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MARGINAIS E DESVIANTES∗

Howard S. Becker

Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e em


algumas circunstâncias, fazer com que elas sejam seguidas. Regras sociais definem
situações sociais e os tipos de comportamento apropriados a elas, especificando algumas
ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a
pessoa que se supõe tê-la transgredido pode ser vista como um tipo especial de pessoa,
alguém que não se espera que viva segundo as regras com as quais o grupo concorda.
Ela é vista como um marginal ou desviante.
Mas a pessoa que recebe o rótulo de marginal pode ter uma visão diferente da
questão. Ela pode não aceitar a regra em função da qual está sendo julgada e pode não
considerar aqueles que a julgam como competente ou legitimamente autorizados para
julgá-la. Conseqüentemente, surge um segundo significado do termo: a pessoa que
quebra as regras pode sentir que seus juizes são desviantes.
A seguir, tentarei esclarecer a situação e o processo indicado por esse termo de
duplo conteúdo: as situações de transgressão e de imposição de regras, e os processos
pelos quais algumas pessoas vêm a transgredir regras e outras a impô-las.
Algumas distinções preliminares são necessárias. As regras podem ser de muitos
tipos. Elas podem ser formalmente promulgadas como lei e, nesse caso, o poder de
polícia do Estado pode ser usado para impô-las. Em outros casos, representam acordos
informais, aos quais se chegou recentemente ou que estão vinculados à sanção da idade
e da tradição; regras desse tipo são impostas por sanções informais de várias espécies.
De maneira semelhante, quer uma regra tenha força de lei ou tradição, que seja
ela simplesmente o resultado de consenso, sua imposição pode ser tarefa de algum corpo


In: Uma Teoria da Ação Coletiva (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, cap. 3, p. 53-57). Tradução de
Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes do cap. 1, de Becker, H. S., Outsiders, Studies in the Sociology of
Deviance (The Free Press, Nova York, 1966.)
N. do T. – o título em inglês é Outsiders, que significa “alguém que não está relacionado com ou é
admitido em uma associação, conjunto ou grupo particular; alguém ou algo fora de uma parede, fronteira,
etc. A tradução espanhola optou pelo termo Estranhos. Em português, preferiu-se traduzir por Marginais e
Desviantes, assinalando, porém, que o termo marginal não tem, neste contexto, qualquer relação com a
Teoria da Marginalidade, e sim com a idéia de marginalidade em relação a fronteiras ou limites
socialmente estabelecidos.

1
especializado, como a polícia ou o comitê de ética de uma associação profissional; por
outro lado, a imposição pode ser tarefa de todo mundo ou, pelo menos, a tarefa de todos
os membros do grupo ao qual se pretende que a regra se aplique.
Muitas regras não são impostas e não são, a não ser no sentido mais formal, o
tipo de regras com as quais estou preocupado. As Blue Laws,∗3 que continuam nos livros
de estatutos, embora não sejam cumpridas há cem anos, são exemplos disso. (É
importante lembrar, entretanto, que uma lei que não vem sendo imposta pode ser
reativada por várias razões e ganhar novamente toda a sua força original, como ocorreu
recentemente em relação às leis que governam a abertura de estabelecimentos
comerciais aos domingos no Missúri.) Regras informais podem, de maneira semelhante,
morrer por falta de cumprimento. Estarei preocupado principalmente com o que
podemos chamar de regras de grupos em operação real, aquelas regras mantidas vivas
através de tentativas de imposição.
Finalmente, a intensidade em que alguém é marginal ou desviante, em qualquer
um dos sentidos que mencionei, varia de caso a caso. Acreditamos que uma pessoa que
comete uma infração de trânsito ou bebe um pouco mais numa festa não é, afinal, tão
diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Consideramos o ladrão menos
parecido conosco e o punimos severamente. Crimes como assassinato, violação ou
traição levam-nos a encarar o violador como um verdadeiro marginal.
Da mesma maneira, alguns violadores de regras não acham que foram julgados
injustamente. O infrator de trânsito, em geral, aprova as mesmas regras que transgrediu.
Os alcoólatras são, quase sempre, ambivalentes, algumas vezes sentindo que aqueles
que os julgam não os compreendem e, em outros momentos concordando que a bebida
compulsiva é uma coisa ruim. No ponto extremo, alguns desviantes (homossexuais e
viciados em drogas são bons exemplos) desenvolvem ideologias completamente
acabadas que explicam porque eles estão certos e porque aqueles que os desaprovam e
os punem estão errados.

∗3
N. do T. – Literalmente “Leis Azuis”. As Blue Laws são leis puritanas extremamente severas,
principalmente as existentes na Nova Inglaterra.

2
Definições de desvio

O marginal – o desviante em relação às regras do grupo – foi objeto de muita


especulação, teorização e estudo científico. O que os leigos querem saber sobre os
desviantes é: Por que eles são assim? Como podemos explicar a sua transgressão de
regras? O que há com eles que os leva a fazer coisas proibidas? A pesquisa científica
tentou encontrar respostas para essas questões. Ao fazê-lo, aceitou a premissa de senso
comum de que há algo inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em relação a
atos que transgridem (ou pareçam transgredir) regras sociais. Aceitou também a
suposição do senso comum de que o ato desviante ocorre porque alguma característica
da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o faça. Os cientistas
geralmente não questionam o rótulo “desviante” quando ele é aplicado a atos ou pessoas
particulares, mas, ao contrário, o tomam como dado. Ao fazê-lo, aceitam os valores do
grupo que faz o julgamento.
É facilmente observável que grupos diferentes julgam coisas diferentes como
sendo desviantes. Isso nos deveria alertar para a possibilidade de que a pessoa que faz o
julgamento de desvio, o processo pelo qual se chega a esse julgamento e a situação na
qual ele é feito podem estar, todos, intimamente envolvidos no fenômeno do desvio. Na
medida em que a visão de senso comum do desvio e as teorias científicas que começam
com suas premissas assumem que os atos que transgridem regras são inerentemente
desviantes e, assim, tomam corno certas as situações e processos de julgamento, elas
podem deixar de fora uma importante variável. Se os cientistas ignoram o caráter
variável do processo de julgamento, podem, com essa omissão, limitar os tipos de
teorias que podem ser desenvolvidas e o tipo de compreensão que pode ser alcançado.1
Nosso primeiro problema, então, é construir uma definição de desvio. Antes de
fazer isso, consideremos algumas das definições que os cientistas usam agora, vendo o
que é deixado de fora se as tomarmos como ponto de partida para o estudo de marginais
e desviantes.
A perspectiva mais simples do desvio é essencialmente estatística, definindo
como desviante qualquer coisa que varie de forma muito ampla em relação à média.

1
Cf. Cressey, Donald R., “Criminological Rescarch and the Definition of Crimes” American Journal of
Sociology, LVI (maio, 1951): 546-551.

3
Quando um estatístico analisa os resultados de uma experiência em agricultura, ele
descreve o talo de cereal que é excepcionalmente alto e o que é excepcionalmente baixo
como desvios da média. De maneira semelhante, alguém pode descrever qualquer coisa
que difira do que é mais comum como uma divergência. Nesta perspectiva, ser canhoto
ou ter cabelos vermelhos é desviante, porque a maioria das pessoas é destra e tem
cabelos castanhos.
Colocada assim, a visão estatística parece simplista, e mesmo trivial. Mais ainda,
simplifica o problema colocando de lado muitas questões de valor que em geral surgem
em discussões sobre a natureza do desvio. Ao avaliar qualquer caso particular, tudo que
alguém precisa fazer é calcular a distância do comportamento em questão em relação à
média. Mas essa é uma solução muito simples. Caçando com tal definição, voltaremos
com uma bolsa misturada – pessoas que são excessivamente magras ou gordas,
assassinos, pessoas de cabelos ruivos, homossexuais e infratores de trânsito. A mistura
contém algumas pessoas em geral consideradas como desviantes e outras que não
quebraram absolutamente nenhuma regra. A definição estatística de desvio, em suma,
está muito afastada da preocupação com a quebra de regras que inspira o estudo
científico de marginais e desviantes.
Uma visão menos simples, mas muito mais comum de desvio o identifica como
algo essencialmente patológico, revelando a presença de uma “doença”. Essa visão
repousa, obviamente, sobre uma analogia médica. O organismo humano, quando está
trabalhando eficientemente e não experimenta desconforto, é considerado “saudável”.
Quando ele não trabalha eficientemente, está presente uma doença. O órgão ou função
que está perturbando é considerado patológico. É claro que há poucas discordâncias em
relação ao que constitui um estado saudável do organismo. Mas há muito menos
concordância quando alguém usa a noção de patologia analogicamente, para descrever
tipos de comportamento que são encarados como desviantes. Porque as pessoas não
concordam sobre o que constitui um comportamento saudável. É difícil encontrar uma
definição que satisfaça mesmo a um grupo tão seleto e limitado quanto o de psiquiatras;
é impossível encontrar uma definição que as pessoas em geral aceitem como aceitam os
critérios de saúde para o organismo.2

2
Ver a discussão em Mills, C. Wright, “The Professional Ideology of Social Pathologists” American
Journal of Sociology, XLIX (setembro, 1942): 165-180.

4
Algumas vezes, as pessoas dão à analogia um significado mais estrito, porque
pensam no desvio como o produto da doença mental. O comportamento de um
homossexual ou de um viciado em drogas é encarado como sintoma de doença mental,
assim como a dificuldade do diabético para curar machucados é encarada como um
sintoma de sua doença. Mas a doença mental se parece com a doença física apenas na
metáfora.
Começando com coisas como sífilis, tuberculose, febre tifóide, e carcinomas e
fraturas, criamos a classe “doença”. Inicialmente, essa classe era composta apenas de
uns poucos itens, todos compartilhando da característica comum de referência a um
estado de estrutura ou função desordenada do corpo humano como uma máquina
fisioquímica. À medida que o tempo foi passando, itens adicionais foram acrescentados
a essa classe. Não foram acrescentados, entretanto, por serem desordens corporais
recém-descobertas. A atenção do médico se havia desviado desse critério e, em vez
disso, centrado seu foco sobre a incapacidade ou o sofrimento como novos critérios para
seleção. Desta maneira, inicialmente devagar, coisas como histeria, hipocondria,
neurose obsessivo-compulsiva e depressão foram acrescentadas à categoria de doença.
Assim, com cuidado cada vez maior, os médicos e especialmente os psiquiatras
começaram a chamar de “doença” (ou seja, é claro, “doença mental”) qualquer coisa e
tudo aquilo em que pudessem detectar qualquer sinal de mau funcionamento, baseados
não importa em que norma. Assim, a agorafobia é uma doença porque uma pessoa não
deve ter medo de espaços abertos. O homossexualismo é uma doença porque a
heterossexualidade é a norma social. O divórcio é uma doença porque assinala o
fracasso do casamento. O crime, a arte, a liderança política não-desejada, a participação
em questões sociais, ou o afastamento de tal participação – todos estes e muitos mais
foram Considerados sinais de doença mental.3
A metáfora médica limita tanto o que podemos ver quanto a visão estatística. Ela
aceita o julgamento leigo de alguma coisa como desviante e, pelo uso da analogia,
localiza sua fonte dentro do indivíduo, impedindo-nos de ver o próprio julgamento
como uma parte crucial do fenômeno.

3
Szasz, Thomas, The Myth of Mental Illness (Nova York: Paul B. Hoeber, Inc., 1961), pp. 44-45; ver
também Goffman, Erving, “The Medical Model and Mental Hospitalization”, in Asylums: Essays on the
Social Situation of Mental Patients and Other 1nmates (Garden City: Anchor Books, 1961).

5
Alguns sociólogos também usam um modelo de desvio baseado essencialmente
nas noções médicas de saúde e doença. Eles olham para a sociedade, ou alguma parte da
sociedade, e perguntam se há nela alguns processos em marcha que tendam a reduzir sua
estabilidade, diminuindo assim as suas chances de sobrevivência. Rotulam tais
processos de desviantes, ou os identificam como sintomas de desorganização social.
Discriminam entre aquelas características da sociedade que favorecem a estabilidade (e,
assim, são “funcionais”) e aquelas que rompem a estabilidade (e, assim, são
“disfuncionais”). Tal perspectiva tem a grande virtude de apontar áreas de possíveis
problemas numa sociedade das quais as pessoas podem não estar cientes.4
Mas é mais difícil na prática do que parece ser na teoria especificar o que é
funcional e o que é disfuncional para uma sociedade ou grupo social. A questão sobre
qual é o propósito ou meta (função) de um grupo e, conseqüentemente, que coisas
ajudarão eu retardarão a realização daquele propósito, é muitas vezes uma questão
política. Facções dentro do grupo discordam e manobram para ter aceita a sua própria
definição da função do grupo. A função do grupo ou organização, então, é decidida no
conflito político, não dado na natureza da organização. Se isso é verdade, então é
provavelmente verdade que as questões quanto a quais regras deverão ser impostas, qual
comportamento deve ser encarado como desviante e que pessoas devem ser rotuladas
como marginais devem também ser consideradas políticas.5 A perspectiva funcional do
desvio, ao ignorar o aspecto político do fenômeno, limita nossa compreensão.
Uma outra visão sociológica é mais relativista. Ela identifica o desvio como o
fracasso em obedecer às regras do grupo. Uma vez que tenhamos descrito as regras que
um grupo impõe a seus membros, podemos dizer com alguma precisão se uma pessoa
violou ou não essas regras e é, assim, segundo essa perspectiva, desviante.
Essa perspectiva é a mais próxima da minha, mas não dá peso suficiente às
ambigüidades que surgem na decisão de quais regras devem ser tomadas como ponto de
comparação em relação ao qual o comportamento é medido e julgado desviante. Uma

4
Ver Merton, Robert K., “Social Problems and Sociological Theory”, in Merton, Robert K., e Nisbet,
Robert A., orgs., Contemporary Social Problems (Nova York: Harcourt, Brace and World, Inc., 1961),
pp. 697-737; e Parsons, Talcott, The Social System (Nova York: The Free Press of Glencoe, 1951), pp.
249-325.
5
Howard Brotz identifica de maneira semelhante a questão quanto a quais fenômenos são “funcionais” ou
“disfuncionais” como uma questão politica em “Funcionalism and Dynamic Analysis”, European Journal
of Sociology, 11 (1961): 170-179.

6
sociedade tem muitos grupos, cada um deles com seu próprio conjunto de regras, e as
pessoas pertencem a muitos grupos simultaneamente. Uma pessoa pode quebrar as
regras de um grupo pelo simples ato de se curvar perante as regras de um outro grupo. É
ela, então, um desviante? Aqueles que propõem essa definição podem objetar que,
embora possa haver ambigüidade em relação às regras peculiares a um ou outro grupo
na sociedade, há algumas regras em relação às quais todo mundo em geral concorda e,
neste caso, a dificuldade não aparece. Esta é uma questão de fato, a ser colocada pela
pesquisa empírica. Duvido que existam tantas áreas de consenso e considero mais sábio
utilizar uma definição que nos permita lidar tanto com situações ambíguas quanto com
situações não-ambíguas.

Desvio e as respostas de outros

A perspectiva sociológica que acabei de discutir define o desvio como a infração


de alguma regra em relação à qual se concorda. Prossegue, então, perguntando quem
quebra as regras, e procurando os fatores em sua personalidade e em situações de vida
que possam explicar as infrações. Isso supõe que aqueles que quebraram uma regra
constituam uma categoria homogênea, porque cometeram o mesmo ato desviante.
Tal suposição, me parece, ignora o fato central em relação ao desvio: ele é criado
pela sociedade. Não quero dizer com isto o que se compreende normalmente, ou seja,
que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou nos “fatores
sociais” que induzem a sua ação. Quero dizer, mais do que isso, que os grupos sociais
criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras
a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de vista, o
desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da
aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um “transgressor”. O desviante é
alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é o
comportamento que as pessoas rotulam como tal.6

6
As afirmações iniciais mais importantes dessa perspectiva podem ser encontradas em Tannenbaum,
Frank, Crime and the Community (Nova York: McGraw Hill Book Co., Inc., 1951). Um artigo recente
que coloca uma posição muito semelhante à minha é o de Kitsuse, John, “Societal Reactions to Deviance:
Problems of Theory and Method”, Social Problems, 9 (inverno, 1962): 247-256.

7
Já que o desvio é, entre outras coisas, uma conseqüência das respostas de outros
ao ato de uma pessoa, os estudiosos do desvio não podem supor que estejam lidando
com uma categoria homogênea quando estudam pessoas que foram rotuladas como
desviantes. Ou seja, eles não podem supor que essas pessoas realmente cometeram um
ato desviante ou quebraram alguma regra, porque o processo de rotular pode não ser
infalível; algumas pessoas que na verdade não quebraram uma regra podem ser
rotuladas de desviantes. Além disso, eles não podem supor que a categoria daqueles que
foram rotulados de desviantes conterá todos os que realmente transgrediram uma regra,
pois muitos infratores podem escapar à prisão e, assim, não serem incluídos na
população de “desviantes” que eles estudam. Na medida em que falta homogeneidade à
categoria e ela não consegue abranger todos os casos que lhe pertencem, não se pode, o
que é razoável, esperar encontrar fatores comuns de personalidade ou situação de vida
que explicarão o suposto desvio.
Então, o que têm em comum as pessoas que foram rotuladas de desviantes? Pelo
menos compartilham do rótulo e da experiência de serem rotuladas como marginais e
desviantes. Começarei minha análise com essa semelhança básica e encararei o desvio
como produto de uma transação que ocorre entre algum grupo social e alguém que é
encarado por aquele grupo como um infrator de regras. Estarei menos preocupado com
as características pessoais e sociais dos desviantes do que com o processo pelo qual eles
vêm a ser considerados marginais e suas reações a esse julgamento.
Malinowski descobriu a utilidade dessa perspectiva para a compreensão da
natureza do desvio muitos anos atrás, em seu estudo das ilhas Trobriand:

“Um dia, uma eclosão de lamentações e uma grande comoção me disseram que
havia ocorrido uma morte em algum lugar das proximidades. Fui informado que
Kima’i, um jovem meu conhecido, de cerca de 16 anos, havia caído de um
coqueiro e morrido... Descobri que um outro jovem tinha sido profundamente
ferido por alguma coincidência misteriosa. E no funeral havia obviamente um
sentimento geral de hostilidade entre a aldeia onde o rapaz havia morrido e
aquela para a qual seu corpo sido levado para o enterro.
Só muito tarde pude descobrir o significado real desses acontecimentos.
O rapaz se havia suicidado. A verdade é que ele havia quebrado as regras de
exogamia, sendo sua parceira no crime sua prima materna, filha da irmã de sua
mãe. Esse fato era conhecido e tinha a desaprovação geral, mas nada havia sido

8
feito até que o pretendente desprezado da moça, que queria casar com ela e se
sentiu pessoalmente insultado, tomou a iniciativa. Esse rival ameaçou primeiro
usar magia negra contra o jovem culpado, mas isso não teve muito efeito. Então
uma noite, ele insultou o culpado em público, acusando-o diante de toda a
comunidade de incesto e proferindo com violência certas expressões
intoleráveis para um nativo.
Para isso, havia somente um remédio; só uma saída restou ao jovem
desafortunado. Na manhã seguinte, ele colocou trajes e ornamentação festivos,
subiu a um coqueiro e se dirigiu à comunidade, falando do meio das folhas do
coqueiro e dizendo adeus. Explicou as razões para seu gesto desesperado e
também lançou uma acusação velada ao homem que o havia levado à morte,
cabendo aos membros de seu clã a tarefa de vingá-lo. Então lamentou-se em
altos brados, como é o costume, pulou de um ramo de cerca de sessenta pés de
altura e morreu imediatamente. Seguiu-se uma luta dentro da aldeia, na qual o
rival foi ferido; e a briga se repetiu durante o funeral...
Se você quiser investigar a questão entre os habitantes de Trobriand,
descobrirá... que os nativos demonstram horror frente à idéia de violar as regras
da exogamia e que eles acreditam que ferimentos, doenças e mesmo a morte
podem seguir-se ao incesto no clã. Essa é a idéia da lei nativa, e em questões
morais é fácil e estritamente agradável seguir o ideal – quando julgado a
conduta de outros ou expressando uma opinião sobre a conduta em geral.
Quando se trata da aplicação de moralidade e ideais à vida real,
entretanto, as coisas tomam uma forma diferente. No caso descrito, era óbvio
que os fatos não correspondiam ao ideal de conduta. A opinião pública não
estava nem ultrajada pelo conhecimento do crime nem reagiu diretamente – ela
precisou ser mobilizada por uma afirmação pública do crime e por insultos
proferidos ao culpado por uma parte interessada. Mesmo então, este precisou
ele próprio, levar a cabo a punição... Investigando mais a fundo a questão e
coletando informações concretas, descubro que a quebra da exogamia – no que
diz respeito à relação e não ao casamento – não é, de forma alguma, uma
ocorrência rara, e a opinião pública é clemente, embora decididamente
hipócrita. Se o caso é levado de forma um tanto escondida, com um certo
decoro, e se ninguém em particular cria problemas, a “opinião pública” irá fazer
fofocas, mas ninguém exigirá qualquer punição severa. Se, ao contrário, o

9
escândalo explode, todo mundo se vira contra o par culpado e através do
ostracismo e de insultos um ou outro pode ser levado ao suicídio.”7

O fato de um ato ser desviante, então, depende de como as pessoas reagem a ele.
Você pode cometer o incesto de Clã e ser alvo apenas de fofocas enquanto ninguém
fizer uma acusação pública; mas você será levado à morte se a acusação for feita. O
ponto principal é que a resposta de outras pessoas tem que ser encarada como
problemática. Só porque alguém infringiu uma regra não significa que os outros reagirão
como se isso tivesse acontecido (inversamente, só porque alguém não violou uma regra,
não significa que não será ameaçado, em algumas circunstâncias, como se o tivesse
feito).
O grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia
enormemente. Diversos tipos de variação parecem merecer a atenção. Em primeiro
lugar, há variação em relação ao tempo. Uma pessoa que se acredita haver cometido um
determinado ato “desviante” pode, num momento, receber uma resposta muito mais
indulgente que num outro momento. A ocorrência de “movimentos” contra vários tipos
de desvio ilustra isso claramente. Em várias épocas, funcionários encarregados de impor
regras podem decidir fazer o maior ataque possível a algum tipo particular de desvio,
como o jogo, o consumo de drogas ou o homossexualismo. É obviamente muito mais
perigoso engajar-se numa dessas atividades quando um movimento está em curso do
que em qualquer outra época. (Num estudo muito interessante sobre notícias de crime
em jornais do Colorado, Davis descobriu que o total de crimes relatados nos jornais do
Colorado mostrava muito pouca associação com mudanças reais no total de crimes que
ocorria no Estado. E, mais ainda, que a avaliação das pessoas acerca do volume de
crescimento que havia ocorrido nos crimes no Colorado estava associada ao aumento no
total de notícias sobre crimes, mas não a qualquer aumento no total de crimes).8
O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem
comete o ato e de quem sente que foi prejudicado por ele. As regras tendem a ser
aplicadas mais a algumas pessoas do que a outras. Estudos sobre a delinqüência juvenil
assinalam isso claramente. Meninos de áreas de classe média não sofrem um processo

7
Malinowski, Bronislaw, Crime and Custom in Savage Society (Nova York: Humanities Press, 1926), pp.
77-80. Reimpresso por permissão de Humanities Press e Routledge and Kegan Paul, Ltd.
8
Davis, 17. James, “Crime New in Colorado Newspapers”, American Journal of Sociology, LVII (janeiro,
1952): 325-330.

10
legal que vá tão longe quando são presos como garotos das favelas. É menos provável
que o menino de classe média, quando apanhado pela policia, seja levado ao posto
policial; é menos provável que, quando levado ao posto policial, ele seja fichado; e é
extremamente improvável que seja indiciado e julgado.9 Essa variação ocorre mesmo se
a infração original da regra for a mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é
diferencialmente aplicada a negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que se
acredita haver atacado uma mulher branca tem muito mais probabilidade de ser punido
do que um branco que cometeu a mesma infração; e somente um pouco menos
conhecido o fato de que um negro que assassina outro negro tem muito menor
probabilidade de ser punido do que um branco que cometa assassinato.10 Isso, é claro, é
um dos principais pontos da análise de Sutherland do crime white-collar: os crimes
cometidos por corporações são quase sempre processados como casos civis, mas o
mesmo crime cometido por um indivíduo é, em geral, tratado como uma transgressão
criminosa.”11
Algumas regras são impostas somente quando resultam em certas conseqüências.
A mãe solteira é um claro exemplo disso. Vincent12 assinala que as relações sexuais
ilícitas raramente resultam em punição severa ou em censura social para os
transgressores. Se, entretanto, uma garota ficar grávida como resultado de tais
atividades, é provável que a reação dos outros seja forte. (A gravidez ilícita é também
um exemplo interessante da imposição diferencial de regras a diferentes categorias de
pessoas. Vincent observa que pais solteiros escapam à censura severa imposta à mãe.)
Por que repetir essas observações de lugar comum? Porque, tomadas em
conjunto, elas sustentam a proposição de que o desvio não é uma qualidade simples,
presente em alguns tipos de comportamento e ausente em outros. Mais do que isso, ele é
o produto de um processo que envolve respostas de outras pessoas ao comportamento. O
mesmo comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não em outro;
pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por
outra; algumas regras são quebradas com impunidade, outras não. Em resumo, se um

9
Ver Cohen, Albert K., e Short Jr., James F., “Juvenile Delinquency” in Merton e Nisbet, op. cit., p. 87.
10
Ver Garfinkel, Harold, “Research Notes on Inter- and Intra-Racial Homicides”, Social Forces, 27
(maio, 1949): 369-381.
11
Sutherland, Edwin H., “White Collar Criminality”, American Sociological Review, V (fevereiro, 1940):
1-12.
12
Vincent, Clark, Unmarried Mothers (Nova York: The Free Press; of Glencoe, 1961), pp. 3-5.

11
determinado ato é desviante ou não depende em parte da natureza do ato (ou seja, se ele
viola ou não alguma regra) e em parte do que outras pessoas fazem em relação a ele.
Algumas pessoas podem objetar que isso é meramente um jogo de palavras
terminológico, que alguém pode, afinal, definir termos da maneira como desejar e que,
se algumas pessoas querem falar do comportamento que quebra regras como desviante
sem referências às reações dos outros, elas têm a liberdade de fazê-lo. Isso, é claro, é
verdade. Ainda assim, pode valer a pena se referir a tal comportamento como
comportamento que quebra regras e reservar o termo desviante para aqueles
comportamentos rotulados como desviantes por algum segmento da sociedade. Não
insisto para que esse uso seja seguido. Mas deve ficar claro que, na medida em que um
cientista usa o termo “desviante” para se referir a qualquer comportamento que quebra
regras e toma como seu objeto de estudo somente aqueles comportamentos que foram
rotulados de desviantes, ficará embaraçado pelas disparidades entre as duas categorias.
Se tomamos como objeto de nossa atenção o comportamento que vem a ser
rotulado como desviante, devemos reconhecer que não podemos saber se um
determinado ato será categorizado como desviante até que ocorra a resposta dos outros.
O desvio não é uma qualidade que exista no próprio comportamento, mas na interação
entre a pessoa que comete um ato e aqueles que respondem a ela.

Regras de quem?

Estou usando o termo “marginais” para me referir àquelas pessoas que são
julgadas pelas outras como sendo desviantes e, assim, como estando fora do círculo de
membros “normais” do grupo. Mas o termo contém um segundo significado, cuja
análise leva a um outro conjunto importante de problemas sociológicos: “marginais”, do
ponto de vista da pessoa que é rotulada como desviante, podem ser as pessoas que
fazem as regras de cuja transgressão ela foi considerada culpada.
As regras sociais são a criação de grupos sociais específicos. As sociedades
modernas não são organizações simples, nas quais todo mundo concorde sobre quais são
as regras e como elas devem ser aplicadas em situações específicas. Elas são, ao
contrário, altamente diferenciadas ao longo de linhas de classes sociais, linhas étnicas,
linhas ocupacionais e linhas culturais. Esses grupos não precisam compartilhar das
mesmas regras e, na verdade, freqüentemente não o fazem. Os problemas que eles

12
enfrentam ao lidar com seu meio ambiente, a história e as tradições que carregam
consigo, tudo isso leva à evolução de diferentes conjuntos de regras. Na medida em que
as regras de vários grupos entram em conflito e contradizem umas às outras, haverá
discordância sobre o tipo de comportamento que é apropriado em qualquer situação
dada.
Os imigrantes italianos que continuavam a fazer vinho para eles próprios e para
seus amigos durante a época da Lei Seca estavam agindo de maneira adequada pelos
padrões dos imigrantes italianos, mas estavam quebrando a lei de seu novo país (como,
é claro, o estavam muitos de seus velhos vizinhos americanos). Os pacientes que
mudam constantemente de médico podem, da perspectiva de seu próprio grupo, estar
fazendo o que é necessário para proteger sua saúde, certificando-se de que arranjarão o
que lhes parece ser o melhor médico possível; mas, da perspectiva do médico, o que eles
fazem é errado porque destrói a confiança que o paciente deveria colocar em seu
médico. O delinqüente de classe baixa que luta por seu “território” só está fazendo o que
ele considera necessário e correto, mas os professores assistentes sociais e a polícia
vêem isso de forma diferente
Embora se possa argumentar que muitas ou a maioria das regras são em geral
aceitas por todos os membros de uma sociedade, a pesquisa empírica sobre uma dada
regra em geral, revela variação nas atitudes das pessoas. As regras formais, impostas por
algum grupo constituído em especial, podem diferir daquelas que são consideradas
realmente apropriadas pela maioria das pessoas.13 As facções num grupo podem
discordar em relação ao que chamei de regras de operação reais. Mais importante para a
estudo do comportamento comumente rotulado como desviante, as perspectivas das
pessoas que se engajam no comportamento são provavelmente diferentes daquelas das
pessoas que o condenam. Nesta última situação, uma pessoa pode sentir que está sendo
julgada de acordo com regras para cuja elaboração não contribuiu e que não aceita,
regras impostas a ela por “marginais”.
Até que ponto e em que circunstâncias as pessoas tentam impor suas regras a
outras que não as subscrevem? Vamos distinguir dois casos. No primeiro, somente
aqueles que são realmente membros do grupo têm qualquer interesse em fazer e impor

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Rose, Arnold M., e Prell, Arthur E., “Does the Punishment Fit the Crime? – A Study in Social
Valuation”, American Journal of Sociology, LXT, (novembro, 1955): 247-259.

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certas, regras. Se um judeu ortodoxo desobedece as leis de kashruth14 somente outros
judeus ortodoxos encararão isso como uma transgressão; os cristãos ou os judeus não-
ortodoxos não considerarão isso um desvio e não terão interesse em interferir. No
segundo caso, os membros de um grupo consideram importante para seu bem-estar que
os membros de outros grupos determinados obedeçam a algumas regras. Assim, as
pessoas consideram extremamente importante que aqueles que praticam as artes de curar
sejam fiéis a certas regras; é por isso que o Estado licencia médicos, enfermeiras e
outros, e proíbe a todos aqueles que não estejam licenciados de se engajar em atividades
de cura.
Na medida em que um grupo tenta impor suas regras a outros grupos na
sociedade, estamos diante de uma segunda questão: Quem pode, na verdade, forçar
outras pessoas a aceitar suas regras e quais são as causas de seu sucesso? Esta é, é claro,
uma questão de poder político e econômico. Mais tarde consideraremos o processo
político e econômico através do qual certas regras são criadas e impostas. Aqui, é
suficiente observar que as pessoas na verdade estão sempre impondo suas regras a
outras, aplicando-as mais ou menos contra a vontade e sem o consentimento daquelas
outras. Em geral, por exemplo, as regras são feitas para os jovens pelas pessoas mais
velhas. Embora a juventude deste país exerça uma influência poderosa em termos
culturais – os meios de comunicação de massa são talhados para seus interesses, por
exemplo – muitos tipos importantes de regras são feitos para nossa juventude pelos
adultos. As regras em relação à freqüência à escola e ao comportamento sexual não são
feitas considerando-se os problemas da adolescência. Mais ainda, os adolescentes
descobrem-se cercados por regras acerca dessas questões que foram feitas por pessoas
mais velhas e mais acomodadas.
É considerado legítimo fazer isso, porque as pessoas mais novas não são
consideradas nem bastante sábias nem bastante responsáveis para elaborar regras
adequadas para elas próprias.
Da mesma maneira, é verdade, em muitos aspectos, que os homens fazem as
regras para as mulheres em nossa sociedade (embora na América isso esteja mudando
rapidamente). Os negros se descobrem sujeitos a regras feitas para eles pelos brancos.
As pessoas estrangeiras e aqueles etnicamente diferentes têm suas regras feitas para eles

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Leis que regem as regras alimentares dos judeus. (N. do T.)

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pela minoria protestante anglo-saxônica. A classe média faz regras que a classe baixa
deve obedecer – nas escolas, nos tribunais, em todos os lugares.
Diferenças na capacidade de fazer regras e de aplicá-las a outras pessoas
representam, essencialmente, diferenciais de poder (quer legais ou extralegais). Aqueles
grupos cuja posição social lhes confere armas e poder são mais capazes para impor suas
regras. Distinções de idade, sexo, etnia e classe estão todas relacionadas a diferenças de
poder, que explicam diferenças no grau em que os grupos assim diferenciados podem
fazer regras para os outros.
Além de reconhecer que o desvio é criado pelas respostas de pessoas a tipos
particulares de comportamento, pela rotulação daquele comportamento como desviante,
devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por tal rotulação não
são universalmente aceitas. Em vez disso, elas são objeto de conflito e discordância,
parte do processo político da sociedade.

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