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A Filarmônica hoje

Fred Dantas

As organizações de ensino, criação e execução musical conhecidas como filarmônicas,


liras, ou simplesmente bandas de música chegam ao início do novo século em plena
vitalidade, em uma caminhada de 200 anos em terras brasileiras. Essas entidades, depois
do enorme prestígio social experimentado na primeira metade do século passado,
enfrentaram uma progressiva decadência na metade seguinte, ao mesmo tempo em que,
eventualmente, surgem tentativas de valorização e resgate.

Em estados do Sul, como ocorre no Rio de Janeiro e São Paulo, essa recuperação tem
sido feita com base em modelos e repertório claramente inspirados na banda sinfônica e
colegial do Ocidente. No Norte e Nordeste, ainda que se execute o repertório impresso e
globalizado, persiste o salutar costume de se criar músicas próprias do conjunto, assim
como em boa parte do interior de Minas Gerais. Do mesmo modo, são ainda preferidas
as composições próprias no interior da Bahia, que foi praticamente o Estado responsável
pela sobrevivência do termo filarmônica, ou filarmónica, que herdamos de Portugal,
onde assim são designadas as sociedades musicais que nos inspiraram. Em outros
lugares, passaram a ser chamadas bandas civis.

Banda de música está desde o início associada à música militar. Nos Estados Unidos,
ainda hoje é mais comum se referir a esse modelo como military band do que wind
band, na prática o mesmo grupo. Foram os turcos que colocaram na vanguarda dos seus
exércitos um estridente grupo de percussão e imprimiram na Europa a idéia de associar
uma marcha musical ao deslocamento das tropas. Surgiram as bandas militares e com
elas os modelos de música para marchar: marcha lenta, para solenidades, marcha rápida,
para situações de ataque de infantaria e, em andamento intermediário (semínima=120),
a marcha militar de passo-dobrado. Este tipo de marcha militar, ao se adaptar às culturas
locais, originou três grandes tradições de composição: o pás-redoublé francês, o
pasodoble espanhol e a marcha militar de passo dobrado em Portugal, que em terras do
Brasil se tornaria o dobrado, a marcha brasileira.

John Phillip Souza, descendente de imigrantes portugueses, renovou a tradição nos


Estados Unidos, onde a forma de composição continuou a ser chamada de marcha
militar, recebendo grandes adendos em matéria de orquestração. Uma delas, a Estrelas e
listras para sempre, se tornou uma espécie de segundo hino do País. Como haveremos
de citar ainda no presente artigo, se as bandas americanas se tornaram repetidoras – e
exportadoras - de repertório de mercado e lucro, a existência e visibilidade dessas
bandas foram fundamentais para que se continuasse a produzir e aperfeiçoar
instrumentos como o bombardino, barítono, trompas e tubas, além de popularizar o uso
de flautas, clarinetas e saxofones, que por isso não ficaram assim, incutidos, como o
oboé.

Sociedades com existência jurídica criadas para manter bandas de música nos parece ser
uma idéia imediatamente herdada de Portugal, onde muitos desses conjuntos são
integrados por setores profissionais como bombeiros voluntários ou empregados do
comércio. Na Inglaterra e Alemanha são numerosas as bandas formadas por agricultores
e mineiros de carvão. Para a formação das bandas de música brasileiras, do ponto de
vista musical, fato significativo foi a chegada ao Brasil, em 1808, da Banda da Armada
Real, junto ao que de melhor havia na corte de D. João VI. Do mesmo modo que se
inicia aí a verdadeira vida urbana no Brasil, antes, o que se conhecia aqui eram
conjuntos de sopro e percussão denominado Terços, ou Ternos, que tinham esse nome
por serem formados por três classes distintas de instrumento: madeiras, metais e
percussão. Eram presença obrigatória nas procissões e cerimônias públicas, iniciando
uma tradição musical muito mais adaptada ao nosso clima que a música dos violinos,
instrumentos bem mais perecíveis.

A Banda da Armada Real era um conjunto admirado em toda a Europa e sua presença
inesperada no Brasil teve como imediata conseqüência o desejo, por parte das
corporações militares, de se criar conjuntos semelhantes nas sedes dos destacamentos.
Enquanto isso, a sociedade civil partiu para modernizar seus próprios grupos, onde se
mesclaram a organização administrativa das sociedades civis portuguesas, com
repertório e fardamento dos militares.

A palavra filarmônica pode significar “povo da música” ou “amigo da música” e


designa geralmente uma sociedade civil sem fins lucrativos, onde há uma diretoria,
incluindo presidente, secretário, tesoureiro, diretor social, etc, que cuida da
administração dos bens e dos rumos da organização. Tem um corpo de sócios
contribuintes do qual provém geralmente a manutenção das atividades. Uma orquestra
sinfônica é chamada de “orquestra filarmônica” quando seu corpo diretivo é constituído
dessa mesma forma, por amigos da música organizados em sociedade sem fins
lucrativos.

Essas e outras agremiações musicais semelhantes têm reunido pessoas de opinião em


momentos onde a vida social brasileira demonstrou vitalidade. Em Minas Gerais,
reuniões dos Inconfidentes eram camufladas de encontros poético-musicais. Da mesma
forma, na Guerra da Independência na Bahia, no seio dessas entidades se tocava e
conspirava. Na Cachoeira de Tranquillino Bastos o abolicionismo era bandeira
declarada nos estatutos da nova banda que fundou, que acabou desfilando finalmente
vitoriosa, executando nas ruas da Cidade a Airosa Passeiata, a 13 de maio de 1888.

Na parte musical, a hierarquia de uma filarmônica inclui um mestre, um contramestre,


um ou mais professores, discípulos, o corpo musical, os aprendizes e iniciantes. O
mestre rege a banda e prepara o repertório, com base nas músicas da tradição, arranjos
próprios, arranjos de outros compositores ou composições próprias. O contramestre é
um músico maduro, de destaque entre os demais, que afina a banda, ensaia os trechos
mais difíceis com os colegas e substitui o mestre na sua ausência. O professor de música
é um músico veterano, com especial talento para a pedagogia, responsável pela
escolinha de música, que irá prover o corpo musical de novos executantes.
O corpo musical é o conjunto de instrumentistas que viabiliza o serviço musical da
sociedade. Entre esses músicos há os discípulos que o mestre seleciona para transmitir
seus conhecimentos de regência, instrumentação e liderança. Os aprendizes são os
alunos com instrumento que ainda não integram o corpo musical, enquanto que
iniciantes são todos os matriculados em teoria e leitura na escola de música mantida
pela sociedade filarmônica.
Depois de passar por um período de aprendizado teórico, que inclui teoria musical,
solfejo, noções éticas sobre a filarmônica e regras de como lidar com o instrumental, o
iniciante torna-se aprendiz ao ter acesso ao instrumento musical, por duas vias
principais: estudando a trompa em mi bemol, ou saxhorne, ou como se faz
modernamente, direto ao instrumento que pretende executar. As trompas em mi bemol
têm na maioria das vezes função de acompanhamento, que não exige passagens difíceis,
sendo por isso considerado instrumento de iniciação, enquanto a trompa em fá, ou
trompa sinfônica, é um instrumento de existência própria. Quando o aprendiz adquire
certo avanço, passa a integrar o conjunto principal. A saída repentina de algum músico
pode acelerar esse processo.
Uma banda de música ideal é formada pelas seguintes estantes e naipes, como
chamamos a uma família de instrumentos:

Flautim, flautas 1 e 2.
Requinta, clarinetas 1, 2 e 3, clarone.
Sax soprano, sax alto 1 e 2, sax tenor,
sax barítono.
Trompas 1, 2 e 3.
Trompetes 1, 2 e 3
Trombones 1, 2 e 3.
Barítono si b, bombardino ut ou si b
Tuba si bemol, tuba mi bemol.
Caixa, bombo, pratos, percussão
opcional (efeitos).

Desses instrumentos, as flautas e clarinetas podem ter seu número aumentado, por
serem instrumentos de sonoridade suave. Todos os demais só devem ser dobrados,
obedecendo a uma proporção, acompanhada pelos demais naipes.

As funções dentro da música de banda são: canto (melodia principal); contracanto


(melodia secundária ou ornamentação), centro (acompanhamento repetitivo) e marcação
(ou baixo). Flautas, clarinetas e trompetes são instrumentos agudos, de grandes
possibilidades técnicas, que geralmente fazem o canto. Os contracantos são geralmente
feitos pelo sax tenor e bombardino. Esse último, também conhecido como eufônio, tem
lugar de destaque no conjunto, por ter o timbre aveludado propício às melodias
secundárias. Centros são imediatamente associados às trompas, mas qualquer
instrumento, exceto a tuba, pode fazer esse tipo de acompanhamento. Finalmente a
marcação é própria da tuba e do bombo. Mas nada que não possa ser contradito: existe
nos dobrados uma parte intermediária conhecida como “o forte”, onde não há
contracanto nem marcação. As tubas, trombones e bombardinos solam, enquanto os
instrumentos agudos fazem o centro.

Um modelo inicial de banda pode até ter 15 componentes. Respeitando a proporção


entre os 20 tipos de instrumentos, uma banda do porte da Lyra Ceciliana, em Cachoeira,
sobe ao palanque com 55 músicos. Quando o músico deixa o conjunto, geralmente para
procurar oportunidades em cidades maiores, é imediatamente substituído por um aluno
da escolinha de preparação.

Assim, essas corporações e seus conjuntos de instrumentos de sopro e percussão têm


encontrado seu nicho social, um lugar próprio ao qual chamamos cultura musical,
nesses tempos de tecnologia digital. Até o início do outro século, a banda de cada
cidade era a própria música. Estavam em todos os momentos, de funerais ao carnaval.
Composições eram aplaudidas e criticadas, aceitas ou rejeitadas; maestros eram
celebridades regionais e os músicos habilidosos eram prestigiados por todos. Chegou-se
a um elevado nível de domínio técnico na arte das composições e arranjos, sendo que as
adaptações de música clássica da Europa eram conhecidas como harmonias. Existiam
mestres no interior da Bahia, como Santa Isabel e João Mariano Sobral, que
praticamente só se ocupavam com adaptações de trechos de ópera.

As formas mais comuns de composição para banda são: o dobrado, a polaca, as marchas
solenes, marchas religiosas e fúnebres, valsas, sambas e maxixes, marcha-frevo,
fantasias e arranjos. A polaca, em compasso ternário, se diferencia da valsa por
“binarizar” cada tempo do compasso de 3, tornando-o mais lento. O contrário da
polonesa, um estilo em 6 por 8, compasso que “ternariza” o binário. Polacas são peças
para solista, em geral compostas com nome de mulher, a quem se deseja dedicar.
Famosas são as polacas para bombardino, principalmente, onde o instrumento dialoga,
em trechos em geral de difícil execução, com o restante do conjunto. A polaca Maria
Almeida, para trompete e filarmônica, composta por Tertuliano Santos, mestre da
filarmônica Victória de Feira de Santana, é um exemplo de fina e delicada escrita
musical, uma espécie de êxtase do estilo. Na primeira página lê-se, em caligrafia de
pena: “dedico esta pállida composição à ilustre senhorinha Maria Almeida...” As
marchas solenes, no Recôncavo baiano, no mais severo quaternário, adquiriram estranha
feição social: também são feitas com nome de mulher.
As marchas de procissão deram a oportunidade aos mestres-compositores idealizarem
os mais sublimes cantos e instrumentações, livre de pressas, já que eram feitas para
conduzir as longas jornadas, carregando andores, nas festas de padroeiro. Nas marchas
fúnebres as melodias se tornam ainda mais tocantes, como em Uma lágrima sobre o
túmulo de Carlos Gomes, de Remíggio Domenèch, marcha fúnebre composta em
Salvador em 1896. Os sambas e maxixes eram tocados depois das missas, quando uma
vez cumpridas as obrigações as pessoas se divertiam, leves. Fantasias, como na música
sinfônica, são peças com vários andamentos e climas. As marchas-frevo são a resposta
do Recife, onde o dobrado foi posto a ferver, na disputa entre os blocos, gerando
vigoroso estilo à parte.

Festa da Primavera - Lira de Candeias


Arquivo: Casa das Filarmônicas

O estilo de composição que mais identifica a filarmônica é sem dúvida o dobrado.


Marcha militar tornada brasileira, se tornou em certos momentos música de concerto,
desapegada do serviço pelos excessos dos mestres. Os dobrados são compostos para
homenagear pessoas, datas ou lugares. Embora existam dobrados para piano, acordeon
ou violão, o estilo nasce com a formação instrumental sopros-percussão. Inicia-se com
uma introdução forte e curta, partindo para uma primeira parte, com repetição, onde é
exposta a melodia principal. A parte seguinte é o forte, onde solam os graves. Volta-se à
primeira parte e, após breve ponte, chega-se ao trio. A pena dos compositores da Bahia
elevou o trio dos dobrados a momentos de grande rebuscamento. Melodias serenas,
feitas por clarinetas, são adornadas por filigranas ao bombardino, tendo como marcação
o tangado das tubas.

As rivalidades eram um capítulo à parte na relação entre as bandas e a sociedade. Rivais


elas são até hoje, mas muitos ânimos se arrefeceram no período de pobreza que se
seguiria. Mas no apogeu, “ser” Minerva ou Lira era como ser Bahia ou Vitória hoje, no
futebol. E havia o eterno caso da música roubada: quando o mestre de uma banda criava
um novo dobrado, ia sempre ensaiar com o grupo no escondido, pois a graça era a
banda rival enviar um espião, hábil em percepção musical, que anotava as linhas gerais
da obra e as levava para o mestre rival, que cuidava de estrear a peça antes da outra
filarmônica. Não porque lhe faltasse talento para fazer sua própria música, mas de pura
pirraça. Isso já deu tiro, brigas de rua e muitos ânimos exaltados.

Chega a era do rádio e das gravações de sucesso em disco, dando início à nossa versão
de indústria cultural. Dos tanguinhos ao “arrocha”, os modismos musicais foram se
sucedendo e as bandas se escorregavam entre a execução dos dobrados da tradição e as
transcrições dos sucessos do momento para a linguagem dos sopros. Examinando um
arquivo poderoso, como o Arquivo Deraldo Portela, da Oficina de Frevos e Dobrados,
vamos observando as longas e complicadas músicas de 1920 cedendo lugar aos
revolucionários dobrados de Estevam Moura, nos anos 50, para finalmente chegarmos
aos anos 1960 com uma coleção de arranjos simplistas e em caligrafia canhestra.

Se os anos 60 foram “a década que mudou tudo”, para as filarmônicas foram a época de
menor prestígio social. Antes, as orquestras americanas já haviam proposto um outro
modelo, com base no entretenimento e na dança de salão, onde a banda de música
ficava como alternativa à antiga. Nos anos 50 muitas filarmônicas, para atender às
situações de baile, mantinham um “jaze”, com a inclusão de instrumentos harmônicos.
Com a chegada da guitarra elétrica e depois dos teclados, a música dos instrumentos de
sopro passou a ser definitivamente discriminada. Certo que, sobrevive na música de
rádio o chamado “naipe”, formado por sax, trompete e trombone, mas o que se
questionava então era o próprio modelo de organização, tudo o que não fosse
identificado com a revolução dos cabeludos.

Nos anos de chumbo da década de 70 a sobrevivência das filarmônicas se deve,


sobretudo, a uma íntima relação com os políticos e interesses eleitorais em cada região.
Desaparece o caráter erudito e libertário proposto por Tranquillino Bastos, renuncia-se
às habilidades de arranjos de um Amando Nobre e aposentam-se as longas e sutis
melodias de trio de Heráclio Guerreiro. Prosperam os dobrados de marcha, mandados
buscar em São Paulo e os arranjos dos hinos ufanistas próprios daquela época.

Bandas de música, que eram parte de um cenário de cidades pequenas, com infra-
estrutura urbana bem estruturada, prédios de arquitetura sólida e bela, praças, coretos,
famílias e também preconceitos e politicagem, estavam agora em meio à migração dos
melhores talentos para cidades maiores, inchaço da periferia por gente pobre que
abandonou a roça, a chegada do asfalto e violência. E uma juventude a princípio
entusiasmada com essa nova ordem, onde a música comercial divulgada na TV e no
rádio serve de veículo para mensagens de diversão sem conseqüências, sexismo e busca
de vantagens sem escrúpulos. Realidades duras e amorais das grandes metrópoles
estavam ali mesmo, na sala de cada casa.
O que restou nos anos 1980 foi uma idéia de banda de música como atividade de velhos,
sujeita a aparições de caráter jocoso em novelas de televisão, onde sempre a filarmônica
era mostrada de forma caricata, tocando em alguma recepção à beira de uma estação de
trem ou inauguração promovida por personagens risíveis. A ação na Bahia da Sociedade
Lítero-Musical 25 de Dezembro, da cidade de Irará, e o surgimento da Oficina de
Frevos e Dobrados, na capital do Estado, foram dois momentos fundamentais para
chegarmos aos resultados da década seguinte.

Vamos reconhecer o mérito de entidades como a Terpsícore de Maragogipe, a Minerva


e a Lira de Cachoeira, bandas de Muritiba, a União dos Ferroviários Bonfinenses, as
heróicas bandas de Lençóis e Mucugê, e tantas outras por terem resistido e continuado a
fazer o que é certo, ou seja, ensinar música e tocar para o povo, ao invés de parar, como
a felizmente recuperada Erato Nazarena, ou simplesmente deixado de existir, como as
bandas de Feira de Santana, que hospedaram talentos raros como Tertuliano Santos ou o
próprio Estevam. Em muitas cidades as sedes das filarmônicas se tornaram clubes
sociais ou foram destinadas a outros usos que não a música.

É natural que se pergunte sobre o papel das bandas militares nesse contexto, já que elas
são por excelência mantenedoras das bandas de sopro, onde vão se empregar os músicos
advindos das bandas do interior. Ora, nas situações de caserna elas são o que são,
bandas de parada e marcha, onde se destacam os bons dobrados militares do baiano
Antonino Manoel do Espírito Santo, dois deles tornados hinos oficiais, a Canção do
Soldado e o Cisne Branco, o Hino da Marinha do Brasil. A banda de música Maestro
Wanderley, da Polícia Militar da Bahia, foi a primeira banda de música a gravar um
disco em 78 rpm, ainda em 1906, quando foi de navio para o Rio de Janeiro com a
regência do próprio João Antônio Wanderley, lembrado pelos baianos por ser o autor da
melodia do Hino ao Nosso Senhor do Bonfim.
Pois bem, por volta de 1980 a Banda Maestro Wanderley se tornou banda sinfônica,
gravando um disco LP sem nenhuma conseqüência cultural, onde se usam tímpanos e
violoncelos. As bandas das corporações militares federais, por outro lado, nunca mais se
conformaram em ser bandas querendo, a todo momento, se tornar orquestras de swing
ao estilo Glenn Miller. Felizmente bem equipadas e regidas por maestros competentes
essas bandas militares desperdiçaram a enorme contribuição que poderiam dar à cultura
da sua gente, preferindo àquela época, se tornar imitações pálidas das bandas-orquestras
que volta e meia desembarcam por aqui, através de intercâmbios com as forças armadas
americanas.
No quesito divulgação, brilha solitária a estrela de Luis Ayala, o radialista, que por mais
de 25 anos, manteve o seu programa Aí vem a banda, na Rádio Excelsior da Bahia.
Numa tarefa obstinada, comparada ao papel que desempenha hoje o homem de rádio
Perfilino Neto a favor do chorinho, Ayala acumulou um acervo de raras gravações de
filarmônicas brasileiras, que levava ao público junto a comentários esclarecedores sobre
grupos e músicas. Contrastando nas ondas do rádio com uma máquina gigantesca
funcionando incessantemente na busca de novos lucros, o programa manteve aceso o
gosto pela música instrumental das bandas.

Filarmônica Recreio Clube de Queimadas


Foto - Kau Santana

A então SETRABES (Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social), mantinha um


programa de apoio às filarmônicas, que organizava no Campo Grande, um festival de
grande aceitação. Projeto do mesmo nome foi ressuscitado, dessa vez pela Fundação
Cultural do Estado, em meados dos anos 80, quando chegou-se a editar uma cartilha, de
poucas páginas mas muito objetiva, com dados esclarecedores sobre origem, formação,
organização e instrumental necessário para municípios que desejassem formar novas
filarmônicas.

Mas então o que fizeram de positivo a Oficina e a 25 de Dezembro nos anos 1980? A
banda de Irará demonstrou para as demais cidades da Bahia que o importante mesmo é a
própria comunidade amar e valorizar sua banda. Que não adiantava o governo doar
dezenas de instrumentos sem que a própria comunidade não emprestasse seus garotos
para usá-los. Que nenhum equipamento novo iria ter bom aproveitamento por parte de
músicos veteranos muito mal-acostumados, mais interessados em usar a banda como
clube social que a um interesse musical genuíno.
Em Irará dissolveu-se a velha rivalidade entre duas corporações e iniciou-se uma nova
banda. Crianças foram postas a aprender leitura musical, o comércio e cidadãos foram
convocados a apoiar materialmente o novo conjunto. Surge, à frente de tais iniciativas, a
figura carismática do médico Deraldo Portela, carinhosamente chamado de “o doutor”
pelos seus conterrâneos. Contratou-se um hábil maestro, o veterano da Rádio Sociedade
da Bahia, Norberto de Aquino, conhecido como maestro Xaxá, e a união entre iniciativa
social e talento musical não tardaram a produzir efeitos, materializados na gravação
pioneira de um disco vinil.

Enquanto isso surge em novembro de 1982 a Oficina de Frevos e Dobrados, durante o


III Festival de Música Instrumental, quando convidei músicos jovens e experientes da
época, como Tuzé Abreu, Zeca Freitas, Gerson Barbosa, Juracy Bemol e Antônio
Oliveira a formar um grupo para receber o meu mestre, João Sacramento Neto. O grupo
não se desfez, continuando com os mais criativos alunos da Escola de Música da
UFBA, à época: Rowney Scott, Pedro Robatto, Bastola, Ivan Huol, André Becker,
Guiga Scott, Geová do Nascimento e também garotas, onde estavam Virgínia Velame,
as Bernadetes Araújo e Pinho, Ely Andrade, Ingrid Rose e outras que vieram depois. A
jovem banda passaria a se chamar de Oficina, pois não se propunha a ser uma
filarmônica, e sim um grupo de pesquisa e execução do repertório dos mestres
compositores, além de lançar um novo repertório para banda.

A proposta da Oficina era revelar os mestres que, a despeito do que haviam feito, não
tiveram exegetas, como os expoentes citados neste artigo. Assim, foram surgindo as
homenagens a Álvaro Villares Neves, um refinado compositor nascido em Mucugê e
radicado em Caetité; Isaías Gonçalves Amy, um ferroviário da Leste que criou desde
baiões irresistíveis, como Toada no Sertão até peças sofisticadas para solista; Abelardo
Enéas Campos, que levou uma banda de operários da usina de açúcar de Maracangalha
a executar missas e trechos de ópera italiana. A Oficina enfatizou, sobretudo quando se
comemorava os 100 anos da Abolição da Escravatura, a contribuição dos ritmos de
origem negra à escrita dos dobrados na Bahia, com destaque para o tangado, o
acompanhamento sincopado que veio a diferenciar os nossos dobrados do estilo
tradicional de marcha.

Mas não foi só isso: as músicas compostas por Fred Dantas, fortemente influenciadas
pela música contemporânea dos Seminários de Música da Universidade Federal da
Bahia, apontavam para uma filarmônica de música atonal e com elementos de
improvisação, presentes no Dobrado Novo, no Dobrado Pepezinho e na futurista
Marcha Santo Antônio, onde um declamador bradava, com direito a rittornelo “- Isso é
tão importante! Será que eu compreendo? Santo Antônio! E o amor? E o amor?”

A Oficina de Frevos e Dobrados acabaria por se tornar uma filarmônica convencional,


com direito a sede, diretoria eleita e escola de música. A banda de Irará, ao declinar a
saúde do seu mestre-arranjador, passou por dificuldades que não a impediram de figurar
ainda hoje entre as melhores do Estado, mas a semente estava mais que lançada. As
cidades finalmente compreendiam que a tal “ação social”, proposta pelas modernas
Organizações não Governamentais, tinham um precedente na banda de música. Velhas
corporações tinham seu mérito reconhecido enquanto outras eram criadas. De coisa de
velho as bandas se tornaram música de jovem, meninos e meninas.
A criação de uma Casa das Filarmônicas, um antigo pleito da nossa parte, com direito a
projetos e apoios notáveis como o compositor Moraes Moreira, foi finalmente
implantada, inicialmente pelo governo, tornando-se depois uma razão social própria.
Essa casa representa, de qualquer forma, a resposta oficial aos pedidos de apoio material
para que cada cidade realize seu desejo. Um apoio necessário e plenamente justificado,
pelo bem que essas bandas de música fazem à coletividade, seja pela música que tocam
ou pela oportunidade que oferecem às crianças e adolescentes de se profissionalizar.

Acredito que a Casa das Filarmônicas tem sido de uma importância fundamental, como
implantadora da oficina de reparos e do banco de partituras, e também como
batalhadora de recursos e instrumentos junto ao governo federal, e por, utilizando-se da
internet, divulgar o universo das bandas da Bahia aos quatro ventos. Essa casa deveria
ser a voz a favor das bandas de música e um vetor de divulgação da sua cultura.

Do mesmo modo, devemos nos sentir a vontade, por sabermos que as filarmônicas têm
sobrevivido e formado excelentes músicos há muitos anos, para rejeitar a aplicação, à
guisa de política oficial, de métodos de ensino totalmente alheios à nossa realidade. O
que funciona em determinada cultura pode simplesmente prejudicar o trabalho das
bandas. Um método, por exemplo, inspirado em iniciativas bem sucedidas de igrejas
protestantes na recuperação de garotos-problema nos Estados Unidos não pode
funcionar da mesma maneira nas bandas da Bahia, cheias de jovens músicos netos de
músicos, acostumados a uma longa tradição de ensino e muitas, muitas partituras bem
feitas. Nada disso invalida o contato dos professores de orquestra sinfônica, que visitam
o interior por conta de projetos também ligados ao governo, com seus novos e eventuais
pupilos das filarmônicas. Se a coisa for feita sem carregos de imposição cultural, está aí
uma rara oportunidade de ver um músico sinfônico de verdade, demonstrando com
paciência as virtudes da técnica utilizada nas orquestras.

Isso serve também para o repertório importado. A mais simples e rasteira composição
feita por um cidadão de determinada cidade é mais importante em termos de realização
cultural que a melhor execução de um arranjo do tema do filme Titanic. Certa feita, fui
convidado a ser jurado em um concurso de bandas no Rio de Janeiro e retornei chocado
ao ouvir entidades centenárias se comportando como bandas de colégio, muito bem
equipadas mas tocando um repertório totalmente sem alma. Mas na mesma ocasião
constatei surpreso a presença de vários dobrados do nosso Estevam Moura, como o
Verde e Branco e o Tusca, disputando ao lado das StarWars ou Flashdances da vida.

No início do presente artigo localizei um lugar honroso para a filarmônica no panorama


cultural brasileiro contemporâneo. Esse lugar, mais precisamente, é o mesmo ocupado
pela orquestra sinfônica, por exemplo, em outra cultura. O de uma instituição
atemporal, patrimônio da memória coletiva, que além de tocar as músicas típicas do
período de seu apogeu, como a sinfonia ou o dobrado, pode se adequar à execução dos
mais diversos estilos. Não se trata mais de ser música antiga ou da moda: a filarmônica,
tal qual a orquestra sinfônica ou o quarteto de cordas, simplesmente é!

O fato cultural mais significativo envolvendo bandas de música entre a última década e
os primeiros anos desse terceiro milênio é o Festival de Filarmônicas do Recôncavo,
que chegou ano passado à sua 12a versão. Quem nunca lá esteve não pode supor. São
noites de muita beleza, quando todas luzes do Centro Cultural Dannemann, em São
Félix, são acesas, projetando a linda arquitetura neoclássica por sobre as águas do
Paraguaçu, enquanto pessoas de todas as idades comentam, aguardam e torcem pela sua
banda, naquela atmosfera com leve odor de finos charutos feitos lá mesmo.

Arquivo: Casa das Filarmônicas

Doando alguns instrumentos como prêmio, depois gravando Cds com as vencedoras,
esse festival ajudou, mas sua maior contribuição ao crescimento das bandas foi a
reinvenção da rivalidade. Estimulou-se a vontade de crescer, para descontar no próximo
ano, ou manter a posição galgada. Mas não é só: todos os anos há um homenageado, do
qual levantamos a biografia e editamos duas músicas, usadas como peças de confronto.
E como os organizadores não premiam música comercial, cada evento é um desfile
formidável do que de melhor já se escreveu para filarmônicas.

Nas filarmônicas a idéia de fidelidade à corporação aproxima-se do sagrado. Mas, por


serem entidades que ensinam gratuitamente, além de comparecerem a eventos sem a
menor conotação comercial, as filarmônicas precisam ser ajudadas, com verbas de
manutenção, aquisição de instrumentos, fardamento e conservação dos prédios que
ocupam. Felizmente não se tem notícia de bandas de música vestindo logotipos de
empresas, como ocorre no futebol, hoje fato natural, mas que para um astro de real
grandeza como Mané Garrincha poderia parecer desconcertante.

Mas, que tipo de ajuda é bem vinda a esse universo tão singular, para que mantenham e
ampliem seu atual momento de expansão? Primeiramente, é preciso que se reconheça
que as prefeituras gastam fortunas com uma ultrapassada política de circo, contratando
grupos musicais da moda, que pouquíssimo retorno trazem, como contribuição
permanente, às suas comunidades, e sempre dedicam uma ajuda muito modesta, ou
nenhuma, aos grupos que realmente atuam e engrandecem os seus municípios. Por outro
lado, é preciso fazer um trabalho de conscientização nas cidades do interior, para
reforçar junto à população uma tendência hoje existente de valorizar o que é seu, e parar
de buscar ideais externos. Reformular a banda, declinando de valores machistas,
politiqueiros e preguiçosos, reforçando a idéia de mobilização social, valorização das
figuras idealistas e geniais que habitavam o passado das cidades, enquanto se estimula a
criação de um novo repertório voltado para sopros e percussão.

As filarmônicas devem simplesmente exigir que se apresentem nos mesmos eventos ao


lado de grupos de fora convidados. Estando algumas vezes em Portugal como
trombonista do grupo da cantora Daniela Mercury, pude observar que, antes da atração
principal, se apresentava sempre nos eventos, no mesmo palco, um grupo local, muitas
vezes uma filarmónica. Isso é uma política real de valorização do que se produz na
terra.

A política de apoio oficial, a nível federal, estadual e municipal, deve ter continuidade.
As bandas de música ao oferecerem serviços gratuitos de educação musical, lanche e
fardamento, merecem ser contempladas com recursos públicos. O poder público deve
incentivar, sem interferir no conteúdo musical e na independência administrativa dos
conjuntos, a formação de novos líderes através de cursos para mestres de banda e
aperfeiçoamento de músicos. O banco de partituras, com o programa de edições
revisadas, deverá ter o crivo de profissionais capazes de identificar quais as músicas
com real importância artística e histórica, devam ser editadas, corrigindo nelas os erros
de copistas e preenchendo partes faltantes. Sem esses cuidados, o mestre recebe o
pacote, agradece mas nunca bota aqueles papéis para tocar.

Defendo com veemência que gravações ao vivo de filarmônicas só têm sentido em


festivais, quando se quer registrar os aplausos, ou avaliar o desempenho de cada uma
em disputa. Afora isso os discos, para não mofarem nas prateleiras, devem ser fiéis mais
ao que escreveu o compositor que ao atual corpo musical. As bandas devem ser levadas
a estúdio, com direito a repetições, emendas e retificações a posteriori, podendo até
convidar músicos excelentes, em nome de uma audição agradável.

Tudo deverá ser feito para que voltem a surgir compositores, para que se volte a
produzir repertório. Cursos de composição, concursos de músicas novas para
filarmônica, intercâmbio entre grupos e outros estímulos aos jovens, que muitas vezes
não são devidamente preparados pelos mestres atuais, que não sabem compor, portanto
não ensinam a compor. A graça da filarmônica é produzir maior parte do que toca, por
isso no último festival do Recôncavo já houve um curso rápido de composição e
regência para contramestres das bandas participantes.

Se na Bahia havia 84 bandas em funcionamento no início dos anos 90 e hoje seriam


123, segundo a Casa das Filarmônicas, outros estados não estão inertes, demonstrando
que a atenção à recuperação das filarmônicas se dá, em diferentes formas em todo o
país. Neste mesmo agosto de 2004 a Funarte, em parceria com três governos estaduais,
promovem um Painel Funarte de Bandas de Música, que vai levar cursos de harmonia,
reparo de instrumentos, prática de conjunto, e técnica dos diversos instrumentos de
sopro e percussão, nos estados de Sergipe, Tocantins, e Paraná. Em Sergipe, que está
mais próximo, temos testemunhos da existência de bandas de música em ótima forma,
além de bem organizados festivais.

Finalmente, a divulgação da ação das filarmônicas deve se dar mais ou menos como
ocorre todos os anos em relação ao Encontro de Filarmônicas no 2 de Julho. As
matérias jornalísticas acerca da efeméride são sempre redigidas num tom ao mesmo
tempo simpático e sério, onde se procura ressaltar, sobre as bandas, a saúde que se
respira, a simplicidade digna do público e a solenidade própria das entidades, refletida
nos vistosos uniformes. A filarmônica hoje é, tal qual o Dois de Julho, cívica e popular,
formal e matreira, séria e divertida, erudita e gingada. Qualquer tipo de ação junto a elas
seja em nível de equipamento, pedagogia ou divulgação, tem que levar em conta esses
traços que lhe são próprios. Ajudar sem interferir.

FRED DANTAS – baiano, formado em Composição e Trombone pela Escola de


Música da UFBa, onde fez também Mestrado em Música. Integrante da Orquestra
Sinfônica da UFBa, fundou a Oficina de Frevos e Dobrados, a Orquestra Fred Dantas, e
atualmente, em parceria com o UNICEF, é responsável pelo projeto Filarmônica das
Crianças, que vem desenvolvendo seu trabalho no Centro Histórico de Salvador. Fred
Dantas é responsável ainda pela criação da Escola e Filarmônica Ambiental, em
Camaçari, e pela Lira de Maracangalha.

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