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Cinema e Psicanálise

Cinema e Psicanálise
Ana Lúcia Sampaio Fernandes
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

Palavras-Chave: Cinema – Sonho – Desejo – Fantasia

Resumo: Mostra as semelhanças entre o cinema e o sonho: “O homem busca no escuro do


cinema o isolamento do mundo para viver uma experiência imaginária com todas as emoções
proibidas e perigosas; sai delas como se despertasse de um sonho”.

Desde o início da civilização, o lanterna de tênue luminosidade, perce-


homem, mobilizado pelo desejo, busca bia o contraste com as trevas, realçando
a escolha de um recinto escuro e algumas cores e ocultando outras; o
silencioso, onde o mundo é colocado animal desenhado aparecia e desa-
em parênteses, para viver uma expe- parecia, resultando a impressão de
riência imaginária, com todas as emo- movimento. Esses pintores certamente
ções, sem riscos e isento de culpas e já tinham os olhos e a alma de cineastas
medos, sabendo que, após ter vivido e iam às cavernas para fazer e assistir
essas emoções proibidas e perigosas, sessões de cinema.
pode sair delas como se acordasse de um Analistas, pensadores e estudiosos
pesadelo. O cinema nos leva ao des- de cinema, a exemplo de Deleuze,
conhecido mundo dos sonhos, da Garcia dos Santos, Iragaray, apontam
fantasia. Quando começou, não se a extraordinária semelhança entre a
sabe. Estabelecer um marco é im- Caverna de Platão e a situação reinante
possível. Cinema é sonho, é fantasia, na sala de projeção cinematográfica.
não tem começo nem fim. Ali na caverna, fundamentalmente
A promoção do sonho tem mesmo uma sala de projeção, situada na zona
sido a razão de ser do cinema desde que fronteiriça entre a aparência da essên-
apareceram as primeiras projeções; daí cia, entre o sensível e o inteligível, a
os aspectos que o liga à psicanálise imagem da idéia, a representação do
estarem sempre presentes na teoria e na modelo é o lugar onde o mundo sensível
prática do cinema. Comecemos com desaba e onde caímos literalmente,
uma retrospecção aos primórdios da como animais dominados pelas pulsões.
humanidade, quando o homem bus- Platão, em relação à Caverna, desem-
cava as cavernas escuras para desenhar penha a função de um “lanterninha”
figuras de animais com formas em dos tempos modernos; de um lado é o
relevos, superpostas, pintando os sulcos portador da Luz – conhecimento e
com cores variadas. Mobilizando uma razão, representante da idéia do bem,
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da transcendência, iluminando o A psicanálise reduzida a um trabalho


caminho dos que estão nas trevas, artesanal de seletas elites e o cinema
conduzindo -os a seus assentos ou designado a preencher a função de divã
guiando os prisioneiros libertos para dos pobres, ambos produzem um escân-
fora da caverna; por outro lado, no dalo. A psicanálise era a ciência da
papel de “lanterninha” também cabe a palavra e o cinema arte do silêncio, até
ele vigiar a sala escura surpreendendo então.
com sua luz a alucinação que toma Pierre Jenn observou que a obra de
conta dos prisioneiros; é aquele que nas Méliès, tranqüila na sua superfície,
salas de projeção ameaça o encan- aparentemente desprovida de paixões,
tamento do recinto escuro com sua mesmo quando o objetivo é extrair do
presença desveladora. Devem ser grotesco o efeito cômico, apresenta uma
segregados em guetos (o que subverte fixação pelas mutilações físicas, mons-
a verdade), em cavernas, em cinemas, truosas metamorfoses corporais, corpos
como se fossem zonas de perdição, que se retorcem, mudam de sexo,
zonas de meretrício. O mito da caverna duplicam-se e retornam à forma origi-
dá início ao repúdio a todas as constru- nal. O tema da decapitação pura e
ções gratuitas da imaginação, ao simples é repetido insistentemente. É
menosprezo do prazer dos sentidos, a difícil deixar de ver nessas cenas de
negação de tudo isso que, passados dois fixação burlesca, a emergência de uma
milênios, seria a essência de uma arte, angústia profunda e arcaica, constante
paradoxalmente inventada pelo pró- na estrutura das fantasias de castração
prio Platão. que Freud posteriormente usaria como
O homem atual, esmagado pelo alvo das suas investigações.
concretismo da máquina, do sistema e Pierre Jenn também nos chama a
da técnica, busca o poder que a sala atenção para o interessante e divertido
escura tem de revolver e invocar seus filme “Eclipse de Soleil en Pleine Lune,
fantasmas interiores. Antes mesmo de “onde o próprio Méliès faz o papel de
o cinema se transformar numa próspera observador, pelo telescópio, de um
indústria da cultura, ele já era visto eclipse solar. O sol, ao passar pela lua,
como um local suspeito, onde algum resolve atrevido lhe dar prazer e ela
tipo de iniqüidade ameaçava vir à tona. expressa em sua face as delícias do gozo
As elites intelectuais o rejeitavam, sexual. O astrônomo excitado se
“cópias degeneradas”, diziam os filó- inclina para melhor observar a cena e...
sofos, verdadeiro “império dos sentidos” cai janela abaixo!. Tudo numa aparente
onde a população inicialmente mar- inocência: o sol e a lua, o coito, a
ginalizada acorria em massa, buscando escopofilia do astrônomo sugere a
evasão e refúgio. fantasia da cena primitiva. Esse cineas-
Coincidentemente em 1900, Freud ta movido pela censura da época procu-
publica “A Interpretação dos Sonhos” rava mascarar mais que mostrar algo,
e Méliès lança “Cendrillon” a primeira que se insinuava e que não podia ser
projeção em forma de narrativa fantás- mostrado (No cinema clássico cenas de
tica; ambos buscam realizar essa impos- sexo explícito, violência e morte não
sível fusão da ciência com o irracional. podiam ser vistos, ao contrário do
Freud traz à luz as fantasias do desejo e cinema pós-moderno de hoje). O
o trabalho das pulsões e Méliès, ao fascínio exercido pelo cinema de
mesmo tempo, as joga na sala escura. Méliès levando multidões para as salas
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escuras, está sobretudo nesse com- falando de cinema, do cinema interior


ponente onírico de fundo psicanalítico. do sonhador?
Esse recurso de censura associado ao Curiosa é a semelhança entre o
mecanismo do desejo – suprimir o que mecanismo do sonho e as características
ameaça mostrar – retarda o acesso de uma sala de projeção, denominada
sugerido, prolongando o suspense do “situação cinema” por Mauerhofer. Em
jogo erótico; cineastas de requintada 1947, o Instituto de Filmologia de Paris
imaginação até hoje o utilizam na dedicou um estudo sobre o estado de
construção de filmes eróticos, de muito subjetividade do espectador na sala de
sucesso de bilheteria e que nada têm projeção: o mundo exterior está ausen-
de pornográficos. O filme pornográfico te, o espectador se encontra num estado
perde por causa da sua brutalidade semelhante ao torpor, entregue à
fisiológica; nele não há o desvelamento regressão e ao abandono, com a atenção
progressivo e incompleto tão necessário totalmente concentrada a olhar a tela,
à dissimulação do desejo. num completo envolvimento emocio-
Em 1926, Freud entra em acirrada nal (bem diferente de ler um livro,
polêmica com Abraham e Sachs por escutar uma música ou assistir a televi-
terem aceitado colaborar com o filme são). Qualquer ruído ou visão fora da
“Segredos de uma Alma”, que ele tela remete o espectador à existência
próprio havia recusado por vulgarizar de uma realidade externa que o des-
a psicanálise, que lida com o abstrato perta para a presença do cotidiano,
só possível de ser alcançado pela comprometendo o estado psicológico
linguagem verbal, achando que as necessário para a perfeita adesão ao
imagens só nos podem dar falsas mundo do filme. O espectador na
imitações das coisas brutas. Freud verdade não “assiste” ao filme, ele o
considera marginal a função do olhar, vivencia de uma maneira, tão próxima
ficando a psicanálise restrita à escuta e do sonho e numa total intensidade, que
à interpretação verbal. Freud admitiu, não raro ele próprio se surpreende
num texto de 1913, não suportar ser gritando, xingando, torcendo ou
fitado por outrem. Os autores Renato transpirando de emoção. O espectador
Mezan, Schneider e Stein observam desprende-se da poltrona, entra na tela
esse traço de fobia, identificado na e desfruta a vida emprestada pelo
análise dos próprios sonhos, onde o personagem, converte - se em pro -
olhar angustiante tem uma valor tagonista do jogo simulado de eventos.
central, mascarando fantasias incons- O estado de relaxamento em que se
cientes, de natureza agressiva e sexual. encontrava foi favorecedor da atra-
Seria uma defesa de Freud colocar o palhação mental, tornando difícil
analista atrás do divã? efetuar a “prova de realidade” que,
Freud por mais que se oponha à segundo Freud, caracteriza o trabalho
imagem, é de imagens que trata todo o do sonho. A essa vivência conven-
tempo, se não vejamos: ao explicar o cionou-se chamar “impressão de reali-
sonho, num cenário composto de dade”.
imagens semelhantes às de atores num A busca prazerosa de ir ao cinema
palco, onde se buscam as represen- pode ter suas raízes no ambiente de
tações do desejo reprimido e mascarado, isolamento, silêncio e penumbra acon-
que ao serem descobertas tomam chegante e sedutora, onde insistimos
aspecto de cenas visuais, não estaria ele em permanecer em desejável passivi-
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dade, simulando perfeitamente o ventre pois se houver uma participação efetiva


materno para onde desejamos retornar. do espectador – situação fílmica, essa
Pode-se também justificar o desejo de situação não o deixa ter essa percepção
ir ao cinema pela “impressão da reali- e nos estados intermediários entre
dade” associada à forma de se relacionar vigília e sono o indivíduo sabe que está
com essa realidade alucinatória, que sonhando. O fato de ele saber em nada
pode ser definida como “voyeurista- diminui o desejo de estar no cinema,
narcisista”, porque nela o sujeito “espia” pelo contrário;
a intimidade do outro pelo viés da tela, 2. no filme, o material percebido é
enquanto seu corpo inerte, imaginaria- real embora o espectador não o receba
mente, é projetado no enredo, viven- como meros estímulos luminosos; ele
ciando o filme como algo que de fato toma por representação mental o que
lhe acontece como se fosse o seu sujeito não passa de percepção, e no sonho ele
(efeito sujeito). Ele participa e se toma como percepção o que não passa
identifica com a situação; um excelente de representação mental;
exemplo é o filme “A Rosa Púrpura do 3. o filme é mais lógico que o
Cairo” de Wood Allen. sonho, pois ele se identifica com a
No sonho e na fantasia, o so- elaboração secundária e não com o
nhador é o ator principal, mesmo quan- conteúdo latente, que é a matéria-prima
do ele está representado por outra do sonho. Um filme que representasse
pessoa, por meio de mecanismos de com exatidão os pensamentos oníricos
identificação e essa dissimulação o leva só teria interesse para as comunidades
a escapar à proibição, ocupando suces- médicas e científicas. As películas que
sivamente o lugar de sujeito e do objeto melhor representam o sonho são
num enunciado. No cinema, a câmera aquelas nas quais o conteúdo onírico é
ocupa sempre o lugar do sonhador, e tratado de forma semelhante ao evento
essa particular relação do sujeito com real, havendo um embaralhamento
os objetos da percepção cria a impressão entre o vivido e o imaginado.
de que os acontecimentos se processam André Bazin observou que a cen-
no momento presente. sura e a simbologia são funções cons-
Uma das motivações mais profun- titutivas tanto do sonho quanto do
das que estão por trás da invenção cinema. Na cinematografia, o meca-
técnica do cinema é induzir no espec- nismo da censura é representado pela
tador percepções socialmente discipli- legislação dos códigos de ética, pelos
nadas, que se fazem passar por represen- recursos de linguagem ou pelas regras
tações de um mundo interior. econômicas do mercado, num sentido
É comum os analisandos se referi- muito próximo da censura psíquica.
rem aos seus sonhos como filmes. Graças à censura, em início e
Renato Mezan chega mesmo a definir meados do século XX, diretores de
o sonho como “filme que se desenrola cinema, na luta contra a estupidez do
no interior das pálpebras”. Christian código puritano, usaram de requintes
Metz contesta a comparação entre o de imaginação substituindo com símbo-
cinema e o sonho, baseando-se em três los oníricos o complexo de Édipo, a cas-
argumentos: tração, as cenas sexuais e tornaram suas
1. o espectador sabe que está no obras aplaudidas até os dias de hoje.
cinema e o sonhador não sabe que está É evidente que não existe uma
sonhando. Isso nem sempre acontece absoluta coincidência entre a psicaná-
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lise e a cinematografia, cada uma tem MACHADO, Arlindo. Maquina e imaginário, pré-
um dispositivo teórico e prático de cinema & pós-cinema. São Paulo: Papirus, 1997.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica.
modalidade diversa, mas nem por isso São Paulo: Brasiliense, 1990.
se deixa de tirar proveito daqueles MEZAN, Renato. O olhar. São Paulo: Cia.das
fenômenos com os quais seus objetos Letras, 1988.
particulares se confundem. MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário.
Cinema é sonho, é fantasia e como Lisboa: Moraes, 1980.
METZ, Christian. Linguagem e cinema. São Paulo:
tal não poderia deixar de ser um tema Perspectiva, 1980.
fascinante para a psicanálise. Não é sem
razão que há muito desejávamos ter no
Círculo Psicanalítico da Bahia um Recebido em Junho/2005, aceito em
“Núcleo de Cinema” e que agora é uma Agosto/2005-08-02
realidade.
Endereço para correspondência:
Rua Padre Manoel Barbosa, 271/301
Keywords Itaigara - Edifício Casa Verde
Cinema – Dream – Desire – Fantasy 41815-050 - Salvador - BA
E-mail: alsf@atarde.com.br
Abstract
It shows the similarities of movie pictures
and dreams. “Man seeks in the dark of the
isolation of the word, to live an imaginary
experience with all forbidden and
dangerous emotions; he comes out of it as
if he is awaken from a dream”.

bibliografia
ARISTARCO, Guido. História das teorias do
cinema. Lisboa: Arcádia, 1961.
ARNHEIM, Rudolf. A arte do cinema. Lisboa:
Editorial Áster, s/d.
BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris,
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ideologiques produits par l’appareil de base, 1970.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
DELEUZE, Gilles. A imagem em movimento. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
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ESB, v.IV, V. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
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jamento e tecnologia como ferramenta social, 1981.
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IRAGARAY, Luce. Speculum de l’autre femme.
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