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João Ruivo (www.rvj.

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O mundo interior dos professores

Os professores portugueses não vivem momentos facilitadores do desabrochar da ilusão,


da fantasia criadora e da utopia que leva à vontade de fazer e de vencer.
O clima percepcionado na maioria das escolas é de desilusão, de desencanto, de anomia
profissional.
Os mais jovens interrogam-se sobre as escolhas que fizeram no momento em que
decidiram vir a ser professores. Os que acumularam mais experiência no desenrolar do
seu percurso profissional questionam-se sobre o sentido da dádiva desinteressada com
que se envolveram numa carreira que, pela sua nobreza e relevância social, deveria ter
sido indiscutivelmente gratificante.
As políticas de reconstrução do tecido curricular, organizacional e de vida activa dos
docentes e das escolas correram mal. Correram mal a todos e pelos piores motivos.
Correram mal aos governantes, por precipitação, autismo e muita soberba. Correram
mal aos professores pelo desrespeito com que foram mimados, pelo desgaste da sua
imagem social, e pela total desestruturação do seu mundo conceptual sobre a escola e
sobre o seu futuro.
Há muito que os especialistas tentam compreender estes estádios de carreira, ou ciclos
de vida dos professores.
Porque são previsíveis e, logo, facilmente controláveis, em termos de expectativas e de
procedimentos, a literatura aconselha a manter os docentes em um dos três estádios
clássicos do seu percurso profissional: 1-O estádio da sobrevivência, ou da fantasia,
que geralmente coincide com o início da carreira, e que se singulariza pela necessidade
de afirmação do professor, no contacto que mantém com os seus alunos, com os colegas
e com comunidade educativa; 2-O estádio da mestria, em que o professor foca o seu
esforço no desempenho profissional, na preocupação de ser um "bom" professor,
dominando competências inerentes a essa intencionalidade, pelo que procura respostas
adequadas para determinadas situações que o acto de ensinar lhe coloca: o número de
alunos por turma, a ausência de regras bem definidas de acção, a falta de materiais e
condições para o exercício do seu trabalho na classe, a falta de tempo para a consecução
dos objectivos, ou para a abordagem dos conteúdos; e 3-O estádio da estabilidade, em
que o docente tenta individualizar o ensino, preocupando-se quer com os seus alunos,
quer com as suas necessidades e anseios, sejam elas tanto de ordem curricular, como de
natureza social e, até, familiar.
A pressão permanente sobre o sistema e sobre os professores; a sua menorização
pessoal, intelectual e profissional, invariavelmente conduz a situações de prolongado e
persistente mal-estar, retirando os docentes de um desses três estádios clássicos e
colocando-os no que Francis Füller tão engenhosamente chamou de “curva ou estádio
do desencanto”.
Infelizmente, vivemos em Portugal um desses momentos raros e que presumimos
indesejáveis para todos os intervenientes: professores, pais e governantes. Momento em
que se rompeu com um período em que os professores se encontravam em ciclos da
carreira de desinteressada dádiva ao sistema, à escola e aos alunos, e que os tinham
levado a optimizar o seu investimento pessoal.
O ataque à sua profissionalidade surgiu uma vez e outra, até que esta inesperada e
evitável curva do desencanto os atingiu fatalmente.
O acumular de situações provocadas por esta já longa e insuportável conjuntura, por
todos conhecida, o retomar insistente de promessas incumpridas de verdadeira
descentralização do sistema educativo português, e a negação de se atribuir mais poder
de decisão aos professores e às escolas, também contribuíram para que a desilusão e o
desencanto se enquistassem no sistema, transformando as sinergias naturais em
processos de entropia irrefreáveis.
O trabalho do professor é socialmente incontornável. Não depende apenas das políticas
e dos políticos. É uma exigência social, reconhecida e validada, que implica com a
construção do futuro e com o bem-estar da novas e das mais seniores gerações.
A escola é um bem não negociável. Não pode ser objecto de argumentos de facção, de
olhares recriminatórios e de invectivas de tirania psicológica. Não pode, porque o que se
faz à escola tem um efeito multiplicador e de imprevisível bumerangue. O desrespeito
desleal pela escola marca e vitima os acusadores. A cicatriz social que daí resulta leva
tempo a sarar.
O mal-estar que se instalou por demasiado tempo tem custos que ainda estão por
calcular. E pagamos todos. Mesmo aqueles que, como nós, continuam a pensar que para
com os professores temos uma dívida impagável que releva os momentos menos felizes
do exercício da profissão. Porque lhes devemos uma boa parte do que somos e do que
ainda queremos vir a ser.

João Ruivo
jruivo@almada.ipiaget.org

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