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Acordo Ortográfico

“Um cê a mais”
por Manuel Halpern
Quando eu escrevo a palavra ação, por magia ou pirraça, o computador retira automaticamente o c na
pretensão de me ensinar a nova grafia. De forma que, aos poucos, sem precisar de ajuda, eu próprio vou
tirando as consoantes que, ao que parece, estavam a mais na língua portuguesa. Custa-me despedir-me
daquelas letras que tanto fizeram por mim. São muitos anos de convívio. Lembro-me da forma discreta e
silenciosa como todos estes cês e pês me acompanharam em tantos textos e livros desde a infância. Na
primária, por vezes gritavam ofendidos na caneta vermelha da professora: não te esqueças de mim! Com o
tempo, fui-me habituando à sua existência muda, como quem diz, sei que não falas, mas ainda bem que
estás aí. E agora as palavras já nem parecem as mesmas. O que é ser proativo? Custa-me admitir que, de
um dia para o outro, passei a trabalhar numa redação, que há espetadores nos espetáculos e alguns
também nos frangos, que os atores atuam e que, ao segundo ato, eu ato os meus sapatos.
Depois há os intrusos, sobretudo o erre, que tornou algumas palavras arrevesadas e arranhadas, como
neorrealismo ou autorretrato. Caíram hifenes e entraram erres que andavam errantes. É uma união de
facto, para não errar tenho a obrigação de os acolher como se fossem família. Em 'há de' há um divórcio,
não vale a pena criar uma linha entre eles, porque já não se entendem. Em veem e leem, por uma questão
de fraternidade, os és passaram a ser gémeos, nenhum usa chapéu. E os meses perderam importância e
dignidade, não havia motivo para terem privilégios, janeiro, fevereiro, março são tão importantes como
peixe, flor, avião. Não sei se estou a ser suscetível, mas sem p algumas palavras são uma autêntica
deceção, mas por outro lado é ótimo que já não tenham.
As palavras transformam-nos. Como um menino que muda de escola, sei que vou ter saudades, mas é
tempo de crescer e encontrar novos amigos. Sei que tudo vai correr bem, espero que a ausência do cê não
me faça perder a direção, nem me fracione, nem quero tropeçar em algum objeto abjeto. Porque, verdade
seja dita, hoje em dia, não se pode ser atual nem atuante com um cê a atrapalhar.

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