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PENELOPE FAZER E DESFAZER A HISTORIA PUBLICAGAO QUADRIMESTRAL — N? 12 + 1999 DIRECTOR A.M. HESPANHA REDACGAO Avvaro Ferreira da Silva (re-un); Amélia Aguiar Andrade (Fcst-unt); Anténio Costa Pinto (cercP- -iscTe); Ant6nio M. Hespanha (Ics); Bernardo Vasconcelos @ Sousa (FcsH-un.); Carlos Fabio (Ft); Fernando Rosas (resi-uni); Helder A. Fonseca (ue); José Manuel Sobral (ics); Luis Krus (rost-unt); Lufs Ramalhosa Guerreiro; Mafalda Soares da Cunha (ue); Maria Alexandre Lousada (ru); Nuno Gongalo Monteiro (ics); Nuno Severiano Teixeira (ue/ucr); Rui Ramos (ics); Valentim Alexandre (ics); Vitor Serrdo (riuc); Secretéria da Redacg4o: Dulce Freire Propriedade do titulo: Cooperativa Penélope. Fazer @ Desfazer a Historia Subsidios 4 Redacg&o da J.N.I.C.T. @ S.E.C. Os originais racebidos, mesmo quando solicitados, no sero devolvidos. Na capa: Brasdo da casa dos Marqueses de Tévora © Enicors Cosmos € Cooperativa Penélope Reservados todos os direitos de acordo com a legislagéo em vigor Fotolitos e impressio da capa: Joerma - Artes Grificas Impressio ¢ acabamentos: Evicdes Cosmos 1¥ edigo: 10 de Dezembro de 1993 Depésito Legal: 49152/91 ISSN 0871-7486 ISBN 972-8081-16-2 Difusio Distribuigao Livaarma Arco-fas Epicozs Cosmos Av. Jiilio Dinis, 6-A Lojas 23 e 30 -P 1000 Lisboa Rua da Emenda, 111-1° - P 1200 Lisboa Telefones: 795 51 40 (6 linhas) Servigos Comerciais: Av. Julio Dinis, 6C-4° D Fax: 796 97 13 Telefone: 795 $1 40 » Fax: 796 97 13 Um Empreendimento Régio: a Formacao e Desenvolvimento de uma Rede Urbana na Fronteira Noroeste de Portugal du- rante a Idade Média* Amélia Aguiar Andrade Dep. Hist6ria da Faculdade de Ciéncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Entre 1258 e 1321 seis localidades do Noroeste portugués, situadas entre os rios Lima e Minho, receberam carta régia de foral ou viram renovado e/ou ampliado documento andlogo anteriormente concedido. Mas, ndo era apenas a semelhanga dos textos atribuidos pelos monarcas ou a proximidade cronolégica da sua emissio a unir esses novos centros urbanos. Em comum tinham a proximidade do curso de um rio ou do seu estudrio, uma altitude inferior a 100 metros e a regularidade da distancia que as separava (A volta de 25 quilémetros). Situavam-se, também, numa 6bvia zona de fronteira, balizada por torres e castelos, onde a vida urbana era quase totalmente desconhecida e que podia ser considerada como a de mais forte implantagZo senhorial de todo o Portugal medievo. Os documentos disponiveis parecem confirmar que se tratou de um processo de formagio intencional que esteve longe de se esgotar na atribuigdo do texto de um foral. Uma intencionalidade renovada através de outras concessdes régias com as quais se pretendia fornecer a essas comunidades condigdes favoraveis a sua sobrevi- véncia e desenvolvimento. Mas também propicias ao cumprimento mais eficaz dos objectivos que, na 6ptica real, tinham norteado a sua fundago, ou seja, o enquadra- mento defensivo, administrativo e econémico de uma regido estratégica, a partir de Pontos de apoio fiéis a realeza. Uma orientag&o politica que extravazava limites tegionais, pois visava no s6 uma definigao clara das fronteiras com os reinos vizinhos mas também o fortalecimento da autoridade régia. Processos irreversiveis Nos séculos XIII e XIV € que vao encontrar nos nucleos urbanos o seu mais importante suporte. O texto que em seguida se apresenta mais nfo € do que uma chamada de atengao Para vectores emergentes do conjunto de medidas com que os monarcas, sobretudo entre 1258 e 1321, beneficiaram seis nticleos populacionais do Entre Lima e Minho. ae contetido dos forais atribuidos a Viana, Caminha, Vila Nova de Cerveira, Valenga, Mongiio e Melgaco pelos reis Afonso Ile Dinis eram quase idénticos. Sem especificidades regionais ou adaptac6es locais significativas, uma vez que se tratava 121 ‘PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HISTORIA de um texto de importacdo, inspirado no foral de Salamanca ¢ concedido assaz frequentemente até aos finais do século XIII. Reproduzia uma formula que permitia contemplar, com amplos ¢ atractivos privilégios € autonomias, comunidades insta- jadas em zonas consideradas de risco ou pouco apetectveis. A tinica mutag4o que, com 0 correr do tempo, 0 texto vai conhecer prende-se com a concessio daquilo que as fontes em questo denominam de cautum, ou seja, de uma 4rea envolvente do novo niicleo urbano, constitufda por terrenos agricolas e que se subtrafa & presenga de privilegiados e 4 accdo de oficiais régios. Com efeito, vai notar-se uma evolug’o, desde uma designag&o pouco precisa de delimitag6es para uma enumera¢ao exaustiva de todas as parcelas constituintes do cautum, como acontece no foral mais tardio, o de Vila Nova de Cerveira, emitido em 1321. A constituigdo desse auténtico espaco de apoio de cardcter econémico eviden- cia grandes semelhangas em todos os niicleos urbanos do Entre Lima e Minho ¢ resultava, tal como aconteceu com 0 foral, da vontade e da liberalidade régias. S6 a disponibilidade monetiria ¢ fundidria do monarca podia suportar as compras, trocas e doag6es necessérias para transformar parcelas dispersas por varios proprictérios num todo homogéneo a entregar 2 comunidade urbana. ‘Um processo complexo que na maioria dos casos apenas é detect4vel através de referéncias esparsas. O que, felizmente, no acontece com as imimeras trocas — as cambas no dizer dos documentos coevos — de propriedades necessdrias para a for- magio do cautum de Caminha que tiveram lugar entre 0 final de Agosto e meados de Novembro de 1284 e que visaram compensar as expropriacées realizadas aquando da atribuigao do foral em Julho desse mesmo ano. Uma acco a posteriori, para nao deixar dividas sobre a irreversibilidade do cautum j4 organizado e doado. Mas também para acentuar uma autoridade régia que se queria cada dia mais inquestio- nada. O processo das cambas de Caminha foi protagonizado por um enviado do rei, um clérigo da sua criagdo e da sua confianga, com provas dadas, em zonas a sul do rio Douro, no refrear dos abusos dos privilegiados ¢ na completa fidelidade aos objectivos centralizadores do monarca. Assim 0 exigia uma missio potencialmente geradora de conflitos com os interesses instalados de membros da nobreza e de instituigdes mondsticas € ‘episco- pais. Acompanhou este homem do rei um grupo de pessoas que, a nivel local, se podia considerar da confianga do rei. Antes de mais, 0 povoador, um individuo pro- veniente da vizinha vila de Valenga— exactamente uma das mais antigas, com foral dat4vel do século XII mas recentemente ampliado —, identificado com a realidade urbana e a quem competia coordenar e executar as acg6es necessdrias a0 desenvol- yimento de Caminha. Mas também oficiais de justiga ¢ do fisco, alcaides, clérigos detentores de igrejas de padroado real, todos eles homens que, devido as fung6es desempenhadas, ofereciam a garantia suplementar de um bom conhecimento das gentes e espacos envolvidos. A presenga constante de tabelides régios afectos as circunscrig6es administrativas (ulgados) de Entre Lima e Minho garantia 0 registo 122 Estupos documental de todas as acgdes realizadas salvaguardando-as do esquecimento e de possiveis contestag6es futuras. Ao longo desses trés meses, 0 representante régio e os seus acompanhantes percorreram incansavelmente a regio, chegando mesmo a ir até Galiza. Sob a sua autoridade tiveram lugar inquéritos junto dos cultivadores das propriedades do rei destinadas as trocas, com os quais se procurava determinar com exactid’io os rendimentos agricolas e toda a multiplicidade de prestagdes acessérias e servigos que deveriam ser satisfeitos. E teve ainda 0 cuidado de obter, perante testemunhas id6- neas, equivaléncias entre as distintas medidas de capacidade em que eram solvidas as rendas. Medidas preparatérias da equidade de um processo de trocas que se queria incontestavel, pois envolvia membros da nobreza local, sete poderosos mosteiros sediados na zona ¢ na Galiza, igrejas paroquiais, uma ordem militar e ainda 0 bispo e o cabido de Tui. $6 depois, em dia e local aprazado, foi dada a camba, presente a gente do rei e, conforme os casos, os cavaleiros ¢ seus dependentes, os abades ou priores dos mosteiros com alguns monges, os clérigos das igrejas ou 0 dedo de Tui em representag4o do bispo e cabido dessa cidade. O rei cedia terras dos seus reguen- g0S, as vezes situadas em locais afastados, fora até do Entre Lima e Minho. Os outros desistiam, por vezes muito contrariados, de propriedades limitrofes do novo centro urbano. Todos declaravam estar a receber tanto como o que tinham dado e entdo, em nome do rei, eram-Ihes entregues, simbolicamente, em chaves e colmo, as proprie- dades agricolas. Assim se formava um cautum, patriménio de que 0 rei abdicava permitindo que fosse gerido pelos habitantes do micleo urbano em troca de uma renda fixa, em dinheiro, repartida por trés pagamentos ao longo do ano. Defeso de privilegiados, suporte econdémico da comunidade, tormnava o novo nicleo urbano mais apetecivel a actuais ¢ a futuros habitantes. ‘Um processo que ficou na meméria dos camponeses da regifio, talvez devido & sua envergadura — as cambas de Caminha implicaram o concurso de pelo menos 18 Pparéquias — ou talvez porque as repercussdes de incentivos quase simultaneos a seis niicleos urbanos abalaram significativamente o Entre Lima e Minho. O que € certo € que, em inquirigdes realizadas na zona até ao dealbar do século XIV, as teste- munhas continuaram a invocar, nos seus depoimentos, como referentes temporais, nao s6 as cambas de Caminha como os momentos em que foram povoadas as vilas de Viana, Mongo ou Melgaco. Mesmo depois da atribuigdo da carta de foral e da formag&o do respectivo cau- tum, as vilas de Entre Lima e Minho continuaram a merecer a ateng4o dos monarcas, que se dispuseram a abdicar a seu favor da cobranga de rendas e direitos que Ihe eram devidos. Ou a permitir alargamentos de termo que subiraiam ao fisco e & jurisdigao directa do rei terras ¢ homens. A emissio de cartas de feira a favor de pelo menos quatro das seis localidades em andlise confirma a preocupagaio de as transformar em pélos de trocas para onde 123 PENELOPE - FAZER E DESFAZER A HisTORIA deviam convergir os excedentes de produgio agricola de toda a regido bem como as mercadorias que a disponibilidade de vias de circulagio fluviais e maritimas podia trazer. O que parece ser ‘confirmado por textos que exaravam protecc6es aos frequen- tadores das feiras nos trés dias precedentes e nos trés seguintes & data da sua reali- zago ou consignavam a obrigatoriedade de os habitantes do termo fazerem as suas compras e vendas na vila a que se achavam subordinados. ‘A autorizacao para a feitura de uma feira expressava 0 desejo de propiciar um desenvolvimento mercantil e de fomentar uma maior diversidade das actividades artesanais, o que contribuiria para 0 alargamento das fun¢oes urbanas que as novas vilas podiam oferecer. O texto das cartas de feira ¢ ainda revelador do entendimento global que o monarca tinha das vilas de Entre Lima e Minho, uma vez que se exigia, expressamente, um calendério organizado de forma a no criar espacos de comércio concorrenciais mas sim complementares, prevendo, por isso, a possibilidade de vendedores e compradores sé deslocarem a todas elas. ‘Mas nio se esperava destas vilas um papel exclusivamente econémico. Numa regifio de fronteira, as preocupagdes defensivas eram primordiais € cabia aos novos centros urbanos reforgar a linha de defesa do Entre Lima e Minho até af assegurada, como era costume, por fortalezas isoladas. Foi uma vez mais 0 monarca a fornecer co suporte humano que garantia essa fungao militar, canalizando para as vilas a pres- tagao de servicos de carécter militar, tradicionalmente satisfeitos nos castelos da zona pelos camponeses que ocupavam as propriedades reguengas. Assim se assegu- ravaa construgfio e conservacao ‘de castelos, fossos e muralhas — estas tiltimas cons- tituindo, como € sabido, o simbolo ‘visual incontestado de um centro urbano —, 0S turnos de vela ou a obrigatoriedade de comparéncia em caso de guerra com o pais vizinho. O inequivoco apoio da yealeza a estes nticleos urbanos em desenvolvimento completava-se com aconstrugao de uma nova igreja no interior das muralhas recém- construfdas ou pelo assegurar do padroado da igreja paroquial jé existente. Recortia- se, uma vez mais, ao sistema de trocas, geralmente envolvendo pardquias rurais, de modo a conseguir subtraf-las a0 padroado do poderoso bispo galego de Tui. Exi- miam-se, assim, as paréquias urbanas de uma recolha de dizimas e de uma apresen- tagio de paroco tuteladas por poderes exteriores, potencialmente geradora de conflitos. Simultaneamente, estreitava-se a relagao entre a comunidade e 0 seu senhor, 0 tei, que se apresentava, assim, como um interlocutor importante no seu bem-estar espiritual. O conjunto de medidas régias que tém vindo a ser enunciadas destacam-se pelo seu carécter sistemAtico ¢ organizado mas ndo pela sua novidade. De uma forma esporadica foram postas em pritica pelos monarcas portugueses j4 desde 0 século XII, tendo por objectivo favorecer a reorganizacio social de espagos definitivamente pacificados. Contudo, a continuidade cronolégica, o niimero de Jocalidades contempladas bem como a sua proximidade geografica ndo deixam qualquer diivida sobre a 124 Estupos intencionalidade de constitui¢ao de uma rede urbana. O que € confirmado por peremptérias expresses transcritas nos textos emitidos mas também na liberalidade dos monarcas que no hesitaram em prescindir de bens fundi4rios e de rendas assaz significativas. Afinal, um prego bem reduzido pela seguranca de uma linha de fronteira e pela certeza de passar a contar com pontos de apoio dispostos, em nome do rei, a fazer frente ao poder concorrente dos privilegiados. Maio de 1992 Quadro Resumo 1258/1261 1264/1269 1317/1320 * A versio francesa deste texto foi apresentada na secgao Urban Networks and Hierarchies (moderador Bernard Lepetit-CNRS) da First conference of the European Association of Urban Historians-European Cities and their People, que decorreu no Intemational Institute of Social History de Amsterdio em Setembro de 1992. 125

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