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Barcarola
Dama negra
Maria
A canção do africano
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão ...
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E à meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
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Vozes d'África
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O Navio Negreiro
(Tragédia no mar)
II
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...
III
POEMAS DA CARAPINHA
CRAVOS VITAIS
escrevo a palavra
escravo
e cravo sem medo
o termo escravizado
em parte do meu passado
TIÇÃO
O SACI
EU NEGRO
O FUTURO
POÇÍVEL
Gadanho
Suor-estanho
Estranho lutar dia a dia
Quem sabe? Quem sabia
Que a descida de quem fugia abria uma cela de torturados?
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CUTI. Batuque de tocaia. São Paulo : Ed. do Autor, 1982 (poemas). 82p.
BATUQUE DE TOCAIA
OFERENDA
Leva
a lava leve de meu vulcão
pra casa
e coloca na boca do teu
se dentro do peito
afogado estiver de mágoa
O fogo de outrora
do centro da terra
virá sem demora
Porque não há
por completo
vulcão extinto no peito
IMPRESSÃO
Parece que o brilho dos automóveis foi arrancado dos meus olhos
vazados num passado
Parece que nos rios poluídos corre o sangue de minhas veias
trituradas nas indústrias
Parece que as pilastras dos viadutos são meus ossos
descarnados a mil gemidos no pelourinho da História
Parece que o verde todo verde tem raízes negras que reclamam frutos
Parece que a bomba atômica foi enfiada nos meus pulmões
E que as chuvas das enchentes são as lágrimas
fugidas dos olhos revoltados
Parece que estenderam a minha pele em tiras
e fizeram as estradas e se cobriram as ruas
Parece que meus dentes é que encerram o verdadeiro sentido da paz.
E que meus nervos esticados e enterrados sob a terra
carregam a eletricidade das bobinas do meu coração...
Parece que às seis da tarde os sinos e as sirenes
têm um pouco do meu grito
E que a noite traz uma rede de sonhos
Para pescar esperanças que me façam cafuné.
SOPRO NATURAL
eu sou a pupila preta das lagoas
o sono agitado dos rios
a gargalhada branca das cataratas
o fogo fátuo dos pântanos
o suor que desce em bica das montanhas
o vento nas gargantas
o silêncio trêmulo na boca dos vulcões
marcas de passadas antigas na areia da praia
o rosto abissal dos oceanos
o olho arregalado da noite
seguindo a ginga manca do mundo
sou a cara de dentro
o grito da fala que gemeu no fundo do quintal
a fogueira que se planta guerreira
no jardim da opressão
a mata que um dia mata o concreto
estrelas que estilingam interrogações ao longe
contra o império da razão...
A PALAVRA NEGRO
A palavra negro
tem sua história e segredo
veias do São Francisco
prantos do Amazonas
e um mistério Atlântico
A palavra negro
tem grito de estrelas ao longe
sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
dos olhos
A palavra negro
tem chaga tem chega!
tem ondas fortesuaves nas praias do apego
nas praias do aconchego
A palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto de sol que nasce
A palavra negro
tem sua história e segredo
sagrado desejo dos doces vôos da vida
o trágico entrelaçado
e a mágica d'alegria
A palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país
A palavra negro
tem o sumo
tem o solo
a raiz.
AVE
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CUTI. Flash crioulo sobre o sangue e o sonho. Belo Horizonte : Mazza Edições,
1987 (poemas). 60p.
FLASH CRIOULO
sobre o Sangue e o Sonho
AVENIDA
há uma gosma espessa
baba de louco
nódoa de medo
pus de ferida
uma avenida
no meio do nosso abraço
VEM CANTANDO
noite e chuva
apresso-me nos passos
um medo branco prepara o bote
na minha sombra
pés encharcados
atolo-me na lembrança dos alagados
DA AGONIA
quilombos queimados...
hoje se dança uma alegria tonta
sobre a areia movediça da agonia
cachaça e mentira
enlameiam o terreiro
para o lucro alheio
e o samba bamboleia
meio bêbado
mulatas no picadeiro
showrando
um eterno fevereiro