militantes dedicaram
grande parte de suas energias à elaboração de projetos
e práticas culturais, dotados de relativa autonomia e
caracterizados por uma identidade de classe, por consi-

* Doutor em História Social pela USP, autor de Anarquismo e anti-clericalismo,


São Paulo, Imaginário-Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, v. 12,
2000. Co-autor de Revoluções do século XX, São Paulo, Scipione, 1995.
verve, 7: 153-177, 2005

153
7
2005

derá-los possuidores de um valor social indispensável


para a construção do mundo novo.
A preocupação singular, e até obsessiva, pela educa-
ção deve-se ao fato de que a ação pedagógica era vista
como um dos instrumentos fundamentais para a efeti-
vação da ação direta. O analfabetismo generalizado en-
tre os trabalhadores dificultava a divulgação das idéias
ácratas nas camadas trabalhadoras. Em muitas ocasi-
ões as vanguardas anarquistas responsabilizavam a
pouca instrução escolar pela fraca atuação dos traba-
lhadores no processo das lutas sociais.1 Por isso, a ênfa-
se dada à disseminação da instrução como fundamen-
tal para a ampliação do movimento operário.
A imprensa libertária brasileira traduzia e publicava
artigos de educadores próximos às suas posições ideoló-
gicas, noticiava as experiências educacionais de outros
países e divulgava as informações que chegavam à reda-
ção sobre assuntos culturais. O internacionalismo ca-
racterístico dos libertários, aliado à composição nitida-
mente de origem imigrante do operariado brasileiro no
início da República, fazia com que os jornais, revistas e
livros editados no exterior logo fossem divulgados aqui. O
fácil acesso à literatura pedagógica permitia que os mili-
tantes tivessem sempre um conhecimento atualizado das
tendências libertárias no campo da educação.

A escola como dominação ideológica


Camaradas! arranquemos a criança ao padre e ao
governo!2
Educar é uma ação distinta de instruir. A instrução
é apenas um instrumento, não possuindo valor em si
mesma. A instrução não estava desvinculada da luta
mais geral. Pelo contrário, “a instrução só se difunde no

154
verve
A educação anarquista na república velha

seio dos trabalhadores à medida em que estes vão avan-


çando no campo de sua emancipação”.3 Embora o domí-
nio de vários saberes seja importante no processo edu-
cativo, contribuindo para a compreensão do funciona-
mento do mundo, a educação deve ir além disso. O papel
da educação é o de criar novos costumes, transformar a
consciência humana. Em suma, contribuir para a eman-
cipação humana e a construção de uma sociedade igua-
litária. As pessoas educadas para a liberdade e igualda-
de enxergariam o mundo a partir de uma outra ótica,
bastante distinta daquela filtrada pela ideologia que jus-
tificava a dominação e a exploração. O fato de poder en-
xergar um outro tipo de sociedade é o primeiro passo
para a transformação. Dessa forma, a educação libertá-
ria não prepara a revolução, ela em si mesma já é a
revolução.
Os libertários conseguiam perceber com clareza que
todo projeto educacional é carregado de mensagem polí-
tica. As escolas atuavam como agentes de reprodução
econômica e cultural de uma sociedade cindida, ser-
vindo de instrumento de difusão ideológica. A educação
tradicional tinha como corolário inevitável a formação
de indivíduos padronizados, dóceis, profundamente au-
toritários e carregados de preconceitos e superstições.
Por isso, a escola oficial, fosse laica ou não, era refuta-
da. Ela servia apenas para incutir os valores sociais e
morais das classes dominantes.
A simples laicização do ensino também era conside-
rada de pouca utilidade. Em alguns momentos, o Estado
e a Igreja eram vistos como “aliados satânicos”, capazes
da mais íntima colaboração. Em outras ocasiões, quan-
do as divergências entre o clero e os políticos cresciam,
os anarquistas procuravam definir a atuação de ambos
como uma competição fraternal, como duas instituições
que disputavam o mesmo rebanho de explorados. As di-

155
7
2005

vergências entre o Estado e a Igreja não passavam de


uma luta pela hegemonia entre os setores dominantes.
As escolas laicas eram acusadas de simplesmente
substituírem o ensino religioso pelo político. No lugar da
dogmática catequese, as crianças escutariam a canti-
lena patriótica. A destruição de todas as manifestações
autoritárias na sociedade incluía também as religiões
institucionais. A Igreja Católica, pela força e ligação
íntima que mantinha no sistema de poder, era siste-
maticamente atacada. Uma das formas de lutar contra
o obscurantismo do clero era a criação de escolas liber-
tárias. O jornal anticlerical A Lanterna, em 1913, afir-
mava:
“O mais formidável de todos os obstáculos que se an-
tepõem à nossa propaganda de emancipação social é a
instrução clerical, mais ou menos disfarçada, que rece-
bemos na primeira infância. (....) Pois bem, depende de
nós evitar desde já que os nossos filhos contraiam o mal;
é criarmos nossas escolas, isolando-os do ambiente cor-
rompido.”4
A instrução pública generalizou-se na Europa, duran-
te o século XIX, como um importante instrumento de
promoção da nacionalidade. A nacionalidade é algo pu-
ramente abstrato e artificial, sendo necessária à recri-
ação permanente do pacto que a fundou. Dessa forma, a
educação incorporou uma importante função: a de fo-
mentar continuamente os laços de civismo que repre-
sentam o próprio orgulho da nacionalidade. O objetivo
era reunir povos de determinadas regiões sob um go-
verno comum. No contexto da época, tratava-se de incu-
tir nas amplas massas um sentimento cívico que es-
treitasse os laços políticos presentes na consolidação
dos Estados Nacionais. “A educação pública tinha, pois,
no momento de sua origem, uma função política especí-
fica e importante a cumprir — significava a manuten-

156
verve
A educação anarquista na república velha

ção e crescimento do próprio Estado — além de, é claro,


acalmar os ânimos das massas que reivindicavam me-
lhores condições sociais de vida”.5
A escola do Estado, apesar da aparência de ensino ci-
entífico e do mérito de ensinar a ler e escrever, realizava
uma completa sistematização da violência. O objetivo era
a formação de cidadãos prontos a obedecer e defender a
ordem estabelecida, seres que reproduzem sistematica-
mente a ideologia que sustenta o regime de dominação.
Os libertários brasileiros não pouparam críticas à po-
lítica educacional da República Velha. Mas, apesar de
denunciarem abertamente o descaso dos poderes públi-
cos em relação à educação, não reivindicavam verbas
públicas ou uma maior atuação do Estado no ensino. Fi-
éis às suas convicções, não empunharam a bandeira do
ensino público e gratuito. Mesmo as legislações e medi-
das que as demais correntes socialistas consideravam
um avanço eram satirizadas:
“Tem-se dado ligeiramente um grande passo decla-
rando a instrução primário gratuita, obrigatória e laica,
fechando ao padre a porta da escola, criando colégios e
liceus para meninas e senhoritas... Ninguém ignora po-
rém que se pode ensinar muitos erros e tolices de um
modo gratuito, obrigatório e laico”.6
Apesar da firme recusa da escola mantida pela esfera
pública do Estado e das instituições privadas, quase to-
das bancadas pela Igreja, não se tratava, em absoluto, da
defesa da desescolarização da sociedade. Ao recusar a
iniciativa da educação como uma obrigação do Estado ou
da Igreja, os libertários pretendiam aproximá-la da soci-
edade. A posição de Bakunin é bastante esclarecedora
sobre esse aspecto:
“Será preciso, pois eliminar da sociedade toda a edu-
cação e abolir todas as escolas? Não, de modo algum;

157
7
2005

é preciso espargir as mãos cheias a educação nas mas-


sas, e transformar todas as igrejas, todos estes tem-
plos dedicados à glória de Deus e à submissão dos ho-
mens, em outras tantas escolas de emancipação hu-
mana. (...) e para que se convertam em escolas de
emancipação e não de submissão, terão que eliminar
toda essa ficção de Deus, o eterno e absoluto escravi-
zador, e deverão fundamentar toda a educação das cri-
anças e a instrução no desenvolvimento científico da
razão, não sobre a fé; sobre o desenvolvimento da dig-
nidade e da independência pessoais, e não da piedade
e da obediência; sobre o culto à verdade e à justiça, e
antes de tudo sobre o respeito humano, que deve subs-
tituir em tudo e por todas partes o culto divino”.7
Os revolucionários deveriam ter seu próprio projeto
social, o que significava, entre outras coisas, um pro-
jeto educacional. O discurso libertário era bastante dis-
tinto do de setores das elites intelectuais da época, de-
fensoras da instrução popular como fundamental para
garantir o “desenvolvimento harmonioso do país”. A es-
pecificidade da pedagogia libertária estava na sua pro-
cura em formar indivíduos livres e preocupados com o
bem-estar social, capazes de contribuir no caminho da
transformação social. O desenvolvimento das capaci-
dades individuais não tinha como objetivo proporcio-
nar a ascensão social individual, nem, muito menos,
a harmonia entre as classes sociais. O objetivo último
era preparar o homem para viver na futura sociedade
ácrata. As crianças e os adultos eram incentivados a
serem solidários e se comportarem como irmãos. O
estímulo às atitudes fraternais estava em consonân-
cia com o princípio da solidariedade, ou ajuda mútua,
que norteava a teoria e a prática anarquistas.
A luta pela educação das massas trabalhadoras era
vista como um importante elemento na recuperação de

158
verve
A educação anarquista na república velha

instrumentos de ação social historicamente monopo-


lizados pelas classes dominantes. A educação só po-
deria estar inserida no bojo de um projeto revolucio-
nário de ruptura social. A proposta de Revolução Soci-
al implicava negação das instituições criadas pela
burguesia e seus aliados. A invenção de uma socie-
dade de homens livres não podia estar alicerçada nas
fundações do mundo que se pretendia destruir.
A explicação dos objetivos básicos da necessidade
de fundar escolas libertárias pode ser encontrada nes-
te artigo do jornal O Amigo do Povo, de 26 de novembro
de 1904:
“Trabalhadores! Alquebrados pelo exaustivo traba-
lho da oficina, do campo ou da rua: privados de recur-
sos, míseros, famintos no meio da opulência; mistifi-
cados pelo padre, iludidos pelos velhacos, perseguidos,
encarcerados, vitimados pelos malsins a soldo do Ca-
pital, deveis necessariamente velar com cuidado pelo
desenvolvimento intelectual de vossos filhos, a fim de
impedir a todo custo que neles se inocule o veneno da
resignação aos sistemáticos vexames, às costumadas
infâmias (...)
Trabalhadores, despertai! Nas escolas subsidiadas,
ortodoxas, oficiais, esgota-se a potencialidade mental
e sentimental dos vossos pequeninos com a mastur-
bação vergonhosa e constante de mentirosa solidari-
edade no trabalho, na expansão e nas calamidades pá-
trias. Depois, quando adultos, guiados pelos nefastos
ensinamentos burgueses, serão colhidos em todas as
insídias, irão lacerar as carnes em todos os espinhos
da luta brutal pelo pão: escarnecidos e vilipendiados
pelos próprios pastores da desgraça que — com seu
método interessado de inibição mental — vo-los tor-
narão toupeiras impotentes (...)

159
7
2005

Animai os promotores ou regentes de escolas racio-


nalistas, das quais sejam rigorosamente banidas as su-
perfluidades e traições do ensino ortodoxo.”8
As duas primeiras décadas do século XX foram ricas
em experiências educacionais libertárias. O projeto
anarquista era bastante ambicioso. O objetivo era a cri-
ação de um completo sistema de ensino paralelo e em
clara oposição ao sistema oficial e privado. O plano in-
cluía a criação de escolas para crianças e adolescentes,
o ensino elementar para adultos e até mesmo a funda-
ção de universidades.
A educação seria feita por meio de uma série de ini-
ciativas. A escola, apesar de sua importância, era vista
apenas como uma das formas possíveis do processo edu-
cativo. Além da criação de instituições escolares, de-
senvolveram intensa atividade cultural nos sindicatos
e em outras associações por eles criadas. Grupos de mi-
litantes formaram bibliotecas, editaram livros e jornais,
organizaram grupos de teatro e música, realizaram ex-
cursões de propaganda, incentivaram a criação de “Cen-
tros de Estudos Sociais”. Os Centros foram bastante nu-
merosos e espalharam-se por vários pontos do país. Nas
cidades mais populosas, como Rio de Janeiro e São Pau-
lo, surgiram em diversos bairros. Destinavam-se prin-
cipalmente à educação de adultos, empregando o méto-
do do “ensino mútuo”. Entre as atividades mantidas, des-
tacavam-se: a organização de cursos regulares,
conferências e representações teatrais, salas de leitu-
ra e manutenção de bibliotecas.
A montagem de um Centro de Estudos Sociais era
relativamente simples e não envolvia nenhuma buro-
cracia. Para a sua organização bastava um pequeno nú-
mero de militantes e simpatizantes dispostos a encon-
trarem um local de funcionamento, alguns móveis, or-
ganizarem uma biblioteca e uma lista de subscrição.

160
verve
A educação anarquista na república velha

A declaração de princípios do “Centro de Estudos Soci-


ais Jovens Libertários”, instalado no bairro da Barra Fun-
da em São Paulo, deixava claros os objetivos dessas orga-
nizações:
“Este Centro de Estudos Sociais propõe-se à divulgação
das teorias libertárias na massa operária, incitando à rei-
vindicação dos seus direitos conculcados e da sua digni-
dade ofendida pelos parasitas do capitalismo. A ação dire-
ta, sem intermediários, nem capitães, sem a intervenção
dos mercantes da política (verdadeiros adormentadores de
consciências e mistificadores do povo) eis a nossa tática.
A nossa ardente sede de combate pela conquista do Direi-
to universal, do bem-estar e da liberdade para todos, num
mundo governado pela liberdade, fortificado pela verdade e
coroado pela igualdade, nos fará procurar todos os meios
capazes de apressar a realização do nosso ideal e antes
quebrar do que torcer perante os obstáculos opostos pela
animosidade dos governos. Camaradas! dediquemo-nos
com ardor ao estudo do problema social, deixemos de em-
brutecer a inteligência com o álcool, boicotemos os bailes
públicos, verdadeiros focos de corrupção – e teremos con-
tribuído para dissipar as densas trevas da ignorância, te-
remos feito alguma coisa de prático.”9
Deve-se salientar também o esforço empreendido na
fundação da “Universidade Popular de Ensino Livre”, em
março de 1904, no Rio de Janeiro. A Universidade, que foi
uma das mais arrojadas iniciativas dos anarquistas, ti-
nha por objetivo ministrar um ensino superior e funcio-
nar como centro de lazer e cultura para o proletariado.
Contudo, teve curta duração, em outubro a imprensa li-
bertária anunciava o seu fechamento.
A preocupação com a criação de associações de caráter
educativo era apresentada como alternativa aos locais
considerados como templos da perdição: as tabernas e
as igrejas.

161
7
2005

“(...) um pequeno ponto de apoio poderia ser a criação


de um Centro de Estudos Sociais, onde o operário troca-
rá seus hábitos de tavernas, igreja e jogos de todas as
classes, trindade estúpida que o embrutece e o desmo-
raliza, pelo estudo constante da Sociologia.”10
Na base da sociedade ácrata, encontra-se o princípio
do acordo livre. A capacidade de “agir por si mesmos”,
sem qualquer determinação e tutela de chefes era um
dos principais elementos na formação da consciência
anárquica. A aplicação do princípio da autogestão11 das
organizações escolares só podia ser um dos aspectos cen-
trais do projeto pedagógico anti-autoritário. A tarefa de
educar, com todas as responsabilidades que isso signi-
ficava, era algo que deveria ser assumido pela própria
comunidade. Os conteúdos, a carga horária, a metodo-
logia, as taxas, os pagamentos dos professores, enfim,
tudo que se referia à escola deveria ser resolvido por
aqueles que estavam envolvidos no projeto escolar. Ou-
tro aspecto importante da autogestão pedagógica é que,
ao mesmo tempo em que se realiza o ensino formal pro-
priamente dito, também se faz o aprendizado sócio-polí-
tico da construção coletiva da liberdade.
A dependência dos cofres públicos era considerada
uma heresia. Por outro lado, as mensalidades cobra-
das não eram suficientes para cobrir as despesas. As
taxas não podiam ser muito altas, já que isso dificul-
taria o acesso dos filhos do trabalhador. A necessida-
de de envolver os alunos, os pais e a comunidade em
geral na manutenção financeira das instituições es-
colares era a única maneira de garantir a autonomia
do projeto pedagógico libertário. Os meios para anga-
riar fundos eram aqueles tradicionalmente usados pelo
movimento para manter as suas associações: festas,
quermesses, conferências, listas de subscrição, ven-
da de livros, etc.

162
verve
A educação anarquista na república velha

“Em 1914, as mensalidades na Escola Moderna nº 1


eram de 3$, 4$, 5$, de acordo com o grau de adianta-
mento do aluno (O Início, nº 1, 5/set/1914). Em 1915, os
preços continuavam os mesmos. A Escola Moderna n.º 2
cobrava 3$ para o 1º ano primário e 4$ para os demais.
Os preços das aulas noturnas eram estipulados em co-
mum acordo entre o professor (Adelino de Pinho) e os
alunos. Na Escola Nova, de Florentino de Carvalho, as
mensalidades do curso diurno eram de 3$ para o 1º ano,
4$ para os demais e, do noturno: 4$ para menores e 5$
para adultos.”12
Os anarquistas não superestimavam o papel da es-
cola. Ela era apenas uma das organizações sociais ca-
pazes de conduzir à sociedade igualitária. O mundo do
futuro tinha na escola de pedagogia libertária um ponto
de apoio, mas não começava nem terminava nela.
A luta pela causa da educação antidogmática tornou-
se uma das bandeiras de luta dos anarquistas. Porém,
apesar da afirmação da neutralidade política das esco-
las mantidas pelos anarquistas, a prática pedagógica
estava impregnada de objetivos políticos. Os alunos eram
sensibilizados com os problemas dos oprimidos e incen-
tivados aos trabalhos de propaganda. A educação tinha
a importante função de combate à alienação, devendo
contribuir para o desmascaramento da ideologia de do-
minação.
Os anarco-sindicalistas valorizavam, e muito, a ques-
tão educacional. No jornal A Voz do Trabalhador –— ór-
gão da Confederação Operária Brasileira –— com gran-
de freqüência apareciam artigos sobre a questão edu-
cacional e cultural. A educação oficial e confessional
era vista como uma ferramenta para a formação do tra-
balhador disciplinado. A escola tradicional era acusada
de ser reprodutora dos preconceitos patrióticos, das con-
venções sociais, das superstições e dos dogmas religio-

163
7
2005

sos. O ensino ministrado nessas escolas era pernicio-


so, deturpado e irracional.
A importância da questão pode ser também percebida
pelas resoluções e decisões dos Congressos Operários pro-
movidos pelos anarco-sindicalistas.
No Primeiro Congresso Operário Brasileiro, em 1906,
a preocupação com a questão escolar foi um dos pontos
que chamou a atenção dos delegados. Além de denunciar
as instituições educacionais burguesas, conclamava os
operários a criar escolas da classe, vinculadas a sindica-
tos e federações.
“Tema 7:
Conveniência de que cada associação operária sustente
uma escola laica para os sócios e seus filhos, e quais os
meios de que deve lançar mão para esse fim?
Considerando que o ensino oficial tem por fim incutir
nos educandos idéias e sentimentos tendentes a fortifi-
car as instituições burguesas e, por conseguinte, contrá-
rias às aspirações de emancipação operária, e que nin-
guém mais que os próprios operários interessam-se em
formar livremente a consciência de seus filhos;
O ‘Primeiro Congresso Operário Brasileiro’, aconselha
aos sindicatos operários a fundação de escolas apropria-
das à educação que os mesmos devem receber, sempre
que tal seja possível; quando os sindicatos não puderem
sustentar escolas, deve a Federação local assumir o en-
cargo.”13
O II Congresso Operário Brasileiro, realizado em 1913,
também adotou posições claramente contra o ensino for-
necido pelas escolas mantidas pelo Estado e pela Igreja,
aprofundando a questão em alguns pontos. O próprio título
adotado — Educação e instrução das classes operárias —
já demonstra o interesse em ampliar o debate, tratando o

164
verve
A educação anarquista na república velha

assunto a partir de duas categorias distintas mas interli-


gadas. Os delegados presentes reafirmaram a necessida-
de dos sindicatos em assumirem a educação dos adultos e
das crianças. A utilização do “método racional e científico
das escolas racionalistas” foi explicitamente aconselha-
do. Porém, apesar da resolução aprovada, defender a ado-
ção dos princípios de Ferrer descartava um dos pontos mais
importantes na concepção pedagógica do pensador espa-
nhol: a co-educação de classes. A preocupação era basica-
mente com a educação e instrução das classes operárias.
O aditivo aprovado, de autoria de José Romero e
Astrogildo Pereira, demonstra um certo cuidado em
incluir pressupostos de outros educadores anarquis-
tas. A preocupação com uma educação complementar
técnica e artística, que vinculasse a atividade manu-
al ao trabalho intelectual, está mais próxima do pen-
samento pedagógico de Paul Robin.
“Décimo Primeiro Tema:
Educação e instrução das classes operárias
Moção Aprovada
Considerando que a instrução foi até época recen-
te evitada pelas castas aristocráticas e pelas igrejas
de todas as seitas, para manterem o povo na mais ab-
soluta ignorância, próxima à bestialidade, para me-
lhor explorarem-no e governarem-no;
Considerando que a burguesia, inspirada no misti-
cismo, nas doutrinas positivistas e nas teorias mate-
rialistas, sabiamente invertidas pelos cientistas bur-
gueses, os quais metamorfoseiam a ciência, segundo
os convencionalismos da sociedade atual, e monopo-
lizam a instrução, e tratando de ilustrar o operariado
sobre artificiosas concepções que enlouquecem os cé-
rebros dos que freqüentam as suas escolas, desequi-

165
7
2005

librando-os com os deletérios sofismas que constituem


o civismo ou a religião do Estado;
Considerando que esta instrução é ministrada junta-
mente com a educação prática de modalidades que estão
em harmonia com a instrução aplicada;
Considerando que esta instrução e educação causam
males incalculavelmente maiores do que a mais suína
ignorância e que consolidam com mais firmeza todas as
escravizações, impossibilitando a emancipação sentimen-
tal, intelectual, econômica e social do proletariado e da
humanidade;
Considerando que este ensino baseia-se no sofisma e
afirma-se no misticismo e na resignação; este Congresso
aconselha aos sindicatos e às classes trabalhadoras em
geral, tomando como princípio o método racional e cientí-
fico, promova a criação e vulgarização de escolas raciona-
listas, ateneus, revistas, jornais, promovendo conferênci-
as e preleções, organizando certames e excursões de pro-
paganda instrutiva, editando livros, folhetos, etc, etc. João
Crispim e Rafael Serrano Muñoz, da Federação Operária
de Santos. Antonio Venosa, do Sindicato dos Pedreiros e
Serventes, de Santos. Artur Conde, do Sindicato dos Can-
teiros, de Ribeirão Pires. Pedro Vila, do Sindicato dos Tra-
balhadores em Fábricas de Tecidos. do Rio.”
Essa moção foi aprovada com o seguinte aditivo:
“Propomos que, além de escolas racionalistas, seja
aconselhada a criação de cursos profissionais de educa-
ção técnica e artística. Jozé Romero, do Sindicato Operá-
rio de Ofícios Vários. de S. Paulo. Astrojildo Pereira, de O
Trabalho, de Bajé.”14
O sistema educacional criado e mantido pelos anarco-
sindicalistas sofreu patrulhamento constante, tanto pela
Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum.

166
verve
A educação anarquista na república velha

As experiências educacionais foram atingidas pela repres-


são policial, incentivada pelo clero. A escola era denun-
ciada como instrumento de dominação ideológica e de
disciplina da criança, transformando os educandos em
seres passivos. Os pequenos eram desde as primeiras
letras amalgamados para crer, obedecer e pensar de acordo
com os ditames dos dominadores.15
Os conteúdos eram também denunciados como mora-
listas e descompromissados com a realidade dos traba-
lhadores. Nas escolas anarquistas existia a preocupação
em manter viva a memória das datas significativas para
a história dos oprimidos. Os libertários procuravam cons-
truir sua própria concepção de passado através de pales-
tras, recitais de poesia, redações publicadas nos jornais
da própria escola, da ação de grupos teatrais libertários,
corais e grupos musicais. As datas mais festejadas ou
lembradas foram: o 1º de maio (Dia do Trabalhador), o 18
de março (Comuna de Paris), o 13 de maio (Libertação
dos Escravos1), o 14 de julho (Tomada da Bastilha), o 13
de outubro (Fuzilamento de Ferrer).16

Francesc Ferrer

As idéias do catalão Francesc Ferrer i Guàrdia (1859-


1909) ocuparam um espaço destacado na imprensa li-
bertária internacional, com praticamente todos os jor-
nais fazendo referências às suas obras e incentivando a
criação de Escolas Racionalistas.
Para Ferrer, as salas de aula, além de terem ambos
os sexos convivendo e aprendendo juntos, deveriam abri-
gar crianças de classes sociais diferentes. O ódio de clas-
ses, a revolta ou adesão não deveriam ser incutidos nos
cérebros dos pequenos, pois são sentimentos adultos que
exigem um determinado conhecimento social, inaces-
sível para eles. A educação de crianças burguesas e

167
7
2005

proletárias deveria ser feita conjuntamente e tendo como


base um ensino racional. Dessa forma, elas seriam ca-
pazes de descobrir juntas as injustiças sociais e desen-
volveriam o sentimento de solidariedade entre elas. Ao
se tornarem adultas, ricos e pobres, teriam clareza das
desigualdades e se rebelariam contra elas.
Os grupos ácratas que se apropriaram da obra pedagó-
gica de Ferrer descartavam ou davam muito pouco des-
taque aos aspectos considerados ranços liberais do pen-
sador catalão. As prioridades eram a divulgação dos prin-
cípios mais combativos em favor da luta pela emancipação
do proletariado e os pronunciamentos que atacassem
abertamente o papel reacionário da Igreja e do Estado.
Ferrer fundou, em outubro de 1901, a primeira Escola
Moderna em Barcelona. O clero reagiu com indignação,
com o bispo de Barcelona chegando a afirmar que prefe-
ria ver os filhos de seus fiéis num bordel do que numa
Escola Moderna. As aulas tiveram início com 30 alunos,
12 meninas e 18 meninos. “No ano de 1905, a Escola
Moderna tinha 147 sucursais, na província de Barcelo-
na, três anos depois, 1 mil alunos em 10 escolas de Bar-
celona e Capital. Criaram-se escolas na Espanha (Madri,
Sevilha, Málaga, Granada, Cadiz, Córdoba, Palma, Valên-
cia), Portugal, Brasil, Lausane e Amesterdam.”17
Em 31 de maio de 1906, em Madri, uma bomba foi
atirada contra o carro do rei espanhol Afonso XIII. O
autor do atentado, Mateo Morale, era um ex-funcioná-
rio da Escola Moderna de Barcelona. Ferrer foi preso,
acusado de envolvimento, e a escola teve de cerrar suas
portas. A imprensa conservadora, principalmente a cle-
rical, moveu intensa campanha contra o pedagogo, exi-
gindo a pena de morte. Devido à falta de provas, um
tribunal civil o absolveu e, em junho de 1907, foi liber-
tado. Porém, não lhe permitiram reabrir a escola pio-
neira.

168
verve
A educação anarquista na república velha

Livre das acusações, colocou-se à testa de movimen-


to internacional de grande envergadura e repercussão
que procurou romper com os moldes conservadores que
imperavam no processo ensino-aprendizagem. Em Bru-
xelas, em abril de 1908, passou a publicar a revista L’
École Renouvée, considerada “extensão internacional da
Escola Moderna de Barcelona”. Por sua iniciativa foi cri-
ada, no mesmo ano, a Liga Internacional para Educação
Racional da Infância, com sede em Paris. A Liga rece-
beu o apoio de grandes personalidades: Máximo Gorki,
Anatole France, Bernard Shaw, o líder socialista Aristi-
de Briand, o biólogo Ramón y Cajal (Prêmio Nobel), o his-
toriador do sindicalismo espanhol Anselmo Lorenzo e
outros. Além de possuir um órgão próprio na França, L’
École Renouveé, e na Itália, Scuola Laica, possuía tam-
bém seções na Suíça, Bélgica, Alemanha, Inglaterra,
Holanda e Portugal.
No entanto, as forças conservadoras não desistiram
e continuaram acusando Ferrer de ser instigador de
vários complôs, além de ensinar e recomendar em suas
escolas o uso de bombas de dinamite.18
Após encontrar-se com Kropotkin em Londres, retor-
nou, no início de 1909, com sua família para a Espanha,
fixando residência em Alella. Porém, não teria muito
tempo para desfrutar o retorno ao seu local de nasci-
mento. A Catalunha logo levantou-se numa sangrenta
e radical rebelião. Acusado de liderar os acontecimen-
tos revolucionários da “Semana Trágica de Barcelona”,
foi julgado por um Conselho de Guerra e condenado à
morte. No dia 13 de outubro de 1909 foi fuzilado.
Após a sua morte, o criador da Escola Moderna tor-
nou-se um grande “mártir do pensamento livre”, em
particular do movimento anarquista internacional. O ato
brutal do governo espanhol incentivou ainda mais a dis-
cussão de suas concepções pedagógicas. Manifestações

169
7
2005

e homenagens à sua memória foram constantes nos


jornais anticlericais e anarquistas.

As escolas modernas no Brasil

Nas escolas criadas pelos anarquistas brasileiros nas


primeiras décadas do século XX, encontra-se de manei-
ra marcante a influência da obra de Ferrer. As propos-
tas da Escola Moderna entravam em choque frontal com
a Igreja, detentora de um grande aparato educativo.
O Ensino Racional era baseado exclusivamente nas
ciências positivas, as únicas capazes de apontar em di-
reção à liberdade e ao desenvolvimento. O ideário peda-
gógico tinha como principais eixos a valorização da Ci-
ência, da Liberdade e da Solidariedade. O ensino religi-
oso, assim como qualquer tentativa de imposição
dogmática ou explicação metafísica, seria rechaçado. A
crença e a educação religiosas encaminhariam o ho-
mem em direção à escravidão e levariam à estagna-
ção da sociedade. O objetivo era a formação de pes-
soas instruídas, justas e livres de todo preconceito.
Numa conferência realizada em 1910, Maurício de
Medeiros apontou o combate aos preconceitos religio-
sos como um dos elementos da superioridade do Ensi-
no Racionalista.
“Ele combate o preconceito religioso, o obscuran-
tismo aviltante da alma humana, preso às criações
fantasistas sobrenaturais. Que importa ao homem a
moral religiosa se ela não o inibe de cometer atos de-
gradantes à natureza humana? Na moral religiosa é
bom quem crê, e mau quem não crê; no entanto aí
estão os fatos a provarem a insanidade dessa afirma-
ção.”19

170
verve
A educação anarquista na república velha

Ou como afirmava o Boletim da Escola Moderna, de


maio de 1919:
“Banir dogmas é um dever que se impõe. A escola
não é um templo religioso nem um centro político. É
um cadinho onde são purificados os espíritos para se
tornarem livres e independentes e não sectários de
mentiras e embustes. O seu fim é esse: a perfeição
do indivíduo.”20
O desenvolvimento da aptidão individual era o cen-
tro do processo educativo. O respeito às iniciativas da
criança eram o pré-requisito fundamental no proces-
so de aquisição do conhecimento. A individualidade
de cada uma delas deveria sempre imperar. A coope-
ração deveria sobrepujar sempre as tendências de com-
petição, a solidariedade substituir o egoísmo. O pro-
cesso educacional tradicional, que busca moldar to-
das elas de acordo com os dogmas religiosos e
seculares, era visto como prejudicial e radicalmente
refutado.
A valorização da criança e o respeito às suas inicia-
tivas teve como conseqüência a necessidade de repen-
sar o papel do professor na sala de aula. A diminuição da
autoridade do professor implicava na valorização do edu-
cando. O papel do educador era de auxiliar seus alunos
para que eles pudessem realizar as suas aptidões natu-
rais.
“O mestre deixa de ser na Escola Moderna a autori-
dade ríspida, que ordena, para ser o companheiro cari-
nhoso que guia. Os ensinamentos são vindos ao acaso
dos fatos, guiados por estes.
Ao mestre cabe, então, habilmente ir preparando as
oportunidades de tais ensinamentos. A criança por si,
deduz do fato as conclusões que lhe parecerem justas,
se a tanto chega a sua inteligência, ou, em caso contrá-

171
7
2005

rio, limita-se a registrá-las. Nunca, porém, intervirá o


juízo formado pelo professor desviando o julgamento da
criança, antes que este se faça.
Assim se evitarão os preconceitos.”21
O tom anticlerical e cientificista presente na pro-
posta pedagógica das Escolas Racionalistas também
atraía pessoas não necessariamente ligadas às corren-
tes anarquistas. Por comungarem com alguns destes
pontos de vista, pequenos comerciantes, intelectuais das
classes médias, jornalistas da imprensa operária, etc.,
também incentivaram e colaboraram na manutenção
das escolas.
As Escolas Modernas, assim como as demais organi-
zações libertárias, enfrentaram oposição cerrada da Igre-
ja e do governo.22 A imprensa católica desencadeou uma
verdadeira guerra contra tais estabelecimentos. Os ata-
ques foram constantes durante todo o período em que as
escolas existiram. No folheto “Ferrer X Mártir ou Pati-
fe”, de Frei Pedo Sinzig, relata-se a presença desse reli-
gioso numa reunião anarquista realizada em Petrópo-
lis, quando foram feitas denúncias contra o pensador
espanhol que os promotores do encontro, segundo o au-
tor, não foram capazes de responder. No final do opúscu-
lo, o Frei Pedo vangloriava-se de ter impedido a criação
de mais uma Escola Moderna:
“(...) Sabem o que quer dizer escola moderna? Relei-
am a transcrição na página 6 da circular de Ferrer, que
aí bem explica o que pretende ensinar à infância.
‘Para não assustar a gente escreve Ferrer, em 1901,
a um seu amigo para evitar a intervenção do governo,
chamo minhas escolas de modernas em vez de anar-
quistas. Minha propaganda tem por fim, confesso fran-
camente, educar nestas escolas anarquistas convenci-
dos. Meu desejo é preparar a revolução. Por enquanto

172
verve
A educação anarquista na república velha

temos de contentar-nos em plantar nos cérebros da


mocidade a idéia de transformação violenta. Ela deverá
aprender, que contra a polícia e a tortura há um só meio:
a bomba ou o veneno.’
E esta escola moderna, já funcionando no Rio, em
São Paulo, e em Minas, devia ser fundada, a 12 de outu-
bro de 1913, também em Petrópolis! Graças a Deus que
por enquanto isso não foi feito.”23
A imprensa libertária e anticlerical revidava os ata-
ques, acusando os conservadores de detratores e men-
tirosos. O clero era denunciado como responsável pela
difusão de valores que serviam apenas ao interesse dos
dominadores. Na defesa dos seus privilégios, os padres
negam a ciência e a “verdadeira cultura”. No primeiro
número do Boletim da Escola Moderna, publicado em 13
de outubro de 1918, havia um texto de Ferrer escrito
em 1907:
“(...) Primeiro que tudo desejamos advertir o público
que, sendo a razão e a ciência antídoto de todo o dogma,
na nossa escola não se ensinará religião alguma. Sabí-
amos que esta declaração provocaria o ódio da casta sa-
cerdotal.”24
O recrudescimento nas manifestações operárias, no
final da década de 1910, fez com que os setores conser-
vadores ampliassem sua oposição às organizações ope-
rárias e, em especial às lideranças libertárias. As gre-
ves e outras manifestações foram duramente combati-
das. As autoridades procuravam um pretexto para
justificar o endurecimento policial.
A explosão de uma bomba, em outubro de 1919, no
bairro do Brás em São Paulo, causou a morte de quatro
militantes anarquistas. O jornal libertário A Plebe apre-
sentou a tese de que poderia tratar-se de uma provoca-
ção policial. Por sua vez, a imprensa paulista conserva-

173
7
2005

dora não perdeu a oportunidade: denunciou a existên-


cia de uma trama revolucionária e exigiu providências.
As autoridades policiais, alertadas, iniciaram uma gran-
de campanha de perseguições, prisões e deportações.25
A repressão acabou atingindo as escolas mantidas
pelos libertários. A Secretaria de Justiça, em 1920, atra-
vés de um ofício assinado por Oscar Thompson, fechou
as duas Escolas Modernas de São Paulo. O motivo apre-
sentado foi que as referidas escolas, “visando a propaga-
ção das idéias anárquicas e a implantação do regime
comunista, ferem de modo iniludível a organização polí-
tica e social do país, além de não cumprirem as exigên-
cias legais de funcionamento.”26
As Escolas Modernas funcionaram por um período
relativamente curto no Brasil. Porém, devido ao radica-
lismo e ousadia de suas propostas, merecem ser lem-
bradas. Mesmo depois de todos esses anos, algumas de
suas preocupações pedagógicas continuam extrema-
mente atuais.

Notas
1
“Mas se deixados única e exclusivamente a sua experiência, sem a luz esclarecedo-
ra da doutrina, sem as explicações da ciência sobre as leis sociais e da natureza, os
indivíduos poderão acomodar-se ou enveredar por caminhos reformistas, uma vez
que estão profundamente envolvidos por formas burguesas e católicas de pensar,
habituados às explicações metafísicas da vida e das sociedades e às disciplinas
impostas pelas organizações sociais autoritárias.” Yara Aun Khoury. “A Poesia
Anarquista” in Sociedade & Cultura (Revista Brasileira de História). São Paulo,
ANPUH/Marco Zero, vol. 8, n. 15, setembro de 1987/fevereiro de 1988, p. 216.
2
O Amigo do Povo, São Paulo, 7 de junho de 1902.
3
A Voz do Trabalhador, n. 68, 5 de março de 1915.
4
A Lanterna, n. 214, 25 de outubro de 1913.
5
Silvio Gallo. Educação Anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba, Editora
UNIMEP, 1995. pp. 124/125.

174
verve
A educação anarquista na república velha

6
“Que Deve Ser a Educação” in Na Barricada.. Rio de Janeiro, suplemento, 01/05/
1913.
7
Miguel Bakunin. Dios y el Estado. Madrid, Jucar, 1976, pp. 74-75.
8
O Amigo do Povo. 26 de novembro de 1904.
9
O Amigo do Povo. São Paulo, 30 de janeiro de 1904.
10
O Despertar. Rio de Janeiro, n. 3, 03 de dezembro de 1898.
11
“Autogestão: É o controle direto dos meios de produção pelos produtores auto-
organizados em comitês de fábrica, comitês de interfábricas, federação ou confede-
ração de comitês. Significa a integração do econômico com o político, através do
controle operário da produção e da democracia direta, substituindo, assim, o tecno-
crata administrador e o político profissional da democracia representativa.” Mau-
rício Tragtenberg. Reflexões sobre o Socialismo. São Paulo, Moderna, 1986, p. 91.
12
O Início, n. 2, 4 de setembro de 1915 apud: JOMINI, Regina Célia Mazoni.
‘Educação Anarquista na República Velha: algumas idéias e iniciativas pedagógi-
cas.’ Campinas. Pro-Posições, nº. 3. Revista da Faculdade de Educação/ UNICAMP,
dezembro de 1990, p. 47.
13
Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de janeiro, Edições Mundo Livre, 1979,
p. 109.
14
A Voz do Trabalhador, 1 de outubro de 1913, p. 4.
15
“Os Estados modernos, compreendendo perfeitamente que com a decadência da
religião e com o desenvolvimento industrial era impossível manter na ignorância
suína, dos tempos idos, as multidões, (...) trataram de ir abrindo escolas e de
preparar programas adequados não às necessidades reais da mente infantil, mas
necessários à conservação perpétua e indefinida dos governos, com os regimes de
castas, explorando o povo, e defendido por soldados, filhos do povo, mas oblitera-
do as suas idéias pela influência nefasta da escola.” Adelino Pinho. “A escola,
prelúdio da caserna”. A Vida, Rio de Janeiro, n. 5, 3 de março de 1915 apud:,
Regina Célia Mazoni Jomini, op. cit., p. 48.
16
“A cada 13 de outubro havia sempre homenagem ao ferroviário Francisco Ferrer,
em comemoração à data do seu fuzilamento, com apresentação de peças teatrais.”
Eduardo Maffei. ‘Gigi Damiani e Outros.’ in Temas de Ciências Sociais. Volume 5
(Marco Aurélio Garcia e outros - organizadores). São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas, 1979, p. 114.
Edgar Rodrigues. O Anarquismo na Escola, no Teatro, na Poesia. Rio de Janeiro,
17

Achiamé, 1992, p. 15.


18
“Em todas as suas 121 escolas modernas ensinava e recomendava o uso de
bombas de dinamite”. Frei Pedo Sinzig O. F. M. Folheto: “Ferrer - Mártir ou Patife -
quatro horas entre os anarquistas.” Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 7.

175
7
2005

19
O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício
de Medeiros e publicada por sugestão da Associação Escola Moderna. Rio de
Janeiro, 1910, Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 22.
20
A Instrução Racional. Boletim da Escola Moderna, n. 4, 1 de maio de 1919.
Arquivo E. Leuenroth/ Campinas.
21
O Ensino Racionalista - Conferência realizada em maio de 1910 pelo Dr. Maurício
de Medeiros e mandada publicar pela Associação Escola Moderna. Rio de Janeiro,
1910. Arquivo E. Leuenroth/Campinas, p. 20.
22
“A educação criada e mantida pelos anarco-sindicalistas sofria patrulhamento
constante, tanto pela Igreja quanto pelo Estado, aliados contra o inimigo comum.”
23
Frei Pedo Sinzig O. F. M., op. cit., p. 13.
24
Boletim da Escola Moderna. São Paulo, Escola Moderna N. 1, n. 01, ano I, 13/10/
1918.
25
“Em outubro de 1919 ele se achava metido numa conjura para tentar uma
insurreição popular (quanto sonho!) em São Paulo. Eis quando o depósito de
bombas que se estava organizando na Rua João Boemer foi, acidentalmente, pelos
ares. Daí resultou o empastelamento de A Plebe e a prisão dos líderes anarquistas e,
entre eles, Gigi. (Damiani) , que foi deportado. Eduardo Maffei. op. cit., p. 111.
26
Edgar Rodrigues. Alvorada Operária. Rio de Janeiro, Edições Mundo Livre, 1979,
p. 317.

176
verve
A educação anarquista na república velha

RESUMO

Durante a República Velha (1889-1930), os libertários brasileiros


promoveram várias experiências educacionais, muitas delas inova-
doras. O discurso que valorizava a educação como forma de eman-
cipação não estava, em nenhum momento, desvinculado de uma
prática revolucionária. Os anarquistas brasileiros mantiveram con-
tato freqüente com os seus colegas ácratas da Europa. Os livros e
as práticas dos mais fecundos pensadores da pedagogia libertá-
ria, destacando-se o educador catalão Ferrer, eram acompanha-
dos e adaptados pelos militantes daqui.

Palavras-chave: República Velha (1889-1930), anarquistas brasi-


leiros, educação.

ABSTRACT

During the Old Republic - Repúnlica Velha 1889-1930 - Brazilian


libertarians promoted several pedagogic experiences, many of them
quite innovative. The teories that valued education as a tool to
emancipation were never disconnected of a revolutionary practice.
The Brazilian anarchists maintained frequent contact with their
European comrades. The books and practices of the most fertile
thinkers of the libertarian pedagogy, standing out among them the
Catalan educator Ferrer, were accompanied and adapted by mili-
tants here.

Keywords: Old Republic (1889-1930), brazilian anarchists, edu-


cation.

Recebido para publicação em 2 de fevereiro de 2004.

177
7
2005

os pedreiros da anarquia

edgar rodrigues*

Hoje meu encontro é com os carregadores das pedras


que serviram para construir os alicerces, formar as ba-
ses do palácio da anarquia.1
No Brasil e/ou nos países europeus, asiáticos e afri-
canos “exportadores” de mão-de-obra, nas últimas déca-
das do século XIX e em mais da metade do século XX, as
escolas de alfabetização eram escassas, e para os filhos
dos trabalhadores braçais, praticamente inalcançáveis!
As famílias pobres (muito numerosas na época) ti-
nham de empregar seus filhos, aos sete anos de idade,
nas fábricas, nas oficinas, na construção civil e no co-
mércio como ajudantes. Salvo poucas exceções, sem re-
ceber ordenados, aprendiam ofícios à força de pescoções
e outras violências físicas e psicológicas.

* Vivendo no Rio de Janeiro desde 1951, Edgar Rodrigues é um dos mais


importantes arquivistas dos movimentos anarquistas no Brasil e em Portugal.
Suas análises, entrevistas e compilações de documentos distribuem-se em mais
de quarenta livros e cerca de mil artigos.

verve, 7: 178-193, 2005

178
verve
Os pedreiros da anarquia

A alfabetização dos imigrantes e trabalhadores nati-


vos começava nos locais de trabalho, ouvindo seus com-
panheiros, mais preparados e experientes, ler jornais
sindicalistas e anarquistas, em voz alta na hora do al-
moço, e fazer refeições, quando o ambiente permitia.
Depois iam assistir aos debates e palestras nas associ-
ações de classe profissionais, e os mais aplicados parti-
cipavam de cursos de alfabetização, profissionalizantes
e de militância ideológica.
No Brasil, as associações operárias, depois sindica-
tos, foram as escolas e as Universidades do proletaria-
do! Dir-se-ia que aprendiam simultaneamente profis-
sões e o ler e escrever. E ainda sindicalismo, luta de
classes e anarquismo. Seus redutos de resistência (sin-
dicatos), eram também escolas profissionais, de solida-
riedade, tornando-se ainda veículos de ajuda mútua, uma
prática que servia para sustentar sedes quando um só
sindicato não podia pagar o aluguel; para socorrer com-
panheiros doentes, desempregados e presos; para cus-
tear publicações de boletins, jornais, opúsculos e até li-
vros de idéias avançadas.
Entre as reivindicações dos assalariados estavam a
redução da jornada de trabalho de 14, 12 e 10 para 8
horas diárias, seguros de acidentes no trabalho e de
invalidez, das mulheres operárias poder ter seus filhos
em casa e dispor de alguns dias para amamentá-los;
lugar para comer nas fábricas, o fim do carrancismo
patronal, espancamento de menores e até de mulhe-
res, melhorias salariais.2
Aos poucos, o proletariado compreendeu também que
seus filhos iam trabalhar na idade que deviam freqüen-
tar as escolas (aos sete anos de idade); entravam na
adolescência, passavam a juventude e a fase adulta como
seus pais.

179
7
2005

No Brasil, a questão social era tão implacável com os


assalariados quanto nos países de onde tinham vindo os
imigrantes para desbravar e produzir a riqueza que faz
deste país uma grande nação, que só não é boa para
todos os seus habitantes, porque existem políticos, ge-
rados nas incubadoras das Igrejas e do Estado!
No 1° Congresso da velha A.I.T (Associação Interna-
cional dos Trabalhadores), realizado de 3 a 6 de Setem-
bro de 1866, em Genebra (Suíça), e nos subseqüentes
de 1867, 1868, 1869 e 1872, os congressistas discuti-
ram métodos racionalistas de ensino e educação que
deviam ser postos em prática pelos trabalhadores e ou-
tros que o desejassem.
O eco do novo ensino e da escola nova atingiu o prole-
tariado na Europa. Chegou ao Brasil, nas cabeças dos
imigrantes. E não obstante a demora, abriu novos hori-
zontes ao produtor de riquezas, despertando a imagina-
ção de muitos que não queriam ter deveres sem direi-
tos e agitou esse entendimento nas associações operá-
rias e nos locais de trabalho.
Seguindo os exemplos de seus companheiros euro-
peus, os trabalhadores imigrantes formaram escolas
racionalistas no Rio Grande do Sul, nos subúrbios do
Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras localidades do
Brasil.
Inicialmente, o propósito era alfabetizar operários
(pais e filhos) e, logo mais, proporcionar-lhes conheci-
mentos gerais, sociologia, sindicalismo, anti-clericalis-
mo; capacitá-los intelectualmente, inclusive com aju-
da da Arte de Talma, desenvolvida nos teatros operári-
os.
No Rio de Janeiro, em 1904, e em São Paulo, em 1915,
também, foram implantadas Universidades Populares e
ministrados cursos profissionalizantes, sociológicos,

180
verve
Os pedreiros da anarquia

envolvendo a emancipação social e a autogestão, em


tempos idos conhecida como ajuda mútua.
Exemplificamos na seqüência com os pedreiros da
anarquia, residentes em Campinas, no ano de 1908,
implantando uma Escola Livre, apoiada no documento
(raríssimo) que se reproduz.
“A Liga Operária de Campinas tomou uma iniciativa
bem digna de simpatia, a aquisição de um prédio para o
funcionamento da escola infantil que ora está em pré-
dio impróprio e acanhado, procurando baseá-lo o mais
possível nos modernos princípios pedagógicos.
A escola não deve ser um lugar de tortura psíquica
ou moral para as crianças, mas um lugar de prazer e
recreio, onde elas se sintam bem, onde o ensino lhes
seja oferecido como uma diversão, procurando aprovei-
tar a sua natureza irrequieta e alegre, falando-lhe mais
às suas faculdades e sentimentos, ao olhar do que ao
ouvido, dedicando-se mais à inteligência do que à me-
mória, esforçando-se em desenvolver harmônica e in-
tegralmente os seus órgãos.
A experiência, a observação direta, a recreação ins-
trutiva serão muito mais favorecidos pelo professor que
compreende a sua missão, do que as longas e fatigantes
preleções e as recitações fastidiosas e sem sentido.
O que é verificável pelo próprio aluno, o que é de-
monstrável, claro, lógico para a criança, o que ela por si
mesma descobrir ou desenvolver — isso será preferido
a todas as divagações metafísicas ou filosóficas, a todas
as afirmações impostas pela autoridade do pedante, que
não pode senão favorecer a preguiça intelectual.
E por isso a escola não será religiosa nem anti-reli-
giosa, não será política, não será dogmática, mas irá
buscar a lição de coisas, a natureza vivida e provocada,

181
7
2005

ao vasto campo das ciências exatas, ao raciocínio es-


pontâneo e fácil, os motivos de agradável estudo para as
inteligências que desabrocham e da larga e salutar ex-
pansão para os organismos tenros.
Tal é o plano, tal o intuito que anima e inspira nos-
sos atos, esforçando-nos pela realização desse melhora-
mento, que até o presente não foi tratado com o devido
carinho, pela falta de fundos, que desaparecerá com a
medida que acabamos de tomar, o lançamento de um
empréstimo operário, para o qual esperamos o vosso
apoio e ajuda trabalhadores.
Regulamento:
Art. I – Fica criada entre os sócios da Liga Operária
de Campinas e outras pessoas que queiram coadjuvar
esta associação e sua escola, uma emissão de 2.000
ações, no valor de R$ 5.000 cada uma.
Art. II – Estas ações receberão 3% anualmente de
dividendos, sendo sorteadas quando houver fundos.
Art. III – Para garantia dos resgates e dividendos, a
Liga, contribuirá com R$ 1.200.000 anualmente e título
de aluguel do prédio, (R$100.000 por mês) pelo que se
abriga
Das Ações.
Art. IV – As ações serão intransferíveis, podendo po-
rém, em caso de morte do acionista, gozar todas as re-
galias delas:
§ 1° - A viúva do acionista, enquanto assim se con-
servar.
§ 2° - A mãe do acionista, se for viúva, enquanto as-
sim se conservar.
§ 3° - Os filhos do acionista.

182
verve
Os pedreiros da anarquia

§ 4° - Em qualquer dos casos dos § antecedentes, o


herdeiro ou herdeiros estão sempre sujeitos ao expres-
so no Art. IV, bem como os possuidores de ações legal-
mente constituídos, na falta destes.
Do Fundo de Reserva.
Art. V – O fundo de reserva constituir-se-á pela for-
ma seguinte:
a) Pelo que se refere o artigo III.
b) Pelas importâncias que os acionistas quiseram
doar à escola ou à sociedade, com ofertas de ações ou
dividendos destas.
c) Pelas ações e dividendos prescritos de acordo com
o artigo VI.
Art. VI – Serão considerados prescritos os dividendos
e ações que não forem reclamadas dois anos depois dos
respectivos sorteios.
Direitos e Regalias dos Acionistas.
Art. VII – Todos os acionistas estão em pleno gozo de
seus direitos e fazem jus:
§ 1° - Os acionistas, membros da Liga pelo que regem
os Estatutos sociais.
§ 2° - Os acionistas externos não têm o direito de
serem votados, a não ser para comissões especiais, que
nada tenham a ver com a questão da Liga.
§ 3° - Assistem-lhes os direitos de:
a) Participar das assembléias gerais, relativas ao
que diga respeito a negócios das ações, podendo propor
medidas, votá-las.
b) Requisitarem, por escrito, do Conselho Adminis-
trativo, permissão para examinarem os livros da escri-

183
7
2005

tura especial dos negócios das ações, na sede social e


em presença do Tesoureiro ouvir as devidas explicações.
c) Fazerem qualquer reclamação ou representação
ao Conselho Administrativo.
d) Proporem o que julgarem de vantagem nas assem-
bléias gerais, convocando-as, porém, em número nunca
inferior a 30 acionistas.
Dos Diretores.
Art. VIII - Os negócios das ações serão regidos pelos
mesmos conselheiros eleitos da Liga Operária, com as
obrigações que já lhes são impostas nos Estatutos Sociais.
Da Escrituração.
Art. IX - Haverá para os casos especiais desse regula-
mento:
§ 1° - Um livro especial de registro de assinatura dos
acionistas, encimado com este regulamento, descriminan-
do neste livro o número das ações de cada um.
§ 2° - Talões numerados e rubricados pelo Contador e
Tesoureiro, com as ações impressas, devendo cada porta-
dor deixar no canhoto respectivo sua assinatura ou auto-
rização.
§ 3° - Livros ou quaisquer outros impressos auxiliares,
à ordem do Conselho.
Disposições Gerais.
Art. X – Todo o acionista, que assinar no canhoto do
Talão das ações ou no livro especial, (Art. IX § 1°), fica
aceitando, para todos os seus efeitos, este Regulamento.
Art. XI – A escrituração especial de quantias e quais-
quer valores, fica a cargo de pessoa competente de con-
formidade com o Art. IX e seus §, bem como o desempe-
nho de expedientes e execuções de tudo ao que se refere

184
verve
Os pedreiros da anarquia

este Regulamento ou for determinado por Assembléia


Geral.
Art. XII – Seja qual for o número das ações ao portador,
o Possuidor ou acionista tem direito a um único voto.
Art. XIII – Em assembléia geral é permitido o voto por
procuração legal.
Art. XIV – Revogam-se as disposições em contrário.
Sala de Conselho Administrativo da Liga Operária de
Campinas, em 22 de Agosto de 1908.
O Relator, José Fonseca.
O Secretário, Joaquim Ribeiro.
A Comissão: Max Stephan, José Piovesan, Carmine D.
Abruzzi, Vittorio Maggalira, Ramón Durán.”
Estes e outros pedreiros da anarquia projetaram, car-
regaram as pedras, fixaram-nas “argamassadas” com
“anarquismo” uma sobre as outras simetricamente e a
obra ganhou forma, proliferou com maior ou menor inten-
sidade em parte do território brasileiro, muitas vezes difi-
cultada pelas autoridades que desejavam um trabalhador
ignorante, submisso!!!
Foi uma penosa edificação interrompida, periodicamen-
te, pelos governantes dispostos a impedir a emancipação
social, cultural, e humana do proletariado.
Por força de uma educação libertária e de um apren-
dizado ideológico, o trabalhador realizou uma gigantes-
ca obra, obrigando os poderosos e os políticos a alterar
leis primitivas, tornando suportável a mão-de-obra nas
fábricas, nas oficinas, e a questão social entrou nos
romances.
Como pensavam grande esses trabalhadores braçais!
Se tivessem sido escutados hoje não estaríamos cer-

185
7
2005

cados de pobreza, favelas, drogas, violência, as casas


de muralhas e janelas com grades como cadeias.
Dezenas, centenas de pedreiros da anarquia nascidos
na Europa, na América e no Brasil aprenderam quase tudo
que sabiam nas sedes dos sindicatos, dos Centros de Cul-
tura Social, nos Grupos de Teatro Libertário e/ou estu-
dando em Escolas Livres, lendo a imprensa operária, ácrata
e exercitando seus conhecimentos intelectuais, exercendo
ofícios vários, falando aos que sabiam menos e/ou tinham
receio de demonstrar o que haviam aprendido na escola
da oficina, na Universidade da vida...
Conheci e soube de Pedro Catalo, Jaime Cubero, Ma-
nuel Joaquim de Sousa, Manuel Silva Campos, Antônio
Corrêa, Artur Modesto, Carlo Aldegheri, Serafim Cardoso
Lucena (tinha escola livre e abastada biblioteca em casa),
José Sarmento Marques (responsável pelo jornal anarquis-
ta O Despertar, Rio de Janeiro, 1898), Pedro Matera (fun-
dador do jornal Liberdade, 1917, da Escola Livre 1° de Maio,
inicialmente em Vila Isabel e depois em Olaria, Rio de
Janeiro, década de 20), João Peres Boucas, Antonio Do-
minguez, Ricardo Cipolla, Afonso Festa (expulso em 1919),
Daniel Conde (diretor de A Luta, Porto Alegre), Antonio Ore-
llana (livreiro do anarquismo, em São Paulo, na primeira
década do século XX), todos operários sapateiros.
Muitos destes pedreiros da anarquia, falavam como
Tribunos, defendiam idéias na imprensa anarquista e sin-
dicalista. Outros escreveram poesias, opúsculos, livros
(caso de Pedro Catalo e Manuel Joaquim de Sousa), defen-
deram teses de muito valor cultural e libertárias em con-
gressos. Foram diretores e escreviam em diários, sema-
nários e periódicos. Redigiram peças para o teatro, foram
excelentes atores/amadores.
Lembro e conheci operários marceneiros e carpintei-
ros: J. Marques da Costa (orador dos maiores que andou

186
verve
Os pedreiros da anarquia

por Manaus, Pará e foi expulso do Rio de Janeiro em 1925,


por falar no 1° de maio, na Praça Mauá, sem ordem da
Policia Carioca). Foi diretor/fundador da revista Renova-
ção (1922-1923) do jornal O Trabalho, Rio de Janeiro.
Aqui trabalhou como jornalista contratado nos diários
A Pátria, A Vanguarda e outros). Domingos Passos (O
Bakunin brasileiro, um dos mais ativos anarquistas
e das maiores vitimas das autoridades brasileiras).
Manuel Perez Fernandez (diretor do porta-voz do mar-
ceneiros cariocas). Expulso do Brasil em 1919, Perez
foi para a Espanha, esteve refugiado em Lisboa, na
França, voltou a Espanha e foi condenado à morte nos
anos 1937-1939. Salvo por adido comercial brasileiro,
voltou ao Rio de Janeiro e, em 1946, com Oiticica,
Roberto das Neves e outros, ajudou a fundar Ação Dire-
ta: escrevia e falava muito bem (deixou um livro de
memórias inédito comigo).
Victorino e Luciano Trigo, José Oliva (o faz tudo em
“Nossa Chácara”/Nosso Sítio), José Martins (autor de
monumental obra histórica em dois volumes: História
das Riquezas do Clero Católico e Protestante), Joaquim
Moreira da Silva, poeta popular, cuja obra foi transfor-
mada em tese antológica com cerca de 600 páginas.
As marcas destes pedreiros aparece na imprensa
operária, na anarquista e/ou em atividades de edu-
cação racionalista e ainda incomodaram intelectuais,
muitos políticos e autoridades.
E fundaram a União dos Operários em Construção
Civil, primeiro num quarto, em casa de família na rua
Senador Eusébio, em 1917, e depois num prédio com
espaço para escola e grupo de teatro social, educando
e preparando anarquistas e atores. Ficava na rua Ca-
mari, 119. Encenaram peças como Gaspar, O Serra-
lheiro, de Batista Machado, Amanhã, de Manuel La-

187
7
2005

ranjeiras, entre outras que sacudiam as teias de ara-


nha dos “Casacas Velhas” do jornalismo e dos intelec-
tuais e irritou a burguesia e as autoridades.
Ainda na construção civil, conheci Diamantino Au-
gusto, José Augusto de Castro, Manuel Lopes, Rodozi-
nho Colmenero (diretor de A Voz Humana), Venâncio
Pastorini (autor de opúsculos, como Cartilha Libertária),
Luis Saturino, Augusto Godinho, Armindo Sarrilho, Fer-
nando Neves, Manuel Correia, Manuel Marques Bas-
tos, Pascula Gravina, José Salgueiro, João Perdigão
Gutierrez fundador do jornal Dor Humana), Francisco
Fernandes, Albino Soares; soube de Eládio César An-
tunha, e Antônio Julião (o cérebro da greve pelas 8 horas
diárias em Santos) e quantos mais que deflagaram e
orientaram greves, distribuíram manifestos, poesias
revolucionárias, discursavam em comícios na praça
pública, escreviam (e alguns dirigiam periódicos e dis-
tribuíam-nos nos locais de trabalho, dando inigualável
colaboração ao teatro anarquista (Pascula Gravina, Ma-
nuel Marques Bastos, José Augusto de Castro).
Os operários gráficos também escreveram livros,
foram diretores de jornais e publicaram obras, parti-
ciparam de congressos anarquistas, operários e paci-
fistas (contra a guerra, 1917): Carlos Dias (primeiro
Diretor do diário Voz do Povo, autor da obra Contra Per-
petuidade do Erro e da Mentira, dentre outras); Antônio
Alves Pereira (diretor de A Aurora, tradutor de O Esta-
do e seu Papel Histórico, de Kropotkin, autor do volume
O Proletariado Militante); Alexandre Belo (fundador de
Ação Sindical, São Paulo, 1958); Manuel Moscoso (di-
retor/fundador de A Liberdade e redator do Órgão da
C.O.B, A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 1908, com
Cecílio Vilar e outros); Polidoro Santos (publicou a re-
vista Renovação, no Rio de Janeiro, 1905); Clemente
Vieira dos Santos; Antônio Teixeira de Araújo e deze-

188
verve
Os pedreiros da anarquia

nas, centenas de operários ilustres, gráficos, jorna-


listas e carregadores de pedras para edificar o palácio
da anarquia!!!
Foram ao mesmo tempo escritores, jornalistas ato-
res, oradores, contribuintes, distribuidores de impren-
sa pelo correio, de mão em mão, colaram nas paredes,
foram presos, espancados e alguns expulsos.
Conheci e visitei o camponês Elias Iltchenco, em
Erebango, Rio Grande do Sul. Veio da Ucrânia, conhe-
ceu o anarquismo, aprendeu sem mestre, português,
espanhol e esperanto; os ex-camponeses Maria Valver-
de, Cecílio Dias Lopes, Diego Gimenez, Aldigo Agostani,
Gumercindo Alvarez, Emilio Tesoro e Vicente de Caria.3
Soube ainda de militantes pintores como Gigi Dami-
ani (autor de peças de teatro anarquista, expulso para a
Itália em 1919); José Romero (expulso para a Espanha
em 1919, esteve em Lisboa, retornando clandestinamen-
te para o Rio de Janeiro; foi um dos redatores de A Terra
Livre, A Lanterna e, em Lisboa, de A Batalha: escrevia e
falava bem); Rodolfo Felipe (dirigiu A Plebe muitos anos),
João Navarro, um grande colecionador de obras, inclu-
sive da Revista Blanca, que deu de presente. Damiani,
Felipe e Romero foram dos melhores jornalistas operá-
rios que o movimento anarquista já teve.
Conheci e soube de operários barbeiros, Amílcar dos
Santos, Adalberto Viana (bom poeta libertário), Daniel
Montalvão, Zacarias de Lima, e empregados do comér-
cio: Adelino Tavares de Pinho4, Antônio Duarte Candei-
as5, Atílio Pessagno, Aquilino Massena, F.G. Sousa Pas-
sos (autor de vários opúsculos e deixou uma excelente
obra inédita, O Sentido Artístico do Anarquismo).
Podem-se juntar ainda outros pedreiros da anarquia,
como Hilário Marques (caldeiro, fundador/diretor da re-
vista A Sementeira, duas fases); Alexandre Zanella, José

189
7
2005

Rodrigues Reboredo (confeiteiro, tradutor do francês,


espanhol e do alemão); Júlio Gonçalves Pereira, João
Castanheira, Joana Buelo (têxteis), Aníbal Dantas (cor-
reeiro), Virgilio Dall’Oca (taxista), Frederico Kniested
(vassoureiro, diretor de Aktíon, Der Freie Arbeiter, Alarm,
em alemão e, em português, de O Sindicalismo, e deixou
textos para o volume Memórias de um Imigrante Anarquis-
ta, 157 páginas, Rio Grande do Sul.
Conheci, pessoalmente, Rafael Fernandez, amolador
de tesouras e facas, em Porto Alegre. Nascido na Espa-
nha veio menino para o Brasil. Nos últimos anos de vida
muitos intelectuais iam à casa de Rafael, ouvi-lo falar,
e só o conheciam como “El Paragüero”. Ajudou a fazer A
Luta (2° fase) e vendeu jornais; também convivi com
Margarida Barros, Virginia Dantas, Elvira Boni, costu-
reiras, e soube de Teresa Nandes, Maria Rodrigues, Al-
fredo Vasquez (alfaiate); Isidoro Augusto (marmorista);
José Reis Segueira (corticeiro); Antônio José do Amaral
(cocheiro), Balezário Pereira (carvoeiro), e centenas e
centenas de operários e operárias. Muitos nomes en-
contrei nas atas, na imprensa operária e no noticiário
policial, acusados de subversão e só lutavam pela liber-
dade, pela Anarquia!!!
Estivadores como Manuel Campos, diretor de O Pro-
testo, e algum tempo de A Plebe; o vidreiro Belmiro da
Silva Jacintho, pescadores João Franco e Jaime Rebe-
lo; e o mineiro Valentim Adolfo João.
A maioria desses pedreiros da anarquia estudou nos
sindicatos e nos Centros de Cultura Social e aprende-
ram (sabiam) que Revolução é antes de tudo uma idéia,
um sentimento, uma vontade cultural e sociológica; é
trabalho e bem-estar social distribuído eqüitativamen-
te por todos, por cada um.

190
verve
Os pedreiros da anarquia

Que Revolução principia nos cérebros, evolui livre-


mente fundamentada numa filosofia de vida generosa e
positiva, baseada em sentimentos de solidariedade e
ações que equilibram atitudes e movimento, na harmo-
nia que “funde” a natureza e o homem, que concebe e
prepara personalidades, profissional e emocionalmen-
te, para incorporar esforços e capacidades, caracteres
bem formados, cidadãos tolerantes que aceitem seus
companheiros como são e não como queriam que fos-
sem, à sua imagem e semelhança, capazes de produzir,
participar, dar e receber.
Que Revolução consciente fomenta e desperta a gran-
deza de sentimentos, a solidariedade entre as pessoas,
entre povos, cultiva todos os dias o Amor ao próximo, à
Humanidade, com o mesmo carinho e seriedade como
que cultiva a vida, ao mesmo tempo em que demonstra
que o anarquismo não é estático, evolui sempre até tor-
nar o trabalho agradável para todos, cada vez mais pro-
dutivo, menos desgastante até à perfeição.
Que Revolução começa em cada cérebro humano!
Nos cinco volumes Os companheiros6 evocamos 582
militantes (não consegui os nomes de todos os colabora-
dores) e destes menos de 2% eram intelectuais. Dos
mais de 98% de trabalhadores braçais, de variadas pro-
fissões e ofícios, referenciados nos cinco volumes e nes-
te texto, todos deram a sua colaboração ao anarquismo
embasados nas idéias sindicalistas e libertárias.
Ainda assim, estes artífices raramente são notados
pelos que escrevem hoje revistas e livros, “demonstrando
erudição acadêmica”.
E, no entanto, pedreiros da anarquia têm a sua Histó-
ria escrita com, suor, lágrimas, sangue e fome! Deixaram-
na registrada em centenas de jornais, de manifestos,
opúsculos, em atas, teses defendidas em Congressos

191
7
2005

Libertários, alguns nas praças públicas e/ou nas portas


das fábricas. Em certa medida acabaram com a ortodo-
xia política em locais de trabalho, em vigor nos anos
20/30.
Deixar apagar pelo tempo e pelo silêncio dos que escre-
vem hoje os construtores do palácio da anarquia é negar
a igualdade do anarquismo.
(Como ficaram dezenas, centenas de pedreiros da
anarquia sem a nossa homenagem e nosso “protesto”,
ainda voltarei ao tema!).

Notas
1
Esta denominação tomei-a “emprestada” do médico e anarquista Fábio Luz.
Segundo este produtivo escritor e militante, após ler Palavras de um Revoltado, de
Kropotkin, tornou-se um defensor do que chamava “O palácio da Anarquia,
sempre de portas abertas para entrar e sair quem quisesse”.
2
Os anarquistas não viam com bons olhos as greves por aumentos salariais, pois
quase sempre originavam aumentos de custo de vida e eternizavam a pobreza. Os
anarquistas advogavam o fim do salariado, patronato, e o trabalho em autoges-
tão: o fim do Estado que seria também o fim do capitalismo.
3
Italiano, anarquista, plantava cebolas em Sorocaba; deu aos seus filhos/filhas, os
nomes de Anarquia, Progresso, Liberdade, Harmonia, Aurora, Círio, Germinal e
Espartaco de Caria. Conheci Anarquia de Caria, companheira de João P. Gutier-
rez.
4
Autor de vários opúsculos como Quem não trabalha não come e fundador/profes-
sor da Escola Moderna 2, São Paulo. Viveu dando aulas até ter fechada sua escola
em 1919. Depois foi dar aulas de ensino livre no interior de São Paulo.
5
Autor com Edgar Leuenroth do livro O que é Maximalismo ou Bolchevismo, 1919.
Antônio Duarte Candeias usou o pseudônimo de Hélio Negro.
6
O 1° e 2° volumes foram editados no Rio de Janeiro por Editores Associados,
1994, e o 3°, 4° e 5° pela Editora Insular, Santa Catarina, 1997.

192
verve
Os pedreiros da anarquia

RESUMO

Anarquismos são desenhados tecendo vidas de anarquistas que


inventaram soluções libertárias no Brasil, no começo do século
XX. Os Pedreiros da Anarquia, de Campinas, aparecem no interior
de uma série de trabalhadores libertários que interromperam a
continuidade da submissão, inventando novos costumes e novas
formas de educação.

Palavras-chave: Anarquia, Brasil, Educação.

ABSTRACT

Anarchisms are developed by the lives of anarchists that created


libertarian solutions in Brazil, in the early XXth century. The Pe-
dreiros da Anarquia (The bricklayers of anarchy), in Campinas,
are inside a great amount of libertarian workers who refused the
submission, inventing new custom and new ways of education.

Keywords: Anarchy, Brazil, Education.

Recebido para publicação em 17 de novembro de 2004.

193
7
2005

anarquia e anarquismo

eduardo colombo*

Nossa época, aberta às contradições e paradoxos, mas-


sacrada pela chapa de chumbo de um pensamento politi-
camente correto, aprendeu a deixar um espaço de gueto
para a divergência e a marginalidade, desde que não se
ultrapasse um certo umbral para além do qual as idéias
tornam-se ação, e a heresia subversão.
Assim, a anarquia exala um pouco menos a enxofre
que antes e, edulcorada sob o qualificativo de “libertária”,
saiu dos bas-fonds proletários para tornar-se uma palavra
leve, e mesmo de bom tom nos salões e na imprensa, prin-
cipalmente quando desliza em direção à direita e é aco-
plada ao adjetivo “liberal”. No entanto, as definições dos
dicionários são interessantes por deixarem transparecer
a persistência do pano de fundo semântico no qual a anar-
quia é incompatível com a ordem social estabelecida.

* Anarquista argentino, foi professor da Universidad de la Plata y Buenos Aires,


onde editou La Protesta. Radicado em Paris, desde os anos 1970, é psicanalista,
participou de diversas publicações e atualmente edita Réfractions. “Anarchie et
anarchisme”, Paris, Réfractions, 2001, no. 7.

verve, 6: 194-207, 2004


194
verve
Anarquia e anarquismo

Textos antigos como o Dicionário da Academia France-


sa, de 1694, estabelecem: “Anarquia: estado desregrado,
sem chefe ou qualquer tipo de governo” , e a Enciclopédia
de 1751: “Anarquia é uma desordem num Estado, e con-
siste no fato de que ninguém tem suficiente autoridade
para comandar e fazer com que as leis sejam respeitadas,
e onde conseqüentemente o povo se conduz como quer,
sem subordinação e sem polícia”.
O Littré, edição de 1885, diz: “Anarquia: ausência de
governo e, em conseqüência, desordem e confusão”; “Anar-
quista: promotor de anarquia, perturbador”. A palavra “anar-
quismo” não figura no Littré. Contudo, o Grande Dicionário
Universal do século XIX, de Pierre Larousse (1866), entre
as definições habituais da anarquia, reconhece um outro
tom, e cita: “Como o homem busca a justiça na igualdade,
a sociedade busca a ordem na anarquia (Proudhon)”. E La-
rousse faz a seguir o seguinte comentário que, diga-se de
passagem, lhe valeu o reconhecimento de Pierre-Joseph
Proudhon: “O sr. Proudhon deu o nome, aparentemente
paradoxal, de an-arquia, a uma teoria social que se baseia
na idéia de contrato, em substituição àquela de autorida-
de. É preciso esclarecer que a anarquia proudhoniana não
tem nada em comum com aquela da qual falamos acima.
Sob esse nome, o célebre pensador apresenta uma orga-
nização da sociedade onde a política encontra-se absorvi-
da na economia social, e o governo na administração, onde
a justiça comutativa, estendendo-se a todos os fatos soci-
ais e produzindo todas as suas conseqüências, realiza a
ordem pela própria liberdade, e substitui completamente
o regime feudal, governamental, militar, expressão da jus-
tiça distributiva.”1 Isto não o impede de colocar como an-
tônimos de anarquia: “ordem, paz ou tranquilidade públi-
ca” e não “ Estado, poder político, autoridade”.
A Encyclopaedia Britannica dá, em sua 11ª edição de
1910, a palavra a Kropotkin para explicar o verbete

195
7
2005

anarquismo: “ Nome dado a um princípio ou a uma teoria


da vida e da conduta segundo os quais a sociedade é con-
cebida sem governo”. “Os anarquistas consideram — diz
ele — o sistema salarial e a produção capitalista como um
obstáculo ao progresso. Mas eles também ressaltam que o
Estado foi e continua a ser o principal instrumento que
permite a alguns monopolizar a terra e aos capitalistas
apropriarem-se de uma parte completamente despropor-
cional da mais-valia acumulada no ano da produção.”
Entretanto, como o Estado encontra-se sempre presen-
te, as idéias que o sustentam permanecem sem poder,
sociedade política, nomoi, regras. No Petit Robert de 1970,
encontramos a mesma definição tradicional “Anarquia:
polit. Desordem resultante de uma ausência ou carência
de autoridade”, mas com a palavra “anarquismo” chega-
mos a uma formulação quase correta: “Concepção política
que tende a suprimir o Estado, a eliminar da sociedade
qualquer poder dispondo de um direito de coerção sobre o
indivíduo.”. Assim, a anarquia, é a desordem em conse-
qüência da carência de um poder estatal de coerção, defi-
nição eminentemente ideológica que estabelece uma re-
lação de causalidade entre a ausência de governo e desor-
dem, relação que o anarquismo precisamente nega.
Evidentemente, o anarquismo busca a anarquia, afirman-
do que uma sociedade sem poder político institucionaliza-
do, sem Estado, é a mais alta expressão da ordem.
Bakunin escreveu em Estatismo e Anarquia2, livro que
acompanha o nascimento do movimento no interior da
vertente anti-autoritária da Primeira Internacional: “Pen-
samos que o povo não poderá ser feliz e livre senão quan-
do, organizando-se de baixo para cima, por meio de asso-
ciações autônomas e inteiramente livres, fora de qual-
quer tutela oficial, mas de forma alguma fora de influências
diversas e livres numa igual medida de individualidades
e partidos, ele próprio criar sua vida”. Ele afirmara no pa-

196
verve
Anarquia e anarquismo

rágrafo precedente que: “Qualquer poder de Estado, qual-


quer governo, colocado por sua natureza e posição fora ou
acima do povo, deve necessariamente esforçar-se para sub-
meter este último a regras e a objetivos que lhe são exte-
riores”. Portanto, “nós nos declaramos inimigos de todo
poder de Estado, de todo governo, inimigos do sistema es-
tatal em geral.” E conclui: “São essas as convicções dos
revolucionários-socialistas, e é por isso que são chama-
dos anarquistas. Não protestamos contra esse epíteto, pois
somos, de fato, inimigos de qualquer autoridade, e sabe-
mos que esta exerce o mesmo efeito perverso tanto sobre
aqueles que dela são investidos quanto sobre aqueles que
devem a ela se submeter. Sob sua ação deletéria, os pri-
meiros tornam-se déspotas ambiciosos e ávidos, explora-
dores da sociedade visando lucro pessoal ou de casta; os
outros, escravos.”
Desde o congresso de Saint-Imier e esse escrito de
Bakunin, passaram-se mais de cento e vinte anos e, com
o vigor da experiência do movimento anarquista, de seus
avatares, de sua sorte muitas vezes trágica, do medo que
ele sempre suscitou nos proprietários e donos deste mun-
do, e da violenta repressão que eles lhe opuseram, nós, os
anarquistas de hoje, orgulhosos da vivacidade de nossas
idéias, podemos continuar a afirmar a anarquia como uma
proposta para o futuro, como um caminho para as gera-
ções vindouras.
Diremos, então, que a anarquia designa um regime
social baseado na liberdade individual e coletiva, regime
do qual é banida qualquer forma institucionalizada de co-
erção e, conseqüentemente, qualquer forma instituída de
poder político (ou de dominação).
A liberdade anarquista, enquanto princípio positivo de
organização política da sociedade, é a outra face da nega-
ção do princípio de autoridade, negação constitutiva do
conceito de anarquia que atrai o acordo geral de todos

197
7
2005

aqueles que se reconhecem no anarquismo em todas as


suas variantes, do individualismo ao comunismo (deixa-
remos aqui de lado este monstro híbrido e contra-nature-
za chamado anarquismo de direita).
Se falamos de liberdade anarquista é porque dois ele-
mentos dão sua especificidade a essa liberdade própria a
uma sociedade anarquista; um é a ruptura radical com a
continuidade sócio-histórica do princípio do comando-obe-
diência constitutivo de qualquer poder instituído, de qual-
quer “Estado” (paradigma tradicional da dominação justa).
O outro é que, para os anarquistas, a liberdade não pode
ser separada de uma sinergia dos valores, na qual a igual-
dade é sua condição necessária. Assim, a liberdade é uma
criação social historicamente determinada, como aliás a
dominação; apenas a negação escapa desse determinis-
mo da ação acabada e torna-se a força criadora, a vontade
de inovação. Proudhon escreve: “A negação em filosofia,
em política, em teologia, em história, é a condição prévia
da afirmação. Todo progresso começa por uma abolição,
toda reforma se apóia na denúncia de um abuso, toda nova
idéia repousa sobre a insuficiência demonstrada da anti-
ga.” Da negação do governo surge a idéia positiva “que deve
conduzir a civilização a sua nova forma”.3 Dito com as pa-
lavras de Bakunin: “A vontade — ou a paixão — de des-
truir é ao mesmo tempo uma vontade criadora.”4
Segue-se a crítica sem concessões ao contrato social
dos liberais, tanto na linha lockeana quanto rousseauni-
ana. Os “doutrinários liberais” afirmam que a liberdade
individual é anterior à sociedade política e que cada indi-
víduo aliena-se no “pacto social”, na ficção de uma unida-
de coletiva abstrata depositária da soberania. Para os anar-
quistas, ao contrário, a liberdade advém na história. A idéia
liberal que pressupõe os homens como “todos naturalmente
livres, iguais e independentes”5, antes da sociedade polí-
tica, serve para legitimar a existência do Estado. A partir

198
verve
Anarquia e anarquismo

de um pacto ou contrato primitivo teorizado como um ato


de fundação do poder político “que supõe ao menos por uma
vez a unanimidade”, os liberais justificam o dever de obe-
decer àqueles que comandam e de aceitar as leis impos-
tas pelos diferentes regimes. “De fato, se não houvesse
qualquer convenção anterior onde estaria”6 a obrigação
de submeter-se ao Governo ou de obedecer à lei? De onde
viria o direito de coagir do Estado?
“O homem só chega com muita dificuldade à consci-
ência de sua humanidade e à realização de sua liberda-
de.” É no interior da sociedade, com os outros seres huma-
nos, que a idéia de liberdade aparece e se desenvolve como
um valor a ser conquistado. A liberdade é “a grande meta,
o fim supremo da história.”7
Dessa proposição decorre que, sendo a liberdade uma
criação sócio-histórica, ela é a obra do coletivo humano.
Nem nada, nem ninguém, nem deuses nem a natureza,
dão ao homem sua liberdade. Ele se dá a si próprio, ele
institui seu nomos, sua regra, sua “lei”. A anarquia esta-
belece, de início, um corte radical com qualquer hetero-
nomia.
A anarquia é, portanto, a figura de um espaço político
não hierárquico organizado para e pela autonomia do su-
jeito da ação (a autonomia do sujeito humano, sujeito cons-
truído como forma individual ou coletiva). A construção
desse espaço público, e das instituições que o tornarão
possível, é uma tarefa sempre inacabada. Mesmo na soci-
edade mais aberta e mais livre que se possa conceber, o
anarquista será um transgressor da norma; contra aquilo
que é, ele estará ao lado daquilo que, ainda não sendo,
tem a possibilidade de advir. “Tudo está na história, no
social-histórico, mas o anarquismo não é historicista”.8
Errico Malatesta escreveu: “Não se trata de fazer a
anarquia hoje, ou em dez séculos, mas de avançar na

199
7
2005

direção da anarquia hoje, amanhã, sempre.” Ele pensava


que a anarquia somente seria possível se o homens a de-
sejassem e se colocassem em ação uma vontade revolu-
cionária. “A existência de uma vontade capaz de produzir
efeitos novos, independentes das leis mecânicas da natu-
reza, é um pressuposto necessário para aqueles que sus-
tentam que é possível reformar a sociedade.”9 E para ir na
direção de um “estado de sociedade sem governo, sem po-
der, sem autoridade constituída”10 é preciso, então, pen-
sá-lo e querê-lo. Assim concebida, a anarquia inscreve-se
na longa duração da História, ela se identifica com o espí-
rito de revolta e com o desejo de liberdade, mas acrescen-
ta um conteúdo conceitual, uma imagem de sociedade que
lhe é própria.
Com um certo anacronismo, autores diversos pensa-
ram ver no passado longínquo o sopro da anarquia: mesmo
Max Nettlau, o Heródoto da anarquia como é chamado por
Rudolph Rocker, vai buscar na Antiguidade a “lembrança
de revoltas e até de lutas, que nunca atingiram seus fins,
levadas a cabo por alguns rebeldes contra mais poderosos”
e, segundo o mito dos Titãs ou de Prometeu, passando pe-
los heréticos contra os dogmas do papado romano, os Ir-
mãos do livre espírito, os discípulos de Huss, os libertinos,
os mártires como Servet ou Bruno, a Abadia de Telemo, os
furiosos, Babeuf e Maréchal, até a Enquiry concerning Poli-
tical Justice de Godwin, ele irá encontrar aí os precursores
desses anarquistas que talvez um dia darão fim à “longa
noite da era autoritária”. Todas essas lutas, esses esfor-
ços, esses sofrimentos, as aspirações desses vencidos
muitas vezes mergulhados em sangue, são momentos for-
midáveis no caminho da liberdade; eles abriram o cami-
nho para o anarquismo, mas ainda não fazem parte da
idéia da anarquia.
O trono desmorona e o altar treme, a república substi-
tui a monarquia de direito divino, mas a luta contra a au-

200
verve
Anarquia e anarquismo

toridade instalada não significa em si a negação de toda


autoridade, nem se alinha necessariamente com a ima-
gem de uma sociedade sem coerção. Como diz Claude
Harmel, em sua Histoire de l’anarchie:
“Se incluíssemos na linhagem anarquista todos aque-
les que se revoltaram contra o poder, contra a idéia de
poder, a história da anarquia se confundiria com a histó-
ria dos homens: ela seria o avesso da história universal.”
Imaginar a anarquia como a definimos, pensar a teo-
ria ou o projeto de uma sociedade anarquista, é uma pos-
sibilidade que aparece em um momento particular da his-
tória do Ocidente e que não surge, acabada e por acaso, da
cabeça de um rebelde genial; ela é o produto das condições
reais da exploração e da dominação de classe, da forma
estatal do poder político e das lutas sociais conexas. Ela é
filha da Luzes e da Revolução Francesa. Mas, uma vez
concebida, ela não se reduz às condições que determina-
ram seu nascimento. Sua força expansiva propaga-se como
um valor à disposição de toda a humanidade. Além disso,
as idéias em geral não tem uma origem identificável, elas
existem em embrião, ou em fragmentos, aqui e ali, mas
elas se solicitam, reúnem-se, reorganizam-se e adquirem,
retrospectivamente, um sentido novo quando uma nova
situação social as faz viver. A idéia surge da ação e deve
voltar à ação, afirmava Proudhon11, e Bakunin vai mais
longe12: é preciso ir da vida à idéia. “Quem se apóia na
abstração, aí encontrará a morte”.
Quando o movimento anarquista se constitui como tal
— origem que podemos situar historicamente, para dar
uma data simbólica, no congresso de Saint-Imier —o anar-
quismo irá se tornar um corpus teórico que organiza, sis-
tematiza, representa e justifica a luta, e os métodos de
luta, para chegar a uma transformação profunda da soci-
edade visando construir um espaço político — ou regi-
me político — concebido como anarquia.

201
7
2005

A anarquia é a meta, a finalidade do anarquismo. No


entanto, o conteúdo socialista do anarquismo não se con-
centra em uma única tendência e, de acordo com os mo-
mentos da história e as regiões do globo, as correntes anar-
co-individualistas, mesmo minoritárias, sempre irão ma-
nifestar sua presença. Evidentemente, pela própria lógica
que emana de suas premissas, e também pelo espírito
iconoclasta que lhe é inerente, o anarquismo nunca será
redutível a uma única doutrina, nem a um pensamento
justo ou correto. Sem centro, sem dogma, combatendo sem
trégua qualquer grupo que em seu nome pretender defi-
nir uma ortodoxia, o anarquismo será múltiplo, diverso,
multicolorido.
Por essas mesmas razões, Malatesta dava, ou me-
lhor, acrescentava, uma outra interpretação para a
distinção entre anarquismo e anarquia. Ele queria li-
berar o anarquismo de qualquer ligação com um espí-
rito de sistema, sempre restritivo, que o faria depen-
der de uma “verdade” científica ou uma demonstra-
ção filosófica. “O anarquismo nasceu da rebelião moral
contra as injustiças sociais”, da luta contra a explora-
ção e a opressão; somente o desejo e a vontade de
mudar justificam a anarquia. “A anarquia [...] é o ide-
al que talvez nem mesmo se realize, assim como nun-
ca se atinge a linha do horizonte, que se distancia
conforme nos aproximamos dela, [em contrapartida] o
anarquismo é um método de vida e de luta, e deve ser
praticado hoje e sempre, pelos anarquistas, no limite
das possibilidades que variam de acordo com os tem-
pos e as circunstâncias.”13 O anarquismo, como teo-
ria da sociedade e da revolução ou como método de
ação, pertence à épistémè de sua época e depende do
clima social onde ele se desenvolve. A anarquia, como
valor, é mais ligada à negação do presente e à aspira-
ção, que gostaríamos de acreditar universal, a um
mundo de livres e iguais.

202
verve
Anarquia e anarquismo

Assim, se a idéia, e mesmo a palavra “anarquia” po-


dem ser encontrados na palavra de alguns precursores
— Willian Godwin, Pierre-Joseph Proudhon, Anselm
Bellegarrigue, Ernest Coeurderoy, Joseph Déjacques —
o anarquismo revolucionário e socialista é construído
assim que termina a Comuna.
O pensamento coletivo elaborado no interior da velha
Internacional vai se desenvolver, para os anarquistas,
sobre algumas linhas de força maiores: o enfrentamento
e a não-colaboração das classes, o internacionalismo, o
federalismo, a ação direta. Os prodhonianos haviam se
tornado minoria — os marxistas também o eram, como
sempre o foram — no interior da Primeira Internacional
— quando Eugène Varlin escreveu a James Guillaume
(dezembro de 1869): “Os princípios que devemos nos es-
forçar para fazer prevalecer são aqueles da quase unani-
midade dos delegados da Internacional no congresso de
Bâle (setembro de 1869), ou seja, o coletivismo ou o co-
munismo não-autoritário.”14
Na época, o que fora afirmado e representado pelo
coletivismo era que a terra e os instrumentos de traba-
lho, todos os meios de produção, deveriam ser proprie-
dade coletiva. Que o Estado seria substituído pela livre
federação dos produtores, e o assalariado pelo trabalho
associado, que garantiria a todos e a cada um o produto
integral de seu trabalho. “De cada um segundo seus
meios, a cada um de acordo com seu trabalho.”
Para os primeiros internacionalistas, para Bakunin
e Guillaume, para os jurassianos, este princípio dito
coletivista era suficiente; os espanhóis permaneceram
ligados a ele até o fim do século. Eles pensavam que
após a revolução, cada grupo ou coletividade avaliaria,
em função de suas possibilidades, qual modo de distri-
buição do produto poderia ser adotado. Guillume reco-
nhecia que a repartição (ou a divisão) era “talvez o pon-

203
7
2005

to mais delicado de toda a organização social...” e nunca


quis abandonar o ponto de vista coletivista.
Mas ninguém tinha uma idéia clara — pensava Ma-
latesta em sua polêmica com Nettlau em 192615 — quan-
to ao modo de atribuir a cada indivíduo, ou a cada as-
sociação, a parte do solo, a matéria prima e os instru-
mentos de trabalho que lhes caberia, nem como medir o
trabalho de cada um, nem como estabelecer um critério
de valor para a troca. A seção italiana da Internacional,
no congresso de Florença de 1876, será a primeira a ado-
tar o comunismo anarquista para resolver esse proble-
ma. Os delegados pensaram que a única solução para
realizar o ideal da fraternidade humana escapando de
qualquer embrião de governo, e ao mesmo tempo, elimi-
nando as insolúveis dificuldades da medida do esforço do
trabalho e do valor do produto, era a organização comu-
nista na qual cada um daria, voluntariamente, sua con-
tribuição à produção e consumiria livremente aquilo que
necessitava.16 Essas opiniões foram rapidamente difun-
didas no Jura e em Genebra por François Dumartheray,
Carlo Cafiero, Elisée Reclus, Piotr Kropotkin e outros, re-
tomadas em seguida pelo Révolté de Genebra e de Paris
e, a partir dos anos 1879-80, elas se generalizaram para
a quase totalidade do movimento anarquista. Assim, o
anarco-comunismo propagou o lema: “De cada um, se-
gundo suas forças, a cada um segundo suas necessida-
des.”
Alguns, como Nettlau, que cita a seu favor os “corajo-
sos anunciadores de um anarquismo sem hipótese eco-
nômica, como Ricardo Mella e Voltairine de Cleyre”, con-
tinuaram a defender o anarco-coletivismo e a recrimi-
nar os anarco-comunistas por seu desejo de ir o mais
longe possível sem ver que o comunismo exigia a abun-
dância, e que a Revolução deve resolver, assim que ter-
minada, o problema do abastecimento de todos, sendo

204
verve
Anarquia e anarquismo

certo que isso se dará em meio à penúria. “Tomar in-


distintamente” seria um desastre para os revolucioná-
rios.
É possível, reconhece Malatesta, que “no entusias-
mo dos iniciadores nós tenhamos imaginado as coisas
mais simples e mais fáceis do que elas são na realida-
de, mas não deixamos de compreender e de ressaltar
que a abundância é uma condição necessária do comu-
nismo, e que essa abundância não pode ser produzida
num regime capitalista.” [...] “O talento literário e o gran-
de prestígio de Kropotkin tinham tornado aceitável a
infeliz fórmula della presa nel mucchio (tomar indistin-
tamente), mas “retornando da América do Sul (1890),
chamei a atenção para o absurdo da crença na abun-
dância, e tentei demonstrar que o prejuízo provocado pelo
regime capitalista não é tanto a criação de um enxame
de parasitas, mas o de impedir a abundância possível,
detendo a produção ali onde se detém o lucro do capita-
lista.”17
O anarquismo revolucionário permaneceu comu-
nista mesmo sabendo que nem a anarquia nem a pas-
sagem de uma economia de sobrevivência para uma
economia de abundância podem ser feitas em um dia,
mas que a luta para chegar a isso é de hoje, de ama-
nhã e de sempre.

Tradução do francês por Martha Gambini.

Notas
1
“Distinguem-se comumente a justiça distributiva e a justiça comutativa. A pri-
meira, exercida por via de autoridade, consiste na repartição dos bens e dos males
segundo o mérito das pessoas. A justiça comutativa, ao contrário, consiste na
igualdade das coisas trocadas, na equivalência das obrigações e das cargas estipula-
das nos contratos. Ela comporta a reciprocidade, e se fosse realizada em estado

205
7
2005

puro, excluiria a intervenção de um terceiro, ao passo que essa intervenção é a


própria condição do exercício da justiça distributiva. “1. Commutative (justice), in
Vocabulaire technique et critique de la philosophie de André Lalande (1991).
2
Michel Bakounine, Étatisme et Anarchie. Œuvres complètes, éd. Champ libre,
Paris, 1976, vol. iv, p. 312 (escrito em 1873, Estatismo e anarquia é o último texto de
Bakunin publicado antes de sua morte, ocorrida em 1876). Há publicação em
protuguês como Estatismo e anarquia, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São
Paulo, Imaginário/Nu-Sol/Ícone, 2003. (N. E.).
3
Pierre-Joseph Proudhon, Du principe d’autorité – Idée générale de la révolution au XIXe
siècle, Paris, éd. de la Fédération anarchiste, 1979, p. 82 (ver crítica de Rousseau: pp.
94-96).
4
Michel Bakounine, “La Réaction en Allemagne” [1842], in l’Anarchisme aujourd’hui
de Jean Barrué, Paris, Spartacus, 1970 (A tradução feita por Barrué da célebre
fórmula é: “A volúpia de destruir é ao mesmo tempo uma volúpia criadora!!!!), p.
104. Lemos essas linhas estranhamente semelhantes trinta anos após em Estatismo
e anarquia : “Essa paixão negativa da destruição está longe de ser suficiente para
levar a causa revolucionária ao nível desejado; mas sem ela essa causa é inconcebí-
vel, e mesmo impossível, pois não há revolução sem destruição profunda e apaixo-
nada, destruição salvadora e fecunda, porque precisamente dela, e somente por ela,
são criados e produzidos novos mundos.”
5
John Locke, Traité du gouvernement civil, chapitre VIII: Du commencement des
sociétés politiques.
6
Jean-Jacques Rousseau, Du contrat social, livre I, chapitre V.
7
Michel Bakounine, “l’Empire knouto-germanique [ Dieu et l’État ]”, in Bakounine,
Œuvres complètes, vol. viii, éd. Champ libre, Paris, 1982. Publicado em português
como Deus e o Estado, Tradução de Plínio Augusto Coelho, São Paulo, Imaginário/
Nu-Sol/Soma, Coleção Escritos Anarquistas, 2000, v. 9. (N.E.).
8
Por “historicismo” entendemos o ponto de vista que toma como norma aquilo
que é historicamente consagrado; Feuerbach denuncia no historicismo uma forma
de relativismo histórico levando à aceitação não crítica do mundo presente. Se o
historicismo torna-se prospectivo, ele verá no fim da história o cumprimento de
uma finalidade: o advento do reino de Deus, ou o triunfo do proletariado.
9
Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 2, Roma, 1926. “Ancora su scienza e
anarchia”, in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 211.
10
A. Hamon. Socialisme et Anarchisme, Paris, éd. E. Sansot et Cia, 1905 (Definição
de anarquia, p. 114).
Pierre-Joseph Proudhon. De la Justice dans la Révolution et dans l’Église, Paris,
11

Garnier Frères, 1858, tome II, p. 215.

206
verve
Anarquia e anarquismo

12
Michel Bakounine. Étatisme et Anarchie, op. cit., p. 309.
13
Errico Malatesta. “Repubblicanesimo sociale e anarchismo”, Umanità Nova, n°
100, Roma, 1922, in Scritti, Ginevra, 1936, vol. II, pp. 42-43.
James Guillaume. l’Internationale. Documents et souvenirs, édit. Grounauer,
14

Genève, 1980, vol. I, p. 258


15
Errico Malatesta. Pensiero et Volontà, n° 14, Roma, 1926. “Internazionale collet-
tivista e comunismo anarchico” in Scritti, Ginevra, 1936, III vol., p. 253 e sgs (ver
também os dois artigos de Max Nettlau publicados no Suplemento de La Protesta
de Buenos Aires : “Colectivismo y comunismo antiautoritario en la concepción de
P. Kropotkin”, 20 de setembro de 1928; “Algunos documentos sobre los orígenes
del anarquismo comunista” [1876-1880], 6 de maio de 1929).
16
Idem, p. 260.
17
Ibidem, pp. 263-264.

RESUMO

A importância do comunismo anarquista, situado historicamente,


no interior dos anarquismos.

Palavras-chave: Anarquismos, comunismo anarquista, anarco-sin-


dicalismo.

ABSTRACT

The importance of the anarchist communism, historically located


inside the anarchists practices.

Keywords: anarchism, anarchist communism, anarco-syndicalism.

Indicado para publicação em 15 de março de 2004.

207
7
2005

quando se anda
de costas para a lua
a sombra chega antes

Sergio Cohn

208
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

centro de cultura social, uma prática


anarquista

entrevista com josé carlos morel

Apresentação
Estamos na nova sede do Centro de Cultura Social,
associação anarquista criada em 1933, situada na Rua
Inácio Araújo, 191-A, em frente a estação Bresser do
Metrô, na cidade de São Paulo. Sentados em roda, es-
tão José Carlos Morel e alguns companheiros do Cen-
tro de Cultura Social — CCS (Nildo Avelino, Anamaria
Salles, Fabrício Martinez, Francisco Cuberos Neto,
Francisco Romero Ripó Neto, Nilton César dos Santos
Melo). Entre eles Edson Passetti, Acácio Augusto e Thi-
ago Parafuso Sousa Santos, pilotando a câmera. É sá-
bado, 31 de janeiro de 2004, à tarde, durante uma for-
te chuva de verão.
A longa conversação atravessa a tempestade entre
cafés, risadas, interrupções, trocas de concepções.
Uma parte desta conversação foi transcrita para cá.

verve, 7: 209-223, 2005

209
7
2005

Nu-SoL — Como é que aconteceu o anarquismo na sua


vida?
Morel — A primeira vez que eu ouvi falar de anar-
quismo, de uma maneira não pejorativa, foi em 68, num
artigo da revista Manchete. Maio de 68, aquela coisa toda.
A Manchete publicou um artigo que falava dos jovens
anarquistas com uma foto de uma passeata enorme em
Paris. Aquela em que os caras estavam derrubando os
carros, com umas bandeiras pretas em cima da barri-
cada feita com automóveis. Esta foi a primeira vez que
ouvi falar de anarquismo. Eu já tinha uma inquietude
em relação a isso. A minha família era muito politiza-
da. Os anos sessenta, no Brasil, foram anos de muita
polarização política. Eu me sentia, instintivamente, pró-
ximo do socialismo, mas aquelas coisas que o partido
comunista fazia eu achava muito, muito chato, uma
merda! Eu procurava alternativas e, na época, tinha
muita coisa rolando. O anarquismo aconteceu politica-
mente aí, fazendo uma proposta de mudança, de revolu-
ção, que não passava pelo partido, pela organização cen-
tralizada. Logo a seguir, achei num sebo aquele livro do
George Orwel sobre a Espanha, editado pela Civilização
Brasileira. E lá se falava um pouquinho de anarquismo,
mas o Orwel nunca desceu do muro. Ele era simpático
aos anarquistas, mas não explicava muita coisa. Mes-
mo assim, comecei a me interessar, a buscar coisas.
Um ano e meio depois, encontrei três livros que foram
importantes. Um eu encontrei num sebo que ficava lá
perto do largo São Francisco. Era o livro de um portugu-
ês chamado Silva Mendes, de 1892, chamado: Socialis-
mo Libertário ou Anarquismo. Na livraria Hemus, que fi-
cava na São João encontrei dois livros que o Roberto das
Neves tinha editado: O Anarquismo, uma coletânea de
artigos do Edgar Leuenroth, e a tradução de O Anarquis-
mo do Daniel Guérin. Então, comecei a ler e a descobrir.
Tinha aquele negócio que o Karl Marx era o grande pen-

210
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

sador do socialismo, e o Silva Mendes descrevia toda


aquela luta do Marx contra o Proudhon, do Marx com o
Bakunin; um livro muito bem feito, uma tese defendida
na Universidade de Coimbra. Escrevi para o Roberto das
Neves, que tinha uma caixa postal impressa na orelha
do livro. Ele me deu o endereço do Centro de Cultura
Social, lá no Brás. Lá bati, mas estava fechado. Eu fi-
quei meio perdido. Só fui encontrar o Jaime Cubero em
1971, por meio de um colega meu de universidade, o
Marcelo Guimarães da Silva Lima. Comecei a me en-
volver com o movimento. É mais ou menos esta a histó-
ria...
— Em 1971, o Centro de Cultura estava fechado...
— Tinha ocorrido aquela repressão toda em 68. O pes-
soal do Rio de Janeiro tinha dançado, estava meio mun-
do ainda preso; acho que em 1970, o Ideal Peres estava
saindo da cadeia. O pessoal aqui em São Paulo quando
soube que eles tinham sido presos, achou prudente fe-
char. Fecharam as atividades na cidade, o Centro de
Cultura, e passaram a fazer movimento clandestina-
mente.
— Quantas pessoas estavam envolvidas na época com o
Centro de Cultura Social?
— Olha, aqui em São Paulo tinha bastante gente. Quer
dizer... A gente se reunia lá na loja do Jaime, na Celso
Garcia, 727, lá no sítio...
— O sítio que você está se referindo é a “Nossa Cháca-
ra”?
— É, a “Nossa Chácara”.
— Já era em Mogi?
— Já era em Mogi. Chegávamos a fazer reuniões com
40, 50 pessoas. Naquele tempo tinha muita gente do

211
7
2005

antigo movimento ainda viva. Foi no contato com estas


pessoas que fui me formando.
— E estas pessoas atuavam em quê?
— Olha, basicamente a gente tentava fazer o que era
possível; era muito pouco. Uma atividade importante era
manter o sítio. Uma outra foi a solidariedade aos com-
panheiros presos no Rio de Janeiro. O processo custou
muito caro, teve de ser contratado um bom advogado,
subornar gente pra sumir com provas... A coisa foi com-
plicada! Custou muito dinheiro. No começo dos anos
70, esta era, digamos, uma atividade importante: tirar
os caras da cadeia. Depois começou a haver um inte-
resse sobre o anarquismo, cultivado por várias coisas.
Uma delas foi a venda do arquivo Edgar Leuenroth, que
aliás essa é uma história que tem que ser contada di-
reitinho, noutra ocasião. O arquivo nunca foi proprieda-
de pessoal da família do Edgar Leuenroth, mas sim do
movimento anarquista. Mas, enfim, a família do Edgar
Leuenroth vendeu o arquivo pra UNICAMP, aí começou
a haver um certo interesse. Era 1973. O Azis Simão,
que foi professor de Sociologia da USP, queria levar o
arquivo para lá, mas naquele tempo o reitor era o Mi-
guel Reale, que era um fascista, etc e tal. E aí, acabou
indo pra UNICAMP, porque o Zeferino Vaz, embora sen-
do um homem de direita, era um cara com uma cabeça
universitária mais aberta e percebeu a importância do
acervo. Enquanto isso, começou a haver interesse pelo
anarquismo e vinha muita gente procurar o Jaime, o
Germinal, os velhinhos para saber de coisas sobre a his-
tória do movimento. E se fazia isso, além de manter o
trabalho de correspondência com grupos de fora e o de
articulação dentro do Brasil. Até 1976, havia basicamen-
te um grupo atuante aqui em São Paulo, que tinha a
“Nossa Chácara”; o pessoal do Rio que se rearticulou
depois de sair da prisão; e tinha o pessoal no Rio Grande

212
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

do Sul, em Porto Alegre, que eram o Puig, o nosso com-


panheiro Augusto, já falecido, e que era um militante
exilado da revolução espanhola. O Salvador também. Nós
nos correspondíamos, fazíamos alguns encontros, e atu-
ávamos, na medida do possível, no movimento estudan-
til, alguma coisa no movimento sindical, muito pouqui-
nho. Foi só no final dos anos setenta que a gente conse-
guiu aumentar os grupos. Bom, no começo foi assim.
— A tua formação foi dentro do Centro de Cultura Soci-
al?
— Foi dentro do Grupo Projeção. O Centro de Cultura
foi organizado só em meados dos anos oitenta. A gente
formou, naquela época, o Grupo Projeção.
— Você era o caçula?
— Eu era o caçula... foi em 1974, um pouco depois do
desfecho do processo lá no Rio. Do Grupo Projeção fazi-
am parte: Diamantino Augusto, que é uma excelente
figura, um cara das greves de Santos, botava bomba no
forno de padaria, excelente companheiro; o Edgar Rodri-
gues; o Fernando; o Matos; o Ideal — Ideal Peres; Ester
Redes; Jaime Cubero; Francisco Cuberos; o Nito Lemos
Reis; o Liberto Lemos Reis...
— O Martinez?
— Antônio Martinez, também um excelente compa-
nheiro, operário metalúrgico e veterano dos combates
contra os fascistas na Praça da Sé em 1933, um cara de
muito valor, e eu, doze. Era essa era a formação inicial
do Grupo Projeção. Eu tinha lido um pouco sobre anar-
quismo, mas a formação prática eu tive dentro do Proje-
ção, dentro do sítio, onde as coisas se faziam.
— Por que criar o Grupo Projeção?

213
7
2005

— O Projeção foi fundado com uma dupla finalidade:


preservar e resgatar o que tinha sobrado da memória,
porque grande parte tinha ido embora para UNICAMP;
foi fundado com a idéia de se rearticular o movimento
naquela etapa, era o finzinho dos anos Médici, uma con-
juntura muito difícil. A gente tinha de começar a fazer
alguma coisa. Tinha o sítio e afinal de contas, havia
alguns grupos remanescentes, uma intensa correspon-
dência. Naquele tempo ainda não tinha entrado a dita-
dura pra valer na Argentina. Lá e na Venezuela havia
muitos grupos anarquistas com os quais nos correspon-
díamos. Tentava-se fazer alguma coisa, na medida do
possível, de apoio a esses grupos. Atuar na conjuntura
política local era muito difícil, porque você tinha de um
lado a ditadura fascista, e de outro lado a esquerda do-
minada pelo Partido Comunista. Até os trotskistas, na-
quele tempo eram extrema esquerda. Você compara, por
exemplo, o Pallocci, hoje alinhado com o FMI e..., pensar
que nos anos setenta os troscos se diziam de extrema
esquerda, soa gozado hoje em dia!... Então, foi aí que a
gente começou. O Projeção teve um papel, acho que
muito importante, na rearticulação do movimento anar-
quista no Brasil e, também, na continuidade desse mo-
vimento. Existe um erro cometido pelos historiadores
ao afirmarem, desde os anos sessenta que “o anarquis-
mo morreu quando se fundou o Partido Comunista em
vinte e dois”. Mas a pesquisa histórica avançou e mos-
trou que até trinta e cinco, trinta e sete tinha anar-
quista atuando; daí o enunciado se redimensionou, pas-
sando-se a decretar a morte do anarquismo no final dos
anos trinta. Mais tarde, passaram a afirmar que o anar-
quismo acabou depois da ditadura Vargas; aí a pesquisa
histórica vai lá, vai olhar, e vê que os anarquistas não
morreram, até sessenta e oito, setenta eles estavam
fazendo coisas. De fato, no começo da década de setenta
a gente estava meio por baixo, quer dizer, não tinha

214
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

muito movimento, não havia uma juventude... No meu


tempo de estudante, eu era considerado, assim, uma
coisa bizarra. Ser anarquista e ser universitário era uma
coisa complicada. E a malhação era pesada, também.
Acusavam o anarquismo de pequeno burguês, de ins-
trumento objetivo da burguesia, de fóssil ideológico. Or-
ganizar o movimento era muito difícil. Só começou a
acontecer efetivamente a partir de 1975. O panorama
começa a mudar, mesmo na Europa e nos EUA. Ocorre a
Revolução dos Cravos, em Portugal. Tinha-se derrubado
o fascismo por uma revolução levada pelos grupos de ex-
trema esquerda, autonomistas. E os anarquistas come-
çam a se rearticular em Portugal, e a gente começou a
apoiar o movimento português, com algum material de
propaganda que restava — brochuras do Faure, do Mala-
testa, folhetos anarco-sindicalistas, etc.) O Jaime nes-
se ponto teve um papel importantíssimo. Ele e o Chico
[Francisco Cuberos], porque era através da loja de sapa-
tos que eles tinham que se despachava material, dri-
blavam a censura... Então, no comecinho foi assim. Em
meados da década de setenta o movimento começa a
crescer um pouco. O Ideal entra em contato com o Re-
nato Liper na Bahia, por volta de setenta e cinco, seten-
ta e seis. E dois anos depois, em setenta e sete, a gente
faz um congresso na “Nossa Chácara” e se lança o jor-
nal Inimigo do Rei, que já tinha dois números e era uma
iniciativa dos baianos. No carnaval de setenta e sete a
gente resolve transformar o Inimigo do Rei no porta voz
dos anarquistas no Brasil. E aí eu acho que há uma marca
e o anarquismo toma um novo impulso no Brasil, muita
gente jovem aparece; começa a se criar grupos em vá-
rios locais do Brasil: no Nordeste, em Mato Grosso, e
mesmo aqui em São Paulo, com grupos feministas e es-
tudantes muito ativos. São estabelecidos vínculos mais
fortes com o movimento sindical e criados grupos anar-
co-sindicalistas, grupos de homossexuais, grupos ecoló-

215
7
2005

gicos... Eu me lembro que teve uma manifestação que


nós fizemos em setenta e oito contra aquele negócio de
Angra II, enriquecimento de urânio pra fazer a bomba,
etc e tal; os anarquistas, eles eram a maioria da passe-
ata na praça da Sé. O Inimigo do Rei, chegou a vender, só
aqui em São Paulo, com o esforço dos militantes mes-
mo, quatro mil exemplares. Então, acho que a partir daí
entra uma outra fase. Eu acho que são dois momentos:
começo dos anos setenta até final da década e o Inimigo
do Rei. Ele mostra claramente a vitalidade do anarquis-
mo, que era insuspeita, e começa a atrair a atenção de
muita gente jovem; é então que se pensa em rearticu-
lar o Centro de Cultura Social.
— E como isso aconteceu?
— Houve várias tentativas. Entre 1977-1978, o pes-
soal aqui em São Paulo estava pensando em rearticular
o Centro de Cultura; me lembro de uma reunião do Pro-
jeção que a gente fez, o Ideal até defendeu uma posição
contrária, porque ele achou que na época, se a gente
fundasse o Centro de Cultura, a gente ia se fechar, quer
dizer, a gente estava na época atuando em vários movi-
mentos sociais. O Ideal começou a atuar em movimen-
tos de bairros com uma força muito grande no Rio de
Janeiro. Depois o Brizola se apropriou, mas realmente
foi um impulso... Eu cheguei a participar de um con-
gresso lá com o Ideal em setenta e nove aonde havia
dois mil e poucos delegados de bairro: o congresso se
deu sem mesa. Uma pessoa pra tomar conta das inscri-
ções, um microfone no canto, a pessoa pegava seu nú-
mero na hora de falar, quer dizer: um congresso com
duas mil e quinhentas pessoas, dois dias e meio de con-
gresso que aconteceu sem mesa, discutindo os proble-
mas da cidade. Então, naquele momento o Ideal foi con-
tra a gente tentar fundar o Centro de Cultura, porque
ele achava que a gente ia deixar de fazer o trabalho de

216
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

propaganda e divulgação, que estava indo muito bem e


iria se fechar em torno de uma organização. Somente
retomamos a idéia de reabrir o Centro de Cultura Soci-
al por volta de 1982. Aí a conjuntura já era outra. O anar-
quismo nesses anos se consolida. Uma das vantagens
(vantagem entre aspas) da ida do arquivo para UNICAMP
foi que as pessoas começaram a pesquisar naquele ar-
quivo, e começou a se desmistificar uma imagem que
os marxistas faziam do anarquismo, começou a se ver
que não era nada daquilo, que o anarquismo era um
movimento político forte, atuante, que tinha presença
não só no meio dos trabalhadores, mas em vários outros
meios, tinha presença entre os intelectuais, uma visão
ampla do mundo, não era só uma questão economicis-
ta, não era só uma questão de classe apenas. Isso tudo
foi sendo descoberto, entre três aspas também, pelo pes-
soal que faz os trabalhos lá no arquivo Edgar Leuenroth,
na minha opinião muito contra vontade; se você for pe-
gar a bibliografia destes trabalhos os caras citam Marx,
citam Trotski, citam Althuser, citam Che, etc. e tal, mas
ler texto anarquista que é bom é uma minoria que lê.
Mas mesmo assim os fatos existem e não podem ser
negados. Naquela antologia que o Paulo Sérgio Pinheiro
fez, A Classe Operária no Brasil, ele faz o possível pra
dizer que não teve anarquismo no Brasil, mas os textos
que ele junta mostram que não só você teve anarquis-
mo, como tinha o anarquismo forte, atuante, com uma
proposta de mudança social totalmente diferente do que
o Partido Comunista teria, e que tinha penetração soci-
al. Então, foi esse fato, no meu entender pelo menos,
que começou a despertar na cabeça das pessoas a ques-
tão da viabilidade. Então, o anarquismo não é mais uma
idéia, não é uma coisa gostosa de se pensar, não é uma
bela utopia, mas é alguma coisa que você pode cons-
truir.

217
7
2005

— No que você diferencia o anarquismo de todas as ou-


tras concepções de socialismo?
— Eu não vejo o anarquismo só como um ativismo
sem meta. O anarquismo aponta para uma transforma-
ção da realidade social. Ele aposta na capacidade das
pessoas de se auto-organizarem, mas isso não quer di-
zer que é uma explosão, um “vamos ver pra onde a coisa
vai”, não. Eu acho que existe a questão organizativa.
Mas o anarquismo não é messiânico, não aponta para
um estágio final de sociedade. Desde Proudhon o anar-
quismo pensa que as contradições estão aí, podem ser
superadas, mas que não há um fim da história. A histó-
ria é um contínuo construir. E nesse sentido a concep-
ção que você vai ter de revolução é outra. Se você falar:
eu quero o anarquismo para o ano três mil, até o George
Bush vai querer, porque não vai mudar nada aqui e ago-
ra. Entretanto, se você falar: bom, eu não posso fazer o
anarquismo para semana que vem, mas eu gostaria de
ver até o final da minha vida a sociedade se encami-
nhar para um estado menos autoritário, uma participa-
ção mais direta das pessoas, aí você começa a mexer
com interesses concretos. Eu acho que tem essa polari-
dade entre a evolução e a revolução, que para mim é
característica do pensamento anarquista.
— De onde vem a prática do Centro de Cultura?
— O Centro de Cultura vem da necessidade de for-
mar um espaço onde a informação política e a informa-
ção técnica, estejam disponíveis. Em segundo lugar que
essa informação seja submetida continuamente ao de-
bate, porque a partir desse debate, realmente, não só
você aprende, como você começa a perceber o limite
dessa informação, você começa a criar os fatos novos.
Eu vejo o Centro de Cultura como um herdeiro dessa
tradição. É claro, que o momento no qual ele é criado, é
um momento de crise. Nos anos trinta o anarco-sindi-

218
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

calismo no Brasil está sendo acossado. Na I Internacio-


nal a idéia dos ateneus estava ligada à idéia de sindica-
to; então, sindicato, bolsa de trabalho, escola raciona-
lista e ateneu libertário, seriam os quatros vértices, o
quadrilátero de ação política dos anarquistas. Nos anos
trinta isso não é mais assim, eu acho que a organiza-
ção sindical dos anarquistas está sendo acossada, de
um lado pela repressão policial, de outro lado, pela buro-
cratização, pela legislação... pela formação dos sindica-
tos atrelados ao governo. Os comunistas entram direto
nisso aí, e esta é uma história que precisa ser contada.
Nenhum historiador se debruçou, ou teve a curiosidade
de se debruçar sobre os fatos para saber qual foi a com-
pactuação dos marxistas com o modelo vertical de sin-
dicato, qual foi a compactuação dos marxistas com o con-
trole do trabalhador. Eu conheci, na loja do Jaime e do
Chico, um cidadão chamado J. Antônio. Acho que nos
anos setenta ele já tinha noventa anos. O J. Antônio se
recusou até noventa e tantos anos a ter carteira de tra-
balho assinada. Ele morreu vendendo creolina no Largo
da Concórdia [no bairro do Brás-SP], naqueles hoteizi-
nhos ali embaixo, no Largo da Concórdia. A sua profis-
são até noventa e tantos anos, era a de vendedor de cre-
olina. Não tinha aposentadoria, não tinha carteira de
trabalho assinada. Porque ele se recusava a prestar sa-
tisfações ao Estado. Então, era esse tipo de gente, não
só os famosos, que formava o Centro de Cultura. Era
esse tipo de gente que formava a “Nossa Chácara”; que
formava o sindicato anarco-sindicalista em São Paulo e
no Rio de Janeiro, até 1935, 1937. Nesse momento de
crise, em 1933, o Centro de Cultura é fundado porque
há uma percepção da parte do Edgar e dos outros mili-
tantes, que a atuação sindical precisava ser modifica-
da. Era preciso mudar um pouco a tática. Mas eu acho
que basicamente o projeto que o Centro de Cultura tem
ainda nos anos trinta, é um projeto que você pode ver

219
7
2005

na I Internacional. Em 1945, a conjuntura mudou bas-


tante. A ênfase principal do trabalho dos anarquistas
passa a ser a atuação dentro do Centro de Cultura; o
Centro de Cultura passa a adquirir um caráter, então,
não só, digamos, de universidade popular, mas passa a
adquirir um caráter também de instrumento político dos
anarquistas. E aí, o que há de notar nessa fase, de qua-
renta e cinco a sessenta e oito, coisas realmente que
são, no meu modo de entender, revolucionárias. Em
1946, o Centro de Cultura promove, além das atividades
de teatro, um curso de educação sexual. Imagine o que
não deve ter sido isso para uma São Paulo provinciana
de setecentos mil habitantes. E as pessoas iam, vinha
a família a esse curso, e vinham psicanalistas, etc. O
Centro tenta organizar até com algum sucesso, duran-
te um ano, um ano e meio, a Universidade Popular Pre-
sidente Roosevelt. Promove três versões de um curso de
doutrinas políticas. Já nos anos sessenta tem a grande
experiência do Laboratório de Ensaio, que é naquele tem-
po uma experiência de teatro político revolucionária. Eu
tenho aqui ao lado o Chico, que é um cara que partici-
pou das grandes revoluções do teatro paulista, desde
quarenta e sete até os anos oitenta. O Centro de Cultu-
ra Social passa a ter, nessa segunda fase de quarenta e
cinco a sessenta e oito, um cunho de resistência cultu-
ral, mas não se engane, tem gente que fala: anarquis-
mo culturalista, anarquismo isto, anarquismo aquilo...
Anarquismo é anarquismo. O Jaime gostava de falar: “o
anarquismo é um conjunto de postulados convergentes”.
Isso para mim é o anarquismo, é a base, é o método.
Não é porque o sujeito faz um trabalho assim, ou assa-
do, que ele é menos ou mais anarquista, do que o cara
que faz um trabalho assado ou cozido. O cara tem de ter
o mínimo de modéstia, tem de sentar o rabo numa ca-
deira e estudar, e se debruçar sobre a história do socia-
lismo, sobre a história do anarquismo. Verá então que

220
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

os caminhos são múltiplos. Verá que a gente tem de se


preocupar em trilhar bem o nosso caminho, que a gente
deve se preocupar com a meta que se quer atingir. É
claro que a ação é a contrapartida do estudo: ninguém
se esforça em aprender por nada. É preciso uma meta!
Se você considerar as coisas corretamente, do ponto de
vista da história e das lutas políticas e sociais dos anar-
quistas, verá que a teoria sem a ação é manca e que a
ação sem a teoria é cega! É pensar globalmente, e agir
localmente. Eu acho que nesse sentido o Centro de Cul-
tura, na república de quarenta e cinco até sessenta e
oito, tem um papel que não é mais o papel do anarco-
sindicalismo clássico, mas é um papel importante no
sentido de ressoar o anarquismo junto à sociedade glo-
bal.
— Os anarquistas não aceitam qualquer tipo de ditadura.
— Acho que qualquer ditadura faz um estrago inomi-
nável. Não só pelo que ela reprime, mas pelos mitos que
ela cria. Nem todo mundo que é perseguido por uma di-
tadura é um sujeito de esquerda. Tem muito cara que
foi perseguido pela ditadura e é um filho de uma puta. A
ditadura, de certa maneira, apaga fronteiras e põe todos
os gatos dentro do mesmo saco. E isso é uma coisa terrí-
vel, porque interrompe, quebra movimentos e desenvol-
vimentos, mistura coisas que estavam começando a se
clarificar, a se separar. Veja, quando a gente retoma a
idéia de Centro de Cultura em 1984, a gente retoma em
qual contexto? Já não dá para falar como se falava no
final dos anos sessenta, e no começo dos anos setenta,
que o anarquismo é uma invenção de pequeno burguês,
que o anarquismo é de uma mentalidade artesanal. Por-
que o próprio socialismo real, está fazendo água. Eu co-
nheço muito marxista que foi parar no psiquiatra quan-
do o Vietnã entrou em guerra com o Camboja. A briga da
linha chinesa com a linha soviética... Então, em mea-

221
7
2005

dos dos anos setenta não dá mais para tapar o sol com a
peneira, o socialismo real que veio da concepção mar-
xista, mostrou a que veio. É uma sociedade totalitária,
absolutamente indiferente para com as necessidades
individuais, uma sociedade militarizada e autocrática
que se formou com o pretexto da libertação do proletari-
ado e funciona como máquina de opressão e de explora-
ção. O eixo desta sociedade, tanto na China quanto na
Rússia estava na produção militar-industrial. Nos anos
oitenta não dá mais para o anarquismo ser taxado de
uma série de coisas. Ele passa a dar até um certo pres-
tígio. Os estudiosos do arquivo Edgar Leuenroth, como
me referi anteriormente, ao produzirem os seus estu-
dos começaram a mostrar que o anarquismo não era
aquilo que a vulgata marxista dizia que era. Começa a
aparecer, então, uma geração mais jovem, interessada
em fazer, em atuar com o anarquismo. Eu acho que o
Centro de Cultura, em São Paulo, se organiza em 1984,
mais ou menos em cima disso, com um grupo que tra-
balhava há alguns anos junto ao Inimigo do Rei. Houve
também aquele curso que nós organizamos na PUC-SP,
em 1979. Foi uma coisa... A mim me surpreendeu mui-
to. Porque foram seis sábados discutindo anarquismo, e
você não conseguia lugar no maior auditório da PUC-SP
[sala 333, para 350 pessoas sentadas] mesmo chegando
duas horas antes. No nosso caso, em particular, aí eu
falo do grupo de militância mais anarco-sindicalista
dentro do Centro de Cultura, do qual eu fazia parte, a
gente estava muito envolvido com a Oposição Sindical
Metalúrgica de São Paulo, com uma série de outras ati-
vidades. Resolvemos fundar o Centro de Cultura nesse
sentido: ter um instrumento, ter um local nosso, que a
gente pudesse levar as nossas discussões, fazer as nos-
sas propostas, e não ficar dependendo de acordos. Em
janeiro de 1984, o Jaime falou: “olha a mesma sala está
para alugar, aqui na Rua Rubino de Oliveira, a mesma

222
verve
Centro de cultura social, uma prática anarquista

sala igualzinha, nós vamos ter de fazer apenas a rea-


bertura em cartório... não precisa nem jogar fora os im-
pressos.” Então estava marcada uma reunião do sindi-
cato dos geólogos para discutir o Centro de Cultura. E
começou-se a discutir como é que ia ser, como é que
não ia ser, a gente chegou e falou, o Jaime tomou a
palavra e falou: “Olha eu queria informar que o Centro
de Cultura já foi reaberto, está situado em tal e tal lu-
gar, e a gente está tomando as adesões para sócios efe-
tivos até tal dia”. Isso foi uma bomba no lugar. A gente
conseguiu minimamente se renovar, não estou dizen-
do que isto aqui é um mar de rosas: não é! Tem proble-
mas sim, mas eu acho que estamos conseguindo uma
renovação do quadro social, conseguindo atingir pes-
soas novas, sensibilizá-las para nossa idéia. Isso é o que
importa. Tem de haver continuidade, porque você não
vai conseguir implantar o anarquismo depois de ama-
nhã. Há muita briga pela frente, e as nossas organiza-
ções têm de crescer, têm de estar antenadas no que
está acontecendo agora e no futuro. Eu acho que nesse
sentido o Centro de Cultura Social foi sempre muito pre-
sente. O importante é saber aliar a tradição anarquista
com os desafios políticos do momento. Se você for acom-
panhar a movimentação do Centro de Cultura isso é cla-
ro, acho que desde o comecinho isso é uma tradição, é
uma contribuição que a gente gostaria de passar para
as novas gerações.

223
Over the old wooden bridge
No traveller
Crossed

Henry D. Thoreau
Além da velha ponte de madeira
Viajante algum
Cruzou

Tradução de Thiago Rodrigues


7
2005

anarquismo na vida e na obra


de eugene o’neill

pietro ferrua*

Um estudo sistemático das atividades anarquistas do


grande dramaturgo, que eu saiba1, ainda não foi empre-
endido, porém há muitos ensaios sobre ele e os dados co-
lhidos permitem estabelecer uma trajetória, senão com-
pleta, pelo menos suficiente.
A mais pormenorizada das biografias interessantes para
o nosso assunto é sem dúvida a do casal Gelb2, que chega
quase a mil páginas, mais duas obras de Sheaffer3, tam-
bém oferecem uma grande quantidade de informação.
Descobre-se assim que um dos primeiros contatos que
O’Neill teve com anarquistas data de 1907, quando conhe-
ceu Benjamin Tucker e começou a freqüentar a sua li-
vraria, em Nova Iorque, a The Unique Bookshop situada na
Sexta Avenida. Eugene não tinha ainda vinte anos, en-
quanto o pensador e escritor anarquista alcançara já os
cinqüenta, com mais de trinta anos de experiências como

*Professor emérito do Lewis Clark College, Portland, fundador do CIRA (Cen-


tre International de Recherche sur l’Anarchisme), viveu no Brasil entre 1963 e
1969.
verve, 7: 226-243, 2005

226
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

propagandista, redator de periódicos, autor de ensaios. Foi


através de Tucker que O’Neill travou conhecimento com
a obra de Bakunin e Kropotkin, Proudhon e Tolstoi, Stir-
ner e Nietzsche. Definiu-se, então, “anarquista filosófi-
co”, uma etiqueta pouco usada em outros países, mas que
se tornou comum nos Estados Unidos e que equivale ain-
da hoje — a “anarquista não-violento”. Distinção necessá-
ria, pois a opinião pública tende a misturar anarquismo e
terrorismo. Cabe reconhecer que naquela época era co-
mum a associação com Leon Czolgosz (que tinha matado
um Presidente) e Alexandre Berkman (que atirara contra
um capitalista inflexível e cruel contra operários grevis-
tas). Quem apresentou O’Neill ao Tucker foi Paul Holliday,
outro anarquista, irmão de Polly Holliday, gerente de um
café boêmio no Greenwich Village, companheira de vida
de outro militante ativo muito conhecido, Hippolyte Havel.
O Paul foi um grande amigo de O’Neill até sua trágica morte
poucos anos depois. Outro grande amigo anarquista (e fu-
turo personagem de sua obra) foi Terry Carlin (verdadeiro
nome Terence O’Carolan) que tinha a qualidade adicional
de ser de origem irlandesa, como O’Neill. Companheiro de
bebedeira, o escritor nunca o renegou quando ficou famo-
so, e passou a mandar-lhe cheques mensais para que
nunca lhe faltasse a bebida. Os Gelb escrevem: “o Carlin
teve uma influência maior na filosofia de O’Neill do que
qualquer outra pessoa”.4 Não devemos estranhar, pois Car-
lin foi admirado por escritores importantes como Jack
London e Theodore Dreiser. Mais uma amizade importan-
te — e que durou até o fim da vida — foi com Saxe Com-
mins (verdadeiro nome Isidore Cominsky), dentista que
se tornou autor teatral, e sobrinho de Emma Goldman. A
ele O’Neill se dirigiu para que lhe procurasse documenta-
ção sobre algumas personagens anarquistas em suas pe-
ças. Em gratidão pela hospitalidade dele recebida, e de toda
a família, e por lhe ter cuidado dos dentes de graça, O’Neill
forçou sua contratação à Random House, onde se tornou

227
7
2005

seu editor pessoal. Saxe foi também quem manteve con-


tatos indiretos entre O’Neill e as duas primeiras esposas
e os filhos que com elas teve. Quando fugiu para a França,
onde vivia incógnito com Carlotta, que se tornou sua ter-
ceira mulher, um dos poucos que sempre sabia onde ele
se encontrava era justamente Commins. Aliás, O’Neill não
era o único que o estimava, pois tornou-se também amigo
de Albert Einstein, que conheceu quando ambos ensina-
vam em Princeton.
Hippolyte Havel, anarquista europeu que veio aos Esta-
dos Unidos junto com Emma Goldman, e que o conheceu
em Londres, foi também admirado por Dreiser, inspirou
John Cage e deu vida a um dos personagens da peça The
Iceman Cometh. O’Neill conservou algumas fotografias dele,
uma das quais os reúne nos ensaios de uma peça para o
Provincetown Theater.
A galeria de personagens anarquistas ao redor de O’Neill
é muito rica e compreende ainda outro escritor da época:
Hutchins Hapggod. Autor de An Anarchist Woman ele tinha
se aposentado no Cape Cod e colaborara estreitamente
com John Reed, Louise Bryant e outros nas encenações
do Provincetown Theater.
Entre as mulheres pelas quais O’Neill talvez se apaixo-
nou, emerge a figura de Dorothy Day, que mais tarde se
converteu ao catolicismo sem abandonar o anarquismo, e
tornou-se co-fundadora do movimento Catholic Worker (uma
derivação comunitária da filosofia personalista de Emma-
nuel Mounier), que ainda hoje existe e tantas páginas glo-
riosas acrescenta aos anais da luta contra a segregação
racial, as guerras, o serviço miltar, o pagamento dos im-
postos ao Estado, etc…
Christine Ell, amante passageira do O’Neill, foi outra
anarquista inspirada por Emma Goldman, e também
tornar-se-ia personagem teatral do autor. Não há mui-

228
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

tos vestígios de encontros entre Emma Goldman e Eu-


gene O’Neill, mas sabe-se que ele lia Mother Earth (re-
vista em que publicou um dos primeiros poemas anti-
militaristas), freqüentava as palestras do Ferrer Cen-
ter, e foi grande amigo de Lena Cominsky (irmã da
Emma) e de Stella Ballantine (sobrinha de Emma), e de
Mary Eleanor Fitzgerald (secretária do Provincetown
Theater, depois de ter trabalhado na redação de Mother
Earth). De Emma Goldman se sabe que conhecia as pri-
meiras peças de O’Neill e fez palestras sobre elas. Ape-
sar dos poucos contatos pessoais Emma foi uma grande
fonte de inspiração, como veremos logo, em duas das
peças que comentaremos.
Outro anarquista muito conhecido que ele pouco fre-
quentou, mas cuja personalidade, pensamento e ação
inspiraram o O’Neill, que, anos depois, ele o declara
numa carta, é Alexandre Berkman. Em 29 de janeiro de
1927, numa carta de Hamilton Bermuda, O’Neill escre-
ve a Berkman: “Passou muito tempo desde aquela noite
em Romany Marie mas estou certo que você não se lem-
bra de mim melhor do que eu de você. Tenho uma ima-
gem muito clara de você na minha mente desde então.
Eu já tinha uma profunda admiração por você há vários
anos e aquele encontro foi um acontecimento inespe-
rado. Quanto à minha fama…e sua infâmia, gostaria de
trocar muita da minha por um pouco da sua. Não é tão
difícil escrever o que se considera ser a verdade. Mas é
muito difícil vivê-la.”5
Essa admiração desenfreada por um homem então
muito mais conhecido como homem de ação do que como
teórico do anarquismo nos leva a notar que O’Neill não
teve como amigos só intelectuais e artistas, anarquis-
tas “filosóficos”, mas freqüentou, também, militantes
sindicais. Um destes foi James Joseph Martin (dito Slim
Martin), marinheiro e operário especializado, que era

229
7
2005

militante da IWW (Industrial Workers of the World) e a


quem O’Neill pediu que o levasse a reuniões sindicalis-
tas. O resultado foi pelo menos duas peças (The Personal
Equation e The Hairy Ape) acabadas, publicadas e produzi-
das, e algumas outras só começadas e abandonadas por
várias razões. Também tornou-se propagandista ativo
quando passou anos navegando na marinha comercial.
Estar rodeado de amigos anarquistas, ter lido livros de
autores anarquistas, assinar obras de conteúdo anarquis-
ta talvez não seja suficiente para traçar um retrato com-
pleto de uma pessoa. Foi o comportamento dele na vida
pública e particular condizente com a ética anarquista?
As lembranças dos que o conheceram durante a juven-
tude sugerem a imagem de um bêbado inveterado. Como
tal é representado pelo menos em dois filmes: Reds, de
Warren Beatty e Entertaining Angels, de Michael Ray Rho-
des. No primeiro ele é o amante de Louise Bryant e no
segundo um amigo de Dorothy Day. Esta última, compa-
nheira de bebedeira antes de se tornar apóstola social e
religiosa explica assim o vício do O’Neill: “eu tinha a
impressão que ele considerava beber como um ensaio
para a morte. Bebia o uísque puro, de um só gole, não
para ficar bêbado mas para ver se agüentava”. Muitos
anarquistas do século XIX consideravam o alcoolismo
como uma das piores pragas sociais, como as drogas no
século XX. A doutrina, a esse respeito, não é fixa e varia
de um país a outro, e de uma geração a outra. Pode-se
deplorar a dependência de Eugene do álcool, mas não usá-
la como um argumento contra ele (ele mesmo se deu
conta que a bebida o destruía e acabou se tornando só-
brio) tomando em consideração que o pai e o irmão mais
velho eram alcoólicos, enquanto a mãe tinha se tornado
morfinômana, desde o seu nascimento.
Mais repreensível, talvez, tenha sido seu comporta-
mento de marido e de pai. Casou com a primeira mu-

230
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

lher e sumiu, logo depois, deixando-a grávida. Kathleen


pediu e obteve o divórcio três anos mais tarde. Foi só
aos doze anos que o filho conheceu o pai. Sua atitude
para com a família não melhorou com o segundo casa-
mento (núpcias de amor com bastante anos de convi-
vência) do qual ele fugiu de repente, sem nenhuma ex-
plicação, ignorando os filhos durante anos. Foi assim
que Oona casou com Charlie Chaplin, que tinha três
vezes a idade dela, mas representava, justamente, uma
figura paterna que substituía o pai que ela nunca tinha
tido.
Como conclusão provisória digamos que O’Neill pra-
ticou a solidariedade do anarquismo social fora de casa,
mas na família praticou mais o comportamento indivi-
dualista à maneira de Nietzsche, seu autor de cabecei-
ra. Nestas alturas cabe formular a pergunta: como é que
O’Neill via a si mesmo?
Numa carta de 1939 a Bernard Cerf o dramaturgo
escreve: “Diga ao Saxe que estou me reconvertendo a
um anarquismo de aço”. Isto foi às vésperas da Segun-
da Guerra Mundial, durante a qual ele compõe The Ice-
man Cometh que parecia ser um adeus ao anarquismo,
e que não foi o caso, como veremos. Disse, também: “An-
tigamente fui um ativo socialista, e posteriormente um
anarquista filosófico”.6 Na última conferência de impren-
sa que deu, em 1946 (isto é no fim de sua carreira quan-
do já era famoso no mundo inteiro devido às suas peças
e ao Prêmio Nobel), poucos anos antes de morrer, decla-
ra “sempre ter sido um anarquista filosófico”.7 A obra
confirmará tudo isso.

O anarquismo na obra do autor


Traços do pensamento e da conduta anarquistas se
encontram em vários personagens de muitas peças de

231
7
2005

O’Neill. Em algumas os anarquistas são personagens


centrais (que às vezes se identificam com o autor e ou-
tras são baseadas em pessoas existentes) ou assunto
da obra. É de estranhar — como aconteceu com a sua
vida — que o seu teatro de cunho anarquista não tenha
interessado aos historiadores do anarquismo america-
no. Quem mais o cita — como era de se esperar — é
Paul Avrich que, pelo menos em duas de suas obras8, o
apresenta como freqüentador do Centro Ferrer de Nova
Iorque, colaborador ocasional de Mother Earth, amigo de
vários companheiros, confirmando o que foi dito pelos
Gelb e Sheaffer, e acrescentando alguns pormenores. É
bem provável que o Avrich volte a falar do assunto no
próximo livro dele, dedicado a Alexandre Berkman, que
foi um dos “ídolos” e também o tradutor russo de O’Neill.
Na maior parte das peças O’Neill se fantasia de per-
sonagem expressando idéias anti-militaristas, anti-ca-
pitalistas, pró-sindicalistas ou abertamente anarquis-
tas. Junto a ele uma galeria numerosa de companhei-
ros conhecidos, admirados de longe ou de convivência
direta.
Limitar-me-ei a examinar quatro das peças de mai-
or importância para as idéias anarquistas.
A primeira com forte conteúdo anarquista é The Per-
sonal Equation9, de 1915, contendo, como sempre, no
teatro de O’Neill, elementos autobiográficos combina-
dos a elementos imaginários.
Entre os primeiros está Tom, que pode ser o autor
como fôra na realidade (devemos lembrar que ele nave-
gou profissionalmente e ocupou empregos humildes nas
estivas), ou como ele teria desejado ser. Na peça há tam-
bém conflitos entre pai e filho bastante parecidos com
os que ele vivia com o próprio genitor, conhecido autor
teatral. A crítica discorda se o Hartman da peça corres-

232
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

ponde a Sadakichi Hartman (que realmente existiu) ou


se é um pseudônimo para Hippolyte Havel, o anarquista
tcheco que aparecerá como Hugo Kalman, na peça pos-
terior, The Iceman Cometh. Olga Tarnoff, o papel femini-
no mais importante, foi inspirado em Emma Goldman.10
Esta peça é inteiramente dedicada ao anarquismo e
contém toda a problemática contemporânea: os desen-
tendimentos entre as várias facções da esquerda (os
socialistas confiando no processo eleitoral e os anar-
quistas na ação direta), a denúncia da exploração capi-
talista, o direito de greve, a oposição dos revolucionári-
os à Primeira Guerra Mundial que já tinha estourado
na Europa e na qual a América está a ponto de partici-
par, a dramática alternativa entre meios violentos e não-
violentos de libertação social, a união livre ou o casa-
mento, e assim por diante. Apesar disso não se trata de
teatro de pura propaganda, mas de uma peça em quatro
atos em que são criadas situações dramáticas de alta
tensão e credibilidade.
A primeira cena tem como fundo a sede de um sindi-
cato da IWW onde as conversas se desenrolam no nível
público (planos de greve) e no nível individual (Olga que
ama Tom mas rejeita a idéia do casamento e da mater-
nidade). Tom, bastante parecido com O’Neill, acabou de
perder o emprego por ter feito propaganda “subversiva”
no lugar de trabalho. O segundo ato situa-se na casa de
Thomas Perkins, mecânico de navios, viúvo e pai de
Tom. A empregada de Perkins informa das más freqüên-
cias políticas e sentimentais do filho. Na discussão que
sobrevêm entre pai e filho, este admite viver marital-
mente com Olga, porém sem estar casados. Perkins
desaprova. Eles discordam também sobre o uso da força
nas reivindicações sociais e políticas. A posição do pai é
que Tom deveria não só abandonar Olga com a qual ele
vive no pecado, mas também pedir desculpas aos donos

233
7
2005

da companhia por estar assistindo a reuniões anarco-


sindicalistas.
O terceiro ato acontece em Liverpool, em parte a bor-
do do navio S. Francisco — onde se encontram Thomas
Perkins de serviço nas máquinas, o filho (escondido sob
o nome de Tom Donovan), que se encarregaria de dina-
mitar os motores do navio se a reunião sindical que está
tendo lugar não decretar a greve), e Olga, fantasiada de
homem, como se fizesse parte da tripulação. Os sindi-
calistas burocráticos, corrompidos pelos patrões, se de-
claram contra a greve e os anarquistas resolvem então
passar à sabotagem. O companheiro que devia fornecer
a dinamite, porém, foi preso e os grevistas terão que
encontrar outra solução para impedir o navio de zarpar.
Tom decide imobilizar os motores mas, para isto, tem
que enfrentar o próprio pai. Nesse encontro terrível, cada
um procura proteger o outro, mas, ao mesmo tempo,
desempenhar tarefas contrárias. O pai, sem querer,
atira contra o filho.
O ato seguinte se passa num hospital. O pai, bem
como a namorada, querem tomar conta de Tom, reduzi-
do a uma existência vegetativa. Ele não pode se expres-
sar, parece não reconhecer ninguém, e só repete fra-
ses como um papagaio. Olga e Perkins, depois de briga-
rem, chegam a um compromisso: ambos se amam e
tomarão conta de Tom e da criança que Olga traz na
barriga.
A peça conclui com Tom, que mentalmente voltou à
infância, repetindo o slogan: “Viva a Revolução!”
A moral resumida por Olga (Emma Goldman) é a se-
guinte: “…lutamos e caímos frente ao poder da Socieda-
de, mas a revolução continua sobre nossos cadáveres.
Vai adiante mesmo se talvez não o vejamos. Nós somos
a ponte. O nosso sacrifício não é inútil. É-nos suficiente

234
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

saber que estamos fazendo a nossa pequena parte e que


as nossas pequenas vidas e pequenas mortes, apesar
de tudo, valem algo”.
A segunda peça que examinarei é de 1922 e intitula-
se The Hairy Ape.11 Está ambientada, novamente, em
meios anarco-sindicalistas mas, desta vez, em tons de
comédia. Os dois protagonistas principais são membros
da classe proletária que se queixam de sua condição
social. Fazem parte da tripulação de um navio e falam a
gíria dos marinheiros. Apesar da falta de cultura que
revelam no decorrer dos acontecimentos, não lhes falta
o sentido da dignidade humana. Além de serem explo-
rados pelos donos do navio e apesar de sujos devido ao
trabalho que exercem na barriga do navio, ao redor das
máquinas e no meio do carvão, eles gostariam de ser
considerados seres humanos e não animais, “macacos
peludos” (nome da peça mas também insulto de visitan-
tes ocasionais, como a filha do patrão). Feridos em sua
honra, Yank, o mais primitivo, o mais violento mas, tal-
vez, também, o mais sensível deles, reclama vingança.
Isto poderia se efetivar numa visita aos bairros elegan-
tes e numa provocação na saída da missa do domingo,
contra a mesma Mildred Douglas, filha do armador, que
tão severa se mostrou com ele durante a visita ao na-
vio. No bairro nobre da cidade, cheio de lojas de luxo
onde se vendem jóias e casacos de pele cujo preço é
assombroso, Long e Yank observam que uma família de
trabalhadores ou de gente pobre e desempregada pode-
ria viver um ano com o que os ricaços gastam compran-
do um desses objetos. A irritação de Yank cresce e o
leva à inevitável agressão de classe. Acaba sendo preso,
pois seu lugar não é na frente das casas dos poderosos
mas num calabouço. Durante sua prisão alguém lhe lê
um artigo de jornal sobre os Wobblies, os assim chama-
dos membros do sindicato Industrial Workers of the

235
7
2005

World. O recorte reproduz o discurso de um senador anti-


revolucionário que denuncia o anarco-sindicalismo
como a maior chaga da nação. O Yank se sente atraído
por esse movimento e decide aderir a ele. Na próxima
folga ele visita a sede dos portuários da IWW. Bate na
porta e os companheiros estranham este comportamen-
to, pois a particularidade deles é de deixar a porta sem-
pre aberta: é só empurrar e entrar. Pede admissão que
é aceita logo sem nenhuma formalidade e pagando só
um centavo. O secretário sugere que ele leve um paco-
te de folhetos revolucionários, mas o adverte a ser pru-
dente, pois essa propaganda é considerada ilegal pelas
autoridades. Mas não é propaganda que ele quer fazer,
senão ação direta, que ele associa a violência contra a
propriedade. Os Wobblies começam a desconfiar desse
desconhecido que aparece de repente e propõe dinami-
tar os estaleiros ou os navios de Mr. Douglas. Isso chei-
ra a provocação. Assim o imobilizam e o põem para fora.
Rejeitado por todos ele acaba se refugiando no jardim
zoológico onde, depois de ter um diálogo incomunicável
com um gorila, acaba entrando na sua gaiola, deixando
livre o animal perplexo. Agora, sim, ele pode ser consi-
derado um verdadeiro “macaco peludo”.
A linguagem é dura, a alegoria é pesada, mas a mo-
ral da comédia é em favor de uma visão individualista.
A mais importante das peças porém, é The Iceman
Cometh12, que ele começa a escrever em 8 de junho de
1939 e finaliza em 26 de novembro do mesmo ano. Relê
o texto, faz algumas mudanças e assina a versão final,
em 3 de janeiro de 1940. O assunto da peça é a validade
ou não das teorias anarquistas. Para ilustrar o assunto
ele se pauta em documentos e pede ao amigo de juven-
tude, Saxe Commins13, que trabalha na editora Random
House, para lhe mandar a velha literatura anarquista.
Recebe, assim, cópia de velhos periódicos dirigidos por

236
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

Hippolyte Havel (anarquista tcheco escolhido como per-


sonagem da peça com o nome de Hugo Kalmar) e obras
de Bakunin e de Kropotkin. Outro personagem anarquis-
ta é Larry Slade, inspirado em Terry Carlin (Terence
O’Carolan), outro amigo de juventude que o autor aju-
dou até o fim da vida. O terceiro, mas não último anar-
quista, seria Don Parritt, que se apresenta como tal. Na
realidade é um traidor que veio da Califórnia para Nova
Iorque, sob o pretexto de estar envolvido num atentado,
mas que trabalha para a polícia, procurando provas para
ajudar a prender os culpados do atentado contra o Los
Angeles Times, fato que, historicamente, aconteceu.
O enredo leva Don ao encontro de Larry, por ter sido o
único, quando era criança, que sempre o tratou com
carinho e o escutou como se fosse um adulto. Larry, para
Don, é uma figura paterna e, talvez, seu verdadeiro pai
(foi amante de sua mãe). Mas Don é torturado, mente e
acaba admitindo que traiu, para salvar a mãe, diz ele no
começo. A mãe, Rosa (inspirada em Gertire Vose e em
Emma Goldman) está presa. O filho acaba confessando
que a denunciou por ciúme, pois ela o traía com as pró-
prias idéias que colocava acima de seus deveres de mãe.
No fim, revela a Larry ter traído por dinheiro. Angustia-
do ele medita sobre o suicídio, ao qual Larry, sem com-
paixão, o empurra.
Devemos lembrar que na vida real, na época em que
O’Neill freqüentava a boemia do Greenwich Village, ele
tentara o suicídio num local muito parecido com o Hell
Hole.14 Na peça, as discussões sobre anarquismo são es-
téreis e negativas, mas deve-se considerar que os tem-
pos em que este drama foi concebido assiste a uma du-
pla derrota: a do sonho anarquista na Espanha de 1939
e o início da Segunda Guerra Mundial. Contudo o anar-
quismo não é o único assunto da peça. Em primeiro lu-
gar, numa polêmica com o comunista Mike Gold (que

237
7
2005

lhe foi apresentado por Dorothy Day), que queria que ele
escrevesse obras mais engajadas, O’Neill declarou:
“quando um autor escreve propaganda ele cessa de ser
artista e torna-se um político”. Além disso, O’Neill sem-
pre insistiu sobre os diversos níveis de escritura. Há
quem considere que o elemento religioso, representado
por Hickey, é fundamental na peça. De fato, existe um
breve estudo de Robert C. Lee que toma em considera-
ção os dois aspectos: “Evangelism and Anarchism in The
Iceman Cometh”.15
O’Neill foi criado católico e apesar de ter renunciado
à fé (deixou no testamento que não queria padres no
enterro), escreveu muitas peças sobre personagens e
assuntos religiosos. Há outra interpretação do The Ice-
man Cometh como se fosse uma “Última Ceia” tendo doze
personagens na mesa incluindo um Judas. Discordo
desta interpretação, pois os personagens, se incluirmos
as três prostitutas e os dois policiais superam o número
de doze, mas, sobretudo, por outra razão: a presença de
duas personagens excepcionais e positivas, que não fa-
zem justamente parte do elenco da distribuição e que
ninguém — que eu saiba — percebeu como sendo cen-
trais no enredo. Uma seria Evelyn, mártir de tipo cris-
tão, a mulher que Hickey mata, por ser tão boa, tão com-
preensiva, tão paciente, tão generosa, tão amorosa, que
entende tudo e aceita tudo, e que o marido sente a ne-
cessidade de matar, para preservá-la, não decepcioná-
la, não machucá-la moralmente. Outra é uma mártir
laica, Rosa Parritt a mãe traída de Don. Ela encontra-se
presa ao idealismo, paga pelos erros dos outros, man-
tém viva a chama do ideal. É uma figura empolgante, a
ser reverenciada e imitada.
O verdadeiro anarquismo, em suma, não está nos
três bêbados, um parasita, um preguiçoso e um traidor,
mas nessa bela figura de mulher. O Iceman Cometh soa

238
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

pessimista só depois de uma leitura superficial. Pense


nos “pipe dreams”, isto é, nos “castelos no ar” (as utopi-
as, os sonhos irrealizáveis) aos quais se alude amiúde.
O próprio autor, numa entrevista declarou: “Bem, o que
eu posso dizer é que se trata de uma peça sobre castelos
no ar. A filosofia subjacente é que sempre resta ainda
um sonho, um sonho final, qualquer seja o nível baixo
ao qual se cai, o fim da garrafa, e eu sei, pois eu mesmo
vi…”. O’Neill estava satisfeito com esta peça e disse: “é
uma das melhores coisas que jamais fiz. De alguma
maneira talvez a melhor”.
Outros devem ter concordado com ele pois existem
duas versões cinematográficas, uma de Sydney Lumet
e outra de John Frankenheimer. Aliás temos duas pro-
vas contundentes de que o pessimismo aparente de
O’Neill não marcou o fim do seu anarquismo. A primei-
ra é a entrevista já mencionada, que terá lugar anos
depois de ter escrito a peça, e poucos anos antes de sua
morte, em que reitera suas convicções anarquistas. A
segunda está no fato que logo depois de ter concluído
The Iceman Cometh, ele dá início a outra obra de tema
anarquista, e desta vez uma comédia, mostrando que
não abandonou as convicções ideológicas da juventude
e não aderiu ao pessimismo dos personagens da peça
anterior.
A última obra que mencionarei nunca foi concluída,
mudou de título, mas é a que revela o profundo conheci-
mento que O’Neill tinha do anarquismo internacional,
de seus pensadores, bem como de seus militantes. É
dedicada a Errico Malatesta, agitador anarquista italia-
no mundialmente conhecido. Teria sido uma comédia
mas com um fundo ético e político. Não só cronológica,
mas também filosoficamente, é uma continuação do Ice-
man Cometh . Não foi nunca encenada nem terminada,
mas o trabalho de pesquisa, as anotações do autor e as

239
7
2005

cenas já compostas foram publicados postumamente. Ele


dedicou mais de um ano a esta comédia e revisou cons-
tantemente o texto. O título inicial era The Visit of Ma-
latesta16, mas passou a ser Malatesta seeks Surcease. O
nome escolhido para o personagem principal era “Cesa-
re”, depois mudado para “Enrico”, se bem que na Itália,
onde ele nasceu, a forma preferida é a de “Errico”. A
colocação temporal inicial era 1912, mas a data foi adi-
antada para 1923, para poder justificar a fuga de Mala-
testa da ditadura fascista, iniciada em 1922. Malatesta,
na realidade, não pôde visitar seus amigos americanos
até a morte (em 1935) por se encontrar sob vigilância
policial especial em Roma, por ordem expressa de Mus-
solini. Entretanto, Malatesta esteve nos Estados Uni-
dos, em 1899. Há quem diga que O’Neill poderia tê-lo
escutado naquela época, mas não há provas disso ter
acontecido. Aliás O’Neill teria, na época, 11 anos.
A função de Malatesta e da peça é de representar a
ESPERANÇA que talvez tivesse sido sacudida pelo pes-
simismo aparente de Iceman Cometh. Outro intuito era
o de lutar contra o alcoolismo que freia as energias re-
volucionárias dos militantes, mas que também alimen-
ta a cobiça daqueles companheiros ítalo-americanos da
comédia, que negligenciam o ideal para ganhar dinhei-
ro imitando os capitalistas. O alcoolismo é um problema
que afligiu não só o movimento, mas o próprio O’Neill,
vítima desse fenômeno, como o foram o irmão maior e o
pai, bem como muitos dos boêmios, anarquistas ou não,
que ele conheceu na vida. Aliás não há peça dele na
qual não apareça algum bêbado.
Na Visita de Malatesta, a mulher de Daniello chama-
se Rosa, como já se chamava Rosa a mãe presa do Don
Parritt, na peça anterior. Pouco importa saber se o nome
“Rosa” se refere a Emma Goldman ou não. Um dito da
época nos ambientes anarco-sindicalistas é uma das

240
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

reivindicações que vai além das melhorias econômicas:


“Queremos pão, mas rosas também”. A “Rosa” torna-se
metáfora do amor, da solidariedade, do engajamento, da
chama da revolução. No rascunho se prevê que Mala-
testa acabará casando com uma das filhas de Daniello,
Francina, que se gaba por ter se tornado “a rosa da pai-
xão pela revolução”.
Não me atrevo a atribuir a O’Neill uma conclusão da
peça, mas tudo leva a crer que seria uma confirmação
do “sonho anarquista”.
Por razões de saúde O’Neill abandona este projeto e
vários outros previstos em suas anotações pessoais. Uma
tremedeira constante, mal diagnosticada pelos médicos
e nunca curada o acompanhará até o fim. Nos últimos
dez anos ele viverá uma existência solitária, separan-
do-se temporariamente até da própria mulher (a tercei-
ra, a que mais amou) nunca renegando, porém, seus
ideais anarquistas.

Notas
1
Cheguei a esta conclusão depois de consultar a bibliografia de “First Search”que
contém informação sobre todos os livros existentes nas bibliotecas e também
as teses de doutoramento.
2
Arthur and Barbara Gelb, ed. O’Neill. New York, Harper and Row, 1974, 990
pp.
3
Louis Sheaffer: O’Neill. Son and Artist. Boston e Toronto, Little-Brown & Co.,
1973, 750 p., e O’Neill. Son and Playright. Boston e Toronto, Little-Brown &
Co., 1968, 543 p.
4
Gelb, 1974, op. cit., p. 286.
5
Carta reproduzida no livro Select letters of Eugene O’Neill, ed. by Travis Bogart
and Jackson R. Bryer, New Have & London, Yale University Press, p. 233.
6
Idem, p. 387.
7
Interview ao Sunday Times, de 1946.

241
7
2005

8
Paul Avrich. Anarchist Voices (An Oral History of Anarchism in America).
Princeton, University Press, 1995, e posteriormente em The Modern School
Movement (Anarchism and Education in the United States), Princeton, University
Press, 1980.
9
Ver Eugene O’Neill, Complete Plays., ed. by Travis Bogard, New York, The
Library of America, Vol.I: 1913-1920, 1104 p. Trata-se de uma peça em quatro
atos, pp. 309-387.
E. G. and E. G. O., Emma Goldman and the Iceman Cometh, Grainesville, The
10

University Press of Florida, 1974.


11
de Eugene O’Neill, Early Plays, edited with an introduction by Jeffrey H.
Richards. New York, Penguin Books, 2001, pp. 355-395.
12
The Iceman Cometh. New York, Vintage Books, 1957, 4 acts.
13
Isidore Cominsky, talvez o mais íntimo de seus amigos. A correspondência
entre eles foi tão copiosa que foi publicada em livro. Ver: Love and Admiration
and Respect. The O’Neill-Commins Correspondence. Dorothy Commins (ed) Du-
rham. Duke University Press, 1986, 248 pp.
O Hell Hole da peça é uma combinação de três locais realmente existentes no
14

Greenwich Village, que O’Neill e outros boêmios freqüentavam durante os


dois primeiros decênios do século XX.
15
Ver Eugene O’Neill, The Iceman Cometh, Harold Bloom (ed). New York,
Chelsea House, 1987, pp 35-48.
16
“Notes for The Visit of Malatesta” In Eugene O’Neill. The Unfinished Plays,
edited and annotated by Virginia Floyd. New York, Continuum, 1988, XXVIII,
213pp.); a autora também escreveu o precioso ensaio Eugene O’Neill at Work:
Newly Released Ideas for Plays. New York, Ungar, 1981, XXXIX,407pp.

242
verve
Anarquismo na vida e na obra de Eugene O’Neill

RESUMO

O anarquismo na obra do escritor norte-americano Eugene O’Neill,


estudado em três peças concluídas e uma inacabada sobre Errico
Malatesta, anarquista italiano.

Palavras-chave: Anarquismo, teatro norte-americano, biografia.

ABSTRACT

The anarchism in the work of the American writer Eugene O’Neill


studied in three dramas and one unfinished drama about Errico
Malatesta, Italian anarchist.

Keywords: anarchism, American theater, biography.

Recebido para publicação em 31 de março de 2005.

243
7
2005

lygia clark e nietzsche-zaratustra:


trajetórias

beatriz scigliano carneiro*

Lygia Clark, artista plástica brasileira (1920-1988),


fez da atividade artística um elemento capaz de empre-
ender a transformação de si; transformação que se abria
para o mundo e para a afirmação de novos valores. Ana-
lisando as suas obras, alguns de seus manuscritos e
parte de sua produção teórica acerca da arte e das téc-
nicas terapêuticas, é possível estabelecer correspondên-
cias com o percurso do personagem trágico de Nietzs-
che apresentado na obra Assim falou Zaratustra.
Lygia Clark e Nietzsche-Zaratustra confluem no tra-
jeto de quem se transforma, de quem “se torna quem se
é”, de quem tem como destino “querer o que sabe”. Za-
ratustra anuncia o além do homem e, ao mesmo tempo,
transfigura-se e transcria o percurso da vida-pensamen-
to do próprio Nietzsche. Lygia é uma artista que pensa
por meio da arte, e também uma pesquisadora que ex-
perimenta por meio da arte e atitudes cotidianas, vi-

*Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP.

verve, 7: 244-263, 2005

244
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

sando antes de tudo, inventar a sua vida. Este artigo


apresenta uma conversa possível entre estas trajetóri-
as.1
Lygia Clark nasceu em Belo Horizonte em 1920, cur-
sou a escola normal, casou-se e se mudou para o Rio de
Janeiro, onde nasceram seus três filhos. Até perto dos
trinta anos de idade, vivia como dona de casa comum de
uma família abastada. Em 1947, teve uma crise nervo-
sa da qual saiu ao retomar com afinco a pintura e os
desenhos, habilidade notória de sua infância. No en-
tanto, a arte consistiu em algo mais do que terapia ocu-
pacional de dona de casa deprimida, ou passatempo como
havia sido nos tempos de escola. Arte não foi “repouso
para o empobrecimento da vida”, nas mãos de Lygia a
arte se tornou ferramenta de transformação de si.
Em seus cinco anos de aprendizagem, de 1947 até
1954, exercitou diversos caminhos até se decidir pela
composição ordenada da geometria, um estilo que pres-
cindia a figuração, imagens e representação do espaço.
Junto ao grupo de artistas Concretos e Neo-Concretos,
Lygia realizou importantes trabalhos bidimensionais,
hoje considerados referências na arte mundial. Em
1960, em uma mostra de grande impacto, apresentou
seus Bichos, esculturas montadas por planos de alumí-
nio ligados por dobradiças, resultantes de suas pesqui-
sas no espaço pictórico. Considerado a obra máxima de
sua trajetória artística e o apogeu do Grupo Neo-Con-
creto, os Bichos têm sido o conjunto mais conhecido de
sua produção artística. As possibilidades de cada exem-
plar destas esculturas dependem totalmente do desdo-
bramento dos seus planos a ser realizado pelos visitan-
tes dos espaços expositivos. Sem esta manipulação da
obra, as esculturas permanecem formas estáticas e si-
lenciosas, sem mostrar suas possibilidades formais, ri-
gorosamente construídas.

245
7
2005

Zaratustra se dirigiu à praça do mercado para anun-


ciar a superação do humano e criação de novos valores.
Fracassou. “E como falasse a todos não falei a ninguém”.2
As forças reativas predominavam, o próprio Nietzsche-
Zaratustra concluiu, já no Prólogo do livro, a estultice
de tentar se comunicar com todos. Não caberia uma bus-
ca de discípulos, mas de companheiros capazes de ou-
vir. “Não deve Zaratustra tornar-se pastor e cão de um
rebanho. Atrair muitos para fora do rebanho — foi para
isso que vim”.3
Lygia soltou seus Bichos em diversos espaços, inclu-
sive em cidades européias, e por meio deles, foi-se se-
lecionando quem tinha mãos para desvendar suas pro-
postas. Muitos brincavam, outros se constrangiam,
muitas vezes o público, apressado por uma curiosidade
ligeira pela chamada ‘arte participativa’ que desponta-
va na época, não percebia o alcance da experiência, con-
siderando-a lazer para momentos de ócio. Certa ocasião
um comprador da escultura cogitou soldar as dobradi-
ças, congelando apenas uma possibilidade do Bicho, para
evitar que os criados mexessem na obra.4
Naquele mesmo ano de 1960, Lygia fôra nomeada pro-
fessora de arte no Instituto Nacional de Educação de Sur-
dos, no Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro. Pri-
meira atitude ao entrar na sala de aula foi despertar in-
teresse “naquelas almas trancadas à comunicação”. Nem
palavras nem gestos expressivos circulavam por aquela
sala de crianças apáticas. Levou material com reprodu-
ções dos grandes mestres da pintura moderna e deixou
que os alunos folheassem à vontade. A proposta das au-
las era recriar o modelo escolhido a partir da observação,
no caso, obras dos grandes mestres da arte. Desse modo,
quando selecionava seus modelos, cada criança começa-
va a se individualizar e a descobrir afinidades expressi-
vas e emocionais com o mundo externo.

246
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

Lygia inventou um meio de lidar com crianças quali-


ficadas como anormais por não conseguirem se expres-
sar pela voz e viverem no silêncio. Crianças que apre-
endiam o mundo exterior pelo olho e pelo tato e pelo
sentir a vibração das coisas em seu corpo e se comuni-
cavam por gestos, grunhidos e expressões corporais. No
entanto, manteve uma postura de procurar “ir com eles”,
de apenas acompanhá-los em suas descobertas, deixan-
do-se surpreender. Em carta para Mário Pedrosa, de 15
de abril de 1961, dois momentos de suas aulas são ali
descritos: “outro dia fiz umas experiências para eles com
arames e pensei, diante do interesse despertado no
momento, que sairiam coisas geniais da parte deles. E
qual não foi minha surpresa quando todos eles fizeram
óculos e atualmente eles o usam como pessoa adulta.
Anteontem dei-lhes massa para modelar e todos fize-
ram pênis gigantescos. Começou uma pornografia des-
regrada... era um tal de engolir ou bater com eles na
cabeça uns dos outros...culminando com a coisa mais
surrealista jamais vista por mim: entrou na sala uma
menininha de um ano e meio, linda, cachinhos na ca-
beça. Deram um pênis para ela segurar e ela saiu, ino-
cência e feminilidade personificada, segurando com uma
delicadeza como se fosse uma flor, saindo do meio dos
meninos que, numa algazarra infernal aos gritos (por-
que eles gritam e como...), faziam gestos incríveis, pa-
recendo selvagens de outros planetas...”5
O trabalho como professora ligada a rede oficial de
ensino durou apenas um ano, mas lhe deu experiênci-
as que se consolidaram mais adiante em seu trajeto.
Em 1962, casada com o marchand Jean Boghici, viajou
pela Europa, acompanhando-o em visitas “de galeria em
galeria”, conhecendo artistas e críticos. Os Bichos, o fa-
moso conjunto de esculturas manipuláveis, ganharam
um reconhecimento imenso. Michel Seuphor, artista e
crítico, ao manusear o Caranguejo, disse: “jamais espe-

247
7
2005

rei ver uma obra destas” e continuou: “Isto é importan-


tíssimo. Como o Pevsner gostaria e se divertiria vendo
isto! É uma coisa que Gabo tentou fazer antigamente,
mas a Sra quem fez agora!”6
Alguns dias depois, se encontrou com Jean Arp que
“ficou maravilhado e afirmou: tenho visto muita coisa
de arte abstrata, mas jamais vi coisa tão bela”.7
Por esta época, Lygia achou que a criação dos Bichos
fôra suficiente para manifestar seu pensamento. Ape-
sar do inegável sucesso e reconhecimento público dos
seus trabalhos, a inquietude permanecia. “Porque eu,
que já fiz os meus Bichos continuo pensando?…Estou
cansada”.8
Apesar do confortável sucesso destes trabalhos, a
experiência crucial para uma transformação irreversí-
vel da vida e produção de Lygia foi a proposição Cami-
nhando: o simples corte com uma tesoura na fita de
Moebius, uma figura topológica conhecida pelos artis-
tas, registrado em fotos de 1963. Cortar a fita, usando
uma tesoura em um pedaço de papel, proporcionou a
vivência de um fluxo incessante, um contato real, físi-
co, com o ritmo contínuo do tempo em um gesto trivial.
O corte da fita pode ser repetido por qualquer um; cada
ato de cortar vale por si e consiste em uma experiência
única e sempre inaugural. Caminhando de Lygia Clark
é uma proposição: dobrar uma tira de papel torcendo-a
uma vez ao colar as extremidades e, com uma tesoura,
cortá-la a partir de qualquer ponto da fita, mantendo o
gesto de corte em linha reta.
Com esta descoberta, Lygia retornou entusiasmada
à “praça do mercado”, queria que o “homem moderno”,
todos enfim, tivessem a vivência. Percebeu, porém, que
agora se faziam necessários concentração, interesse e
vontade por parte do espectador: “uma vontade ingênua

248
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

de apreender o absoluto pelo ato de fazer o Caminhando,


conservando a gratuidade do gesto”. Ela como artista,
apenas propôs ao outro que, ao se situar no momento
presente, atingisse o “estado da arte sem arte”.
“Arte não é mistificação burguesa. O que se trans-
formou é a maneira de comunicar a proposição. Agora
são vocês que dão expressão ao meu pensamento, ti-
rando daí a experiência vital que desejam. Esta experi-
ência se vive no instante. Tudo se passa como se hoje o
homem pudesse captar um fragmento de tempo suspen-
so, como se toda uma eternidade habitasse no ato da
participação. Este sentimento de totalidade camuflado
no ato precisa ser recebido com alegria para ensinar a vi-
ver sobre a base do precário. É preciso absorver este sen-
tido do precário para descobrir na imanência do ato o
sentido da existência”.9
Caminhando permitiu-lhe esta vivência intensa, ful-
minante como um raio: a percepção do instante. A in-
tensidade desta vivência foi tão forte que Lygia preci-
sou repousar devido a problemas cardíacos. “Dentro do
meu peito mora um leão”, escreveu neste período. Pas-
sada a crise cardíaca, ainda se sentia exausta, “me sen-
tia morta, e este sentimento já havia durado quase dois
anos”, a saber, de 1963 a 1965. Ao admitir “grandes trans-
formações passando em seu interior”, recuperou mo-
mentaneamente, o “mesmo ‘élan’ e encanto que sentia
antes de fazer a proposição Caminhando”.10
Zaratustra tinha quarenta anos quando seu coração
mudou e ele desceu de sua montanha. “A taça quer trans-
bordar... Vê!’ Assim começou o ocaso de Zaratustra”.11
Seu ponto de partida é a superabundância. O excesso
produz um impulso não de preencher um vazio, ou uma
ausência dentro de si, mas de esvaziar, de transbordar,
de se estender ao abismo e à noite. O ocaso.

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2005

Aos 43 anos, começou o ocaso de Lygia Clark. Na épo-


ca, gozava as prerrogativas de “primeira dama do con-
cretismo”, “melhor escultora brasileira”, “la jolie mada-
me du Brèsil”, realizadora de obras elaboradas e espa-
lhadas no circuito das artes mundiais: Bienal de Veneza,
galerias da Europa. Quando desabafava, em seus textos
e cartas, que precisaria abandonar tudo para viver de
arte, referia-se ao percurso que a obra e as atividades
envolvidas em fazê-la, as quais significavam pensar e
saber, exigiam. Só lhe restou o caminho de “tornar-se o
que se é”, ou então se cristalizar em uma identidade
pacificada e deixar a máscara da “jolie madame” se tor-
nar sua carne. Sempre se pode escolher, mas a possibi-
lidade da liberdade não garante a melhor opção para a
vida. A força da escolha não vem da liberdade, mas de
uma coragem ética de “querer o que já sabe”.12 Liberda-
de é prática de exercer a vontade, e a vontade ultrapas-
sa impulsos irrefletidos.
Ao deixar de fazer obras bem acabadas, pois com Ca-
minhando vivenciara o precário e se deixara invadir pela
experiência, Lygia foi ficando afastada de parte de seu
público. Aos poucos, abandonou os metais, material ainda
presente em trabalhos como Trepantes de 1965, Bichos
sem dobradiças de 1963, nos Abrigos Poéticos de 1964, e
passou a empregar materiais precários e efêmeros em
trabalhos plásticos que privilegiavam sensações corpo-
rais, não apenas a visão, mas tato, olfato, e que exigiam
a participação ativa do público para sua realização. Usou
borrachas nas Obras Moles, de 1964, sacos plásticos, elás-
ticos, pedras, luvas, na sua série Objetos Sensoriais. In-
ventou trabalhos vestíveis, como Máscaras Sensoriais,
Cesariana, Eu e o Tu (1967) e um labirinto penetrável,
apresentado na Bienal de Veneza, a Casa é o Corpo (1968).
Não deixou de participar e ser convidada para importan-
tes exposições, ela era um nome consagrado e seus tra-

250
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

balhos, mesmo contando com uma resistência mais


contundente de alguns críticos, sempre atraíam inte-
resse. Lygia, porém, tinha momentos de grande desâni-
mo, pois enfrentava incompreensão até de amigos, ape-
sar de não ter dúvidas quanto ao valor de seu trabalho.
Lygia assim escreveu neste período: “Urge ter cora-
gem de renunciar a artificiosas compensações,… urge
olhar para dentro, com medo, com pavor”.13 Zaratustra
enfrentou vários tipos de niilismo, a negação da vida
em nome de valores universais, como fazem os sacer-
dotes e o Estado; o tipo que recrimina os outros e a pró-
pria vida por seu sofrimento, numa auto-acusação dos
erros; o niilismo passivo que nega qualquer ação, devi-
do à impossibilidade de suportar que “não há futuro para
corrigir o instante”.14 E, também, foi-lhe exigido cora-
gem em querer.
Mas até que ponto as descobertas de Lygia modifica-
vam sua própria vida? “…no fundo há auto-compaixão
por mim mesma. Estou chorando o fixo que já não tem
mais sentido em vez de aceitar na maior alegria o pre-
cário como conceito de existência”.15 Como esperar de
um espectador anônimo o que, talvez, nem ela conse-
guisse enfrentar? Como ordenar sem a voz do leão? Za-
ratustra enfrentou sua hora mais silenciosa, enfrentar
o que sabia, mas não queria dizê-lo, pois era algo acima
de suas forças. “Que importa a tua pessoa Zaratustra!
Fala a tua palavra e despeça-te!”16
Em meados de 1968, Lygia deixou filhos, amigos, con-
forto e foi residir em Paris. Realizou assim o que teme-
ra anos antes: “viver para sua arte”, mergulhar em suas
experiências com uma liberdade que ela não poderia
encontrar no Brasil, não só devido aos militares no go-
verno, mas principalmente porque aqui ela era conhe-
cida e observada. “Ainda precisa tornar-te criança e não
sentires vergonha”.17 No percurso da transformação de

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2005

Lygia e Zaratustra, a obra de ambos estava pronta, mas


eles não estavam ‘maduros para seus frutos’, assim vol-
taram à solidão.18
Lygia, andarilha, a partir de seu ateliê em Paris, viajou
pela Europa levando seu trabalho. Apresentava-o em gale-
rias, na rua, onde a chamassem. Continuava a formula-
ção de proposições sensoriais, “que agora me parecem bem
mais terrificantes que tudo que já fiz”.19 No entanto, ela
tinha dificuldade em se comunicar, não apenas nestes
eventos, mas até com amigos mais próximos. Isso a dei-
xava em paralisantes crises, durante as quais nada lhe
parecia mais valer a pena, nem viver, numa atitude ca-
racterística do niilismo passivo. Suas propostas sensori-
ais foram-na levando a regressões a um passado que era
presentificado no corpo, nos sonhos, nas alucinações. A
palavra emudeceu, perdendo seu espaço na expressão.
O mundo noturno se abria, o abismo falava a Zaratus-
tra. “Tu sabes e não queres!” Na obra estética de Lygia, o
Abismo ganhou uma máscara, tornou-se portátil, acessí-
vel, a Máscara-Abismo (1969), que proporcionava a quem a
vestisse uma sensação de queda em um espaço oco. Lygia
escreveu sobre o abismo: “O vazio que se apodera de mim
só pode ser entendido sentindo e assim creio que sentin-
do posso entendê-lo, mas não resolvê-lo”.20 Na vida, noites
alucinatórias se sucediam, presentificando sensações
arcaicas. “Acordei duas vezes durante à noite ... de hor-
ror... Acho que coisas começam a se remoer dentro de
mim e devo passar ainda por grandes transformações! É
duro, mas o que se há de fazer?”21 As transformações se
tornam destino quando se adquire coragem para deixá-
las acontecer.
Zaratustra em sua hora mais silenciosa ouviu: “quem
quer tornar-se criança deve, também, superar sua ju-
ventude!”.22 Em 1972, Lygia foi convidada para dar aulas

252
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

na Universidade de Sorbonne, que, marcada pela abertu-


ra exigida pelos estudantes, promovia cursos experimen-
tais e atraía docentes capazes de um trabalho instigante
e transformador. Por seu lado, Lygia tinha grande interes-
se nos jovens, que no mundo inteiro, praticamente, atua-
vam nas transformações sociais.
Uma das metas da filosofia de Nietzsche seria libe-
rar o pensamento do ressentimento, da má consciên-
cia.23 O trabalho estético de Lygia, ao longo de sua vida,
também manifestou essa luta contra o ressentimento.
Zaratustra descobriu em um determinado momento de
seu caminho que o passado impedia a redenção pela
chegada futura do além do homem. A vontade humana
poderia querer para trás? “Que o tempo não retroceda, é
o que a enraivece; “Aquilo que foi” é o nome da pedra
que a vontade não pode rolar”.24 Presente e passado es-
tavam no futuro, para Lygia, a vivência do Caminhando
fôra clara como um raio. No entanto, como em Zaratus-
tra, ainda lhe faltava a força de querer isso que sabia.
“Queira esse passado!” Esse foi o impacto do eterno re-
torno na vida de Nietzsche.
Havia algo a vencer: o ressentimento, a reação rai-
vosa da vontade por não conseguir “querer para trás”. A
moral do “tu deves” reativa cobrava atitudes morais e
distribuía seus castigos. Para Nietzsche-Zaratustra a
aranha seria a figura desta moral, criando invisível teia
da culpa para capturar a vida e devorá-la.
Baba Antropofágica (1973) era uma proposição gru-
pal, inventada no curso da Sorbonne, na qual um dos
alunos do grupo ficava deitado, enquanto vários outros o
cobriam com linhas de cor que tiravam da boca. A baba
escorrendo da boca era a imagem de um sonho recor-
rente de Lygia, e segunda ela, foi este o único sonho do
qual ela expressou a imagem em uma ‘quase’ represen-
tação.

253
7
2005

Sobre esta experiência, Lygia relatou: “um aluno ven-


do a experiência da Baba disse que estava vendo como as
aranhas estavam ligando seus machos na sua teia de ara-
nha. Olhei e pela primeira vez tive a impressão de que
era exato. Eu, a aranha, que envolvo tudo e todos na mi-
nha teia. Tive um grande choque. Já sabia, mas a percep-
ção às vezes é tão intensa que é como se fosse a primeira
vez”.25 O veneno estava dentro dela, a má consciência se
insinuando, culpando-se da voracidade da teia. Realizar a
Baba Antropofágica fez com que Lygia tivesse um último
sonho da série recorrente: neste, a baba se transformou
em um objeto de borracha e foi engolido.
Nos anos da docência na Sorbonne, ela estava em um
processo analítico com o psicanalista Fedida, o que a fazia
regredir ao que ela denominava arcaico. “Vivências terrí-
veis na Sorbonne, ligadas à análise que eu fazia, parecia
que eu ia enlouquecer, Eu virava bichos... uma águia vo-
raz; comia frango como uma águia... depois serpente, via
todo mundo como se eu fosse serpente”.26 Coincidência
ou não, águia e serpente também eram os animais de
Zaratustra. Entretanto, o que importa aqui, seria que ela
os incorporou, estes animais deixaram de ser símbolos de
forças naturais e arcaicas para se tornarem canais de
presentificação destas forças no cotidiano.
Zaratustra estava sentado em sua pedra quando ouviu
o grito de socorro dos homens superiores, assustados com
a morte de Deus e pelas exigências de criar valores hu-
manos.27
Assim, os levou para sua morada, para sua caverna.
Entre cantos e ceias, eles se tornaram convalescentes.
Aos poucos, Lygia percebeu que os seus alunos na Sor-
bonne “traziam suas coisas ... depois eles nem me olha-
vam mais, conversavam entre eles, [...] eu ficava um ele-
mento jogado fora do grupo”.28 A caverna de Zaratustra
encheu-se de risadas. Zaratustra, porém, afastou-se com

254
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

seus animais. “Divertem-se”, [...] e mesmo se foi de mim


que aprenderam a rir, não foi meu riso que aprenderam”.29
Percebeu enfim que aqueles não eram os companheiros
certos.
O entusiasmo pelas aulas da Universidade foi arrefe-
cendo, os alunos já não lhe instigavam o pensamento.
“Ando péssima. Desanimada, achando que o meu curso
na Sorbonne perdeu o interesse para mim”.30 Zaratustra
olhou para a grande cidade e deixou esse ensinamento:
“Daquilo que não se pode mais amar, deve-se passar
além!”.31
Lygia retornou, definitivamente, ao Brasil em 1976, e
se dedicou à terapia individual, transpondo suas desco-
bertas na arte para o processo terapêutico, inventando um
método de atingir silêncios e trazer sensações arcaicas e
mudas para serem compartilhadas. Na Estruturação do Self,
nome de sua terapia, misturava técnicas de relaxamento
com seus objetos relacionais, utilizados na Sorbonne. Mas
agora não fazia mais grupos, o trabalho individual possibi-
litava maior dedicação a cada caso. Não procurou mais
falar a todos. “Só amo trabalhar com borderlines”.32 Fizera
uma escolha e dentro da escolha, selecionava. “Recusei
pessoas que passaram pelo meu método por achá-las ra-
sas, são neuróticos e nunca entenderiam a linguagem de
um borderline ou de um psicótico. Somente quem passou
por grandes catástrofes pode entendê-las”.33
Seus Objetos Relacionais faziam emergir uma memó-
ria afetiva que a verbal não conseguia abarcar. “Não se
trata de um viver virtual, mas de um sentir concreto: as
sensações são trazidas, revividas e transformadas no
local do corpo, através do objeto relacional ou do toque
direto de minhas mãos”.34
A técnica de Lygia permitia fazer a experiência cor-
poral, no aqui e no agora, do que estava congelado na

255
7
2005

memória do corpo de um ser adulto e capaz de se comu-


nicar com outros, permitia um retorno a uma situação
primordial, sem tempo, nem contorno: “É no aqui e agora
que o acontecimento se dá como se fosse pela primeira
vez, embora num passado remoto este acontecimento já
se deu através de sensações corpóreas”.35 Durante a ses-
são inteira, o paciente deveria segurar uma pedra, Lygia
a chamou de ‘prova do real’36, seria “o aquilo que foi?”
Entretanto, esta atividade a consumia emocional-
mente e foi interrompida em diversos períodos, numa
oscilação constante até sua morte em 1988. “Me sinto
como uma esponja que chupa toda psicose do cliente
não tendo a palavra para metabolizar”.37 Tais crises tor-
navam-se uma abertura total ao outro a ponto dela se
sentir dissolver. O dentro se tornava o fora dissolvendo
contornos. “Perdi minha identidade e estou dissolvida
no coletivo. Vejo-me através de todas as pessoas inde-
pendente de sexo e de idade. Eu sou o outro”.38 Perceber
seu contorno no mundo era um enorme esforço para
Lygia, e requeria uma constante reconquista da pala-
vra.
A serpente insidiosa e fluída na garganta sufocava,
impedindo a voz. Lygia enfrentou o bloqueio do impulso
para a comunicação, a mudez que mantinha a sensa-
ção encapsulada em si mesma sem ser compartilha-
da. Mesmo optando pela fluência da vida, pelo “exercí-
cio experimental da liberdade”,39 o que fazer com essa
baba que escorria sem cessar, nos sonhos e em ses-
sões terapêuticas, ocupando espaço da palavra, emu-
decendo o pensamento?
Naquele último sonho da série recorrente, Lygia en-
goliu a baba materializada em um tubo de borracha num
ato de voracidade. Não mordeu e cuspiu a serpente res-
sentida como na cena do enigma descrita por Zaratus-
tra, na qual ele tenta arrancar uma cobra da garganta

256
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

de um pastor sufocado e como ela resistisse, gritou para


que o pastor a mordesse e a cuspisse fora.40 Lygia, ao
contrário, metabolizou o ressentimento em seu corpo.
Atitude masculina de cortar fora e inventar novos valo-
res? Atitude feminina de engolir e metabolizar, para daí
inventar novos valores? Ou estratégias diferentes para
se buscar o ponto persistente desse ressentimento para
assim o destruir, seja pela visão — ver a cobra na boca
de outro — seja pelo sentir cinestésico que buscaria o
fio da baba inscrito no próprio corpo.
Um de seus últimos trabalhos artísticos apresenta-
dos em público em um evento de arte — IX Salão Nacio-
nal de Artes Plásticas, em 1986 — foi Corpo Coletivo, uma
série de leotards41 de cores diferentes costurados entre
si em alguns pontos e que deveriam ser vestidas pelos
espectadores interessados em participar da obra. Sur-
giu de uma estilização das experiências grupais de Ly-
gia desenvolvidas em Paris, nas quais todos se uniam
fisicamente pelo toque, por elásticos ou plásticos. No
Corpo Coletivo as malhas costuradas entre si possibili-
tavam experimentar a sinergia do grupo a partir de uma
experiência corporal individual. O movimento de um
era alterado pelo movimento do outro e ao mesmo tem-
po alterava o dos demais, numa corrente cinética. As
tentativas de mobilidade acarretavam interações vari-
adas e exigiam atenção às forças desencadeadas. Em al-
guns momentos, cada um se sentia compungido a seguir
o conjunto, em outros, uma resistência se fazia possível e
uma força individual modificava o caminho da movimen-
tação. A atenção ao próprio corpo não desviava da atenção
aos movimentos e forças desencadeadas pelos outros.
O pensamento, vida e obra de Lygia apontam para a
invenção de uma sociabilidade desenhada pela convivên-
cia, na qual interessam o momento, a situação vivida, a
posição dos corpos em tensão e prazer simultâneos, sem

257
7
2005

idealizar a mediação de Deus, Estado e seu Contrato. Seu


coletivo era baseado na convivência vivida — relações que
se dão em espaços concretos. Sensações arcaicas exigi-
am palavras para serem comunicadas e compartilhadas.
Lygia nunca perdeu a dimensão de que “a comunicação
com o corpo abre para o coletivo”. Todavia, passava longe
de Lygia propor um mergulho em si ou uma auto-desco-
berta do ego.
Zaratustra encerra sua trajetória de anúncio do além
do homem na chegada do leão. “Chegou o sinal!” No en-
tanto, apenas a criança afirma, cria novos valores para
superar o espírito humano, o leão é incapaz disso, pois
sua vontade ainda diz não ao “tu deves”. “Os meus filhos
estão próximos”.42 Transformar-se em criança seria rea-
lizar a superação anunciada por ele, seria se tornar o su-
per-homem, seria dizer sim. O futuro anunciado por Zara-
tustra se encontra na criança. “O princípio do eterno re-
torno, nos remete às crianças e ao ser criança como formas
ininterruptas do ato de guerrear e de instabilizar idealiza-
ções. [...] A criança deixa fazer dançar, perde os sentidos
pelos sucessivos giros, tonteia, busca eixo, refaz uma su-
posta normalização estática dada pelo conceito, portanto
experimenta”.43 A criança não se deixa definir por estraté-
gias conceituais de pedagogias que visam moldá-la para
suportar os fardos da moral. Defini-la a partir do adulto
que se quer construir moralmente transformaria o super-
homem no burro de carga de hoje.
O Leão rugiu e os homens superiores desaparece-
ram. Zaratustra, sozinho agora, compreendeu qual foi
sua “última tentação”: “Compaixão! Compaixão pelo
homem superior!”. Nessa cena final do livro anuncia-se
um outro tempo — o grande meio dia.
Lygia preocupava-se com a noção de humanidade, no
entanto, em contraposição à imagem ideal de ser huma-
no, investiu no contato estreito com pessoas menores,

258
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

dependentes de tutela, sem a autonomia do maior, mas


resistindo a ele. Lygia aproximou suas experiências das
crianças surdas-mudas, dos autistas; enfrentou com pa-
ciência transferências e contra-transferências de alguns
de seus alunos da Sorbonne. Na atividade terapêutica de-
dicou-se aos casos mais problemáticos: borderlines e psi-
cóticos. Nestas pessoas encontrava o esforço para se co-
municar ou para entrar em contato com o sofrimento. “So-
mente quem passou por grandes catástrofes pode
entendê-las” — afirmava Lygia..
Nietzsche teve seu embate com os homens superio-
res: reis, sacerdotes, feiticeiro, e os levou para sua caver-
na, pois os considerava indivíduos únicos, afastados do
rebanho e junto a eles esperou encontrar a ponte para o
além do homem. Lygia, por sua vez, convidou para sua
caverna os menores — seres tutelados ou sujeitados. Fo-
ram estes os companheiros que ela desprendeu do reba-
nho. A luta para se comunicar com um coletivo, para se
transformar, deu-se com eles, enfrentando inclusive o
perigo da compaixão. Todavia, em vez de tentar aperfei-
çoá-los em direção a uma maioridade ou condicioná-los
por processos pedagógicos, o que, também, resultaria em
compaixão, Lygia reconheceu a grandiosidade das experi-
ências deles e de saberes decorrentes. Por meio da arte e
da transposição da arte para uma atividade terapêutica,
Lygia acabou desprendendo de uma rede normalizadora
saberes sujeitados, e muitas vezes desqualificados por um
discurso científico maior.
A correspondência entre o caminhar de Lygia e o de
Zaratustra mostrou seu sentido mais instigante quando
Lygia, ao descolar os saberes sujeitados e vivências dos
modelos de interpretação uniformizadora, possibilitou in-
troduzir elementos cruciais para a superação do homem.
Zaratustra duvidava que os homens superiores recolhi-
dos em sua caverna fossem seus reais companheiros. “Ain-

259
7
2005

da dormem esses homens superiores, quando eu já estou


acordado: não são esses os companheiros próprios para
mim”.44 Lygia, por sua vez, tinha periódicas dúvidas se
conseguiria dar continuidade ao seu trabalho como tera-
peuta, exatamente pela dificuldade em lidar consigo pró-
pria frente a estes parceiros. Como não ceder às tenta-
ções da compaixão e conseguir deixar os perdidos entre-
gues a si mesmos?
No entanto, ao incorporar, na invenção de um coletivo,
aqueles que passaram por extremo sofrimento ou incom-
preensão — nomeados como bordelines —, e não as crian-
ças saudáveis, nem os rasos neuróticos, Lygia faz emer-
gir uma pergunta nos interstícios das certezas. A inven-
ção de valores e o exercício de uma ética arrasam
efetivamente a sujeição destes saberes ínfimos e silenci-
osos e o mascaramento de seus protagonistas em perso-
nagens pacificados?
Questão queimada pelo anunciado sol do grande meio
dia ou sombra insidiosa deslizando pelo avesso das pedras?
Ou ambos?

Notas
1
Parte deste artigo foi apresentada no XV Encontro Nietzsche: Colóquio,
realizado de 13 a 17 de outubro de 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
2
Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro, Civilização Brasi-
leira, 1998, p. 333.
3
Idem, p. 47.
4
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, fita cassete, gravado em 14 de
setembro de 1979.
5
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 15 de abril de 1961, CEMAP/CEDEM/
UNESP.
6
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 14 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/
UNESP. Michel Seuphor (1901-1999), artista, escritor e crítico de arte belga,

260
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

participou do Surrealismo e da Arte Abstrata. Os irmãos, Antoine Pevsner


(1886-1962) e Naum Gabo (1890-1977) foram expoentes do construtivismo
russo.
7
Lygia Clark. Carta a Mário Pedrosa, 18 de julho de 1962. CEMAP/CEDEM/
UNESP. Jean Arp (1886-1966), importante artista francês das vanguardas do
começo do século XX: Cavaleiro Azul, Dadaísmo, Surrealismo, entre outros
movimentos.
8
Lygia Clark. “Considerações a alguém” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, Rio
de Janeiro, Paço Imperial, 1997-1998, p. 145.
9
Lygia Clark. “Arte, Religiosidade, Espaço-Tempo” in Lygia Clark. Rio de
Janeiro, Funarte, 1980, p. 29, grifo meu.
10
Lygia Clark. Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 178.
11
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., pp. 33-34.
Roberto Machado. Zaratustra: tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro, Jorge Zahar
12

Editor, 1997, p. 112.


13
Lygia Clark. “28 de outubro de 1963” in Lygia Clark. Fundação Tàpies, p.
167.
14
Roberto Machado, 1997, op.cit., p. 131.
15
Lygia Clark. op.cit. p. 168.
16
Friedrich Nietzsche, 1998, op. cit. p. 179.
17
Idem, p. 180.
18
Ibidem, p.180.
19
Lygia Clark. Carta de 26/10/1968 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 1964-
1974. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996, p. 57.
20
Manuscrito, Pasta 32-produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOC-
MAMRJ.
21
Lygia Clark. Carta de 11/08/1970 in L.Clark — H. Oiticica, Cartas: 1964-
1974, op.cit, pp.170-171.
22
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 180.
23
Gilles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. António M. Magalhães. Porto, Rés-
Editora, s/d, p. 54.
24
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit., p. 172.
25
Lygia Clark, Fundação Tàpies, p. 298.
26
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro de 1979.
27
Gilles Deleuze, s/d, op.cit., p. 34.

261
7
2005

28
Depoimento de Lygia Clark para o MIS-RJ, setembro 1979.
29
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 362.
30
Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 298.
31
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 215.
32
Lygia Clark. Carta a Guy Brett, 14/10/1983, Lygia Clark, Fundação Tàpies,
p. 338. Os nomeados Bordelines referem-se a autistas, surdos-mudos, psicóti-
cos.
Manuscritos Pasta 33 – produção intelectual, Arquivo Lygia Clark, CPDOC-
33

MAMRJ.
34
Lygia Clark. “Estruturação do self ” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p. 326.
35
Idem, p. 326.
36
Memória do Corpo, vídeo de 1985, dirigido por Mário Carneiro, mostra uma
sessão terapêutica completa com Lygia Clark..
37
Manuscritos diversos, Pasta 46, Arquivo Lygia Clark, CPDOC-MAMRJ.
38
Lygia Clark. “Da supressão do objeto” in Lygia Clark, Fundação Tàpies. p.
266.
39
Expressão de Mário Pedrosa referente à trajetória de Hélio Oiticica, um dos
poucos amigos artistas de Lygia que sempre a compreendeu e apoiou.
40
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, pp. 194-195.
41
Designa, literalmente, “malha de balé”, segundo o Dicionário da Moda. A
malha foi intitulada assim devido ao seu inventor Leotard, um trapezista fran-
cês. (N. A.).
42
Idem, p. 380.
43
Edson Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo,
Imaginário, 2003, p. 150, grifo meu.
44
Friedrich Nietzsche, 1998, op.cit, p. 379.

262
verve
Lygia clark e nietzsche-zaratustra: trajetórias

RESUMO

Este artigo propõe colocar em diálogo dois caminhos de constru-


ção de si e de exercício de uma ética. De um lado, a trajetória
realizada por Zaratustra, personagem filosófico inventado por Ni-
etzsche para anunciar a chegada do super homem. De outro, a de
Lygia Clark que moldou sua vida como obra de arte por meio da
própria arte. Algumas correspondências são encontradas, ao mesmo
tempo em que algumas questões instigantes surgem dos interstí-
cios desta conversação.

Palavras-chave: Lygia Clark, estética da existência, arte contem-


porânea.

ABSTRACT

This article proposes to put in conversation two ways of self-


fashioning and exercise of an ethics. By one side, the trajectory
made by Zaratustra, philosophical character invented by Nietzs-
che in order to announce the arrival of superman. By the other, the
one of Lygia Clark who shaped her life as a work of art by means
of the art. Some correspondences are found at the same time that
some provoking questions emerge from the interstices of this con-
versation.

Keywords: Lygia Clark, aesthetic of existence, contemporary art

Recebido para publicação em 13 de fevereiro de 2004.

263
7
2005

jean vigo, a revolta e o devir

pablo martins*

“Pensamento é o pensamento de pensamento.


Claridade tranquila. A alma é de certo modo tudo o que
é: a alma é a forma das formas. Tranqüilidade súbita,
vasta, candescente: forma das formas.”

James Joyce

Há cem anos, em 26 de abril, nascia Jean Vigo, cine-


asta errante, autor de A Propos de Nice, Zero de Conduite
e L´Atalante. Poucos foram tão intensos. Nas menos de
duas horas e meia que somam todos os seus filmes jun-
tos, nos fugazes vinte e nove anos que viveu, ele insta-
lou-se de um modo ímpar na história do cinema. Histó-
ria, sim, embora extra-oficial, à margem, veemente pelo
teor híbrido que instilou.
Vigo tencionou as classificações tradicionais. Um
cineasta de fricção, que transgrediu categorias como

* Sociólogo, mestrando do departamento de Multimeios da Unicamp.

verve, 7: 264-278, 2005

264
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

documentário e ficção. Um cineasta de vanguarda, que


passeava com rara leveza entre os pilares narrativos e
poéticos. Certos historiadores insistem em compreen-
dê-lo como um artista que não alcançou um estilo esté-
tico definido. Sorte do cineasta. Azar do analista. Inde-
pendente do rótulo, e por meio do choque das classifica-
ções, brota algo, mesmo informe, que enche os olhos do
espectador.
Cineasta limite, ele limitou as tentativas de abarcar
seu universo, seu cineverso. Um limite imposto pelo pró-
prio vigor de sua juventude interrompida. Um limite
histórico, herança do conturbado momento em que vi-
veu. Um limite — nossa vã compreensão estética oriun-
da de um modelo estanque de abordagem das obras da
época.
Talvez seja contraditório, mas é no encarar desses
limites que se pode deslindar uma interpretação. Não
para compreendê-lo, tampouco para classificá-lo. Talvez
com uma imersão estética balizada por outro mergulho
histórico possamos vislumbrar a obra desse cineasta.
Falta transe, e olhos bem humorados, para enxergar Vigo.
A vida e a obra de Jean Vigo se complementam. A
figura do pai, Miguel de Almereyda, o contexto político e
artístico dos anos vinte, o surgimento do cinema como
forma de expressão e os inúmeros dispositivos vigilan-
tes e normativos que o aparelho estatal desenvolvia ofe-
receram limites e novos horizontes para o cineasta.
Dos filmes à vida, do contexto ao texto. O primeiro
elemento que chama a atenção em Zéro de Conduite
(1933) é a urdidura de uma certa poética da revolta. Tra-
ta-se do segundo longa-metragem de Vigo. Nele perce-
be-se uma consistente visão de mundo e uma defesa
pela ética da experimentação. Pode-se afirmar que Zéro
de Conduite narra tentativas de libertação em choque,

265
7
2005

ou atrito, com técnicas de dominação. Tudo a partir da


lógica e do mundo infantil.
Percebe-se uma rara delicadeza ao retratar esse
momento da vida. As crianças não são mostradas ape-
nas como pueris ou sujeitos ingênuos. São indivíduos.
Prontos e, simultaneamente, em constante metamor-
fose.
É o regime disciplinar que tolhe, ou ao menos insis-
te em tolher, a riqueza da fonte infantil. Há uma dicoto-
mia, espalhada e atenuada pela cosmologia de Vigo,
entre o mundo dos adultos e o das crianças. O mundo da
regra versus o do caos. O da formatação — que diverge
em gênero, número e grau com a formação — entra em
contraste com o da experimentação.
O internato, aos olhos sarcásticos de Vigo, não pas-
saria de uma forma de internalizar as regras discipli-
nares. Por isso, todos os adultos são conotados de um
modo ridículo. São caricaturas de um mundo corrompi-
do.
As crianças, por outro lado, caracterizam o universo
da pureza — embora tal marca não conote um roman-
tismo. As crianças de Zéro de Conduite são heróicas por
refutarem a dominação que lhes é imposta. São sujei-
tos que dizem o não necessário para a manutenção da
dignidade, da autenticidade. Numa palavra: a exaltação
da individualidade a qualquer custo.
O realçar da revolta difere do entusiasmo da revolu-
ção. Dois momentos distintos e, muitas vezes, antitéti-
cos. A revolta consiste numa abrupta negação da reali-
dade externa e uma intensa afirmação da individuali-
dade. Ela é momentânea, imediata. A revolução não
prescinde de um prognóstico, um plano de ação, uma
organização coletiva e um planejamento a longo prazo
— ela possui um inevitável teor teleológico.

266
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

Até onde se tem notícia, Zéro de Conduite é o único


filme do início da história do cinema que eleva a revolta
a uma dimensão simbólica. À revolução, ao contrário,
não faltam filmes que a enalteçam. Boa parte da obra do
cineasta russo Serguei Eisenstein, por exemplo, é um
elogio à revolução russa. A Greve (1924) é uma crítica à
falta de organização da classe operária. Outubro (1928)
narra a trajetória da tomada de poder da revolução de
1917. Embora com inúmeras inovações na linguagem
cinematográfica, trata-se de um filme oficial. O Encou-
raçado Pontemkim (1925), dentro dessas classificações,
é um filme ambíguo: oscila entre a revolta, a revolução
e a repressão do status quo. Mesmo assim exalta a ne-
cessidade da organização para o alcance da revolução.
Todavia é no filme O Triunfo da Vontade (1934), de
Leni Riefensthal, que vemos o ápice da relação entre
cinema, Estado e ideologia revolucionária. O partido
Nacional Socialista na sua euforia pré-Auschwitz é cap-
tado por enquadramentos sóbrios e geométricos. Há um
peculiar casamento entre tecnologia social e auge da
técnica cinematográfica. Hitler idolatrado e Gobbels ino-
vando ao inserir o cinema e a propaganda como uma
política oficial de Estado.
A relação entre cinema e ideologia é ardilosa. E uma
simples distinção entre revolta e revolução pode reori-
entar toda uma classificação cinematográfica. Voltemos
a Vigo. Indaguemos sobre suas heranças, sobre o modo
como essa revolta adentrou sua biografia. Talvez seja
necessária uma breve caracterização de seu pai, o anar-
quista Miguel Almereyda.
Estamos entre as três primeiras décadas do último
século. Em meio às ruas de Nice e Paris — ruas escu-
ras, fétidas, prenhes de lirismo para alguns, transbor-
dante de nojo para outros —, entre prisões de colegas e
parentes, perpassando barricadas e uma enxurrada de

267
7
2005

ideologias afobadas. À militância política, vidas dedica-


das. À militância por outros modos de percepção da vida,
outras formas na arte emergiam. Estamos no auge das
vanguardas. Contra a métrica clássica, a pintura re-
presentativa, o teatro ilusionista e a música tonal ex-
perimentavam-se versos livres, traços desgeométricos,
a estética da crueldade e seqüências de notas cromáti-
cas, seriais, atonais. Havia uma ânsia por uma liberda-
de estética, e ninguém — sobretudo os vanguardistas
— hesitava em jogar expurgos ao ventilador. O novo era
uma imposição. Tudo que soasse clássico sofria de um
ferino despeito.
Estamos, também, no ápice da empolgação liberal.
Zilhões de monumentos erguidos à redenção tecnológi-
ca. Ruas varridas por um urbanismo sanitarista onde o
limpo e o sujo tornam-se categóricos, distintivos. Con-
solidado o regime disciplinar e normativo, arquitetado
um novo modo de atuação estatal e implementada a for-
ma industrial de organização da vida, a França fervia.
Do meio do caldeirão pulula a figura de Miguel Alme-
reyda, um anarquista polêmico, influente, um perfil
eminente no ambiente político da época, com ideais di-
versos e talento de sobra para formar e manipular a opi-
nião pública.
Freqüentador assíduo da prisão Petite Rouquette, Al-
mereyda foi perseguido durante toda sua vida. Quando
livre, ganha um rápido destaque. Escreve para jornais
tão diversos como o Liberátion, o Guerre Sociale ou o satí-
rico Bonnet Rouge. Organiza um congresso internacio-
nal centrado no tema do antimilitarismo, uma forte ide-
ologia da época que primava por reverter a lógica esta-
tal a partir do exército. Ameaça aplicar alguns desses
princípios perante o contexto da Primeira Guerra Mun-
dial. A mídia debatia a entrada, a atuação e a saída das
tropas francesas. O exército, contudo, era basicamente

268
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

formado por operários, socialistas e anarquistas — jus-


tamente o público, os leitores de Almereyda. Com a
ameaça de manipulação ganha poder e degusta-o.
Confusa e intermitente, a vida desse anarquista con-
densa um pouco do pano de fundo da época. A agitação
política, a explosão de inúmeros estilos de vida, a circu-
lação urbana e moderna permeada por novos símbolos.
Destaquemos seu início de carreira: como fotógrafo.
Ressaltemos sua principal atuação política: como jorna-
lista. Lembremos de seu maior empecilho de expres-
são: a prisão.
A vida de Almereyda, enfim, resume a atuação de
novas tecnologias sociais oriundas do fim do século XIX.
A fotografia e os jornais panfletários — juntamente com
os folhetins, o melodrama e o cinema — sintetizam o
lado periférico da emergência da cultura de massa. Qual-
quer cidadão ganha um rosto, todo indivíduo tem, teori-
camente, o direito de expressar e reivindicar sua opi-
nião.
Por outro lado, essa mesma cultura de massa é sabi-
amente utilizada pela nova elite como uma forma de
repressão revestida de discurso democrático. E são jus-
tamente os formadores de opinião, como Almereyda, os
intermediários, os barganhadores, que exercem um jogo
duplo. Eles oscilavam entre a chantagem com a elite e o
acirramento dos ideais com a massa.
Mais refinada, a lógica carcerária ganha relevância
histórica e institui novos modos de normalização, pa-
dronização e dominação do indivíduo. A urbes torna-se
múltipla: espaço do exercício da liberdade e locus privi-
legiado da vigilância policial. Almereyda foi uma vítima
nervosa e irrequieta dessa lógica. Numa de suas maio-
res temporadas carcerárias foi obrigado a acatar a lei do
silêncio perpétuo. Nenhuma palavra, nenhum ruído,

269
7
2005

soluço, sequer um bocejo poderia ser escutado pelos


guardas. Calaram-no. Depois de um ano, quase um ter-
ço do seu vocabulário havia desaparecido.
A revolta que guiou sua vida, segundo alguns intér-
pretes, foi resultado dessas prisões. E foi lá, entre as
grades, que reverberavam seus primeiros ideais anar-
quistas.
Mesmo com sua inquestionável autonomia, Vigo car-
regou certas angústias e inquietações do pai, Miguel
Almereyda. E foi na incessante simbiose entre estéti-
ca e política que ele ensaiou resolver tais questões.
Há algumas semelhanças, outras continuidades e
rupturas sutis entre esses dois personagens. O ambi-
ente de perseguição da vigilância normalizante, mais
uma vez, atrita-se com a busca por caminhos alter-
nativos. Há uma mudança de indumentária. O que
Almereyda resolvia entre manifestações e negocia-
ções políticas, Vigo sublimava com uma complexa rede
simbólica. Vigo escolheu o cinema, outro meio de co-
municação com as massas. Vigo foi vítima da lógica
do internato, outra faceta do regime disciplinar. Vigo
foi tolhido pela censura, seu reconhecimento foi pós-
tumo.
Contudo, é a índole da revolta que, teimosamente
e plena de brios, permanece no menino Vigo. Sua com-
bustão artística era apenas uma questão de tempo.
Lembremos que foi nos bairros de periferia, os fa-
migerados vaudevilles, que o cinema obteve seu pri-
meiro público. Sim, o cinema nasceu underground.
Antes, muito antes, de alguns movimentos requisita-
rem tal epíteto. Somente nos meados da década de 1920
houve o profícuo encontro entre o cinema e a miríade
de vanguardas da época. E nessa encruzilhada, deve-
ras saborosa, Vigo encontrou-se consigo mesmo.

270
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

Junto ao brilho das vanguardas e dos cinemas de


vaudevilles; junto à ânsia pela experimentação e pela
realização cinematográfica, Vigo aglutinou um espírito
e uma ética libertária. Desconsiderá-la não passa de
um menoscabo ao forte teor simbólico que tal contexto
obteve na sua obra. Underground — por que não? — tam-
bém fôra o ambiente em que cresceu o menino Jean
Vigo.
Em Zéro de Conduite (1933) e L´Atalante (1934), assim
como em boa parte dos filmes da época, emergem perso-
nagens típicos do ambiente das vaudevilles. São os desa-
justados, como os garotos castigados ou Huget, o novo
bedel, que não se intimida com as restrições normali-
zantes das regras do internato. São os desviados, aque-
les classificados para permanecerem à margem. É o caso
do père Jules do L´Atalante que vive eivado por valores
não partilhados pela ascensão burguesa. Ou ainda, o
mágico-palhaço-vendedor ambulante desse filme, moti-
vo da briga do casal, que parece ter vindo direto da idade
média para a Paris do século XX. Esses personagens
estão fora do contexto.
Chaplin, René Clair, Fritz Lang e Eric von Stroheim
também permearam suas narrativas com protagonis-
tas desviados. Trata-se de um sintoma da época: o de-
semprego, a índole ambígua do vagabundo (entre o herói
e o anti-herói), uma miríade de hábitos e costumes não
contemplados pela moral burguesa. Todos esses perso-
nagens fogem, zombam e perturbam a normalidade da
ordem recém instalada. Há uma mistura de ironia des-
ses diretores com a melancolia dos seus personagens.
Outra guinada de valores: o cinema na sua peleja
para obter o status de arte. Não fora um processo retilí-
neo, e, para tanto, o papel das vanguardas foi fundamen-
tal. Ela atuou de dois modos: reconheceu no cinema uma
nova forma de expressão que merecia uma atenção es-

271
7
2005

pecífica. Entretanto, a vanguarda manteve e aguçou o


espírito vulgar que caracterizou o início do cinema (e a
obra de Vigo foi uma das maiores sínteses dessa rela-
ção). As gags, por exemplo, eram atrativos indispensá-
veis para todos os vanguardistas e não possuíam ne-
nhuma intenção em elevar o status do cinema.
A vanguarda, o documentário e o cinema social po-
dem resumir as três maiores influências de Jean Vigo.
Se fôssemos escolher cineastas da época que degluti-
ram tais tendências e a legaram a Vigo, citaríamos Dzi-
ga Vertov e Luís Buñuel. De um lado a câmera-olho, que
capta e registra mais do que o olho alcança. A câmera
objetiva que desorganiza o olhar viciado dos homens
sobre o mundo. “O mundo visível assim com o mundo
invisível — a olho nu”, era o lema de Dziga Vertov. De
Buñuel, a explosão do universo onírico. Um quê de sur-
realismo, como o espaço da liberdade reivindicado pelos
artistas da época. Um pouco da poesia que nos falta, ou
nos recalca, o dia a dia.
Nos três filmes de Vigo essas heranças ganham uma
incrível fluência, principalmente, pelo modo como ele
as insere à narrativa. A frieza da objetiva cinematográ-
fica é sempre a mesma. A câmera não cria ou distorce o
fenômeno — como fizeram os vanguardistas em suas
aventuras cinematográficas — ela prima pelo registro
quase científico da mis-en-scène. O olhar do instante, o
olhar do flagrante: não é outra a base estética de Jean
Vigo. A poesia, quase surrealista, emerge dessa proje-
ção do sujeito-espectador aos objetos matematicamen-
te captados por Vigo. O surrealismo de Vigo, portanto,
surge calcado numa profunda iluminação profana.
A propos de Nice (1929), seu primeiro filme, tem in-
fluências diretas dos documentários da época que al-
mejavam captar a alma de uma cidade. Berlim, Sinfonia
de uma Metrópole (1927) de Walter Ruttmann e Rien que

272
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

les Heures (1926) do brasileiro Alberto Cavalcanti são


algumas dessas realizações. Nesses filmes, a câmera
ainda esboça um ethos documental, como se pudesse
registrar o real.
Vigo tenta, sim, imprimir o espírito de Nice, a cidade
de sua adolescência, nesse seu primeiro filme. Toda-
via, ele desconfia do real e, diferentemente de suas in-
fluências, sua câmera está eticamente orientada para
captar fenômenos, eventos e acontecimentos. Nada
mais. Não há uma realidade pré-concebida. Para o ci-
neasta francês, mesmo o jogo social, mesmo a documen-
tação de encontros sociais oriundos de um real imedia-
to aparecem como um modo de ficção. “Nenhum rosto é
tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cida-
de” observa Walter Benjamim. Vigo certamente con-
cordaria.
A representação social como um jogo: por isso sua
fixação por bonecos, máscaras e encenações do gênero.
Este elemento, o boneco, é recorrente nos três filmes
de Vigo. E o que há de real nos bonecos, além de sua
imanência física, não é justamente o encarnar realida-
de àquilo descaradamente imaginário? É desta fricção
— do irreal a olho nu com o real que nos é invisível —
que emerge a singularidade da poética do cinema de
Jean Vigo.
Zéro de Conduite (1933) condensa de outra forma as
relações entre documentário e ficção. Trata-se, primei-
ramente, de uma resolução autobiográfica. Num segundo
ângulo, percebe-se uma enorme primazia pela descri-
ção: o trem, o pátio, o dormitório, a cidade, a festa de
comemoração de aniversário do colégio (que é direta-
mente contraposta ao êxtase espontâneo — a revolução
infantil). Os flagrantes na rua, em Zéro de Conduite, lan-
çam, mais do que um estilo documental. Trata-se de
um olhar sobre a cidade, de uma tentativa infantil, pre-

273
7
2005

coce e semi-reprimida de exercer a flânerie e dar asas


aos desvarios inerentes aos passeios urbanos.
O ápice desse filme, contudo, está em suspender o
instante e o momento da revolta dos internos. Por isso a
câmera lenta, as plumas dos travesseiros, o pulo dos
meninos mostrado ao reverso remetem à recusa da
autoridade, o breve e intenso momento em que exala o
halo da liberdade.
A descrição do barco e da chegada à Paris são os ele-
mentos que dinamizam os devaneios poéticos de
L´Atalante (1934), último filme de Vigo. O rádio, o perso-
nagem circense, as danças, os gatos, as caminhadas
pelas lojas e, sobretudo, o registro do devir urbano cap-
tado, congelado, no momento do choque. A narrativa de
L´Atalante é quase um documentário de um jovem casal
que chega à capital. A câmera de Vigo soube passar o
estranhamento que a metrópole causa a qualquer ser
que não nasceu nela.

Com essa dinâmica de friccionar ficção com docu-


mentário, de tratar personagens como objetos e objetos
como personagens, a partir dessa mescla, começamos
a enxergar Vigo. Afora nosso olhar viciado a uma narra-
tiva previamente anunciada, além de classificações
impostas, elucida-se o poder da câmera de cinema. Com
Vigo vamos ao cerne dos anos 1920 e 1930 na França.
Porque, simplesmente, essa distinção entre poética e
realidade não fôra respeitada.

***
Um elogio à merda — um ato necessário. Alguns fa-
tos (aparentemente) desconexos:
14 de julho de 1912, o jornal La Guerre Sociale ende-
reça uma mensagem ao governo francês. Com letras

274
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

garrafais, em negrito, sua manchete estampa: EU VOS


MANDO À MERDA!
Almereyda, nome político do pai de Vigo, é o anagra-
ma de Il y a merde. Podemos traduzi-lo para algo como
‘Tem merda’. (!)
Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o estu-
dante está num devaneio solitário, escreve algo sobre a
carteira. O professor chama sua atenção. Ele, com mui-
ta naturalidade, o manda à merda.
Faltam cinco minutos para os atores entrarem no
palco. A coxia treme, alguns pulam, outros, calados, se
concentram. Uma tácita evocação de um deus grego,
remoto no tempo e vívido como símbolo. Faltariam vi-
nhos, danças e orgias, mas celebra-se a encenação da
vida. A coxia estremece com o hálito de figurinistas,
maquiadores, iluminadores, atores e diretores. É um
uníssono: MERDA — todos gritam, e agora sim,
(re)inaugura-se o júbilo de estar em ato.
Zéro de Conduite: Interior/Dia/Sala de aula: o diretor
do internato, alguns professores e os bedéis pedem, edu-
cadamente, para que o aluno retire a agressão feita ao
professor. Com altivez, o aluno se levanta e repete: eu o
mando à merda.
***
Se em Zéro de Conduite vislumbramos uma poética
da revolta, em L´Atalante percebe-se um mergulho à
estética do devir. O último filme de Vigo não passa de
um fluxo incessante com um rumo indefinido. Toda a
magia dos road-movies da década de 1970 já está explo-
rada nesse singelo filme de 1934. Não seriam poucos,
aliás, os estilos preconizados por Vigo. Sua relação en-
tre surrealismo e cinema social, por exemplo, muito se
assemelha à transgressão do neo-realismo italiano im-
pulsionada por Fellini e Pasolini.

275
7
2005

É com sutileza que a narrativa de L´Atalante não res-


peita a convenção do casamento. Por isso não é adequa-
da sua classificação como um filme lírico ou romântico.
Vigo insere a dúvida e a experimentação num ritual
social eivado pela certeza e pela rigidez. Os noivos são
dois estranhos e a noite de núpcias, à beira do L´Atalante,
causa tanta insegurança como um jogo de loteria. O fil-
me possui quatro momentos narrativos para o casal: a
cerimônia, a convivência no barco, os desencontros na
cidade e o reencontro. E cada um desses momentos tem
um suspense prenhe de reticências. Leia-se: um devir.
Todo devir dispensa uma resposta. Na dúvida do ca-
sal, a câmera vagueia pelo universo do père Jules, pelas
ruas de Paris ou pelos lugares mágicos e novos trazidos
pelo fluxo do barco. Em L´Atalante o devir é feminino. É
Juliette, a noiva, que ensaia entrar no quarto de père
Jules e apreender esse universo. Esta é uma das cenas
mais belas do filme. Pére Jules, o beberrão, sujo, rodea-
do por gatos, cheio de tatuagens, freqüentador de casas
de jogos e de prostíbulos: é este ser quase anormal que
mostra um mundo novo para Juliette. Seu marido, to-
mado pela fúria da ordem, a interrompe: Juliette deve
se comportar de acordo com o fluxo previsível que lhe é
imposto.
Análoga, outra guinada de percurso ocorre com o en-
canto de Juliette pelo vendedor ambulante (que é insu-
portável para o dono e os clientes do bar). Mais uma vez
o que a encanta é a possibilidade de conhecimento de
um mundo novo. Este teor de ingenuidade, e de vontade
de experiência, lembra o anseio dos ‘jovens diabos’ de
Zéro de Conduite.
Jean, mais uma vez, faz cara e pose de marido ciu-
mento. Em termos narrativos ele exagera esse senti-
mento, ele porta a hybris dramática. Nesse episódio te-
mos uma fantástica utilização da narrativa sonora. Ju-

276
verve
Jean Vigo, a revolta e o devir

liette, numa espécie de monólogo interior, ouve a voz do


convite do vendedor ambulante subitamente contrasta-
da com a voz castradora de seu marido. A sedução dos
novos experimentos em choque com a adequação à re-
gra. Aqui o devir fala mais alto e Juliette se permite
uma aventura pela cidade.
Seu olhar de encanto se contrapõe ao de vingança e
desespero de Jean. Seu devir é incessante: da flânerie
ela passa ao desemprego e perambula pelo submundo
de Paris. A experiência de isolamento dos recém-casa-
dos também faz parte desse devir conjunto e instila von-
tade onde outrora havia dúvida.
Depois do reencontro, outro devir: a câmera em plon-
gée sai do L´Atalante e acompanha o fluxo incessante, a
imagem de água e luz, um rio — sem destino.
Talvez haja um elo entre a noção de revolta e a de
devir. Talvez esse elo defina uma forma latente à curta
obra de Jean Vigo. Mais forte do que isso está o fato des-
se jovem cineasta ter captado e expressado a alma des-
ses dois fenômenos complexos. A alma não na sua acep-
ção metafísica. A alma na sua faceta suja, mundana,
com holofotes no seu viés profano. A alma como a forma
que engendra formas, como o lance do pensamento que
remete a outros fatos, outras idéias — ao infinito. Se
existe algo entre a revolta e o devir é melhor deixá-lo
inominável. Ou ver e rever Vigo — este cineasta cente-
nário.

277
7
2005

RESUMO
Na Paris do início do século XX, um pai anarquista e um filho cineas-
ta. O contexto político e estético, as forças repressivas e expressivas
são sintetizadas pelas figuras de Miguel Almereyda e Jean Vigo. O
legado libertário de Almreyda, um breve retrato do ambiente anarco-
sindicalista da passagem do século XIX para o XX. As primeiras
décadas da história do cinema, a busca por linguagens de vanguar-
da e o diálogo com as vaudevilles são vistas a partir dos três prin-
cipais filmes de Jean Vigo: A Propos de Nice, Zéro de Conduite e
L´Atalante. As relações entre documentário, cinema social, ficção e
cinema independente ou experimental no contexto das décadas de
1920 e 1930. Também vislumbra-se as influências de Vigo à história
do cinema e os estilos que antecipou.

Palavras-chave: história do cinema, vanguardas, anarquismo.

ABSTRACT
Paris, beginning of the 20th century, an anarchist father and his
movie maker son. The political and aesthetic contexts, the oppressive
and expressive forces are concentrated in the characters of Miguel
Almereyda e Jean Vigo. The libertarian legacy of Almereyda, a brief
view of the anarco-sindicalism environment in the transition from the
19th to the 20th century. The first decades of the history of cinema,
the search of avant-gardes languages and its dialogue with the vau-
devilles are analyzed through the tree Vigo’s main pictures: A Pro-
pos de Nice, Zéro de Conduite and L’Atalante. The relationship
between documentary, social cinema, fiction, and independent or
experimental cinema in the context of the 1920’s and 1930’s. The
article glimpses the Vigo’s influence in the history of cinema and the
stiles he announced.

Keywords: history of cinema, vanguards, anarchism.

Recebido para publicação em 15 de março de 2005.

278
verve
Anarquismo e crítica pós-moderna

Resenhas
anarquismo
e crítica pós-moderna| nildo avelino*

Salvo Vaccaro. Anarchismo e modernità. Pisa, BFS, 2004,


133 pp.

Salvo Vaccaro, professor de Filosofia Política e Ciên-


cias Políticas na Universidade de Palermo, Itália, conhe-
cido no Brasil pelo seu artigo “Foucault e o anarquismo”
que integra o Dossiê Foucault organizado por Edson Pas-
setti (Margem, n. 5, 1996, pp.157-170), publicou recente-
mente um outro ensaio no qual propõe confirmar o nexo
existente entre anarquismo e modernidade por “um
percurso de confronto com âmbitos conceituais, catego-
rias de pensamento, constelações intelectuais que por
convenção e comodidade são atribuídos a autores pós-
modernos” (p. 7). Para isso o autor re-visitou algumas
das posições críticas do anarquismo buscando traçar
continuidades, afinidades e prolongamentos, mas sem-
pre num campo de tensão e independente tanto do cor-
po teórico da ideologia política propriamente dita, quan-
to das matrizes de pensamento ligadas aos nomes men-
cionados em seu ensaio. O autor estabeleceu, com isso,

* Mestre em Ciências Sociais, doutorando pelo Programa de Estudos Pós-


Graduados em Ciências Sócias da PUC/SP, pesquisador no Nu-Sol e integran-
te do Centro de Cultura Social, bolsista Capes.
verve, 7: 279-285, 2005

279
7
2005

alguns pontos-limites nos quais realiza uma reflexão pon-


tual onde ele faz confrontar anarquismo, modernidade
e crítica pós-moderna.
Segundo Vaccaro, o pensamento anarquista ao bus-
car a abolição do poder afirma uma procura interminá-
vel, e sempre em sentido móvel, de “vida que retraça
livremente ligações sociais expressas experimental-
mente, renováveis ou revogáveis à vontade, constituti-
vamente fluídas, não cristalizadas em corpos instituci-
onais e que, em última análise, caracteriza a relação
singularidade/comunidade” (p. 8).
É desta forma, diz Vaccaro, que a distância que sepa-
ra a concepção anárquica do poder, decisivamente ne-
gativa porque afirmativa da liberdade como prática prio-
ritária, daquela de Foucault, por exemplo, é menor do
que se apresenta à primeira vista. Foucault vai distin-
guir o “poder que circula nas relações sociais da sua
condensação em aparatos de domínios que interrompem
sua fluidez, bloqueando a contínua chance de reversibi-
lidade” (p. 9).
A saída da menoridade na qual a humanidade se en-
contra em situação de escravidão tornou-se, de um cer-
to modo, o ponto alto da reflexão de Kant, uma vez que
ela implica a clássica idéia kantiana de liberdade, grá-
vida de pressupostos essencialistas, universalistas e
opressivos, como obediência aos imperativos morais.
Segundo Vaccaro, o anarquismo também é portador desta
marca emancipadora da filosofia das Luzes e de uma
certa confiança na bondade e na virtude dos homens
que lhe é inerente, fazendo reviver o encanto natura-
lista.
De modo contrário se colocam as teses pós-moder-
nas. Elas “rejeitam tanto a pretensa carga inata de bon-
dade dos indivíduos, como se a ética pudesse ser abstra-

280
verve
Anarquismo e crítica pós-moderna

ída das condições históricas nas quais homens e mu-


lheres vivem, quanto o elemento qualitativo do sujeito
que resplandece despertado pela transformação da exis-
tência, quando é justamente pelo nascimento do sujei-
to — ao mesmo tempo “soberano submisso, espectador
vigiado” (Foucault) — que na era moderna se articulou
uma imensa estratégia de dominação através dos cor-
pos e das mentes, dispostos não somente ao acaso, mas
também com implicações cruciais aos exercícios de po-
der. Sem sujeito não existiria uma prática de assujei-
tamento (mas de mera e brutal servidão), e a soberania
não se reconfiguraria em novas relações autoritárias
que colocaram a subjetividade como sua representação
histórica” (p. 10). O sujeito, portanto, não é “isento de
responsabilidade no exercício das relações de poder que
o constitui que o investe de papéis solidamente funda-
mentados, que o condiciona até mesmo na sua tensão
liberalizante”. A partir dessa analítica o anarquismo não
apenas deveria “livrar-se do mito da Subjetividade (ope-
rária, por exemplo), como deverá individuar uma inten-
sidade libertária que não cristalize os fluxos parciais de
liberações em estados molares e gregários” (idem).
Se anarquismo e crítica pós-moderna separam-se no
que concerne ao Sujeito, aproximam-se na crítica a di-
alética. No pensamento dialético o novo não pode mais
que emergir do velho; contra isso anarquismo e pós-es-
truturalismo opõem o arbitrário e o excedente, a regra
e o acaso, sublinhando “a margem de manobra da von-
tade rebelde” e a “aposta no ato subversivo de liberação”
(p. 12). Mas, aquilo que mais aproximará o pensamento
anárquico do pós-estruturalismo, sobretudo de matriz
nietzschiana, é o fato dele ser um pensamento “progra-
maticamente instável, que não busca repouso, mas de-
vir incessante” (Idem).

281
7
2005

Por meio dessas ligações perigosas o autor procurou


desfazer o nó entre anarquismo e pós-estruturalismo,
sem incorrer na “representação fiel de dois gêmeos sia-
meses”, mas fazendo pontuar confluências que provo-
cam efeitos “de deslocamento que muda-lhe a configu-
ração acrescentando uma potência dissonante” (p. 14).
Segundo Vaccaro, a estreita relação que se estabele-
ce entre anarquismo e modernidade não ocorre apenas
por paralelismo histórico ou por genealogia do modelo
teórico, mas sobretudo porque as vicissitudes de ambos
pensamentos estão indissoluvelmente intrincadas. O
anarquismo ganhou visibilidade pública “quando se con-
jugou uma série de processos sociais, políticos, econô-
micos, tecnológicos, culturais, demográficos, cuja con-
densação toma o nome de modernidade”. Isso permite
que o seu fundo teórico esteja intimamente ligado “às
principais conotações que o identificam ao moderno, ain-
da que com diferentes ênfases” (p. 15). Contudo, no âm-
bito da modernidade, “o anarquismo é uma variante
menor, situado nos limites do estranhamento, o paren-
te repudiado porque pobre (ou incômodo), quase um ele-
mento espúrio” (idem). É o que ocorre com a noção de
crítica tipicamente normativa relegada pela moderni-
dade, enquanto o pensamento anárquico lança mão de
uma faculdade crítica não normativa, re-elaborando “re-
toricamente as categorias do iluminismo moderno ex-
cedendo-o” (p. 17).
Se modernidade e Iluminismo se confundem, os con-
ceitos de fundo do anarquismo são apenas compreensí-
veis no âmbito da modernidade com a condição de im-
primir nela fortes acentuações especificas. A acentua-
ção que o anarquismo deu à emergência do conceito de
indivíduo, por exemplo, o confirma. Vaccaro aponta o
anarquismo como constituindo a única força “que pen-
sou uma formação do indivíduo não constituída por prá-

282
verve
Anarquismo e crítica pós-moderna

ticas de poder, não apenas em relação ao mundo exteri-


or — as coações na socialização da ordem constituída —
mas também e muito mais em relação ao próprio eu” (p.
25).
Dois movimentos caracterizam o moderno: de um
lado, a ocidentalização homogeneizante e despersonifi-
cadora; e de outro, “a força da continência que incita
cada um a recortar um espaço de unicidade inefetual,
estetizante” (p. 28). Neste jogo de forças, o desafio anár-
quico seria o de transformar essa tensão em laços soci-
ais abertos aos diversos estilos de vida.
Vaccaro aponta na crítica radical ao Direito uma for-
te característica do pensamento anárquico. Mas ao
arruiná-lo, o anarquismo abstrai dos processos jurídi-
cos a “dimensão institucional que hoje fornece um vín-
culo normativo sempre mais difuso e capilar”, esque-
cendo que a normatização dos comportamentos não visa
apenas dirimir conflitos, mas, sobretudo, introduzir os
valores da norma em “cada espaço físico e mental da
existência, induzindo a uma interiorização, no limite,
fisiológica, da norma” (p. 43).
Vaccaro faz notar que as pesquisas genealógicas de
Foucault demonstram que a ideologia do laissez-faire
apenas “surge quando a sociedade é colocada forçosa-
mente em condições de se “auto-governar”, tendo assi-
milado e reproduzido as instâncias de controle e domí-
nio impressas pelas estratégias de poder”, culminando
nos “corpos estatutariamente apropriados” (p. 75).
A fragmentação dos sujeitos provocada pelo moderno
causou uma sensação de angústia que fez surgir todo
um filão no qual se poderia alocar desde o romantismo
político ao utopismo científico e não-científico. Foi o que
Vaccaro chamou de reconciliação, um “potente motor que
liga ideologias diversas” e “que ainda hoje caracteriza

283
7
2005

todo imaginário ligado às hipóteses de emancipação” (p.


94). Foucault tinha mencionado a insistência dessas
velhas funções tradicionais da profecia na cultura oci-
dental, reativadas pelo ardor de conjurar o presente e
aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa
contribuir. Ou o passado nostálgico da comunidade ou o
futuro da revolução, em todo caso é preciso “reconciliar-
mo-nos com este outro nós-mesmos. É uma imagem ti-
picamente teológica: ela separa o indivíduo em uma parte
física, aquilo que somos, e uma parte metafísica, que
existe, mas que devemos alcançar” (p. 96).
Nessa busca entram em funcionamento as identida-
des. Elas designam o nosso si reconhecendo-o “apenas
quando colocado no compartimento justo”; Vaccaro atri-
bui às identidades uma função operativa que nos poupa
da “fatigosa liberdade e da pesada responsabilidade [...]
que constitui o fato de que cada um é potencialmente
livre de orientar a existência” (p. 101).
Sublinhando o duplo significado da palavra arché, que
em grego significa tanto origem e princípio, quanto co-
mando e autoridade, Vaccaro pensa a anarché como li-
vre disseminação da existência, como origem subtraída
a toda lógica de origem, como surgir singular. Implica
pensar liberdade sem limite, sem verdades consolida-
das, sem legitimação, sem valores superiores a vida,
sem origem. O início é vazio. O estilo livre seria capaz de
resistir às alturas vertiginosas e ao horror vacui, é bús-
sola necessária para não deixar o “viandante” perder-se
na imensidão do deserto ou do mar aberto, mundos de
liberdade e criatividade nos quais se pode imaginar “uma
sociedade libertária em devir-anárquico, que estende-
rá sempre mais, sem saturar-se, as chances de liber-
dade que gerações de homens e mulheres saberão his-
toricamente inventar e criar” (p. 123).

284
verve
Anarquismo e crítica pós-moderna

Anarquia in-finita. Vaccaro conclui contra a idéia de


sociedade anárquica, sempre global, exaustiva, comple-
ta, perfeita. Segundo ele não é possível falar de socieda-
de anárquica sem pretensão de totalidade auto-referen-
te, fechada em si mesma. Vínculos sociais livres impli-
cam também ruptura “social, isto é, de uma única
sociedade, na qual o elemento de pluralidade e indeter-
minação infinita seria contido e possível apenas no in-
terior de um contexto unitário que legitima alguns vín-
culos sociais e não outros” (p. 127). Daí a necessidade
de pensar o anarquismo como reserva de tensão coleti-
va e individual, como tensão fundamentalmente ética.
Devir, diz Vaccaro, implica também e, sobretudo,
transformação social, e devir é precisamente hoje o de-
safio destrutivo-construtivo ao mesmo tempo; não tanto
um “levante das massas”, mas um devir-revolucionário
que seja índice de “práticas estilizadas de vínculos soci-
ais que dissolvam o terreno sobre o qual se funda a es-
tatismo para dinamizar a pluralidade, a revogabilidade,
a estreiteza dos laços sociais, subtraindo-se as formas
do controle social que nos imobilizam no conformismo
consumista” (p. 135).

285
7
2005

notícias de um pensador:
a coragem da verdade e o pensamento
libertário de michel foucault| tony hara*

Frédéric Gros (org.). Foucault: a coragem da verdade.


Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo, Parábola Editorial,
2004, 268 pp.
Margareth Rago. Foucault, História & Anarquismo. Rio de
Janeiro, Achiamé, 2004, 87 pp.

O jornalismo radical empreendido por Michel Foucault


não cessa de surpreender e de se desdobrar de múlti-
plas maneiras na atualidade. O trabalho de diagnosti-
car as forças que sublevam e de tornar visível o que não
se vê, justamente, por estar tão próximo e colado a nós
mesmos, parece ser cada vez mais urgente. É necessá-
rio, nessa época confusa na qual se implementa o con-
trole social à distância, fazer aparecer as novas estra-
tégias de monitoramento e controle das formas de con-
duta. Mais ainda, o legado intelectual de Michel Foucault
é fundamental para compreender as recentes configu-
rações do espaço político gangrenado por palavras de or-
dem politicamente corretas e completamente vazias,
como rezam os manuais de marketing.
Fazer a história do presente, atuar na atualidade, com
coragem. As últimas aulas de Foucault no Collège de
France (1983-1984) foram consagradas ao estudo da par-
résia e levaram o título de “A coragem da verdade”. Quem
dá notícias desses últimos cursos de Foucault, ainda não
publicados, é o professor Frédéric Gros da Universidade

*Jornalista e Doutor em História pela Unicamp. Publicou Caçadores de notícias:


história e crônicas policiais de Londrina (Editora Aos Quatro Ventos) e a biografia
do poeta Paulo Leminski para a coleção Rebeldes Brasileiros (Editora Casa
Amarela).
verve, 7: 286-291, 2005

286
verve
Notícias de um pensador: a coragem da verdade...

de Paris-XII. Em novembro do ano passado, ele esteve


no Brasil a fim de participar do Colóquio Internacional
Foucault: 20 anos depois, organizado por Margareth Rago.
Nesta ocasião, Frédéric Gros abriu os trabalhos do Coló-
quio com uma conferência centrada no problema do “Cui-
dado de Si”, enfatizando as repercussões e as virtuais
transformações que esse antigo exercício ético grego
pode provocar na moral e no jogo político dominante da
modernidade.
A Coragem da Verdade. Além da conferência de
abertura do Colóquio — que contou com a participação de
mais de 30 intelectuais especializados na obra de Foucault
—, o professor Frédéric Gros trouxe também na bagagem
um livro organizado por ele, intitulado Foucault: a coragem
da verdade. Os seis ensaios que compõem o livro destacam,
sob diferentes perspectivas, um antigo problema que
assombra a atividade intelectual. A saber, o problema do
cruzamento, da aliança entre a teoria e a prática, entre o
que se diz e o que se faz, entre a verdade e a vida. É por
isso que Frédéric Gros reconhece nos estudos de Foucault
sobre a parrésia na cultura grega, algo mais do que uma
nova invenção conceitual. Trata-se, segundo seus termos,
de uma “grade de leitura da obra e da vida enquanto indis-
sociáveis, aquilo que, simultaneamente, fundamenta a
escrita de livros e a ação política” (p. 12). Em outros termos,
seria a retomada de um ponto de articulação entre os
discursos e as ações e, o reconhecimento de critérios éticos,
e não lógicos, para a avaliação da legitimidade e da validade
de uma opinião. O critério de verdade, em última análise,
encontra-se na absoluta e visível correspondência entre o
dizer e o fazer, daí a questão da coragem, da conexão entre
coragem e verdade.
Como explica Michel Foucault a parrésia é um tipo de
atividade verbal na qual o falante arrisca a vida ao mani-
festar sua relação pessoal com a verdade, por meio do fa-

287
7
2005

lar francamente. “Na parrhesia — afirma Foucault —, o


falante faz uso de sua liberdade e opta por falar franca-
mente em vez de persuadir, pela verdade em vez da men-
tira ou do silêncio, pelo risco de morte, em vez da vida e
da segurança, pela crítica, em vez da bajulação, pelo
dever moral, em vez de seus interesses e da apatia
moral”. O dizer verdadeiro é, na parrésia, um dever, uma
obrigação que visa tanto a transformação da subjetivi-
dade daquele que pronuncia o ato de verdade, quanto a
transformação dos outros, que também devem ter, pelo
menos entre os estóicos, coragem para ouvir e partici-
par francamente do confronto. Neste jogo a relação cor-
re um sério risco de se romper, pois é aceito entre os
participantes o desafio e as possíveis hostilidades que
emergem do conflito.
É interessante destacar que nos dois primeiros ar-
tigos do livro, assinados por Phillippe Artières e Fran-
cesco Paolo Adorno, a noção da parrésia é utilizada para
a construção e o entendimento da própria figura de
Michel Foucault, enquanto intelectual que procurou
incessantemente articular as intervenções na cena
política com o trabalho filosófico. Ressalta-se nessas
abordagens a coragem do diagnosticador do presente,
do ativista político engajado em lutas específicas, do
corpo a corpo com os aparelhos de controle e, final-
mente, a coragem de romper com a função e com as
representações já desgastadas e pouco efetivas de in-
telectual universal. Segundo os autores, Foucault re-
jeita, não sem provocar polêmica, a figura do intelec-
tual enquanto consciência universal da sociedade. O
papel do intelectual não é dizer aos outros o que eles
devem fazer ou modelar suas vontades políticas, afir-
ma Foucault, mas, a partir de uma análise de um cam-
po específico “reinterrogar as evidências e os postula-
dos, abalar os costumes, os modos de fazer e de pen-

288
verve
Notícias de um pensador: a coragem da verdade...

sar, dissipar as familiaridades admitidas e, a partir


dessa reproblematização, participar da formação de uma
vontade política.”
O organizador do livro, Frédéric Gros, encerra a coletâ-
nea com um artigo repleto de surpresas e de inquietantes
relatos e análises sobre as últimas aulas de Foucault, de-
dicadas ao problema da parrésia no contexto da filosofia
cínica. O filósofo se interessou pela trama elaborada pelos
cínicos gregos entre um estilo de vida despojado, portanto
descolado das convenções, e um certo uso da fala, que se
caracterizava por ser rude, áspera e provocadora. Em um
jogo insinuante de comparações, Gros sugere um deslo-
camento vivido por Foucault em suas últimas pesquisas.
Em síntese, trata-se do trânsito entre o tema do cuidado
de si para o da coragem da verdade. Talvez, mais do que
uma passagem de um problema para o outro há, efetiva-
mente, um movimento de tensionamento entre duas for-
mas, radicalmente, diferentes de relacionar a vida e a
verdade. De um lado a ética estóica, junto com as técni-
cas de cuidado de si, que estabelecem uma harmonia ide-
al entre a vida e a verdade. A ética estóica, segundo Gros,
era uma ética da correspondência regrada, disciplinada,
ordenada entre a ação e o discurso. Já entre os cínicos,
“trata-se de fazer explodir a verdade na vida como escân-
dalo(...). Tornar diretamente legível no corpo a presença
explosiva e selvagem da verdade nua, de fazer da própria
existência o teatro provocador do escândalo da verdade” (p.
163).
Como se percebe, dois sentidos diferentes de verda-
de que determinam duas formas singulares de estiliza-
ção da vida. Uma mais persistente, paciente, na qual a
vida é regulada por princípios verdadeiros apesar do caos,
dos acasos e golpes do destino. No estilo de vida cínico, a
verdade é vivida como escândalo, o corpo se torna o es-
paço de manifestação da verdade, daquelas verdades que,

289
7
2005

como afirma Gros, todos conhecem e ninguém se dá o


trabalho de viver.
Foucault, História & Anarquismo. Foucault encon-
tra as atualizações da atitude cínica de viver e de dizer
a verdade de forma provocadora, em certas manifesta-
ções, como por exemplo, em algumas correntes do asce-
tismo cristão, entre os artistas modernos que rejeita-
vam, a-gressivamente, as normas e convenções soci-
ais e, em certos movimentos revolucionários do século
XIX, como o anarquismo.
O que há em comum entre essas manifestações é a
atitude provocadora, ousada, que gera um certo incô-
modo e desconforto àqueles que se afundaram na pas-
maceira e no sossego das idéias prontas. Essa energia
expansiva, atrevida, profundamente libertária, atravessa
os textos da historiadora Margareth Rago que buscam
tecer as possíveis relações entre o pensamento foucaul-
tiano, o anarquismo e a História. Ao justificar um dos
ensaios que compõem o livro, o recado é direto e fulmi-
nante: “ainda muito indignada com a falta de abertura
dos historiadores diante de um pensamento tão energi-
zado, radical, libertário e aberto à diferença, tive decla-
rada intenção de apresentar o filósofo para os jovens es-
tudantes insatisfeitos com concepções históricas auto-
ritárias, excludentes, ensimesmadas e, portanto,
insuficientes para enxergar e problematizar nosso pre-
sente” (p. 11)
Há, nestes artigos, um irrefreável instinto de liber-
tar a História das concepções tradicionais, do modelo
antropológico da memória e das lentes inadequadas que
embaçam a visão que se tem da atualidade. O método
genealógico, criado pelo filósofo francês, torna-se no texto
de Margareth Rago um instrumento muito sensível, que
flagra os mais sorrateiros sonhos dos historiadores tra-

290
verve
Notícias de um pensador: a coragem da verdade...

dicionais. Isto é, o desejo de uma síntese totalizadora,


de uma identidade estável portadora da consciência his-
tórica, a ilusão de alcançar a realidade objetiva e a es-
sência das coisas, os procedimentos de exclusão dos
acontecimentos que não se encaixam na linha de con-
tinuidade preconcebida e as promessas de um futuro
redentor.
A desconstrução, a crítica a esses mitos que por tan-
to tempo habitaram o mundo dos historiadores, tem como
objetivo o reconhecimento das linhas de fuga na atuali-
dade. Como alerta a autora em diversos momentos, não
se pretende com as críticas provocadoras estimular um
sentimento de desprezo em relação ao passado. Mas, ao
contrário, pretende-se criar condições para que se efe-
tue um reencontro com a tradição libertária do pensa-
mento soterrada por essas visões autoritárias e metafí-
sicas da História.
Para além desse reencontro com a tradição libertá-
ria, Margareth Rago sugere um outro movimento: a rein-
venção dos antigos libertários como estratégia para fu-
gir da alienação da atualidade e da obediência ao totali-
tarismo. É por causa disso, talvez, que as suas reflexões
sobre a experiência anarquista e sobre a constituição
de subjetividades anárquicas soem tão estranhamente
belas. Belas porque fogem ao campo restrito da produ-
ção intelectual e afetam o plano da vida. Há livros que
inevitavelmente nos levam para além dos livros.

291
7
2005

heterotopia e vitalismo:
por uma arte vitalista | jorge vasconcellos*

Beatriz Scigliano Carneiro. Relâmpagos com claror:


Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte. São Paulo,
Editora Imaginário/FAPESP, 2004, 296 pp.

O livro de Beatriz Scigliano Carneiro, Relâmpagos com


claror: Lygia Clark e Hélio Oiticica, vida como arte, toca em
um tema urgente de nosso tempo. No que diz respeito à
problemática estética, este poderia ser assim formula-
do: há na arte contemporânea, especialmente naquela
que se propõe a ser renovadora, uma relação intrínseca
entre arte e vida. Essa parece ser a hipótese geral do
ensaio, construída sob o prisma de uma idéia-força cre-
ditada ao filósofo francês Michel Foucault — a noção de
“heterotopia”. O intuito da autora é, resumidamente
falando, investigar a vida como obra de arte nos traba-
lhos de Lygia Clark e Hélio Oiticica. No entanto, uma
idéia cara ao chamado “primeiro Foucault”, provenien-
te justamente de suas leituras de Georges Bataille, faz-
se também importante. Trata-se de pensar a transgres-
são neste fazer a obra, neste “obrar”. Essa vinculação à
transgressão e ao transgredir surge no ensaio por in-
termédio de uma discussão-problema: qual a relação
entre transgressão e autoria da obra? E mais, essa re-
lação que faz do transgredir o que é posto pelos cânones
estabelecidos, no tocante à constituição das obras, não
só implodiria a noção clássica de autoria, como tam-
bém, estabeleceria, justamente, uma ligação entre obra
e vida? Essa ligação entre vida e obra, na verdade, não

*Professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama


Filho/RJ.

verve, 7: 292-296, 2005

292
verve
Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista

nos colocaria diante da junção indissociável entre a


estética e a ética?
Essas questões aparecem problematizadas, nem sem-
pre de modo explícito, ao longo da leitura do livro de Sci-
gliano, e gostaria de, antes de apresentar o ensaio pro-
priamente dito, introduzir um certo movimento no tex-
to em questão. Talvez fazê-lo ranger, isto é, produzir
ruído nos interstícios do que o texto não diz, fazendo-o,
assim, falar para além de suas palavras, provocando, de
fato, o que seja uma resenha: estabelecer diálogo com a
escritura a ser resenhada.
Sigo, de modo sucinto, o seguinte procedimento: em
primeiro lugar, traço o ponto que liga as duas idéias fou-
caultianas presentes no ensaio: a noção de heterotopia
e o tema da “estética da existência”. Em segundo lugar,
procuro mostrar em que medida estas idéias foucaulti-
anas, apropriadas pela autora, diga-se de passagem de
modo extremamente rigoroso, claro e muito bem escri-
to, associam-se em sua interpretação à obra de Hélio
Oiticica e de Lygia Clark. E, por fim, como estas idéias,
em sua apropriação e interpretação das obras dos artis-
tas retrocitados, implicam uma visada estética, a sa-
ber: a arte é mais do que um elemento de transgressão
das normas estabelecidas em uma dada sociedade; a
arte, ela mesma, é transformação da própria vida, já que
transformação nesses termos, pensando-a nietzschia-
namente, é transmutação de valores, adesão absoluta-
mente radical à vida, produção de um pensamento es-
tético vitalista.
A noção de heterotopia talvez possa ser considerada,
em certa medida, como um termo bastante periférico
na obra do filósofo francês. Apesar desta aparecer em As
palavras e as coisas, obra nodal da démarche foucaultia-
na, somente em uma conferência ao Círculo de Estudos

293
7
2005

Arquiteturais em Paris, proferida em março de 1967 (pu-


blicada posteriormente em Dits et Écrits, vol. IV, pp. 752-
762), que ela ganharia estofo teórico para ser entendida
como um operador conceitual. Não obstante, Foucault
em seguida a esse período, de certo modo, parece aban-
doná-la. Heterotopia, naquela ocasião, passava a desig-
nar a coexistência em uma espécie de espaço impossí-
vel ou improvável, o que nas próprias palavras foucaul-
tianas seria estabelecida “com um grande número de
mundos possíveis fragmentários”. Referindo-se primor-
dialmente à literatura e a literatos, mais especialmen-
te a alguns textos de Jorge Luis Borges, a idéia compor-
ta uma justaposição ou superposição de espaços inco-
mensuráveis uns aos outros. Assim, as personagens já
não contemplam como desvelar ou desmascarar um
mistério central de uma dada trama, concebida em um
certo espaço, em um certo tempo. Elas, em vez disso,
eram forçadas a perguntar “Que mundo é este? Qual dos
meus eus deve fazê-lo?”, provocando uma cisão no es-
paço constituído e o abandono do tempo constituinte,
passando, então, à construção de novos espaços em um
tempo absolutamente contraído. Foucault desloca com-
pletamente as preocupações, então em voga, em rela-
ção ao sentido do tempo, como, por exemplo, o tempo
narrativo, para pensar a constituição dos espaços, do
que ele chamou de “espaços outros”. Contraposta à idéia
de utopia, as heterotopias pretendem descrever, de modo
sistemático, a construção desses novos espaços que com-
portem o impossível, que instaurem o novo; justapondo,
em uma mesma espacialidade, vários posicionamentos
que seriam, a rigor, incompatíveis. Pensemos no Aleph
de Borges.
Por sua vez, o tema da “estética da existência”, nú-
cleo central da problemática inaugurado pelo que os co-
mentadores foucaultianos costumam chamar de “ter-

294
verve
Heterotopia e vitalismo: por uma arte vitalista

ceiro Foucault”, determina, a partir de uma análise da


modernidade e da figura proposta por Charles Baudelai-
re — em que este designou de “dândi” (O pintor da vida
moderna) —, que a arte, o ‘fazer’ arte, está para além do
objeto artístico. Trata-se de fazer da própria vida, obra de
arte.
Trabalhando, simultaneamente, com as duas idéias
foucaultianas, Beatriz Scigliano Carneiro estabelece uma
formidável interpretação da obra de Lygia e Hélio. Os es-
paços que estes artistas construíram em seus processos
criativos forma espaços outros, para utilizarmos a noção
proposta por Michel Foucault, tão cara à autora. O livro
inicia-se apresentando a noção em questão, vinculando-a
ao tema da estética da existência, isso porque, pensar a
arte em termos de construções de novas espacialidades
para a produção da arte seria, antes de mais nada, insti-
tuir que estaríamos falando de arte que toca o corpo, que
fala ao corpo, que é corpo; uma arte que se faz com o corpo.
A apresentação da arte de Oiticica e de Clarck, sob esta
perspectiva, enseja à autora a fazer delas mundo. Mundo
que é Casa e Abrigo, acolhimento e desafio. Na apresen-
tação da obra de Lygia, Scigliano introduz a noção de que o
“Corpo é a casa”. Cuidadosa analisa as experiências que a
artista desenvolveu, especialmente as denominadas de
“A estruturação do Self” e a chamada de “Caminhando”.
Momentos extremamente marcantes na obra da criadora
dos bichos. Da arte terapia ao trabalho de dobra contido no
anel de Moebius presente em Caminhando, tratava-se de
reinventar a arte sob uma novo prisma. A experiência
estética não se faria apenas por intermédio do “sopro” cri-
ativo de um “gênio criador”, mas por meio da participação
efetiva do público, que deixaria, assim, de ser público para
ser usuário, ou ainda efetivo autor da obra. Estamos dian-
te de uma arte propositiva que acolhe e cria mundos.

295
6
2004

Oiticica, por sua vez, é apresentado como construtor de


um “Mundo Abrigo”. Morada de penetráveis e casulos, ca-
sas e espaços que pudessem conter uma obra “dançável“
por aquele que a “vestisse”: o corpo fazendo parte ou mais
que isso, sendo constituinte à própria obra. Dos “Quase
Cinema” ao “Metaesquemas”, Oiticica vislumbrava a pos-
sibilidade de novas construções estéticas que passassem,
também, como em Lygia Clarck, pela participação do ou-
tro. Pensemos na obra em que “atuaram” juntos: O diálo-
go, em que as mãos dos artistas achavam-se unidas por
um tecido que as juntavam como “algemas de afinidades”.
Eles uniram vida e arte.
Como se estabelece então o elemento transgressivo da
obra? Como esse elemento transgressivo instaura um duro
questionamento à idéia de autoria? Essas questões estão
de certo modo na linha argumentativa proposta pela auto-
ra. Ao recusarem, cada um deles a seu modo, a autoria,
pelos menos individual, da obra, Hélio Oiticica e Lygia Clar-
ck tornaram-se não só artistas transgressores dos valores
estabelecidos à época, tanto no plano estético quanto éti-
co, como também criaram novos mundos, espaços outros
de convivência e plenitude. Os artistas fizeram desses es-
paços outros um manifesto de adesão incondicional à vida.
Produziram, ao fim e ao cabo, uma arte vitalista.
Um dos muitos méritos do ensaio de Beatriz Scigliano
Carneiro foi o de, partindo das idéias foucaultianas ter
sabidamente as utilizado para além daquilo que se propu-
nham; ter transformado em operador conceitual uma no-
ção que, mesmo estando à margem da obra, serve para
produzir novas margens à interpretação. Além disso, uti-
lizando o itinerário da construção da obra dos autores, as-
sociando-o à sua vida e ao diálogo da constituição da obra
em ambos, ter feito bem mais que alinhavar biografia e
produção artística. O que foi realizado plenamente neste
ensaio foi produzir uma imanente crítica às relações.

296
verve
Afirmação da vida e decretação da morte

afirmação da vida
e decretação da morte |acácio augusto*

Lúcia Parra. Combates Pela Liberdade: o movimento anarquista


sob a vigilância do DEOPS/SP (1924-1945). São Paulo, Arquivo
do Estado/Imprensa Oficial, 2003, 203 pp.

O DEOPS é a polícia política criada na década de 1920


para caçar os perturbadores da ordem pública. Mas qual
polícia não é política? O que é perturbar a ordem? Quem
quer conservar, que ordem? A que temos hoje seria uma
polícia “neutra”, exclusivamente a serviço da lei uni-
versal e para todos? Quem faz a lei hoje? Quem fazia
naquela época? Para quê, e a quem serve a polícia?
Estas são algumas questões que podem ser levanta-
das a partir da leitura do livro Combates Pela Liberdade:
o movimento anarquista sob vigilância do DEOPS (1924-
1945), resultado do trabalho de iniciação científica rea-
lizado pela estudante de História da USP, Lúcia Parra,
que se dedica a sistematizar os prontuários de pessoas
e associações anarquistas perseguidas pelo DEOPS.
Parra percorre duas décadas de prontuários, marca-
das pelo estado de sítio do governo Artur Bernardes e
pelo governo conhecido como Era Vargas para nos mos-
trar de que maneira a polícia caracterizava os anarquis-
tas. Estes que, em meio à efervescência política no país
e à perseguição policial, construíram resistências que
abalaram as fábricas, a família, a igreja, a escola e todo
um conjunto de costumes autoritários difundidos pela
sociedade.

* Estudante de Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol e bolsista


CNPq.
verve, 7: 297-301, 2005

297
6
2004

Contudo, os anarquistas estudados por Parra não po-


dem ser vistos como vítimas de uma poderosa polícia
que foi capaz de destruí-los. No segundo capítulo de seu
trabalho, a autora mostra que eles eram vistos como
perigosos, pois suas práticas efetuavam-se como noci-
vas para o Estado, e este sabendo disso, buscava de qual-
quer forma interditar o discurso libertário, praticado
pelos anarquistas, por meio da ação policial. O que foi
em certos momentos tarefa difícil para os policiais que
não sabiam nem ao menos distinguir um anarquista de
um comunista.
Pelas categorias criadas por Parra a partir da leitura
dos prontuários, fica claro as diferentes maneiras pelas
quais os anarquistas praticavam essas resistências: en-
tre os operários, eram os que tinham maior nível de ins-
trução, obtidas quer pelo autodidatismo quer nas escolas
modernas, criadas no começo do século XX pelas associ-
ações anarquistas. Praticavam as profissões que mais
permitiam liberdade para sua ação, como sapateiro ou
comerciante; não se constituíam, como os comunistas
em torno do PC, uma unidade homogênea. Entre os anar-
quistas havia uma multiplicidade de práticas que se ar-
ticulavam e que muitas vezes confundiam a ação polici-
al. Por fim, mostra a autora, as mulheres tiveram uma
ação singular dentro do movimento anarquista, o que
muitas vezes passou desapercebido pelo próprio DEOPS.
Foram os libertários também — e isto está documen-
tado no livro — os primeiros a levantarem a questão da
mulher e das crianças. Explicitavam as péssimas condi-
ções em que estas trabalhavam nas fábricas e difundi-
am práticas cotidianas que dissolviam a relação de man-
do e obediência estabelecida entre homem e mulher,
adulto e criança. Atitude muito diferente do que está ex-
presso na lei e é difundido como prática comum, na qual
o que se têm é uma relação de tutela, na qual o homem

298
verve
Afirmação da vida e decretação da morte

adulto dispõem do corpo da mulher e da criança para o que


bem entender.
Um outro dado encontrado no livro, importante de se
destacar, é o forte envolvimento dos anarquistas com as
lutas antifascistas. A ação libertária foi muito expressiva
na criação da Liga Antifascista, que contava também com
membros da ALN (Aliança de Libertação Nacional) e de
alguns grupos comunistas de orientação trotskista. Os li-
bertários estavam atentos ao eco que causava o fascismo
italiano no Brasil — que se confirmou com a ditadura de
Vargas — e estavam interessados em barrar os desejos
fascistas e garantir liberdades democráticas para viabili-
zar sua ação cotidiana. Luta que chegou ao enfrentamen-
to direto entre anarquistas e integralistas na Praça da Sé,
no centro de São Paulo.
A prática libertária está voltada para uma transforma-
ção dos costumes. Em uma sociedade como a brasileira,
baseada em costumes autoritários, e de uma tradição po-
lítica oligárquica, a existência dos anarquistas era insu-
portável. A interdição das práticas anarquistas se dava
associando-os à categoria de indivíduo perigoso e violento,
ou desqualificando seu discurso como atrasado e desor-
deiro. Parra mostra esta tática de desqualificação do dis-
curso anarquista por intermédio dos relatórios de polici-
ais do DEOPS, mas esta, também, cristalizou-se no Código
Penal Brasileiro, como na lei de extradição de estrangei-
ros, conhecida como Lei Adolfo Gordo, de 1907. Vale lem-
brar que a desqualificação do discurso libertário não foi, e
não é até hoje, monopólio do Estado e muito menos da
direita. Mesmo parceiros pontuais na luta antifascista —
liberais progressistas e comunistas — viam, tanto quanto
o governo, os anarquistas como perigosos e portadores de
idéias atrasadas. O anarquista é e foi “tratado como se
fosse um ‘vírus’, capaz de contagiar indivíduos sãos” (p.
64).

299
7
2005

Frente a uma repulsa advinda de diversos setores da


sociedade às práticas anarquistas, a ação policial não
deve ser vista como fenômeno isolado. Ela é expressão
de uma sociedade de costumes baseados no exercício
centralizado da autoridade, que não suporta a experi-
mentação de liberdades difundida pelas práticas anar-
quistas. Com efeito, a maior dificuldade desses libertá-
rios estudados por Parra, foi difundir a experiência de
uma vida livre nas relações sociais, tarefa que talvez
seja muito mais difícil do que enfrentar a ação dos poli-
ciais do DEOPS.
Neste sentido, o que muitas vezes é visto — até mes-
mo por alguns anarquistas como malogro da ação liber-
tária nos sindicatos, pode ser analisado como uma es-
tratégia de faafirmação destas experiências retirando-
se de um lugar onde isso não era mais possível, o
sindicato. Os anarquismos, longe de se pretenderem he-
gemônicos, interessam-se em criar resistências pelas
práticas de liberdade, e “esta resistência tornou-se pos-
sível pela continuidade da cultura libertária que abar-
cava não somente práticas sindicais, como também a
imprensa libertária, atividades culturais e educacionais”
(p. 92). Fica evidente na leitura deste livro que os anar-
quismos criaram, no choque com os poderes, uma ma-
neira singular de atuar no jogo das forças sociais.
Além de se constituir como um importante material
de consulta para estudantes, pesquisadores e interes-
sados em anarquismos ou na ação do DEOPS, a força do
trabalho de Parra está em dar visibilidade à existência
de homens e mulheres como Natalino Rodrigues, Rodol-
fo Felipe, Abílio José das Neves e Francisco Augusto das
Neves, Isabel Cerrutti, Angelina Soares, entre tantos
outros. Existências que não se reduzem aos prontuári-
os policiais, impossíveis de serem capturadas.

300
verve
Conectando anarquias

Enquanto os anarquistas praticavam uma afirmação


da vida como experiência de liberdade, os agentes da
ordem buscavam interditá-los com o decreto de morte,
este sim malogrado, pois ainda hoje, os anarquistas con-
tinuam abalando hierarquias, revirando costumes e
experimentando liberdades.

conectando anarquias|thiago s. santos*

Nelson Méndez e Alfredo Vallota. Bitácora de la utopia


- anarquismo para el siglo XXI. Caracas, Universidad Cen-
tral de Venezuela, Ediciones de la Biblioteca Central,
2001. 133 pp.
Um livro que trata de anarquia é para ser saboreado,
digerido, utilizado como uma ferramenta. Ele não se es-
gota em si mesmo. Procura suscitar curiosidades, mo-
ver interesses, promover inquietações, rebeldias e de-
sobediências. Este é o objetivo de Nelson Méndez e Al-
fredo Vallota, autores de Bitácora de la Utopia: anarquismo
para el siglo XXI, “um breviário sobre o ideal anarquista,
de uma perspectiva latino americana em geral e vene-
zuelana em particular” (p.7.).
Nelson Méndez e Alfredo Vallota são professores da Uni-
versidad Central de Venezuela e integram o CRA (Comisión
de Relaciones Anarquistas). Editam o periódico anarquista
bimensal El Libertário, que em dezembro de 2004 comple-
tou nove anos de existência, e 40 números publicados.
Produção autogestionária que tem o intuito de divulgar o

*Sociólogo e mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP, integrante do Nu-Sol.

verve, 7: 301-305, 2005


301
7
2005

movimento ácrata latino-americano. Pode-se encontrar


este periódico, também, em versão web (http://
www.nodo50.org/ellibertario, para adquirir o jornal basta
escrever para: ellibertario@nodo50.org). Escreveram, tam-
bém, diversos artigos sobre libertarismo em uma publica-
ção chamada Correo A, que surgiu no fim da década de
1980 e foi interrompida na metade da década de 1990 (ainda
hoje é possível encontrar alguns textos selecionados do
Correo A em: http://www.geocities.com/samizdata.geo/
CorreoA.html). Estas duas publicações tiveram, e conti-
nuam tendo, grande importância no círculo ácrata latino-
americano.
Um dos elementos que fomentou a criação desta bitá-
cula foi uma publicação britânica do Anarchist Media Group,
que em 1988 lançou um texto intitulado “Tudo o que sem-
pre quis saber sobre anarquismo e nunca se atreveu a
perguntar” (texto mais amplamente divulgado a partir de
1995, via internet). Os autores realizaram um livro intro-
dutório às idéias libertárias, colocando em pauta os prin-
cipais temas levantados pelos anarquistas, e os argumen-
tos que respondem a algumas das questões mais freqüen-
tes apresentadas a qualquer anarquista: a crítica à
caridade estatal; a questão do crime; educação; método
anarquista de comunicar suas idéias; e o rechaço por par-
te de muitos das idéias anarquistas, por terem sempre a
imagem do anarquista como o indivíduo com uma bomba
na mão, pronto para agredir os demais. Assim, contrapõem
as pré-concepções existentes em torno da anarquia e fi-
nalizam com uma sugestão de outras fontes, nas quais é
possível pesquisar a respeito do tema tratado.
Méndez e Vallota mostram que a anarquia, diferente
do que é vulgarmente pensado e exposto em dicionários,
não é uma instigação do caos, da morte, da destruição, e
nem tampouco o anarquista é a imagem de um homem
com bombas que agride aos demais em nome de um res-

302
verve
Conectando anarquias

sentimento social ou individual. O anarquista não obede-


ce a um líder messiânico. Não agita uma bandeira de uma
ideologia superior. A sua luta é menos iluminada que a
luz proporcionada pela pólvora, mas, às vezes, ela é a úni-
ca forma de abalar os concretos civilizatórios que nos im-
põem uma cultura fundada na obediência ao superior.
A obediência é o alvo dos anarquistas que investem na
educação para a liberdade. “A verdadeira educação é o con-
trário da escolarização obrigatória, onde se aprende, prin-
cipalmente, a temer e curvar-se ante a hierarquia im-
posta” (p.52). Isto faz parte de um costume anarquista que
privilegia a livre curiosidade das crianças e não circuns-
creve a educação à escola. Escola, trabalho cotidiano, vida
social, tudo isto compõe a educação que procura chamar
cada indivíduo para se autogovernar.
A prática da educação, assim como os anarquistas a
concebem, depende da criação de uma sociedade anarquis-
ta. No entanto, o fato de ainda não vivermos em uma soci-
edade assim constituída, não impede experiências de prá-
ticas educacionais mais livres, como ocorreram com as
Escolas Modernas e com os Ateneus Libertários. São prá-
ticas que atravessam a regulação da educação praticada
pelo Estado, e no caso específico da Venezuela, cuja ad-
ministração castrense no governo impôs uma educa-
ção pré-militar para crianças e jovens. Assim é, tam-
bém, uma assistência médica que só submete os seus
usuários à exploração e à humilhação, fazendo-os depen-
dentes da caridade estatal. Escolarizar domestica os indi-
víduos e o seguro social “gera uma disponibilidade de di-
nheiro das mais importantes no capitalismo moderno, que
se utiliza para explorar os trabalhadores” (p.18). A assis-
tência do Estado desarma as iniciativas próprias, é uma
ferramenta de submissão dos indivíduos que, como retri-
buição aos benefícios do Estado, têm de agradecer o gene-
roso presente da assistência com a sua obediência.

303
7
2005

A educação permanece sendo o ponto fundamental aos


anarquistas. É pautada na invenção de novos costumes
que pretende forjar uma outra sociabilidade, que se ini-
cia, agora, no presente.
Os autores tratam ainda de um dos temas mais caros
aos anarquistas e um pouco esquecido na atualidade: a
punição. Constatam que a grande maioria dos distúrbios
sociais provém de acontecimentos incontíveis, surpreen-
dentes; acontecimentos estes que não poderiam ser im-
pedidos pelo temor da punição (prevenção geral) e que po-
lícia alguma, por mais equipada que fosse, poderia conter:
a prisão é um fracasso, afirmam. A maioria dos chamados
crimes continua sendo contra o patrimônio, contra a pro-
priedade privada. A resposta dada pelos autores, a respeito
da questão do crime, funda-se na expectativa de uma mu-
dança mais ampla da sociedade, em uma sociedade na
qual a propriedade privada não seja um valor. Projeta-se
como resposta, um modelo de proteção social, que pode ser
a organização comunal de ajuda mútua ou a expulsão do
indivíduo da comunidade, “não por vingança ou castigo,
senão como reconhecimento de uma relação sem possibi-
lidade” (p. 26), o que reafirma a atualidade do “Justiça Po-
lítica” de William Godwin, de 1973 (vide verve 5).
O livro apresenta ainda seis artigos (quatro de Vallota
e dois de Méndez) nos quais são tratados: os princípios da
anarquia (liberdade e igualdade), autogestão, além de uma
pequena biografia de Durruti e um artigo sobre Ángel
Cappelletti, importantíssimo pesquisador anarquista la-
tino-americano.
Méndez e Vallota realizaram um livro que mantém
um elo com fragmentos de textos, escritos esparsos, que
esperam apenas ser revolvidos por curiosos ensandeci-
dos; conectam anarquias. O livro intensifica interesses
literários de quem o lê; remete o leitor imediatamente a
outras fontes; lança-o a uma busca minuciosa, a uma

304
verve
Conectando anarquias

pesquisa, uma investigação a respeito da anarquia. Ao


final do livro, depara-se com uma listagem de outros li-
vros, sites, referências de vídeos, rádios e TVs que fazem
da anarquia um acontecimento único e perturbador da
ordem estabelecida. São referências que aludem tanto a
sites de associações anarquistas como a bibliotecas vir-
tuais, nas quais é possível encontrar livros completos —
de autores como Proudhon, Bakunin, Malatesta, entre
outros — para downloads.
Há, ainda, uma atenção especial para a internet, vi-
sando grupos de debates, correios informativos e e-mails,
que facilitam a troca de informações e experiências. Mas,
se de um lado a internet possibilita esses ganhos, de outro,
os autores apontam o que seriam os cyber-libertarian que
vêem na internet o máximo de liberdade. Advertem que
as novas tecnologias como a internet, alimentam tam-
bém institutos de controle social, além de ser ainda um
meio de informação muito restrito em países da Améri-
ca Latina. A internet é, assim, para os anarquistas, ape-
nas mais um instrumento do qual se utilizam de forma
interessada, e de maneira alguma um espaço para a de-
mocratização da informação, um democratismo que su-
foca rebeldias e sustenta covardes.

305
7
2005

que a fonte nunca seque

Sergio Cohn

306
verve

NU-SOL
Publicações do Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

hypomnemata
Boletim eletrônico mensal, 1999-2005

vídeos
Libertárias, 1999
Foucault-Ficô, 2000
Um incômodo, 2003
Foucault, último, 2004

CD-ROM
Um incômodo, 2003 (artigos e intervenções artísticas do Simpósio Um
incômodo)

Coleção Escritos Anarquistas, 1999-2004

1. a anarquia Errico Malatesta

2. diálogo imaginário entre marx e bakunin Maurice Cranston

3. a guerra civil espanhola nos documentos anarquistas C.N.T.

4. municipalismo libertário Murray Bookchin

5. reflexões sobre a anarquia Maurice Joyeux

6. a pedagogia libertária Edmond-Marc Lipiansky

7. a bibliografia libertária — um século de anarquismo em língua portu-

guesa Adelaide Gonçalves & Jorge E. Silva

8. o estado e seu papel histórico Piotr Kropotkin

9. deus e o estado Mikhail Bakunin

10. a anarquia: sua filosofia, seu ideal Piotr Kropotkin

11. escritos revolucionários Errico Malatesta

12. anarquismo e anticlericalismo Eduardo Valladares

13. do anarquismo Nicolas Walter

14. os anarquistas e as eleições Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Mirbeau,

307
7
2005

Grave, Vidal, Zo D’Axa, Bellegarrigue, Cubero

15. surrealismo e anarquismo Joyeux, Ferrua, Péret, Doumayrou, Breton,

Schuster, Kyrou, Legrand

16. nestor makhno e a revolução social na ucrânia Makhno, Skirda,

Berkman

17. arte e anarquismo Ferrua, Ragon, Manfredonia, Berthet, Valenti

18. análise do estado — o estado como paradigma do poder Eduardo

Colombo

19. o essencial proudhon Francisco Trindade

20. escritos contra marx Mikhail Bakunin

21. apelo à liberdade do movimento libertário Jean-Marc Raynaud

22. a instrução integral Mikhail Bakunin

23. o bairro, o consumo, a cidade... espaços libertários Bookchin, Boino,

Enckell

24. max stirner e o anarquismo individualista Armand, Barrué, Freitag

25. o racionalismo combatente: francisco ferrer y guardia Ramón Safón

26. a revolução mexicana Flores Magón

27. anarquismo, obrigação social e dever de obediência Eduardo Colombo

28. Bakunin, fundador do sindicalismo revolucionário Gaston Leval

29. Autoritarismo e anarquismo Errico Malatesta

Livros

Edson Passetti (org.). Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro,


Editora Revan/Nu-Sol, 2004.

Mikhail Bakunin. Estatismo e anarquia. São Paulo, Ed. Imaginário/Ícone


Editora/Nu-Sol, 2003.

Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Paulo, Ed.


Imaginário/Nu-sol, 2001.

308
verve

Recomendações para colaborar com verve

Verve aceita artigos e resenhas que serão analisados pelo Con-


selho Editorial para possível publicação. Os textos enviados à re-
vista Verve devem observar as seguintes orientações quanto à for-
matação:

Extensão, fonte e espaçamento:

a) Artigos: os artigos não devem exceder 26.000 caracteres


contando espaço (aproximadamente 15 laudas), em fonte Times
New Roman, corpo 12, espaço duplo.

b) Resenhas: As resenhas devem ter até 6.000 caracteres (com


espaço), em fonte Times New Roman, corpo 12, espaço duplo.

Identificação:

O autor deve enviar mini-currículo, de no máximo 03 linhas,


para identificá-lo em nota de rodapé.

Resumo:

Os artigos devem vir acompanhados de resumo de até 10 li-


nhas, em português e inglês.

Notas explicativas:

As notas, concisas e de caráter informativo, devem vir em nota


de fim de texto.

Citações:

As referências bibliográficas devem vir em nota de fim de texto


observando o padrão a seguir:

I) Para livros:

Nome do autor. Título do livro. Cidade, Editora, Ano, página.

Ex: Max Stirner. O falso princípio de nossa educação. São Paulo,


Imaginário, 2001, p. 74.

II) Para artigos ou capítulos de livros:

Nome do autor. “Título” in Título da obra. Cidade, Editora, ano,


página.

309
7
2005

Ex: Michel de Montaigne. “Da educação das crianças” in En-


saios, vol. I. São Paulo, Nova Cultural, Coleção Os pensadores,
p.76.

III) Para citações posteriores:

a) primeira repetição: Idem, p. número da página.

b) segunda e demais repetições: Ibidem, p. número da página.

c) para citação recorrente e não seqüencial: Nome do autor,


ano, op. cit., p. número da página.

IV) Para resenhas

As resenhas devem identificar o livro resenhado, logo após o


título, da seguinte maneira:

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas.

Ex: Pierre-Joseph Proudhon. Do Princípio Federativo. São Pau-


lo, Ed. Imaginário, 2001, 134 pp.

V) Para obras traduzidas

Nome do autor. Título da Obra. Cidade, Editora, ano, número


de páginas. Tradução de [nome do tradutor].

Ex: Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Mar-


tins Fontes, 2000. Tradução de Salma T. Muchail.

As colaborações devem ser encaminhadas por meio eletrônico


para o endereço verve@nu-sol.org salvos em extensão rtf. Na impos-
sibilidade do envio eletrônico, pede-se que a colaboração em dis-
quete seja encaminhada pelo correio para:

Revista Verve

Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol), Programa de Estudos


Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Rua Ministro
Godói, 969, 4o andar, sala 4E-18, Perdizes, CEP 05015-001,
São Paulo/SP.

Informações e programação das atividades


do Nu-sol no endereço:

www.nu-sol.org

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