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UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE O FENÓMENO DA LIDERANÇA E A


OPERACIONALIZAÇÃO DA PERSPECTIVA PARADIGMÁTICA DA COMPLEXIDADE
Dissertação Apresentada para Obtenção do Grau de Mestre em Ciências da Comunicação,
Organização e Novas Tecnologias
Por Luís Manuel Guerreiro Dias Alves Lourenço
Sob orientação do Prof. Doutor Fernando Ilharco

 

A investigação que se apresenta tem como objecto o case study Vosé Mourinho,
especificamente na sua dimensão de liderança. Trata-se de uma abordagem interpretivista que
analisa o trabalho e a liderança de Vosé Mourinho à luz de desenvolvimentos teóricos vários,
tendo como primeiro fundamento a perspectiva paradigmática da complexidade, essencialmente
tal como ela é entendida na obra de Edgar Morin.

Apresentamos Vosé Mourinho enquanto líder e treinador de futebol, dando a conhecer a


sua trajectória profissional desde o anonimato até ao estrelato onde actualmente se move. Esta
investigação apela a um corpus teórico diversificado e relevante para a compreensão do
fenómeno da liderança, especificamente da eficácia da liderança de Vosé Mourinho. Assim, sob
a perspectiva paradigmática da complexidade, moldando o progresso da investigação e
estabelecendo as relações entre os diversos blocos teóricos, utilizamos para a análise do nosso
objecto de estudo a teoria da inteligência emocional, um conjunto importante de investigações
sobre a constituição e dinâmicas de grupo, bem como um leque importante de teorias
consagradas sobre o fenómeno da liderança ± desde a teoria do grande homem às teorias neo-
carismáticas, passando pelas análises comportamentais e contingenciais, entre outras.
Apresentamos também uma revisão da investigação em curso sobre o fenómeno da liderança no
que respeita ao relacionamento entre complexidade e liderança e entre complexidade e emoções.

A análise que fazemos do trabalho e da liderança de Vosé Mourinho é precedida por


duas entrevistas, uma ao próprio Vosé Mourinho e a outra a Rui Faria, técnico-adjunto de
Mourinho no Chelsea. Na análise que apresentamos no Capítulo 9, e que ocupa uma parte
importante da dissertação, propomos entendimentos, noções e conceitos que nos parecem
pertinentes para a compreensão da liderança de Vosé Mourinho e da sua eficácia.

Entre esses aspectos, e a título de exemplo, propomos uma articulação teórica da


operacionalização da complexidade na liderança, tal como é levada a cabo por Vosé Mourinho;
identificamos e caracterizamos a noção de globalidade da acção profissional como uma
consequência da aplicação da perspectiva da complexidade; analisamos a noção de dominante,
introduzida pelo próprio Mourinho, propondo um enquadramento conceptual complexo;
sugerimos, e exploramos, o conceito à líder como indicador de um tipo de comportamento
necessário para a liderança e cuja genuinidade é importante; avaliamos a acção concreta de Vosé
Mourinho à luz das diversas teorias introduzidas sobre liderança, e não esquecendo o seu
enquadramento paradigmático na complexidade, sugerimos que os modelos com os quais ele
tem mais afinidades são o carismático e o transformacional. Por fim, consideramos, com a
devida modéstia, que esta investigação pode também abrir caminhos para novos
desenvolvimentos, nomeadamente no que respeita à transferibilidade da prática profissional de
Vosé Mourinho para as organizações em geral.




O caso de sucesso que constitui a carreira de Vosé Mourinho, actual treinador do
Chelsea FC, de Londres, para ser compreendido plenamente não pode ser encarado, ou
estudado, apenas na vertente de treinador de futebol. As vitórias que já conquistou ± e foram
muitas num curto espaço de tempo ± colocaram sobre ele os holofotes da fama a nível mundial.

Muitos perguntam hoje quem é Vosé Mourinho, um homem que para além de um bem
sucedido treinador de futebol é igualmente um líder que arrasta e influencia milhões de pessoas
por todo o mundo.

Vosé Mourinho é uma figura pública de expressão mundial. Ele não é apenas o treinador
da equipa de futebol do Chelsea. Ele é o líder que muitos seguem, admiram e respeitam: muitos
jovens ambicionam ser como ele, muitos homens gostariam de ser como ele, muitos
profissionais gostariam de aprender a ser mais como Vosé Mourinho. Mourinho é um líder e os
seus actos e as suas palavras fazem sonhar legiões de admiradores.

Na investigação que a seguir apresentamos propusemo-nos estudar a dimensão da


liderança no trabalho de Vosé Mourinho. Vamos tentar perceber o homem e o profissional,
simultaneamente como treinador de futebol e como líder de profissionais de alto rendimento.
Nesta dissertação mais do que tentar objectivar factos, estabelecer modelos de liderança, ou
determinar relações de causa-efeito, que supostamente nos conduzam a verdades ou a leis
universais, interessa-nos observar atentamente, seguir pistas, descobrir caminhos, estudar
detalhadamente e reflectir teoricamente sobre a complexidade do que encontrarmos.

Interessa-nos compreender melhor o fenómeno que investigamos, o qual, estudado


desde há muito, não temos dúvidas que é imensamente complexo, subtil e de enormes desafios.
Nesta investigação interessa-nos, também, promover o desenvolvimento de um tipo de
conhecimento que aceita a complexidade do mundo e a mudança em que a acção humana
sempre está envolvida e se envolve.

Deste ponto de vista interpretivista, procuramos descrever e entender a eficácia da


liderança de Vosé Mourinho a partir de teorias e perspectivas várias, capazes de nos
proporcionarem um entendimento coerente, profundo e detalhado do fenómeno em causa.

Desta forma, conforme à prática estabelecida nas ciências sociais e humanas, optámos
por levar a cabo uma investigação interpretivista, assente num corpo teórico considerado
apropriado para o objecto em estudo e numa recolha qualitativa de dados, fundamentalmente
constituída ± mas não apenas ± pelas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8.

A presente dissertação está organizada em nove capítulos. No Capítulo 1 faremos uma


apresentação de Vosé Mourinho. Traçaremos o seu percurso e mostraremos Mourinho através de
Mourinho, ou seja, pelas suas acções e pelas suas palavras iremos oferecer uma imagem global
daquilo que fez de Mourinho aquilo que ele é hoje e que justifica a sua ascensão ao mais alto
patamar do mundo do futebol e que, por simpatia, acabou por fazer dele um homem conhecido
em todo o planeta.

No Capítulo 2 iniciaremos a fase teórica da dissertação. O objecto desta investigação é a


liderança de Vosé Mourinho. A perspectiva de fundo que modelará o nosso trabalho é a da
complexidade. É também esta perspectiva paradigmática que há muitos anos influencia o
trabalho de Vosé Mourinho. Assim, referiremos várias teorias e noções no seio da perspectiva da
complexidade, nomeadamente, os estudos desenvolvidos por Edgar Morin e por Ilie Prigogine.

Tentaremos ir um pouco mais além, apresentando trabalho de outros pensadores,


filósofos e teóricos sociais, que tanto tiveram influência no estudo e no trabalho de Mourinho,
como é o caso Manuel Sérgio, como recorrentemente têm tido influência em estudos de ciências
sociais sobre a perspectiva da complexidade, como, por exemplo, é o caso do alemão Martin
Heidegger (1889-1976).

O projecto do mapeamento do genoma humano servir-nos-á como ilustração da


necessidade de um pensamento complexo para o estudo do homem, bem como das implicações
da acção humana. Procuramos nesta dissertação apresentar um texto integrado ± na sequência
do nosso propósito de realizar um estudo integrado ± onde desde o seu inicio, e à medida que
formos apresentando as teorias que iremos utilizar, faremos aproximações ilustrativas ao
trabalho de Mourinho. Trata-se de uma prática que iremos seguir ao longo do nosso estudo.

O Capítulo 3 apresenta um dos blocos de teorias que constituirá um dos fundamentos da


análise do trabalho de Vosé Mourinho. Trata-se da teoria da inteligência emocional, tal como foi
desenvolvida e proposta por Daniel Goleman. Nesse capítulo faremos uma primeira
aproximação a Mourinho como líder emocionalmente inteligente.

No Capítulo 4 apresentaremos uma revisão sobre a investigação levada a cabo nas


últimas décadas sobre o fenómeno dos grupos. Pode, de resto, dizer-se que não é possível falar
da perspectiva da complexidade sem se falar no todo, como um grupo constituído por partes.

O trabalho de Vosé Mourinho decorre no seio de um grupo de profissionais de alta


competição que ele lidera. É desta forma que neste capítulo iremos introduzir o conceito de
grupo e rever a investigação que sobre ele tem recaído numa perspectiva de ciências sociais.
Apresentaremos os fundamentos do conceito de grupo, bem como noções sobre o seu
desenvolvimento e maturidade, as formas como nasce, se desenvolve e se mantém, e ainda
diversas tipologias que têm sido propostas para o seu estudo.

No Capítulo 5 focaremos as teorias que descrevem e explicam o fenómeno da liderança.


Será um olhar simultaneamente histórico e evolutivo, já que iremos apresentar as diversas
teorias sobre a liderança desde os primeiros estudos propostos, em meados do século passado,
até aos dias de hoje, sob critérios que se prendem com o seu próprio desenvolvimento, na
medida em que aqueles estudos se foram tornando relevantes e respondendo às necessidades da
sociedade.

No Capítulo 6 procuramos apresentar um ponto de situação em termos da investigação


actual sobre o fenómeno da liderança. Porque Vosé Mourinho assenta o seu trabalho e a sua
liderança nas teorias da complexidade, com um forte apelo à inteligência emocional,
procurámos essencialmente papers recentes que ligassem a liderança à complexidade, bem
como a liderança às emoções.

No Capítulo 7 reentramos no caso de estudo da nossa dissertação. No capítulo 1 fizemos


uma primeira apresentação de Vosé Mourinho e do seu trabalho. Este capítulo é inteiramente
constituído por uma entrevista a Vosé Mourinho, na qual, pretendemos ouvir na primeira pessoa
as razões das suas escolhas e decisões, da sua prática e da sua sistematização. Procurámos
discutir exploratoriamente os principais aspectos do trabalho de Mourinho sobre os quais recai a
nossa investigação: a complexidade e o seu trabalho; a forma como lida emocionalmente com os
seus liderados; a sua noção de grupo e o funcionamento dos seus grupos; e o seu estilo de
liderança.

O Capítulo 8 prossegue a discussão exploratória acima iniciada. Se no capítulo anterior


obtivemos o olhar do líder sobre as questões acima enunciadas, já neste capítulo, seguindo a
mesma metodologia ± a de discutir exploratoriamente os temas referidos ± pretendemos obter
uma visão de liderado, de um dos seguidores de Vosé Mourinho. Apresentamos assim a
entrevista que realizámos a Rui Faria, adjunto no Chelsea FC, o ³braço direito´ de Mourinho na
equipa técnica.
Finalmente no Capítulo 9 apresentamos a nossa análise do fenómeno em estudo: a
liderança de Vosé Mourinho. Sob a perspectiva da complexidade, com base nas teorias
introduzidas, sobre as emoções, o funcionamento dos grupos e a liderança, analisaremos a acção
e o trabalho concreto de Vosé Mourinho, focando principalmente o material introduzido no
capítulo 1 e nas entrevistas apresentadas nos capítulos 7 e 8. Gostaríamos de salientar que sendo
a perspectiva da complexidade a nossa primeira base teórica, a que por isso modela toda a
investigação, termos procurado ao longo da dissertação nada separar em demasia, não separar
perdendo a noção do todo, e tudo pensar em conjunto nas suas relações e complementaridade,
nada por isso descontextualizando.

Desta forma se deverão entender as ligações, as conexões e os enquadramentos que


formos tentando fazer e apontar ao longo da dissertação, porque como adiante mencionaremos,
citando Hegel no contexto da epistemologia em que assentamos esta investigação, ³a verdade é
o todo´.


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QUEM É VOSÉ MOURINHO: BIOGRAFIA E IMAGEM
PÚBLICA

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Parece ser hoje consensual que Vosé Mourinho, o treinador de futebol do Chelsea FC, se
tornou, num curto espaço de tempo, num case study um pouco por todo o mundo. Com 43 anos
de idade e apenas 6 anos como treinador principal de futebol conta já com um currículo
invejável e talvez não menos surpreendente. Nas seis temporadas que já efectuou apenas em
quatro delas escolheu, preparou e conduziu equipas do princípio ao fim da época, já que nas
duas primeiras esteve apenas dois meses no Benfica e seis meses na União de Leiria. Nas
restantes quatro épocas liderou as equipas de futebol profissional do FC Porto e do Chelsea FC
e se só estas levarmos em conta, pelos motivos apontados, pode afirmar-se que Vosé Mourinho é
o treinador de maior sucesso da actualidade em todo o mundo. O seu currículo só pode mesmo
ser comparado a alguns treinadores com largos anos de experiência em grandes clubes europeus.

Assim, em termos curriculares ± e não contando aqui com os ínumeros prémios


pessoais já ganhos ± Vosé Mourinho colecciona, na sua sala de troféus, dois Campeonatos
nacionais de Portugal, uma Taça de Portugal, duas Supertaças portuguesas, uma Taça
UEFA e uma Taça da Liga dos Campeões e chegado há duas épocas a Inglaterra já
conquistou a Taça da Liga inglesa e também dois campeonatos. O velho ³mito britânico´
segundo o qual ninguém no primeiro ano naquele país consegue vencer a sua mais
importante prova acabou com Vosé Mourinho.

Vamos, pois, neste capítulo introduzir Vosé Mourinho. Iremos traçar em termos
genéricos o seu percurso enquanto treinador principal de uma equipa de futebol. Como se
lançou e como se afirmou na rota do sucesso são introduções que importa fazer para um
entendimento do que se pretende nesta dissertação: o estudo, de um ponto de vista de
ciências da comunicação, das práticas de interacção grupal e de liderança de VoséMourinho.

O sucesso do actual técnico do Chelsea não passa, de facto, despercebido a ninguém.


Nas televisões é hoje um líder de audiências, os jornais aumentam as tiragens sempre que
Mourinho é noticia de primeira página e os produtos aos quais o treinador empresta a sua
imagem são sucessos de venda. A constatação que, por agora, se faz é que a imagem de
Vosé Mourinho extravasou, em larga escala, o campo desportivo. Ele transformou-se num
fenómeno global a ponto de ser hoje o rosto promocional de várias marcas de nome
mundial, como sejam os casos da Adidas, da American Express e da Samsung, entre outras.
Portanto, no desporto ou nos negócios, Mourinho é uma referência mundial seja no plano
estrito da liderança seja no campo comunicacional mais vasto.

| e million dollar question: a que se deve este impacto comunicacional? Apenas aos
resultados conseguidos nos jogos de futebol? Parece-nos que a resposta terá de ser dada
pela negativa. Tanto mais que se nos afigura pacifico que Vosé Mourinho não é apenas visto
como um treinador de futebol de sucesso. Eventualmente, será assim no ³mundo do
futebol´ mas fora dele profissionais de todo o mundo têm os olhos postos nos seus modelos
de interacção, de gestão e de liderança, o que o torna, também, um gestor e um líder de
sucesso.

Deste modo, Mourinho, é objecto de estudo e de apetência pelas empresas de marketing


e publicidade e a sua imagem é utilizada não apenas como um treinador de sucesso mas
como um ³homem de sucesso´. Nos spots publicitários da American Express realça-se a
segurança e a determinação do profissional, bem como a sua capacidade de antecipação; na
campanha publicitária da Samsung compara-se Vosé Mourinho ao famoso agente secreto
Vames Bond ± 007, sugerindo vertentes comuns no carácter de ambos: homens destemidos,
arrojados e decididos.

Desta forma, parece-nos claro que hoje em dia existe um convencimento geral de que o
sucesso de Vosé Mourinho não se deve apenas aos seus conhecimentos técnicos sobre
futebol. A forma como comanda e gere uma equipa de futebol é considerada, igualmente,
determinante para os resultados que vai obtendo. A revista Exame, na sua edição de Abril
de 2005, dedica um artigo a Vosé Mourinho com o título: ³18 Lições de Campeão´. No ante
título podemos ler: ³Pode o modelo de gestão de Vosé Mourinho ser aplicado em empresas
fora do mundo do futebol? Sim. O seu livro tem ensinamentos para todo o tipo de gestores´.

Não procurando, por agora, abordar a prática profissional de Vosé Mourinho em toda a
sua extensão, pretendemos neste capítulo introdutório apontar de uma forma clara o que se
considera serem os principais pontos fortes do treinador do Chelsea enquanto líder e
comunicador, ou seja, aquilo que lhe dá força para o exterior bem como a força interior que
consegue transmitir aos seus jogadores. A forma como Vosé Mourinho se relaciona com
estes últimos, enquanto catalizador de motivações, sejam elas de grupo ou individuais, e
como interage emocionalmente, gerindo as fraquezas e os pontos fortes do grupo, são
elementos que têm levado, não poucas vezes, as suas equipas a superarem-se. Emerge aqui
a inteligência emocional de Vosé Mourinho, a qual aliada à sua organização profissional e à
sua eficácia comunicacional tem conduzido a uma conclusão generalizada: Mourinho
consegue transformar jogadores quase banais em super campeões e grupos quase banais em
super grupos.

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O treinador de futebol Vosé Mourinho é hoje um caso raro de popularidade no mundo
inteiro. A razão que justifica esta constatação assenta nos resultados atingidos em seis anos
de actividade profissional como treinador principal de futebol, bem como na sua imagemde
liderança. O que Mourinho ganhou catapultou-o para o estrelato e fez dele um dos maiores
protagonistas do futebol da actualidade. Mourinho conseguiu aliar à sua performance
desportiva uma forma diferente de estar no futebol, com uma linguagem diferente e uma
imagem diferente. Os resultados desportivos, a sua acção enquanto líder e o seu discurso
conjugados com o marketing fazem de Vosé Mourinho o que ele é hoje, ou seja, um homem
de sucesso reconhecido internacionalmente.

Como profissional do futebol, Mourinho joga em todos os campos: dentro e fora das
quatro linhas. Voga também de formas diversas: com a razão e com a emoção. Num e noutro
caso Vosé Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem do fenómeno futebolístico e
tenta colmatar os seus pontos fracos e, no caso dos adversários, tenta anular os respectivos
pontos fortes e explorar as suas fraquezas. A chave do seu sucesso tem sido, também,
atribuída à sua capacidade de criar grupos coesos e motivados, capazes de ir buscar forças
aos próprios antagonistas e de descobrir em si forças desconhecidas explorando-as até ao
limite. Também a empatia com todos os que consigo trabalham é algo de muito importante
e com certeza determinante. Desta forma, é fácil de entender que o trabalho de Vosé
Mourinho junto do seu grupo não se resume às componentes físico-tácticas dos atletas.

Mourinho é, também, um condutor de homens e, como tal, um comunicador nato,


um gestor de emoções e um explorador de recursos. O trabalho mental é uma das suas
maiores armas. A comunicação eficaz com o grupo bem como as relações interpessoais
constituem algumas das ferramentas essenciais do seu trabalho.

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Vosé Mourinho era aos 36 anos um profissional bem instalado na vida. Era treinador
adjunto de um dos maiores e mais conceituados clubes do mundo, o Barcelona FC, e gozava
de prestígio reconhecido no seu país e em Espanha, o país onde trabalhava. Em grande parte
pela visibilidade que o clube naturalmente lhe dava, Mourinho ia aos poucos sendo
reconhecido na Europa do futebol. No final da temporada de 1999/2000 quase que
abruptamente e com mais um ano de contrato, Vosé Mourinho decidiu rescindir com
Barcelona. Para trás deixava um salário que, pela sua idade e experiência reduzidas, seria
difícil de igualar em qualquer outro clube. Deixava também uma posição cómoda e estável
como treinador adjunto, cujo trabalho sem pressões lhe permitiria continuar a desenvolver
as suas ideias e a sua aprendizagem.

Só que, a avaliar pela sua decisão, dinheiro e estabilidade não são tudo. Mesmo com
mulher e dois filhos menores ± um deles com menos de um ano de idade ± Vosé Mourinho
optou por desafiar o futuro. ³ Não tenho medo nenhum do futuro. Tenho uma grande
confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso fazer a diferença e que posso
vencer´ (Mourinho in Lourenço 2004: 25), e desta forma Vosé Mourinho fez as malas e saiu
de Barcelona. Nessa altura a sua mente era dominada por um sentimento único: ser
treinador principal numa equipa de futebol. Mesmo que calculados, correu riscos, mas
estava absolutamente determinado conforme o comprovam as palavras da altura na sua
biografia autorizada:

³Julgo que é possível, mais tarde ou mais cedo, encontrar um clube de segunda lin a. («) |en o um
projecto para entregar a quem me quiser contratar, ten o ambições e objectivos bem definidos. Levo comigo um
documento orientador que será a garantia do meu trabal o. Por outro lado, se o Barcelona me deu algo ± e muito
me deu, com toda a certeza ± foi visibilidade no meu próprio país. («) Quem me quiser contratar já está
familiarizado com o meu trabal o, pelo que não sou um completo descon ecido. Não fará, pois, uma aposta
totalmente no escuro porque sabe o que eu quero, só não sabe se eu vou ou não conseguir colocar em prática as
min as ideias. De qualquer forma não quero pensar nisso agora´ (Mourin o in Lourenço 2004: 27).

E desta forma Mourinho entrou para as estatísticas do desemprego em Portugal. De


uma vida de sonho em Barcelona, num ápice, passou a desempregado em Setúbal. Está bom
de ver que a questão económica não se lhe colocava com especial acutilância. Antes, era na
questão profissional que mais e maiores riscos corria. Vosé Mourinho estava, na altura,
longe de ser a figura pública que é hoje. Por outro lado ainda não tinha dado provas a
ninguém de que poderia, com algum sucesso, ser treinador principal numa equipa de
futebol. Por fim, constatando que no mundo do futebol vale bem o ditado ³quem não
aparece esquece´, Vosé Mourinho não se podia dar ao luxo de estar muito tempo afastado.

Pelas razões apontadas, Mourinho correu alguns riscos profissionais. Porém, a sua
forte determinação, não temendo o futuro em nome de algo em que acreditava
profundamente, fizeram-no dar, talvez, o primeiro grande passo para conquistar tudo o que
conquistou até hoje. E de facto, volvidos quatro meses da sua saída de Barcelona, Vosé
Mourinho encontrava-se no relvado do estádio da Luz a treinar, como técnico principal pela
primeira vez na sua vida, o Benfica.

Sobre a forma como Vosé Mourinho encara o futuro, sem receios de maior, uma
outra situação, ocorrida cerca de ano e meio depois de se ter iniciado no Benfica ± e que
tanta tinta fez correr nos jornais portugueses ± ajuda a conhecer o seu carácter. Depois de
uma disputa acesa entre Benfica e FC Porto para a sua contratação, em Vaneiro de 2002, foi
a equipa do norte que levou a melhor. O FC Porto estava longe dos seus tempos áureos e o
presidente do clube portista, Vorge Nuno Pinto da Costa, tentava devolver ao clube o
passado recente, ou seja, tentava voltar às vitórias. Pinto da Costa optou então por demitir o
treinador, Octávio Machado, que não conseguira mais do que um desesperante 6º lugar ao
iniciar-se a segunda volta do campeonato. Para além disso o clube não conseguia ser
campeão ia para três anos consecutivos, performance de que só havia registo semelhante
nos idos anos 70.

Pela primeira vez, em cerca de 20 anos como dirigente portista, Pinto da Costa
começava também a ser contestado pela massa associativa. Pinto da Costa apostou então em
Vosé Mourinho, com a certeza de que aquela temporada, em termos de uma vitória no
campeonato, estava definitivamente comprometida, mas com a esperança que melhores
épocas viriam.

A debilidade desportiva que o clube vivia na altura pareceu, também, não ter
atemorizado Vosé Mourinho, o novo treinador do clube do Porto. No dia de apresentação à
imprensa Vosé Mourinho deixou o país desportivo atónito com ³tanta sobranceria´...
Estávamos, no dia 23 de Vaneiro de 2002 quando, numa sala cheia de jornalistas, Vosé
Mourinho disse o seguinte: ³para o ano vamos ser campeões´. O que o levava Mourinho,
logo no primeiro dia no clube, a desafiar os adversários com a ³certeza´ de que o FC Porto
até já podia, com ano e meio de antecedência, encomendar as faixas de campeão? Uma
razão muito simples: tratava-se de comunicar com eficácia para todo o clube, desde os
jogadores aos adeptos.

³José Mourin o quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para gan ar.
(«) Ficou, desta maneira, içada a bandeira portista no mastro principal das Antas e Mourin o quis, desde logo,
toda a nação azul e branca unida à volta da nova bandeira´ (Lourenço 2004: 99).

E no ano seguinte o FC Porto ganhou o Campeonato Nacional, a Taça de Portugal e


a Taça UEFA. Mourinho prometeu menos do que aquilo que conseguiu. Parece claro que
Vosé Mourinho não teme comprometimentos. Parece também correcto afirmar que o faz em
prol do seu grupo de trabalho. Manter um grupo unido, com uma missão de futuro e,
principalmente, sem pressões, parece ser a sua forma de actuação. Nem que para isso tenha
de chamar a si todas as pressões exteriores. Mas Vosé Mourinho também gosta disso. Por
exemplo, Mourinho sabia que o seu regresso ao Estádio da Luz, enquanto treinador de uma
equipa adversária do Benfica, justamente o FC Porto, não seria pacífico. Estava agora do
lado do ³inimigo nº1´ e os adeptos benfiquistas não lhe perdoavam a ³traição´. Por isso
afirmou:

³[S]abia claramente que quando entrasse em campo teria, aí sim, uma estrondosa recepção« pela negativa, claro
está. Por isso fiz questão de entrar sozin o, antes da equipa. O estádio estava c eio quando pisei a rel va da Luz pela
primeira vez no dia 4 de Março de 2003. Faltava ainda cerca de ora e meia para o início do jogo. Foi fantástico.
Vivi uma sensação linda. Nunca fui um jogador de primeiro nível para sentir, por exemplo, o que o Figo sentiu
quando regressou a Barcelona e portanto não tin a bem a noção do que seria 80 mil pessoas a assobiar-me e a
apupar-me. Julgo que quando somos mentalmente fortes o efeito que as pessoas buscam, de intimidar e perturbar,
sai completamente furado. Ao invés, dão força e alento para prosseguir o camin o. Senti-me a pessoa mais
importante do mundo ao ouvir em uníssono o coro de assobios e vaias com que os adeptos benfiquistas me
receberam no Estádio da Luz. Ao mesmo tempo, ao descarregarem em cima de mim, acabaram por poupar a eq uipa,
o que também foi importante´ (Mourin o in Lourenço 2004: 149).

Tal como já referimos, a liderança de Vosé Mourinho não se esgota na vertente


interna da sua organização. Ela passa para o exterior e muitas vezes produz um efeito
boomerang, ou seja, a mensagem é passada para o exterior de forma a muito claramente ser
eficaz no interior.

Atente-se na conferência de imprensa em Barcelona, em Fevereiro de 2005, na


véspera do encontro da primeira-mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões Europeus.
Os jornalistas, ingleses e espanhóis, estavam ansiosos por saber qual a equipa que Vosé
Mourinho faria alinhar. O técnico português queria fazer passar a mensagem de que o
Barcelona, para ele, não tinha segredos e isso era uma arma poderosa com que os seus
jogadores poderiam contar. Era uma forma de os motivar ao saberem que o líder tinha tudo
previsto, com base em total informação sobre o seu opositor. Ao mesmo tempo, o
adversário também se desmotivaria ± ou amedrontaria ± ao saber que não poderia contar
com o factor surpresa. Mourinho aproveitou a pergunta dos jornalistas sobre a constituição
da sua equipa para fazer a sua ³jogada´.

A resposta apanhou todos os jornalistas de surpresa de tal modo que ela correu
mundo. Vosé Mourinho nomeou então todos os jogadores do Chelsea que iriam entrar em
campo no dia seguinte frente ao Barcelona. E quando os jornalistas pensaram que a resposta
estava dada, enganaram-se.

Mourinho disselhes ainda que lhes ia poupar trabalho« Sem se deter disse de
imediato a constituição da equipa que Frank Riijkard, treinador do Barcelona, iria fazer
jogar contra si no dia seguinte. E quando os jogadores entraram em campo pôde constatar-
se que nem num só nome Vosé Mourinho se havia enganado.

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Nos nossos dias, com especial e compreensível acutilância no mundo do desporto, o instinto
competitivo é fundamental para se vencer. Um exemplo, de um passado já algo distante,
pode ilustrar o sentido competitivo de Vosé Mourinho, para quem só a vitória interessa.

O autor desta dissertação é amigo de Vosé Mourinho desde a infância. Na nossa terra natal,
Setúbal, todos os anos se realiza um torneio de futebol de salão que faz sonhar os jovens
que praticam a modalidade. É o maior e mais visível torneio da cidade e disputa-se em
Vunho. Quis o sorteio que, nas meias-finais se defrontassem Vosé Mourinho e eu próprio,
naquela que, consideravam os ³observadores´, seria a final antecipada do torneio. A cinco
minutos do fim do jogo ainda se mantinha o empate a zero. Mourinho ³pega´ então na bola
e arranca num ³sprint´ a alta velocidade. O último dos jogadores adversários, até chegar ao
guarda-redes, era eu, ironia do destino, o seu amigo em campo. Vosé Mourinho em
velocidade ³passou´ por mim, saltando-me por cima das pernas que tentavam cortar a bola.

Um simples toque tê-lo-ia desequilibrado e feito cair. Teria sido falta, mas não teria
sido como foi ± golo. Só que um simples toque, à velocidade a que Mourinho seguia,
poderia tê-lo magoado seriamente. A minha decisão, instintiva obviamente, foi não fazer
falta, não correndo assim o risco de o lesionar. No final, já depois do banho tomado,
encontrámo-nos para seguir juntos para casa. Vosé Mourinho não perdoou a minha decisão...
Para ele, ali dentro do campo, não havia amigos mas sim adversários. Por uma má decisão
minha, todo um grupo havia sido prejudicado e todo um outro grupo, neste caso o dele,
havia sido beneficiado.

O grupo que foi prejudicado ± o meu ± não tinha nada a ver com as relações entre
nós, argumentava Mourinho. Se a situação ocorrida durante o jogo fosse inversa ele teria
tomado a decisão de fazer falta, confidenciou-me. O caso aconteceu tínhamos ambos 22
anos. Na altura passou-me despercebido... Hoje ajuda-nos a compreender que a
competitividade de Mourinho não nasceu ontem«

Passadas cerca de duas décadas a situação, repetiu-se. Mourinho continuou a ser um


dos protagonistas, o outro é que mudou. Nas meias-finais da Taça UEFA, na época de
2002/2003, o FC Porto defrontou a Lazio de Roma, considerado, então, o grandefavorito à
vitória naquela competição. Quis o sorteio que o primeiro jogo fosse no Estádio das Antas,
no Porto. Naquele que Mourinho considerou o ³melhor jogo da época do FC Porto´, a dois
minutos do final os portistas venciam por 4-1, um resultado excelente não fosse o
adversário marcar ainda um golo, o que já não seria tão positivo. Ir a Roma com uma
diferença de três golos seria fantástico, com uma diferença de dois seria apenas bom.

³Faltava um ou dois minutos para o final quando, numa jogada de contra-ataque, a bola sai pela lin a lateral
mesmo junto a mim. De imediato o argentino Castroman apan a a bola e prepara-se para servir um compan eiro
seu. Estava no enfiamento da lin a limite da nossa grande área e apercebi-me do perigo. A nossa defesa estava
descompensada, ou seja, dois avançados italianos para dois defesas meus, pelo que sobrava, de imediato, o
Castroman, que logo se integraria na manobra ofensiva. O 4-1 era um resultado excelente mas o 4-2 já não era
assim tão bom. Ele (Castroman) estava mesmo junto a mim e eu puxei-o para que não fizesse de imediato a
reposição da bola em jogo. O argentino reagiu, o árbitro viu e fez o que tin a de fazer: expulsoume e mostrou um
cartão amarelo ao jogador da Lazio. É evidente que foi feio. Não foi uma situação instintiva da min a parte, por
isso, recon eço a justiça da min a expulsão. Não tive fair play, para além de ter intervido directamente no jogo.
Logo na altura eu pedi desculpa ao Castroman e ele a sorrir respondeu -me apenas: Mister, é futebol»´ (Mourin o
in Lourenço 2004: 156).

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Uma equipa de futebol da dimensão do Chelsea FC é composta por ínumeras
estrelas. Não há um único jogador do Chelsea ± à excepção do guarda-redes suplente, Carlo
Cudiccini ± que não seja internacional pelo seu país. Sob o comando de Vosé Mourinho
estão nomes famosos do futebol mundial como Frank Lampard, Vohn Terry, Didier Drogba,
Michael Ballack ou Andrei Schevschenko, entre outros. Para Vosé Mourinho são nomes
importantes no mundo do futebol, mas o nome mais importante é mesmo Chelsea FC. Só
em torno deste emblema acontece o êxito, justamente, porque para o treinador o importante,
a verdadeira estrela, é mesmo o grupo. E o grupo ± enquanto todo ± vale mais que a soma
das partes. O grupo supera-se na soma de todas as partes. No entanto o grupo não começa
nem acaba nos jogadores da sua equipa. Ele vai muito para além disso. Todos os que fazem
parte da estrutura profissional de futebol constituem o grupo de Vosé Mourinho, e todos
eles, nos seus respectivos lugares, são importantes para o sucesso final do grupo. Esta é uma
imagem que Mourinho não prescinde de fazer passar a todos os que trabalham com ele. Não
nos poderemos, pois, admirar com episódio a seguir descrito.
Estávamos no início da temporada de 2004/2005. Vosé Mourinho tinha chegado ao
clube inglês há cerca de um mês. O clube encontrava-se na pré-temporada e os primeiros 30
dias foram de trabalho em Stamford Bridge, o estádio do Chelsea. Cedo o técnico português
percebeu que a relva se encontrava em condições magníficas. Essas condições
permitiramlhe excelentes treinos, que tiveram como prémio a primeira vitória num torneio
realizado nos Estados Unidos, onde o cabeça de cartaz era o AC Milan, recentemente
coroado Campeão Europeu. A taça foi levantada, em campo pelo capitão Vohn Terry, mas o
seu destino já estava traçado. Em reconhecimento ao trabalho do tratador da relva de
Stamford Bridge, pelos treinos proporcionados à equipa, e que Vosé Mourinho considerou
um dos obreiros da vitória, a Taça, uma vez chegada a Londres, foi directa para a casa
daquele profissional do Chelsea. Aquele homem, de quem ninguém, à excepção de
Mourinho, se havia lembrado quando o Chelsea conquistou o troféu, teve nos dias seguintes
os seus merecidos momentos de glória. Os jornais britânicos não deixaram passar em claro
o destino do troféu. Nunca um tratador de relva havia dado tantas entrevistas, havia visto
tantas fotografias suas nos jornais e, muito provavelmente e mais importante, nunca havia
sentido o seu trabalho tão reconhecido.

Estas histórias servem, numa análise necessariamente breve, para que se possa
compreender a dimensão do profissional em questão. Trata-se de episódios escolhidos para
de uma forma abrangente ilustrar o carácter do profissional, evidentemente intimamente
ligado ao carácter do ser humano Vosé Mourinho.

1 %2

³Os jogadores foram fantásticos e mostraram o grupo que somos, mostraram o
quanto crescemos como organização; os adjuntos são unidos, não há ciumeiras, sabem para
quem trabalham e o que devem fazer, têm carácter moldado ao do líder, foram a minha
voz´, disse Vosé Mourinho depois de se ter sagrado campeão inglês, pelo segundo ano
consecutivo ao serviço do Chelsea.1
Vosé Mourinho é um treinador especial, e os seus resultados comprovam isso
mesmo. Enquanto técnico está em permanente actualização, em estudo constante. Como
profissional tem aquilo a que na gíria futebolística se chama ³instinto de treinador´. Além
disso, ou talvez relacionado com isso mesmo, Vosé Mourinho é um excelente comunicador e
um líder eficaz.

Quando concebe de raiz uma equipa, o treinador do Chelsea tem um perfil traçado
para os profissionais que pretende. Quer jogadores jovens, pobres e sem títulos ganhos.
Pretende, desta forma, motivação e ambição.

No conceito de grupo de Mourinho o individual tem pouco valor se não trabalhar


em prol do colectivo. O grupo é o que mais conta e o individual é entendido na perspectiva
de melhorar a actividade do grupo.

Na sua liderança Mourinho é centralizador, mas não dispensa as opiniões dos


diversos elementos do seu grupo de trabalho. É frontal e preconiza a justiça como o
caminho para atingir a lealdade e disciplina nos vários graus hierárquicos.

Vosé Mourinho motiva os membros das suas equipas ao discutir com eles o seu
desempenho; vai de encontro à natural necessidade de afiliação; e informa-os sempre que
toma decisões. Desta forma, Mourinho comunica com eficácia com os jogadores e com os
outros profissionais do seu grupo. Qualquer jogador tem sempre a porta do gabinete de Vosé
Mourinho aberta.

A este nível de comunicação interpessoal, Vosé Mourinho é um líder particularmente


atento. Nos casos de indisciplina Vosé Mourinho parece igualmente gerir o seu grupo com
mestria. Em dois casos, tratou os envolvidos de formas eficazes, mas totalmente diferentes.
Num caso a que adiante nos referiremos com maior detalhe, o benfiquista Maniche, em
2000, foi relegado para a equipa B depois de ter sido expulso num encontro do campeonato
português e posteriormente ter mostrado um evidente desinteresse nos treinos. Num outro
caso passado com Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, levantou um processo disciplinar e
afastou-o, sumariamente, do grupo depois de uma violenta discussão no balneário, onde
Mourinho achou ter havido desrespeito para com o líder do grupo. A comunicação, no caso
de Maniche, foi informal e, de certa forma, paternal.

No caso de Baía foi autoritária, sem margem para discussões, porque o papel que cada um
desempenha no grupo e as suas próprias personalidades são diferentes e Mourinho sabia
muito bem disso. Contudo, em ambos os casos, ao fim de relativamente pouco tempo,
aqueles jogadores estavam de volta à equipa, e com resultados excepcionais. Servem estes
dois exemplos para apontar a importância e a influência de Vosé Mourinho, quer ao nível do
desempenho do grupo e da motivação individual, quer no plano do exercício da sua
autoridade.

Talvez por estes motivos, Vosé Mourinho só contrata para as suas equipas jogadores
evoluídos culturalmente e com ³opiniões próprias´ (Lourenço 2004: 27), para assim poder
levar a cabo o seu método de treino, aprendizagem e motivação a que chamou ³descoberta
guiada´ e que mais adiante descreveremos com algum detalhe. Importa, por agora, destacar
a importância da comunicação interpessoal e intra-grupal ± a sua coerência e consistência
interna, mesmo na diversidade que muitas vezes apresenta ± na forma como Vosé Mourinho
lidera o seu grupo de trabalho.

A maneira como Vosé Mourinho usa a razão para compreender as suas emoções e as
do seu grupo de trabalho, e assim tomar decisões racionais em ambientes muitas vezes
intensamente emocionais, faz com que muitos o apontem como um ³mestre´ na difícil
tarefa de conduzir e motivar um grupo de profissionais. Nos exemplos anteriormente
apontados nota-se a conjugação de uma comunicação constante e frontal com os seus
jogadores, bem como um equilíbrio constante entre razão, isto é, competência e capacidade
de análise, e emoção, isto é, relações humanas e motivação pessoal. Atente-se na carta
escrita por Mourinho, no início da época de 2002/2003, aos jogadores do FC Porto.

³[E]spero que as férias te ten am oferecido o que delas esperavas e que te ten am recarregado» as baterias da
motivação e da ambição. Ser campeões» tem de ser sempre o nosso objectivo. Um objectivo diário, uma motivação
consistente e permanente uma luz que tem de guiar o nosso trajecto a partir de agora. (  ) A nossa relação pessoal,
não ten o dúvidas, vai crescer rapidamente e a nossa equipa vai continuar a evoluir. («) Eu e a Administração
acreditamos em ti. É precisamente por isso que aqui estás. («) Ser titular nunca será uma palavra correcta, porque
o equilíbrio qualitativo é enorme. Preciso de todos porque o trabal o é longo e difícil. |odos serão opção e todos
serão um contributo para a equipa. |odos vós precisam unsdos outros. Somos uma EQUIPA. «Só á espírito de
equipa», diz o André numa frase que considero fantástica, «quando um atleta não convocado está a ver o jogo no
camarote e não aceita que alguém critique um colega seu». Eu acrescento: motivação + ambição + espírito de
equipa = sucesso´ (Lourenço 2003: 128).

Por estas palavras se pode entender a preparação psicológica que Vosé Mourinho exerce
sobre os seus jogadores logo desde o primeiro dia de trabalho. Também se entende
facilmente o rumo do seu pensamento ao fazer depender o sucesso da conjugação de três
premissas: motivação, ambição e espírito de equipa. Sublinha-se ainda a interdependência
dos elementos perante o grupo (incluindo-se aqui a ele próprio) quando afirma que todos
os elementos dependem uns dos outros. Por fim deixa bem vincada a sua liderança, ainda
que duma forma indirecta, ao dizer que acredita no jogador, por isso ele faz parte do grupo
³por si escolhido´.

Para além de recursos humanos, Mourinho gere também de uma forma muito
interessante a sua imagem. Quer para dentro do grupo quer para a opinião pública, o tipo de
comunicação que efectua obriga à reacção. Para o exterior Mourinho passa a imagem de
arrogante, ³compra´ ou provoca ³guerras´ e em caso algum se atemoriza. Vosé Mourinho
aprendeu que a indiferença dos outros não lhe é útil. Desta forma é um estudioso das
reacções humanas e procura nos outros forças para si mesmo e para o seu grupo.
Desencadeada esta espécie de processo de guerrilha, Mourinho controla as suas emoções e
explora as do adversário em seu proveito. Pode bem dizer-se que transforma fraquezas
alheias em forças suas. Além disso, e como amigo de longa data do treinador actual do
Chelsea ± e conforme ao espírito descritivo deste capítulo ± devemos acrescentar que desde
há muito é para mim pacifico que Vosé Mourinho tem uma especial, e talvez rara,
capacidade para lidar com a pressão.

Será mesmo talvez de dizer, possivelmente sem exagerar por aí além, que a pressão
exterior não o atinge; que 80 mil pessoas vaiando-o no Estádio da Luz, antes do encontro
com o Benfica, não só não o incomodaram como o motivaram e fizeram-no entrar em
campo primeiro que os seus jogadores, poupando-os assim ao ruído ensurdecedor das
primeiras vaias dos adeptos benfiquistas.

Mourinho utiliza o conhecimento profundo que tem dos seus jogadores, gere as suas
emoções e utiliza-as em proveito do grupo. Busca, de igual modo, toda a informação
possível sobre os seus adversários, através de um estudo exaustivo, transmite-a ao grupo e
com a colaboração dos que consigo trabalham estuda as melhores formas de anular os
pontos fortes e explorar as fraquezas dos adversários. Mourinho é muito mais do que um
técnico de futebol. Se o é, então como Manuel Sérgio referiu (in Lourenço 2004: prefácio),
ele é um novo treinador e não apenas um treinador novo. Ele é um líder, um visionário, e
um comunicador nato. Sabe qual o caminho a seguir para fazer a diferença. Enquanto gestor
de pessoas, de emoções, de afectos e interacções, o cunho pessoal de Mourinho parece de
facto ter um lugar único no mundo do futebol.

3   !"4 c%! &!'



A revista Visão, edição de 4 de Abril de 2005, escrevia como subtítulo de uma reportagem
sobre o treinador do Chelsea: ³À beira de ser campeão, no primeiro ano em Inglaterra, Sir
Mourinho tem o mundo a seus pés. Em Londres é amado e odiado. Seja pelas vitórias do
Chelsea, a arrogância, o sobretudo ou a barba de três dias´. É assim Vosé Mourinho, uma
figura pública que não deixa ninguém indiferente. Para isso o treinador reúne várias
características que o tornam único na sua profissão.
19
Na sociedade mediática em que vivemos, cada vez mais os membros das diversas
comunidades tendem a identificar-se, a seguir e até a apaixonar-se por aqueles que se
apresentam como líderes, nos mais diversos sectores das sociedades. Aliás, esta linha de
identificação e de paixão com e pelo líder, foi há muito indicada por Sigmund Freud
(1856-1939), como o substrato mais profundo do fenómeno grupal.
O carisma, lato sensu, pode indicar-se como uma atracção irracional, isto é, sem
necessidade de uma explicação racional, por parte das massas por alguém que lhes inspira
poder e confiança, amor ou ódio. Ora Vosé Mourinho é hoje um homem carismático, gostese
ou não dele. Ele gera sonhos, imitações e inspirações, provoca ódios e paixões como
poucos. Seja pelas suas vitórias, pela sua arrogância aparente, pela barba ± geralmente com
3 dias por fazer... ± ou pelo seu sobretudo cinzento ± que tanta tinta fez correr nos jornais
ingleses ±, pelas suas declarações frontais e por vezes provocatórias, Mourinho está sempre
nas luzes da ribalta. ³Vosé´ como é conhecido em Inglaterra é, em tantos cantos do mundo,
o homem que adolescentes e adultos gostariam de ser. Porquê? Talvez porque conseguiu
um sucesso mundial aos 40 anos de idade, porque é famoso, porque tem bom porte, uma
personalidade vincada e porque sabe o que quer e para onde vai. Depois, desde a sua
imagem às suas palavras e actos, Mourinho comunica de uma forma ímpar todo este
manancial de virtudes para o mundo exterior.
Desta forma, parece-nos apropriado fechar esta subsecção com a história que, por ventura,
mais celebrizou Vosé Mourinho em todo o mundo. A história que o baptizou como | e
Special One. No dia da sua apresentação como treinador do Chelsea FC, Vosé Mourinho
compareceu aos jornalistas ingleses, em Londres, para a habitual conferência de imprensa.
Todos queriam saber como é que um português de 41 anos iria gerir, comandar e treinar
uma das maiores e mais mediáticas equipas de futebol do mundo. Quem era Vosé
Mourinho? Como chegara ali? O que pretendia? Como iria adaptar-se a uma realidade
nova e seguramente difícil? Como reagiria à pressão? Enfim, muitas e pertinentes questões
teriam de ser colocadas a este português com fama de arrogante, aparentemente muito
seguro de si, mas que sem dúvida pouco ou nada conhecia da realidade britânica. Todas as
perguntas foram feitas e uma resposta teve dimensão mundial: ³Because I¶m a Special
One´. Esta resposta foi dada por Vosé Mourinho com base nos resultados conseguidos pelo
FC Porto, sob o seu comando, nas duas temporadas anteriores, conquistando a Taça UEFA
e a Liga dos Campeões. Vosé Mourinho afirmou, então, que se o futebol inglês, o Chelsea e
20
os seus jogadores eram especiais, ele, com toda a certeza também o era, por aquilo que
tinha ganho, pela forma como tinha ganho e, acima de tudo, no clube onde tinha ganho,
seguramente, um clube com pouca dimensão económica quando comparado com os
grandes da Europa. Ainda assim, em dois anos seguidos, ele rivalizou com os ³grandes´ da
Europa e ganhou. Isso tornava-o diferente, special, de tal forma que não teve qualquer
hesitação em admiti-lo perante uma plateia de jornalistas ingleses. No dia seguinte as
primeiras páginas dos jornais britânicos fizeram-se em uníssono: ³I¶m a Special One´.
Hoje, em toda a Inglaterra e, provavelmente, grande parte do mundo ± pelo menos
desportivo ±, quando se fala no | e Special One todos sabem que se está a falar de Vosé
Mourinho.
(  !"$% %567.!'%
Entramos assim na sua segunda parte deste capítulo, dedicada à imagem pública de Vosé
Mourinho. Caracterizado que está ± ainda que em traços largos ± o percurso e o sucesso de
Vosé Mourinho, passamos agora a outra fase deste capítulo. Procuraremos nas páginas
seguintes enquadrar Vosé Mourinho face ao que dele se comenta com mais regularidade.
Ao olharmos os jornais, ao vermos a televisão, ao ouvirmos a rádio, ou até mesmo nas
conversas de rua, quando se fala de Mourinho existem sempre algumas ideias que se
sobrepõem e que são, de certa forma, consensuais para a generalidade das pessoas, quer se
goste ou não da figura em causa. Da nossa experiência pessoal, e como biógrafo de Vosé
Mourinho, recolhemos aqui alguns dos traços que geralmente lhe são atribuídos.
(! '!0.!%
Reconhecidamente, Vosé Mourinho conduz os seus grupos de trabalho com mestria. Numa
equipa de futebol, recheada de ³estrelas´, não é fácil gerir ambições, emoções e
motivações, e torna-se problemático resolver conflitos. O treinador português enfrenta-os
com autoridade e disciplina.
Num caso que acima já fizemos referência, quando treinava o Benfica, após Maniche ser
expulso num jogo com o Boavista, e depois de outros incidentes, Mourinho interpelou o
jogador com frontalidade:
21
³Das duas uma: ou tens um problema de cabeça e precisas de o resolver ou tens um
problema físico e precisas, na mesma, de arranjar solução. Por isso vais treinar para a
equipa B e quando achares que ou a cabeça ou o físico já não têm problemas vens ter
comigo´ (Lourenço 2004: 44).
Passados quatro dias Maniche dirigiu-se ao técnico, pediu-lhe desculpas e depois de pagar
uma multa de 1000 euros foi reintegrado na equipa principal do Benfica. Poucas semanas
depois Maniche era o capitão benfiquista e foi, posteriormente, um dos elementos
essenciais na equipa do FC Porto ± com Vosé Mourinho ± e da selecção nacional. Chegou
ainda a jogar pelo Chelsea sob o comando do treinador português.
(( !%
Depois de passar pelo Benfica, Vosé Mourinho assumiu o comando técnico da União de
Leiria. No estágio de pré-temporada, na localidade de Tábua, quando todos os elementos
do grupo ainda se estavam a conhecer surgiu uma situação que, para os jogadores,
esclareceu cabalmente o papel de cada entidade e de cada profissional na estrutura
leiriense. Num sábado de sol os administradores do clube marcaram um encontro de
futebol com os jornalistas que acompanhavam a equipa. Não tinha acabado o treino da
equipa de Mourinho e já alguns ³patrões´ da União de Leiria realizavam, do outro lado do
campo, exercícios de aquecimento com vista ao ³amigável´ que se seguiria.
³Mourinho parou imediatamente a sessão e, gritando para os atletas» que iniciavam o
aquecimento, mandou-os abandonar o campo. A surpresa foi geral, tanto de um lado
como de outro. Os jogadores e restante equipa técnica ficaram mudos à espera que a

bronca estalasse». Os elementos da SAD da União de Leiria entreolharam-se sem
acreditar muito bem que estavam a ser expulsos por um seu subordinado. Por mais três
vezes, com voz firme e grossa, Vosé Mourinho gritou para o outro lado do campo a
palavra RUA». Um deles ainda retorquiu: Mas porquê Mister? Você está a treinar aí
e nós estamos aqui, qual é o problema?». Mourinho manteve-se inalterável no seu
propósito: Eu depois explico-vos. Agora, rua!!!». A indecisão deu lugar à obediência
e o campo ficou totalmente livre para a União de Leiria continuar a treinar´ (Lourenço
2004: 82).
Mais tarde Mourinho explicou aos administradores as razões da sua atitude: aquele era, na
altura, um local de trabalho, não de diversão e por esse motivo só o seu grupo de trabalho
22
poderia estar ali; tudo o resto só ajudava à desconcentração, algo que Mourinho não
permite. Deram-lhe razão e prometeram que não se repetiria uma cena idêntica.
(* !8%
Ao serviço do FC Porto, em vésperas de um importante Porto/Benfica, Vosé Mourinho
deparou-se com uma entrevista do então Presidente do Benfica, Manuel Vilarinho, na qual
afirmava ter sonhado que a sua equipa iria ganhar, por 3-0, no Estádio das Antas.
³Quando Vilarinho tornou público o seu sonho de imediato pensei: aí está a
provocação que eu preciso para agitar o orgulho dos meus jogadores. De imediato
mandei fazer uma fotocópia da entrevista do presidente do Benfica e coloquei-a na
parede do balneário das Antas durante toda a semana, para que ninguém se esquecesse
do ³sonho´ de Vilarinho. Aos jornais disse apenas que na nossa casa ninguém nos
ganha por 3-0. E fomos para o jogo de alguma forma espicaçados´ (Lourenço 2004:
105).
A verdade é que o jogo terminou com uma vitória do FC Porto por 3-2.
(-!%
Com apenas dois meses de treinador principal, Vosé Mourinho sentiu que o seu futuro
poderia não passar pelo Benfica. Em início de carreira, a vida no clube da Luz não foi fácil.
Face à a mudança de um presidente que lhe dava toda a confiança (Vale e Azevedo) para
outro que lhe retirava toda a confiança (Manuel Vilarinho), Mourinho não temeu o futuro e
arriscou. Devia ou não continuar no Benfica? Devia ou não definir de uma vez por todas o
seu futuro com a direcção do clube? Devia ou não esperar que o despedissem? Devia ou
não, simplesmente, bater com a porta? A caminho de casa, na auto-estrada que liga Lisboa
a Setúbal, Mourinho tomou a decisão que iria abalar o país desportivo. Agora vai ser o
tudo ou nada», referiu. Manuel Vilarinho recebeu Vosé Mourinho no gabinete presidencial
do Estádio da Luz. O presidente já sabia do que se tratava pelo que não era necessária
qualquer introdução prévia ao assunto. Na reunião valeu o pragmatismo. Vosé Mourinho
não se deixou tentar pelas palavras de Vilarinho. Estava demasiado fragilizado por tudo o
que lhe tinha acontecido até então na Luz. ³Agora ou era preto no branco» ou era nada.
23
E deu nada!´ (Lourenço 2004:64). Nesse mesmo dia Vosé Mourinho rescindiu contrato
com o Benfica e não mais voltou a treinar a equipa da Luz.
(19%.!%
Na gestão de Mourinho não têm lugar jogadas subterrâneas. A comunicação frontal é vista
como algo imprescindível ao bom funcionamento do grupo. Um exemplo de frontalidade é
o caso da dispensa de Maniche da equipa principal do Benfica, acima referido. Nos grupos
de Vosé Mourinho todos devem comunicar entre si e dizer o que têm a dizer, sem
constrangimentos e com total lealdade. Assim, nos minutos que antecederam o seu
primeiro treino ao serviço do Benfica, Mourinho prometeu aos seus jogadores que o mote
era ³olhos nos olhos´: ³ofereci-lhes frontalidade total. Quis, assim, que todos tivessem a
certeza de que quando o treinador tomasse decisões sobre os jogadores do Benfica, fossem
elas quais fossem, eles seriam sempre os primeiros a saber e por meu intermédio´
(Lourenço 2004: 39). Ainda no Benfica um outro exemplo ilustra de forma cabal a
frontalidade da actuação de Vosé Mourinho.
No início do ano de 2001, Mourinho treinava a União de Leiria quando surgiu o interesse
do Benfica em contratá-lo. Toni havia sido despedido e o clube de Lisboa necessitava de
um novo técnico. Mourinho foi o escolhido e iniciaram-se as negociações. Existia, no
entanto, um entrave. Vesualdo Ferreira estava no clube como treinador adjunto e Mourinho
não contava com ele na sua equipa de trabalho. Os dirigentes do Benfica insistiam, porém,
na integração do técnico na equipa de adjuntos de Mourinho. Na reunião a posição de Vosé
Mourinho ficou bem clara: ³Das duas uma: ou digo directamente, olhos-nos-olhos, a
Vesualdo Ferreira que não quero trabalhar com ele, para que, claramente, entenda que sou
eu que não quero trabalhar com ele, ou então nada feito e não vou para o Benfica
(Mourinho in Lourenço 2004: 93). E por esta e outras razões Mourinho acabou mesmo por
não chegar a acordo com o Benfica.
(3 ! '
Vosé Mourinho não tem medo de desafiar o futuro. Para isso arrisca, provoca e
compromete-se. No ano de 2003, ao serviço do FC Porto, a sua equipa perdeu, em casa,
24
nos quartos de final da Taça UEFA, por 1-0, com o Panathinaikos da Grécia. No final do
encontro, Mourinho viu o treinador adversário, Sérgio Markarian, a festejar como se já
tivesse vencido a eliminatória. Não gostou e de imediato se dirigiu ao seu opositor:
³Não estejas aos saltos que isto ainda não acabou´. Logo de seguida passou pelos
adeptos portistas, nas bancadas do Estádio das Antas e fez-lhes um sinal como que a
dizer µtenham calma, ainda temos uma palavra a dizer... («) Quando chegou aos
balneários, depois de ter visto a festa grega, deparou-se com o inverso. Os seus
jogadores estavam tristes, frustrados e de cabeça baixa. Logo ali Vosé Mourinho quis
deixar as coisas bem claras. Isto não acabou e eu disse isso, mesmo agora, ao
treinador deles. Nós vamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acredita
que é possível ganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu vou
para a Grécia com outro» (Lourenço 2004: 151).
Quinze dias depois o FC Porto ganhou o jogo por 2-0, qualificando-se para a meia-final da
Taça UEFA, competição cuja edição desse ano havia de ganhar.
(:%!'!0%
Para o actual treinador do Chelsea FC todas as opiniões contam. O líder, para ele, só
adquire a liderança de facto e de direito se esta for conquistada racional e emocionalmente.
Daí que nos seus métodos de trabalho todos sejam chamados a participar e todos fiquem
com a certeza de que contribuíram para as decisões finais que envolvem o grupo. Desta
forma, os jogadores são responsabilizados quer pelas vitórias quer pelas derrotas.
³O trabalho táctico que promovo não é um trabalho em que de um lado está o emissor
e do outro o receptor. Eu chamo-lhe a descoberta guiada», ou seja, eles descobrem
segundo as minhas pistas. Construo situações de treino para os levar por um
determinado caminho. Eles começam a sentir isso, falamos, discutimos e chegamos a
conclusões´ (Mourinho in Lourenço 2004: 26).
(;/0
Um conceito de grupo coeso e solidário é algo de que Vosé Mourinho não prescinde. A
ideia é de imediato transmitida a todos os seus colaboradores: ninguém está acima do
grupo. Assim, no estágio de pré-temporada do FC Porto, em 2002, ao fim de alguns dias, o
25
treinador portista deu, finalmente, uma noite de folga aos seus jogadores. Marcou-lhes a
hora de regresso ao hotel e esperou por eles.
³Fiquei completamente surpreendido, não só por terem aparecido muito antes da hora
marcada, mas também por terem chegado todos ao mesmo tempo. Perguntei, então, ao
Vorge Costa, que ia a passar por mim:
- Vorge, o que é que se passou aqui?
- Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo Mister.
É difícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e tal
homens que estavam juntos há cinco dias, na sua primeira folga optaram por estar
juntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer´
(Mourinho in Lourenço 2004: 123).
E nasceu, de tal forma, que nesse ano o FC Porto ganhou tudo o que tinha para ganhar:
Campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA.
(<c)!%%
Vosé Mourinho é naturalmente um homem confiante. Acredita sempre na vitória e faz
questão de passar esse estado de espírito para os que consigo trabalham. Só acreditando na
vitória se pode ganhar.
Na temporada de 2002/2003 o jogo que decidia a vitória portista no campeonato estava
agendado para o Estádio na Luz, com o Benfica. Na preparação do encontro Mourinho,
treinador do Porto, surpreendeu os seus jogadores.
³Para moralizar os meus jogadores não sou um treinador que opte pelos ³gritos de
ordem´ tipo: vamos a eles, até os comemos, somos os melhores, etc., etc., ». Nada
disso. No que respeita ao jogo com o Benfica fiz passar a mensagem de superioridade
total sobre o adversário. Eu sabia que o Camacho ± treinador benfiquista -, sempre que
estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo
exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as investidas atacantes do
Sokota. Até que um jogador, meio surpreendido me disse: Mas, Mister, eles não
jogam com o Sokota, jogam com o Zahovic!!!». Era o que eu queria ouvir para de
imediato responder: Vogam com o Zahovic quando estão a ganhar. Contra nós vão ter
26
de jogar com o Sokota, que é a opção de Camacho quando estão a perder«»´
(Mourinho in Lourenço 2004: 147-8).
O facto é que o FC Porto chegou à Luz e ganhou o encontro por 1-0. Camacho, o treinador
benfiquista, foi mesmo obrigado a colocar Sokota em campo.
(= &.! 
Nada no seu trabalho Vosé Mourinho quer deixar ao acaso. Mourinho não parte para um
jogo sem conhecer ao pormenor o adversário. Saber os terrenos que pisa é essencial ao
bom desempenho do seu grupo. Na final da Liga dos Campeões, contra o Mónaco, na
Alemanha, em 2004, a análise do adversário foi mais longe que nunca.
³Na preparação do jogo começámos pelo visionamento de muitos jogos efectuados
pelo nosso adversário. Eu já sabia tudo sobre o Mónaco mas queria que os meus
jogadores também soubessem e sobretudo que eles vissem com os próprios olhos («).
Para além destas informações globais, fizemos algo que nunca tínhamos feito. Cada
jogador ficou com um DVD individualizado para ver e analisar. A título de exemplo
dei ao Paulo Ferreira um DVD com todas as acções individuais e colectivas do
Rothen, que era o ala» do Mónaco que iria jogar em cima» dele. Os centrais tinham
informações sobre o Morientes e o Prso. Enfim, cada jogador tinha o seu DVD para
estudar. Depois discutimos em conjunto a informação individual de cada um. Foi desta
forma que ficámos a conhecer o Mónaco e considero que a equipa francesa não tinha
segredos para nós´ (Mourinho in Lourenço 2004: 221).
O FC Porto venceu a final da Liga dos Campeões por 3-0.
(,%. 
Mourinho tem regras, assentes em valores, permanentemente definidas. Um dos seus
exercícios, quase diário, é não deixar que essas regras ± e por consequência, os valores nos
quais elas assentam ± resvalem por caminhos que poderão desviar o grupo dos objectivos
pretendidos.
27
No final da época de 2002/2003, depois da equipa do FC Porto ter ganho tudo, ou seja, a
Liga portuguesa, a Taça de Portugal e a Taça UEFA, Vosé Mourinho temeu uma mudança
de atitude por parte dos seus jogadores:
³[A]pós o sucesso da primeira época, em que ganhámos tudo o que havia para ganhar,
tive medo» da segunda [época]. Tive medo» relativamente à abordagem da época
por parte dos jogadores, sobretudo a nível mental, psicológico, ao nível da motivação,
do comportamento, do crescimento no bom ou mau caminho, no estatuto de alguns
jogadores. ( ) Não era com medo que se deitassem mais tarde ou que bebessem mais
copos, era dentro do próprio jogo. ( ) Então decidi que aquela disciplina que nos
caracterizava na primeira época, dentro daquele padrão de jogo, não se podia perder e
que o rigor táctico devia aumentar. ( ) Assim, aproveitei o seu maior rigor em termos
de disciplina táctica, em termos de posições e de funções, para trabalhar muito mais à
volta do 1x4x4x22. Porque esta estrutura, da forma como eu a concebo, é muito mais
táctica que o 1x4x3x33. Muito mais táctica! ( ) É um sistema à partida
desequilibrador ( ) é um sistema que tem coisas más. E, ao obrigar os meus
jogadores a jogar neste sistema táctico, obrigo-os» a ser naturalmente disciplinados,
rigorosos e concentrados´ (Mourinho in Oliveira et al 2006: 177-8).
E de seguida ± para melhor se compreender o raciocínio do treinador ± Mourinho concluiu:
³ [A]cho que quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir à
procura dos aspectos disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes
pelo rigor táctico, pela procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu
consigo uma disciplina global. Lá está, a partir da minha ideia de jogo e da sua
operacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos. Contextualizando todas
as minhas preocupações (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).
Nessa temporada, com um modelo de jogo mais rigoroso, mais difícil e de menor
qualidade (pelo menos na opinião de Vosé Mourinho), o FC Porto conquistou a Liga
portuguesa e a Liga dos Campeões Europeus.
2 Esquema táctico utilizado no futebol que traduz a disposição dos jogadores dentro do campo. No caso a
equipa joga com o guarda-redes, 4 defesas, 4 médios e 2 avançados.
3 Aqui a equipa joga estruturada com o guarda-redes, 4 defesas, 3 médios e 3 avançados.
28
((c0!
A temporada de 2001/2002 trouxe a Vosé Mourinho uma realidade nova. Pela primeira vez
na sua carreira escolheu e preparou, de início, uma equipa. Foi ela, justamente, a União de
Leiria. Desconhecendo quase por completo a maioria dos seus jogadores tentou, logo na
fase inicial, criar empatia com o seu grupo e ao mesmo tempo motivá-lo. Para atingir os
seus fins comprometeu-se, deixando claro que a sua motivação era elevada: ³Não tenho
dúvidas que mais tarde ou mais cedo eu vou para um grande». Quando eu for, alguns de
vocês vêm comigo´ (Mourinho in Lourenço 2004: 86). Ficou a promessa e também a
esperança que a todos atingiu, porque a qualquer um poderia tocar.
³Nunca especifiquei quem ia comigo porque dependeria sempre do clube para onde eu
fosse. Sabia, por exemplo, que o Benfica precisava de um defesa esquerdo e, portanto,
o Nuno Valente estava certo que iria comigo. O Benfica precisava igualmente de um
extremo e o Maciel também sabia que se eu fosse para a Luz ele iria comigo, enfim,
eles sabiam que mais tarde iriam comigo. Esta situação constituiu um factor de
motivação para os jogadores e, ao mesmo tempo, criou uma certa cumplicidade entre
nós. Do tipo vocês ajudam-me a chegar lá que eu depois levarei alguns de vós». Foi
desta forma que eu me comprometi perante o grupo. Assim mesmo ´ (Mourinho in
Lourenço 2004: 86-7).
Alguns meses depois Mourinho saiu da União de Leiria para ir treinar um grande», o FC
Porto. No final da época contratou dois jogadores do seu anterior clube: Nuno Valente e
Derlei. Mais tarde foi a vez de Maciel seguir os passos dos seus companheiros.
(*. >?%".!'
Vosé Mourinho só ³desliga´ do trabalho quando está em férias. Durante um mês ± em todo
o ano ± não se pensa nem se fala sobre futebol. Sai de férias, desliga o telefone e fica
inacessível. No que toca aos restantes onze meses do ano, Vosé Mourinho só vive para a
sua profissão e só não pensa nela quando dorme... A este respeito, é ilustrativo um
comentário da sua mulher:
³Mesmo em casa ele está sempre a falar ou a pensar no futebol. O jogo nunca lhe sai
da cabeça. Depois dos jogos, nas Antas vamos geralmente os dois jantar fora. No
início do jantar começa por me perguntar como foi o meu dia e o dia dos filhos. A
29
meio do jantar já está a falar de futebol e na sobremesa pega num pedaço de papel e
começa a fazer a equipa e a escrever a táctica para o jogo seguinte. Ele é assim e não
há volta» a dar-lhe. Vai ser sempre assim ´ (Matilde Mourinho in Lourenço 2004:
166-7).
(-0%!%
O mundo do futebol é um mundo de crenças e superstições. Se a crença é positiva o
mesmo já não se poderá dizer da superstição. Vosé Mourinho não é ± e não se cansa de o
repetir ± supersticioso. Diz mesmo que a superstição é prejudicial ao ambiente de trabalho
e, por consequência, ao desempenho do grupo. Ao combatê-la não só tenta resolver o
problema em si como pretende ir mais longe. No caso concreto que a seguir se descreve,
Vosé Mourinho criou novas e mais fortes empatias, especialmente com as vítimas da
superstição...
³Tínhamos, então, o embate FC Porto ± Denislizpor para fazer esquecer o Funchal4.
Mas outro desafio esperava o grupo. Vencer Silvino5, o
pé frio»6. Tratou-se de mais
uma
provocação» de Vosé Mourinho, tal era a confiança na recuperação da equipa e
num resultado positivo contra a equipa turca. Normalmente Silvino Louro não vai para
o banco a não ser nas competições europeias onde é permitida a presença de mais um
elemento técnico. Assim, Silvino acompanhou muito poucas vezes Vosé Mourinho no
banco, sendo que, nas duas últimas que o tinha feito ± com o Sparta de Praga para a
Liga dos Campeões, em 2001/02 e com o Polónia Varsóvia para a Taça UEFA, já na
temporada 2002/03 ± a equipa perdeu sempre. Silvino ficou logo com a alcunha de

pé frio» e dela custou a livrar-se. No dia antes do jogo o treinador do FC Porto fez o
anúncio: Silvino vai estar no banco a meu lado. Logo algumas
almas mais tementes»
começaram a
assobiar para o ar», desconfiadas e assustadas com a reacção que os
deuses do infortúnio poderiam provocar dada a presença do treinador de guarda-redes
do FC Porto no banco. Vosé Mourinho sorriu e manteve-se firme na sua posição: tenho
tanta certeza que vou ganhar amanhã que o
pé frio» vai para o banco. O próprio
Silvino mostrou-se assustado com a situação, até por saber que existiam pessoas
4 O jogo do Funchal, com o Marítimo, tinha constituído a primeira derrota da época 2002/2003 de Vosé
Mourinho no FC Porto. Quatro dias depois jogaria com a equipa turca do Denislizpor, em jogo referente à
primeira-mão dos oitavos-de-final da Taça UEFA.
5 Treinador de guarda-redes do FC Porto na equipa técnica comandada por Vosé Mourinho.
6 Na gíria futebolística significa ³azarado´.
30

desagradadas» com a ideia. Vosé Mourinho manteve-se inabalável na decisão.

Ganhámos por 6-1 e o pé frio, a cada golo que marcávamos, dava-me toques no
braço e fazia um sorriso sarcástico como que a dizer: vá, agora sempre quero ver quem
é que vai ter coragem de me continuar a chamar pé frio». E a alcunha de Silvino ficou
por aí´ (Lourenço 2004: 145-6).
Silvino Louro mantém-se na equipa técnica de Vosé Mourinho no Chelsea FC.
(18.8!
A época de 2003/2004 ficou marcada, logo em Outubro, por uma grave lesão de um
jogador recém-chegado às Antas. Tratou-se de César Peixoto que, em França, frente ao
Olympique de Marselha havia contraído a pior lesão que se pode ter enquanto jogador
profissional de futebol7. A única saída, nestes casos, é a sala de operações. Pela
importância do processo, pela união do grupo e ± talvez acima de tudo ± pelo ³homem´,
Vosé Mourinho tomou uma atitude inédita na sua vida. Vestiu a bata de médico e foi para a
sala de operações.
³Enchi-me de coragem e estive presente. Achei que, tendo essa oportunidade, era
importante para mim e para o César Peixoto estar presente. Pela minha parte, para
perceber o conteúdo da operação e para poder ter uma acção mais activa na
recuperação. Pela parte do César, porque julgo que é importante para um jogador saber
que tem a seu lado, numa altura muito difícil da sua vida, o treinador. No fundo estar
ali significava dizer-lhe: cura-te que estamos à tua espera». ( ) Esta intervenção
cirúrgica fez-me entender a dimensão daquele tipo de lesão e ao mesmo tempo acabou
por condicionar algumas das minhas atitudes futuras. Percebi que a pressão que os
treinadores sempre fazem, quer aos jogadores quer aos departamentos médicos dos
clubes, para acelerar as recuperações, afinal, na maior parte das vezes, não faz sentido.
A partir daquele momento passei a ser mais condescendente com as queixas dos
jogadores e com as preocupações dos médicos´ (Mourinho in Lourenço 2004: 197).
Infelizmente, poucos meses depois e pelo mesmo motivo, Mourinho voltaria à sala de
operações. Desta vez com Derlei8.
7 César Peixoto fez uma ruptura do ligamento cruzado anterior da perna esquerda. Em média este tipo de
lesão demora entre 6 a 8 meses a debelar o que equivale ao jogador não jogar mais na temporada.
8 Avançado do FC Porto na altura.
31
(3
Pode a sua aparência pública sugerir o contrário, mas para quem o conhece bem, como a
família e os amigos mais chegados, não existem dúvidas de que Vosé Mourinho é um
homem com sentido de humor. Esta sua faceta é espelhada em vários campos da sua vida.
O CD editado no final de 2005, no qual um artista irlandês imita Vosé Mourinho a falar no
balneário aos seus jogadores, terminando com o treinador do Chelsea a cantar, é disso uma
boa prova. Vosé Mourinho não só afirmou publicamente ter gostado do trabalho como fez
questão de conhecer pessoalmente o seu autor para lhe dar os parabéns.
Também no seu grupo Vosé Mourinho aprecia a boa disposição. No final de um encontro
entre a União de Leiria e o Benfica, estando Mourinho ao serviço do clube da cidade do
Liz, o seu adjunto Baltemar Brito foi motivo de muitos risos na viagem de regresso a
Leiria. Mourinho fez questão de contar o episódio na sua biografia:
³No parque automóvel os autocarros dos dois clubes estavam estacionados lado a lado.
Como têm as mesmas cores prestavam-se a confusões. O Brito foi o primeiro a sair
dos balneários e entrou no autocarro que estava mais à mão. Sentou-se logo no lugar
do Vesualdo Ferreira9 e não se fez rogado quanto aos lanches que estavam em cima dos
assentos. Começou a comer o lanche que, por acaso, até devia ser o de Vesualdo
Ferreira quando, de repente, começa a ver entrar a malta do Benfica. Só teve tempo de
baixar a cabeça, pensar grande barraca» e abandonar o autocarro em passo acelerado.
É evidente que viemos a rir e a brincar com o Brito de Torres 10 até à chegada a Leiria.
Uma das frases era: Vá queres vir nesse autocarro, é?!! Tem calma Brito, não podes
dar tanto nas vistas»´ (Mourinho in Lourenço 2004: 87).
Alguns meses depois Baltemar Brito e Vosé Mourinho entrariam num outro autocarro para
nele viajar durante dois anos e meio. O autocarro azul e branco do FC Porto.
Neste capítulo procurámos caracterizar e enquadrar o trabalho de Vosé Mourinho, bem
como traçar em termos gerais, consensualmente aceites, a imagem pública do actual
treinador do Chelsea.
9Ao tempo Vesualdo Ferreira era o treinador principal do Benfica.
10Na época de 2001/2002 a União de Leiria realizou os jogos em casa emprestada, em Torres N ovas, devido
ao facto de estar a construir um novo estádio em Leiria.
32
c  (
SOB A PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE
33
Em bom rigor não podemos determinar com exactidão quando começou esta investigação.
O autor desta dissertação conhece Vosé Mourinho desde a infância, é o seu biógrafo oficial
e tem um profundo conhecimento da sua maneira de ser e de pensar. Daqui resulta que à
partida para esta investigação já conhecíamos, de alguma forma, alguns dos fundamentos
teóricos em que assentava o trabalho de Mourinho. De resto, Manuel Sérgio, seu antigo
professor e um dos teóricos que mais influenciou Mourinho no caminho profissional por si
seguido, em conversas prévias, já nos havia alertado para a perspectiva de trabalho que
decidimos adoptar nesta dissertação. Desta forma, de um ponto de vista epistemológico e
metodológico, o principal desafio que nos surgiu passou pelo enquadramento do estudo do
trabalho de Vosé Mourinho na perspectiva da complexidade. Em suma, são duas as razões
que justificam o percurso escolhido e desenvolvido nesta dissertação: (i) a perspectiva da
complexidade, nomeadamente no que respeita à sua aplicação na motricidade humana
(Sérgio 2003, 2004), é o ponto de partida do trabalho desenvolvido por Vosé Mourinho; e
(ii) a nossa intuição, que se foi tornado cada vez mais forte nestes últimos anos, de que a
perspectiva da complexidade seria a melhor forma para explicar o trabalho e o sucesso de
Vosé Mourinho.
(%%8%%!5%c"'!$c0.@!%
São vários os pensadores contemporâneos que defendem podermos estar ± no final do séc.
XX e início do séc. XXI ± perante e emergência de um novo paradigma científico: a
complexidade ou, se quisermos, o pensamento complexo.
O pensamento científico que dominou o séc. XX ± e que encontra no séc. XVII, com
Descartes, o seu fundamento ± assenta em bases reducionistas, ou seja, num esquema de
pensamento que preconiza a separação e a divisão das partes para, a partir do entendimento
detalhado destas e da sua posterior junção, tentar explicar o todo. Edgar Morin (1921- ),
pensador contemporâneo cuja tese sobre pensamento complexo servirá de perspectiva de
fundo a esta investigação, chamou àquele modelo de pensamento oparadigma da
simplicidade. Para Morin este paradigma é sustentado por três princípios: disjunção,
redução e abstracção.
No que à disjunção diz respeito, Descartes fez a separação entre o sujeito pensante (ego
cogitans) e a coisa extensa (res extensa) e ao fazê-lo formulou o paradigma que iria
34
dominar o pensamento europeu até aos nossos dias: o modelo sujeito/objecto. Deste
raciocínio resultou a diferenciação entre filosofia e ciência. A partir de então ficou clara a
existência de dois mundos: o mundo das ideias e o mundo das coisas, sendo que ambos não
se tocariam e só aparentemente se poderiam complementar. É neste contexto que Morin
sugere a disjunção entre o conhecimento científico e a reflexão filosófica. Embora este
pensamento modelo tenha permitido grandes avanços, não só do conhecimento científico
como da reflexão filosófica, desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin não o isenta de
graves deficiências:
³[U]ma tal disjunção, rareando as comunicações entre o conhecimento científico e a
reflexão filosófica, devia finalmente privar a ciência de se conhecer, de se reflectir e
mesmo de se conceber a si própria cientificamente. Mais ainda, o princípio da
disjunção isolou radicalmente uns dos outros os três grandes campos do conhecimento
científico: a física, a biologia, a ciência do homem´ (Morin 2003: 17).
É desta forma que enquadramos a redução que decorre do trajecto inevitável do complexo
para o simples. Ao dividir, ou separar, o conhecimento científico retalhou o ³tecido
complexo das realidades´ ao mesmo tempo que se tentava, como ideal do conhecimento
científico ³descobrir, por detrás da complexidade aparente dos fenómenos, uma ordem
perfeita legislando uma máquina perpétua (o cosmos), ela própria feita dos microelementos
(os átomos) reunidos diferentemente em objectos e sistemas´ (Morin 2003: 17). Ora, este
tipo de conhecimento científico encontrava, desta forma, o seu fundamento de rigor e
operacionalidade na medida e no cálculo. Só que para Morin, entre outros pensadores,
como por exemplo Martin Heidegger (1889-1976), Prigogine (1917-2003) e Merleau-
Ponty (1907-1961), a matematização e a sua operacionalização separam os seres e as
coisas, descontextualizam-nos do todo que é o mundo, a realidade vivida e experimentada,
para apenas considerarem como realidades inteligíveis e explicáveis as fórmulas e as
equações que regem as partes que se podem quantificar. Mais, só o quantificável e o
mensurável pode desta forma ser conhecido. Heidegger comentou, com alguma ironia, que
a matematização do ser vivo o permite conhecer em todo o detalhe, excepto precisamente
como ser vivo (Heidegger 1977). Sob esta perspectiva, Morin considera que ³o
pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo: ou
ainda unifica abstractamente ao anular a diversidade´ (Morin 2003: 17-8).
35
Com a conjugação destes dois princípios Morin chega ao terceiro princípio do paradigma
da simplicidade: a abstracção. Neste ponto do seu pensamento, Morin conclui que este é o
caminho percorrido até ao ponto em que apelidou de ³inteligência cega´, o beco sem saída
do paradigma da simplicidade. A partir daqui são muitas as críticas. Ao considerar que o
método desintegra a realidade e cria fendas entre as disciplinas do saber, este autor alerta
para os riscos da perigosa viragem do conhecimento, cada vez menos disponível para a
reflexão e discussão dos homens e crescentemente modelado para ³ser incorporado nas
memórias informacionais e manipuladas pelos poderes anónimos, nomeadamente os
estados´ (Morin 2003: 18).
Para Morin é no séc. XX que a necessidade de viragem do pensamento científico se coloca
mais acentuadamente. Reconhecendo os enormes progressos do conhecimento científico e
da reflexão filosófica desde o séc. XVII até aos nossos dias, Morin acentua que ³as suas
consequências nocivas últimas só começam a revelar-se no século XX´ (Morin 2003: 17).
Morin insiste nesta ideia por diversos motivos, entre os quais, e talvez o mais forte, o facto
de o ³velho´ pensamento se ter fechado sobre si próprio, ao mesmo tempo que ignorou
quase por completo as novas realidades emergentes no século XX, desde logo com o surgir
da mecânica quântica, que abalou profundamente os alicerces da ciência, porque fez com
que as chamadas ciências exactas deixassem de ser... exactas. O princípio da incerteza,
enunciado por Werner Heisenberg (1901-1976), refere precisamente que ao nível dos mais
pequenos elementos constitutivos da matéria, a observação muda o fenómeno observado, e
que, por isso, o conhecimento humano nunca pode ser µexacto¶; o princípio refere
nomeadamente que o observador só pode conhecer ou a posição ou a velocidade de um
elemento, nunca as duas simultaneamente. Também a teoria da relatividade de Einstein
(1879-1955) havia revolucionado a física newtoniana, unindo o espaço e o tempo numa
nova dimensão a que chamou espaço-tempo. Mais recentemente o projecto de
sequênciação do genoma humano ilustrou de uma forma particularmente interessante,
como adiante descreveremos, os limites do reducionismo positivista para o estudo da
natureza humana.
A estes exemplos deve ainda acrescentar-se o contínuo testemunho da imprevisibilidade da
acção humana. No século XX, desde o eclodir da II Guerra Mundial no berço da
civilização ocidental, à queda do Muro de Berlim, à implosão da URSS, a Chernobyl e ao
36
novo terrorismo global, são vários os exemplos da imensidão de eventos que escapam às
relações simplificadoras de causa-efeito.
As novas realidades, de que os casos acima referidos são exemplo, provocaram cortes e
cisões nos modelos reducionistas existentes. Persistiu-se assim no erro decorrente da
cegueira, tal como lhe chamou Morin. O pensamento e, por consequência, as ciências,
separadas e estanques deixaram de conseguir dar respostas às muitas perguntas novas que
se colocam cada vez com maior intensidade. Não custa, pois, aceitar que Morin fale não só
na necessidade de um novo pensamento filosófico, como também, na necessidade de um
novo paradigma de conhecimento científico. Morin propõe, então, a complexidade como
resposta às novas necessidades porque ao reduzir o todo às partes para a partir daí tentar
explicar o todo, será o mesmo que aplicar a lógica mecânica aos problemas do ser vivo e
da vida social.
Numa outra linha de investigação, o etnólogo Marcel Mauss (1872-1950), afirmou na sua
obra Essai de Sociologie, publicada em 1971, que ³é preciso recompor o todo´. É nesta
recomposição do todo que assenta a necessidade de um novo paradigma do pensamento.
Uma nova lógica que, sem romper com a anterior, esteja aberta a mais possibilidades,
porque o universo não parece ser a perfeita máquina determinista que os modelos
decorrentes do ³cogito, ergo sum´ ± penso, logo existo ± pressupunham.
Entramos assim no pensamento complexo, na lógica do ³todo que está na parte que está no
todo´, ou seja, entramos num sistema de pensamento em que a abordagem não é feita de
fora para dentro mas sim sempre dentro do sistema e a parte só é separada enquanto
elemento do todo, nunca saindo nem se isolando dele, apenas servindo para o compreender
porque dele é parte integrante. É, então, uma lógica em que compreender as partes
significa também compreender o todo, mas compreender o todo, por si só, também
significa compreender as partes, porque desintegrar um qualquer elemento significa
descontextualizar não só as partes como igualmente o próprio todo o que, nesta perspectiva
complexa não faria qualquer sentido já que renegaria a sua lógica intrínseca de percepção
interrelacional, interactiva e interdependente dos elementos de uma qualquer realidade. O
pensamento complexo, ou a contribuição de Morin para um possível paradigma da
complexidade, desafia-nos, pois, a ver a árvore-e-a-floresta. É desta forma que entramos,
segundo Morin, numa ³considerável revolução´.
37
No paradigma da simplicidade ³as falhas, as fendas multiplicam-se´, no entanto, trata-se
de uma modelo matriz que não será abandonado. Decorrente do paradigma prevalecente a
metodologia científica é reducionista e quantitativa.
³Reducionista, uma vez que era preciso chegar às unidades complementares não
decomponíveis, as únicas que podiam ser cercadas, clara e distintivamente; e
quantitativista, uma vez que estas unidades discretas podiam servir de base a todas as
computações´ (Morin 2003: 80).
Com um controlo rígido assente nos princípios enunciados, pode entender-se que a lógica
do pensamento ocidental tem exercido uma acção apertada, ou guiada se quisermos, do
progresso do pensamento, no entanto, limitado no seu próprio método, que é fechado e não
aberto a um desenvolvimento fora dos seus limites. Como conclui Edgar Morin, ³[a]
imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido
possível, só entravam na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram
sempre epistemologicamente condenáveis´ (Morin 2003: 81). De resto, e também sobre a
necessidade de um novo pensamento que faça face às insuficiências do paradigma reinante,
já o filosofo e historiador da ciência, Thomas Kuhn (1922-1996), no seu ensaio | e
Structure of Scientific Revolutions (Kuhn 1996), publicado em 1962, defende que os novos
conceitos têm a capacidade de nos sugerir uma nova maneira de ver o mundo, portanto,
não mais se devendo encarar a verdade científica como a única verdade, podendo e
devendo esta ser plural.
((/%%c0.@!%
O projecto de investigação científica de mapeamento do genoma humano,
consensualmente aceite como um dos mais avançados empreendimentos da ciência
contemporânea, ilustra de uma forma interessante os limites dos métodos reducionistas
bem como os desafios que se colocam a uma investigação conduzida sob a perspectiva da
complexidade.
Desta forma, podemos começar por colocar a pergunta: o que é o homem? A pergunta é
secular e aparentemente, com o projecto do genoma humano, estaríamos à beira de
conhecer a resposta. O projecto do genoma tentou dar-nos esta resposta e como estamos a
falar do mais evoluído e ousado cruzamento da ciência com a tecnologia, fundaram-se
38
esperanças de que aquela pudesse de facto ser obtida. Inspirado fundamentalmente no
paradigma cartesiano, que divide e separa para compreender o todo, o projecto dividiu o
homem na menor divisão que a ciência actual pode conseguir: o gene. Assim, com o
homem geneticamente dividido ± isolado e descontextualizado ± e depois de sequenciado
encontrou-se uma ± não a ± resposta: afinal somos, entre nós humanos, geneticamente
iguais em mais de 99,9 por cento. E que dizer de outra conclusão: somos praticamente
iguais a um rato, com uma diferença genética de apenas 1 por cento e só depois vem a
nossa igualdade ao macaco, com uma diferença de 2 por cento. Somos, então, todos
praticamente iguais? Deixemos as partes e olhemos o todo: até um animal nos diferencia.
O que significa, assim, o projecto do genoma? Significa, tão só, que o que é idêntico é a
nossa sequência genética, não nós mesmos, os indivíduos em si.
³O que tudo isto quer dizer é que os genes, só por si, com os seus tipos e a sua
quantidade, não são explicação cabal para modo de ser nenhum. Por outras palavras,
simplificando e banalizando, o que foi descoberto é que os genes são como que a
fotografia do ser humano, só que este ser humano, na sua essência, não é uma
fotografia, mas um filme´ (Ilharco 2004: 27).
O filme é, afinal, a sequênciação lógica e natural de um determinado número de
fotografias, logo, o genoma, como fotografia de um filme que é o homem, é apenas uma
pequena parte da explicação de um filme cujo final ainda não é conhecido.
Daqui decorre que a resposta ao ³quem somos´ ou ³o que somos´ não pode ser encontrada,
apenas, na nossa composição química, biológica, ou genética, em suma, na matéria. No
paper de Venter et al (2001) refere-se que a quantidade modesta de genes humanos ± o
arroz tem quase o dobro dos nossos genes« ± significa que para descobrirmos os
mecanismos que geram as complexidades inerentes ao desenvolvimento humano e os
sofisticados sistemas que mantêm a homeostase temos de procurar noutro lugar; ora o
outro lugar é a perspectiva da complexidade, aliás, como os próprios cientistas o admitem:
³We will soon be in a position to move away from the cataloging of individual
components of the system, and beyond the simplistic notions of « this binds to that,
which then docks on this, and then the complex moves there«» to the exciting area of
network perturbations, nonlinear responses and thresholds, and their pivotal role in
human diseases. The enumeration of the « parts lists» reveals that in organisms with
complex nervous systems, neither gene number, neuron number of cell types
39
correlates in any meaningful manner with even simplistic measures of structural or
behavioural complexity´ (Venter et al 2001: 1347).
Daí que os autores concluam que existem falácias no modelo de pensamento cartesiano
que nos impedem de pelas partes chegar ao todo, logo, o gene só por si nunca dará resposta
à pergunta ³quem somos?´
³There are two fallacies to be avoided: determinism, the idea that all characteristics of
the person are ³hard-wired´ by the genome; and reductionism, the view that with
complete knowledge of the human genome sequence, it is only a matter of time before
our understanding of gene functions and interactions will provide a complete causal
description of human variability. The real challenge of human biology, beyond the
task of finding out how genes orchestrate the construction and maintenance of the
miraculous mechanism of our bodies, will lie ahead as we seek to explain how our
minds have come to organize thoughts sufficiently well to investigate our own
existence´ (Venter et al 2001: 1348).
Entende-se assim a dúvida que, afinal e contra todas as perspectivas, o projecto genoma
veio desfazer: não é pelas partes que conseguiremos entender o homem. A resposta está no
todo. Aliás, como Manuel Sérgio nos referiu, citando Hegel, ³a verdade é o todo´.
(*! %%!5% $ '!! c0.@!%
Traçada que está, em termos gerais e em especial na visão de Edgar Morin, a emergência
de um novo paradigma de pensamento passamos ao enunciar do que podemos chamar os
contornos de cada um dos paradigmas, uma vez que deixámos implícito que o surgir de um
novo modelo matriz não requer a implosão do outro que existia previamente. Pelo
contrário, a sua coexistência e interacção darão sentido aos dois modelos fundamentais de
pensamento filosófico e científico. Afinal, esta posição decorre directamente da tese de que
³o todo está na parte que está no todo´.
Paradigma é sinónimo de modelo, neste caso, de modelo matriz ou de modelo estrutura.
No entanto, a própria noção de paradigma tem conhecido desenvolvimentos ou
aperfeiçoamentos ao longo dos tempos. Para Khun (1996), paradigma é a ferramenta
teórica e o conjunto dos procedimentos e leis que constituem a raiz que orienta toda a
investigação em dada altura e contexto histórico. Daí que a história da ciência nos ensine
40
que cada vez que muda um paradigma seja o próprio mundo a mudar. Ao mudar o mundo
mudam, necessariamente, os homens e neles a sua forma de olhar, de interpretar e de
experimentar o mundo e as coisas. É desta forma que Khun considera que o mais
importante é justamente esse olhar, uma vez que enquanto se opera a revolução das ideias
que leva ao novo paradigma, os cientistas vêem novas e diferentes coisas quando olham os
velhos e mesmos objectos, ou, dito por outras palavras, será o mesmo que nos
transportarmos subitamente para um outro planeta, com as mesmas coisas com que sempre
lidámos mas que se tornam elas mesmas diferentes aos nossos olhos já que passam a ser
observadas num contexto completamente diferente: ³[w]hat were ducks in the scientist¶s
world before the revolution are rabbits afterwards´ (Khun 1996: 111).
Para Morin (2003) um paradigma é uma relação lógica extremamente fecunda e poderosa
que se situa entre noções mestras, noções chave e princípios chave. Ora é justamente a
fecundidade dessa relação lógica que faz com que, numa mudança de paradigma, tudo
mude numa sociedade. Assim, no entender de Morin, aquilo que afecta um paradigma, que
se traduz na pedra angular de todo o sistema de pensamento, acaba por afectar, invariável e
simultaneamente, a ontologia, a metodologia, a epistemologia, a lógica e por simpatia, a
prática, a política, a sociedade. Numa perspectiva de integração podemos, então, falar em
paradigma como o mundo das ideias onde uma trave mestra condiciona e conduz de forma
fecunda não só o pensamento como o próprio método científico. Mudar essa trave mestra é
mudar o próprio edifício no qual habita toda uma civilização enquanto passado, presente e
futuro. Ao fazê-lo, é essencialmente o passado que se questiona e o futuro que se repensa
porque a nossa visão mudou radicalmente. Afinal, tudo o que já vimos não é exactamente o
que já vimos mas o que julgámos ter visto. O passado não foi o que foi e o futuro será
outro.
É importante, no entanto, realçar que quando falamos em complexidade não é pacifico que
estejamos a falar num paradigma da complexidade. O próprio Edgar Morin formula o
problema ao afirmar:
³[N]ão se pode tirar, eu não posso tirar, nem pretendo tirar do meu bolso um
paradigma de complexidade. Um paradigma, se tiver de ser formulado por alguém,
por Descartes por exemplo, é no fundo, o produto de todo um desenvolvimento
cultural, histórico e civilizacional. O paradigma da complexidade surgirá do conjunto
de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que
41
vão conciliar-se e juntar-se. Estamos numa batalha incerta e não sabemos ainda quem
a ganhará´ (Morin 2003: 112).
Morin trabalha, assim, para o desenvolvimento de um paradigma que pode não existir
enquanto tal, mas sim que poderá estar a construir-se e que poderá vir a ser, finalmente,
reconhecido como o paradigma da complexidade. ³De este modo, su obra abre caminos,
inicia y vislumbra recorridos. Es equivocado buscar en él pensamiento consolidado. Morin
articula caminos posibles, pero aún poco transitados, que parecían imposibles.´ (Moreno in
Velilla 2002:21). Vá na década de 80 o biólogo e filósofo Francisco Varela (1946-2001)
arriscou o prognóstico de o pensamento complexo evoluir para paradigma. É essa a
conclusão que poderemos extrair das suas palavras.
³Acredito convictamente que existe uma grande mudança ou uma tendência para a
mudança na nossa sensibilidade contemporânea e na epistemologia científica, no
sentido de estarmos cada vez mais interessados numa epistemologia que não vê o
mundo como uma fotografia, mas que se ocupa de criar o mundo (laying down of a
world) onde o sujeito e o objecto emirjam por mútua especificação´ (Varela in
Magalhães 2005: 57).
Magalhães (2005) defende que esta mudança já está em curso e que se chama
complexidade. Afirma que a revolução está a acontecer de uma forma abrangente e que a
sua operacionalização já é visível em vários campos da ciência, nomeadamente, na gestão
e organização de empresas.
Não é, pois, pacífica a questão da complexidade enquanto paradigma, embora muitos
autores já a enquadrem como tal. De qualquer forma, seja qual for a terminologia que
adoptemos ± problema, questão, perspectiva, aproximação, corrente, paradigma, entre
outras ± parece claro que o conceito e as ideias que encerra estão em fase de
desenvolvimento e maturação, sendo que só talvez o tempo, entendido este como o
desenvolvimento cumulativo da acção humana, nos dirá de que forma se contextualizará a
complexidade no mundo das ciências.
No que respeita ao paradigma do positivismo reducionista a que Morin chamou da
simplicidade, ele atravessou a história do pensamento ocidental desde o séc. XVII até aos
nossos dias. Descartes deu-lhe o impulso primário, ao separar, no homem, corpo e mente.
Da evolução do ³cogito, ergo sum´ nasceu aquilo a que se convencionou chamar o
³método científico´. Aquela afirmação, porventura a mais famosa da história da ciência,
42
surgiu pela primeira vez na quarta secção de O Discurso do Método, em 1637, e sugerenos
a ideia de que só no pensar se encontra o fundamento do existir ou, se quisermos,
através da instrumentalização da matéria existimos em separado enquanto corpo e mente.
Com esta premissa entendemos em Descartes a lógica que separa a res cogitans (coisa
pensante) da res extensa (coisa material). Esta última advém e só pode existir e ter
substância na primeira. Ora, foi justamente nesta divisão primeira, mente/corpo, que se
fundou e desenvolveu o moderno método científico. A divisão, a separação, a hierarquia
são noções mestras de um pensamento operacionalizado em método que atravessou os
quatro últimos séculos da história ocidental. Deste método resultou, então, a separação
clara do domínio do humano, enquanto reflexão sobre a sua natureza e fim± entregue à
filosofia ± e do domínio da matéria, e/ou corpo ± entregue ao conhecimento científico.
Filosofia e ciência seguiram, desta forma, caminhos diferentes e separados e ao fazê-lo
dificilmente poderiam socorrer-se uma da outra, interagir e cooperar, logo, fechar-se-iam
sobre si mesmas. Em resultado disto mesmo, entende-se o paradigma da simplicidade e o
seu objectivo: o seu princípio ³quer separa o que está ligado (disjunção), quer unifica o que
está disperso (redução)´ (Morin 2003: 86). Tomando o homem como referência, Morin
deixa-nos um exemplo ilustrativo:
³O homem é um ser evidentemente biológico. É ao mesmo tempo um ser
evidentemente cultural, metabiológico e que vive num universo de linguagem, de
ideias e de consciência. Ora estas duas realidades, a realidade biológica e a realidade
cultural, o paradigma da simplificação obriga-nos quer a separá-los quer a reduzir a
mais complexa à menos complexa. Vai portanto estudar-se o homem biológico no
departamento de biologia, como um ser anatómico, fisiológico, etc., e vai estudar-se o
homem nos departamentos das ciências humanas e sociais. Vai estudar-se o cérebro
como órgão biológico e vai estudar-se o espírito, the mind, como uma função ou
realidade psicológica. Esquece-se que um não existe sem o outro; ou melhor que um é
simultaneamente o outro, embora sejam tratados por termos e conceitos diferentes´
(Morin 2003: 86).
Com este exemplo, onde o homem nos surge como uma realidade diversamente ordenada,
podemos indicar uma das grandes insuficiências do pensamento reducionista: ele não
aceita a desordem. Ao invés, segue o caminho da ordem esquecendo-se que a desordem faz
parte do universo, desde logo porque só face a um contexto de desordem podemos
entender a ordem e vice-versa. Basta lembrarmo-nos de Boltzman, citado em Morin
43
(2003), que nos veio dizer que aquilo a que chamamos calor não é mais do que a agitação
em desordem de moléculas ou átomos. A simplicidade vê o uno e o múltiplo mas torna-se
incapaz de compreender que o uno pode ser também no mesmo momento múltiplo. A
simplicidade separa e reduz o complexo ao menos complexo possível.
Esta breve exposição sobre o paradigma da simplicidade é, pois, fundamental para
entendermos a aproximação da complexidade. Desde logo porque aquela lhe é anterior;
depois, porque se partirmos do princípio que os dois paradigmas se podem complementar e
portanto formar um todo múltiplo, não faria sentido tentar perceber o todo sem
conhecermos também as partes enquanto componentes desse mesmo todo. Daí que Morin
tenha afirmado não ser ³preciso acreditar que a questão da complexidade se ponha apenas
a partir dos novos desenvolvimentos científicos´ (Morin 2003: 83), concluindo que
devemos tentar descortinar a complexidade onde ela, em geral, está pouco exposta ou até
ausente como, por exemplo, na vida quotidiana.
A complexidade pode, por isso, bem ser a ³segunda metamorfose da ciência´, sendo que a
primeira terá sido precisamente o modelo cartesiano sujeito-objecto. Esta ideia de
Francisco Guedes (1999), no seu livro Economia e Complexidade, sugere-nos que a
complexidade emerge como uma resposta à ineficácia crescente da simplicidade. O
reducionismo e a fragmentação acabam por descontextualizar os fenómenos, tornando
assim impossível explicá-los na sua totalidade e como um todo. Ora, é ao reintegrá-los no
todo, ao contextualizá-los no todo, que encontramos a resposta da complexidade. Daí que o
pensamento complexo encontre parte do seu fundamento na teoria geral dos sistemas, a
qual chama decisivamente a atenção para o todo (sistema) em que se inserem as partes
(elementos).
O pensamento sistémico, tal como o formulou o biólogo Ludwig Von Bertalanffy (1901-
1972), propõe-nos a abordagem das diversas realidades em termos de conexões, relações e
contextos como contraponto ao pensamento separador ou/e reducionista, ou dito de outra
forma, substitui a concepção todo/partes pela relação sistema/elementos. A sua visão é
sempre relacional e, como tal, não é possível, em termos sistémicos, pensar numa realidade
sem que ela não esteja ligada a outra, logo pensar de forma sistémica é pensar de forma
relacional. Daqui passamos para um segundo princípio, o da fecundidade. Ao entrarmos
numa realidade entramos numa complexa teia de relações, interacções e interligações. A
44
teoria geral dos sistemas proporciona-nos o método de desenvolver o conhecimento
conexo nas suas variadas vertentes e sob os seus mais diversos ângulos, uma vez que por si
só nada acontece descontextualizado.
Fica clara, assim, a afirmação anterior na qual se atribui à teoria geral dos sistemas uma
influência decisiva na evolução do pensamento complexo. A sua postura relacional, bem
como a fecundidade na forma como analisa o real, são prova disso. De resto, ainda dentro
do campo dos sistemas e do seu desenvolvimento, Nicolis e Prigoggine ± em particular
este último, físico-químico e filósofo, laureado com o Prémio Nobel da Química em 1977
±, vieram dar uma importante contribuição para o debate da complexidade ao fazerem a
distinção entre sistemas conservadores e sistemas dissipativos.
Sob o prisma dos sistemas conservadores, o universo é visto como um sistema no qual as
diferentes partes coexistem e se interrelacionam, existindo, no entanto, um princípio
primordial de não mudança. Era assim caracterizado o pensamento das ciências físicas até
ao séc. XIX, altura em que se chocaram as ciências físicas e as biológicas. Nas ciências
físicas, encarava-se a conservação de energia como uma fonte de ordem, ao mesmo tempo
que a irreversibilidade e a dissipação não eram mais que degradação. Nas ciências
biológicas, por seu lado, o consumo ou a dissipação de energia estavam ligadas à evolução
e à complexidade (Magalhães 2005).
Com Prigogine, que iniciou os seus estudos no campo da termodinâmica, os sistemas
dissipativos, também chamados sistemas ³longe-do-equilibrio´, são entendidos como
aqueles sistemas em que a dissipação de energia, na transferência de calor ou na fricção,
não faz supor perda ou degradação, mas sim a manutenção da estrutura e, frequentemente,
a emergência de uma nova ordem ou de novos padrões de comportamento. Em geral, para
um sistema dissipativo se manter em funcionamento requer-se a infusão constante de
energia. Em termos técnicos, energia corresponde a informação, a organização. Esta noção
foi desenvolvida pela teoria do caos, área na qual se defende que a ordem e a organização
podem acontecer espontaneamente, a partir da desordem (caos) e através de processos de
auto-organização. E assim, segundo estes princípios, na actualidade, o pensamento
científico vê muitos sistemas físicos como próximos dos biológicos, uma vez que os
primeiros são igualmente sistemas dissipativos. Aqui chegados estamos em condições de
45
entender Morin quando fala em conjunção complexa (incluindo aqui as noções de
distinção, de conjunção e de implicação) por oposição à disjunção e redução.
³Vuntai a causa e o efeito, e o efeito voltará sobre a causa, por retroacção, o produto
será também produtor. Ides distinguir essas noções e ides juntá-las ao mesmo tempo.
Ides juntar o Uno e o Múltiplo, ides unir, mas o Uno não se dissolverá no Múltiplo e o
Múltiplo fará apesar de tudo parte do Uno´ (Morin 2003: 112).
Não se pense, contudo, que iremos encontrar nesta corrente as respostas finais de tudo o
que procuramos até porque a incerteza é parte integrante da essência da complexidade.
Como escreve Moreno ³por primera vez en la historia del Occidente, se pueden pensar, por
ejemplo, el devenir y la incertidumbre, en términos reconocidos como científicos´
(Moreno in Velilla 2002: 13). Daí que Morin (2003) nos alerte para o facto de que não
poderemos confundir complexidade com completude porque não é essa, de facto, a
ambição do pensamento complexo. O que se pretende é a articulação entre os vários
campos do saber, facto que não acontece no pensamento disjuntivo, uma vez que este isola
e separa o que está ligado e interage. É aqui que nos damos conta do pensamento complexo
enquanto pensamento multidimensional, sendo, pois, razoável aceitar que a completude do
conhecimento será impossível de alcançar. De resto, Morin defende que uma das bases da
complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma omnisciência (Morin 2003).
No fundo podemos afirmar que Morin não só não defende a completude como vai mais
longe ao defender a própria ideia de incompletude. Incompletude no mundo que se estende
para lá do cosmos e incompletude do homem e do seu inalienável direito de sonhar para e
por um futuro que, enquanto e sempre incerto, está a todo o momento aberto a novas
possibilidades:
³[A] complexidade não compreende apenas quantidades de unidades e interacções que
desafiam as nossas probabilidades de cálculo; compreende também incertezas,
indeterminações, fenómenos aleatórios. A complexidade num sentido tem sempre
contacto com o acaso. Assim, a complexidade coincide com uma parte de incerteza,
quer mantendo-se nos limites do nosso entendimento quer inscrita nos fenómenos.
Mas a complexidade não se reduz à incerteza, é a incerteza no seio dos fenómenos
ricamente organizados´ (Morin 2003: 52).
Nesta linha importa citar Prigogine que, no seu discurso de abertura no colóquio ³Haverá
um século XXI?´, promovido pela UNESCO, em Paris, em 1988, a propósito das leis
46
deterministas fundadas nas ³leis da natureza´ que caracterizaram a ciência ocidental, se
recusou a aceitar o homem como um autómato em relação ao seu próprio futuro. Na defesa
da sua tese cita um exemplo dado por Karl Popper (1902-1994) quando este pergunta se o
papel da humanidade equivale a uma ida ao cinema onde desconhecemos a vítima e
desconhecemos o assassino mas o realizador do filme sabe bem quem é um e quem é
outro, simplesmente porque já tudo está feito, tudo está determinado embora o espectador
não saiba o que foi previamente determinado. Daí a interrogação de Prigogine sobre se o
nosso papel será simplesmente o de espectadores passivos perante um mundo submetido e
subjugado às leis deterministas. Prigogine acredita que não é assim, ao mesmo tempo que
defende que o problema do determinismo não se relaciona apenas com a ciência mas
também com a forma como ela situa o homem na natureza.
É nesta negação do automatismo humano que Prigogine introduz o termobifurcação para
dar liberdade ao nosso futuro através das nossas opções. Temos a capacidade de escolher
livremente entre vias de acção distintas, porque o mundo está organizado em estruturas que
se reproduzem em pontos de bifurcação.
³É aí que a antiga estrutura se torna instável e que as novas estruturas nascem. É o
nascimento do complexo. («) Com efeito, as bifurcações mostram que a natureza é
imprevisível porque, no ponto da bifurcação, apresentam-se em geral diversas
possibilidades. É então um problema de probabilidade o de determinar qual das
possibilidades se vai realizar. É o fim das certezas e o aparecimento da pluralidade dos
futuros´ (Prigogine in Spire 1999: 169-70).
Nas conclusões do seu discurso na UNESCO, Prigogine é claro no caminho que pretende
seguir:
³Vamos de um mundo de certezas para um mundo de probabilidades. Temos de
encontrar a via estreita entre um determinismo alienante e um universo que seria
regido pelo acaso e desde logo inacessível à nossa razão. Chegamos a um conceito
diferente de realidade. A realidade associada à mecânica clássica era comparada a um
autómato. A mecânica quântica não veio melhorar a situação porque, na mecânica
quântica ortodoxa, a realidade depende das nossas medidas («). [C]hegamos à
concepção de um mundo em construção. Esta concepção rompe com a hierarquia
tradicional das ciências. As ciências duras falavam de certezas. Esse era muito
frequentemente o modelo, o fim supremo das ciências humanas. As ciências humanas
47
como a economia ou a sociologia podem agora reportar-se a outro modelo´
(Prigogine in Spire 1999: 173).
Prigogine conclui, então, que o pensamento complexo não é o contrário do simplificador.
Ele opera a união entre simplicidade e complexidade porque considera que a natureza é
bastante mais rica, inesperada e até complexa do que a imaginávamos antes. Logo propõe
uma nova noção de racionalidade onde a razão já não será mais apenas a certeza e onde a
probabilidade não terá mais um vínculo efectivo com a ignorância. Então o papel criativo
da natureza e por consequência do homem no mundo que o rodeia terá, enfim, um papel
efectivo.
Também Morin defende a coabitação entre os dois paradigmas ± o da complexidade e o da
simplicidade. Um não anula o outro e, por definição, não será nunca o complexo a anular o
simplificador porque na sua essência, como mostrámos acima, está a coexistência, a
correlação e a interactividade. Logo, as lacunas tendem a ser preenchidas quer por um tipo
de conhecimento quer pelo outro, num processo de jogos sistémicos múltiplos, fecundos e
sempre em movimento no sentido da readaptação. Ao colocar a tónica sobre as
emergências, as interferências, como fenómenos constitutivos do objecto, o pensamento
complexo não aceita apenas uma rede informal de relações porque o que ele reconhece são
as realidades, não feitas apenas de uma só substância, mas sim compósitas e com
autonomia, embora limitada (Morin 2003). O sistema terá assim de ser aberto para a
incerteza e para a transponibilidade. O pensamento complexo não ignora nem anula a
importância e o contributo do paradigma simplificador na história moderna do pensamento
científico. Ele apenas reconhece as suas lacunas, limitações e impossibilidades,
nomeadamente, quando separa e descontextualiza. Daí que Morin fale em unidade da
ciência para afirmar que ela só fará sentido quando formos capazes de apreender
simultaneamente unidade e diversidade, continuidade e ruptura (Morin 2003)± árvore-
efloresta,
diríamos nós. Esta unidade, no fundo, mais uma vez se encontra na noção ³o todo
que está na parte que está no todo´. Nesta investigação esta é a posição de fundo, a da
complementaridade dos dois tipos de pensamento; uma complementaridade concebida e
entendida sob a perspectiva da complexidade.
48
(-c0.@!%%
Da exposição sobre a perspectiva da complexidade resulta que muito está por fazer nesta
área. Trata-se de uma perspectiva epistemológica contrária à do reducionismo positivista,
que pressupõe o conhecimento do todo como algo resultante do conhecimento separado
das partes. Na complexidade, o todo, a globalidade, vem primeiro. Como Morin refere, a
complexidade, quer como perspectiva, pensamento, ou paradigma, está ainda a dar os
primeiros passos, e a investigação terá de ir mais além para que se consigam resultados
crescentemente práticos. Esta investigação respeita também a este último aspecto. Não só a
perspectiva da complexidade, sustentamos nós, é determinante para se descrever com rigor
o quê e o porquê do trabalho de Vosé Mourinho, como o trabalho do técnico português do
Chelsea FC traduz a operacionalização numa actividade humana concreta desta mesma
perspectiva.
Relembremos as palavras de Morin (2003: 112): ³o paradigma da complexidade surgirá do
conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões
que vão conciliar-se e juntar-se´. Neste quadro, numa investigação como a que aqui
apresentamos, confrontamo-nos com a necessidade de trazer o pensamento complexo, a
perspectiva da complexidade, para o domínio da acção humana, da acção individual e
colectiva dos homens. Não se trata de uma questão nova. São vários os investigadores nas
ciências sociais e humanas, e em número crescente, que têm utilizado a perspectiva da
complexidade, nomeadamente algumas das suas ideias centrais como o conhecimento do
fenómeno pela sua globalidade, ³o todo que vem primeiro´, a incerteza e a
interdependência, a fluidez e a mudança, a emergência, o feedback e o feedforward. Neste
tipo de trabalho, os investigadores das ciências sociais e humanas geralmente não se
baseiam apenas nas ideias, conceitos e princípios da perspectiva da complexidade. Antes
pelo contrário, a transposição daquela perspectiva para o domínio da actividade humana
concreta é feita com auxílio importante de teorias sociais e filosóficas. Ralph Stacey e a
sua escola de investigação (e.g., Stacey 1999, 2003; Stacey et al 2000; Shaw 2002), por
exemplo, que estudam o fenómeno da estratégia sob a perspectiva da complexidade, têm
vindo a recorrer crescentemente a autores como Immanuel Kant (1724-1804), Edmund
Husserl (1848-1938) e George Herbert Mead (1863-1931).
49
A obra de Martin Heidegger (1889-1976) (1962) Sein und Zeit, escrita em 1927, por
exemplo e para citar um outro filósofo de influência crescente nas ciências socais e
humanas, é referida, entre outros, por Sérgio (e.g., 1984, 2003, 2005), Tsoukas (2005),
Introna e Ilharco (2004), Merali (2004), Introna (1997), Spinosa, Flores e Dreyfus (1997),
Winograd e Flores (1986), Dreyfus e Dreyfus (1986), Dreyfus (1982). Refere Merali:
³To assimilate and accommodate the phenomenology of chaos, emergence, and
complex adaptive systems, we need to identify a philosophical position («).
Heidegger¶s Being and |ime (Heidegger 1962) offers us a number of enabling
concepts for this endeavour. His Dasein (being-t ere or being-in-t e-world) gives us
the articulation of individual and collective being and is relationship with past, present
and future time. Dasein is the wholeness of being that includes the context and
assimilates objects of the world into itself´ (Merali 2004: 434-5).
Partilhando muitos dos pressupostos de fundo da perspectiva da complexidade, a obra de
Heidegger (1962) oferece-nos uma descrição detalhada do ser humano ± do modo de ser
humano ± a qual nos permite constituir uma base, uma ontologia, do que poderíamos
descrever como a complexidade do humano. De alguma forma, no que ao ser humano
respeita, o texto de Heidegger (1962) pode ser considerado como uma semente da
complexidade. Em Ser e |empo, Heidegger constitui o ser individual e colectivo que
somos no contexto da temporalidade; de uma temporalidade centrada, essencialmente
assente, não no presente ou no passado mas no futuro. O homem, Dasein segundo a
terminologia heideggeriana, existe no mundo não como uma coisa que está porque está,
mas envolvido no mundo ± fazendo parte dele e com ele. Dasein é o ser-aí (tradução
literal), imerso e envolto no mundo, interessado, já com um passado e sempre projectado e
projectando para o futuro e o seu futuro. O ser humano é sempre-e-já-no-mundo um todo; é
este todo que vem sempre primeiro. É no âmbito do todo que somos que experimentamos e
conhecemos o que nos rodeia, as pessoas, os objectos, as ideias, etc.
Sob esta perspectiva, e utilizando a argumentação de Manuel Sérgio (1984, 2003, 2005),
questionamos: que lugar ocupa o nosso corpo nas nossas vidas? Não parece abusivo
afirmar que, conforme ao dualismo antropológico cartesiano, o corpo é físico apenas. Com
o ³cogito, ergo sum´ separou-se, como foi dito, corpo e mente, atribuindo-se assim ao
corpo a dimensão de ³coisa´, ficando desta forma marcada de forma indelével a relação do
homem com o seu corpo. Na mente residiria a essência da natureza humana; no corpo
50
residiria a instrumentalidade mensurável daquilo que somos na aparência. Por isso, no
nosso dia a dia, o exercício que fazemos é sermos autênticos no sentido de não
mascararmos as nossas mentes. Elas são o que são e a civilização ocidental sempre
valorizou essa superioridade da mente ± porque ela traduz a essência do nosso ser ± e
mesmo quando não estamos, premeditadamente, a sê-lo existe uma construção de
aparência dessa mesma autenticidade. Ao invés, com o corpo, a atitude é oposta. Aqui, a
autenticidade é relegada para um plano tal que, cada vez mais, o próprio corpo como coisa
é entendido como um objecto ornamental que se transforma, embeleza, molda e constrói. É
assim quando vestimos esta ou aquela roupa, quando usamos este ou aquele ornamento,
este ou aquele batom, brinco, anel ou piercing. Hoje também é assim quando fazemos uma
lipoaspiração, quando aumentamos ou diminuímos os seios ou os lábios, quando fazemos
uma cura de emagrecimento, etc. E mesmo quando recorremos a todos estes artefactos, de
reconstrução artificial do corpo, aqui incluindo a cura de emagrecimento, com a
justificação da chamada ³vida saudável´, não mais estamos a fazer que subordinar o corpo
à mente e a celebrar o velho adágio romano ³corpo são, em mente sã´. Logo o que
interessa é a saúde da mente e o corpo é apenas um dos seus instrumentos. Neste quadro, a
perspectiva reducionista, que fragmenta os fenómenos nas suas partes constitutivas para
dessa forma os investigar e posteriormente juntar para compreender o todo, mantém a
separação funda entre corpo e mente. Não foi por acaso que a educação física nasceu em
plena época do racionalismo em que se considerava, portanto, que o corpo não passava de
instrumento da mente.
Segundo alguns autores a expressão educação física surge pela primeira vez em Vohn
Locke (1632-1704), no seu livro Pensamento Sobre a Educação. É sob a perspectiva
cartesiana que nasceram as escolas de educação física. A própria terminologia já diz bem o
que está em causa, ou seja, a educação física como educação do físico, por isso separada da
educação da mente. Uma e outra são tratadas em departamentos diferentes e semrelação
ou interacção. Sintomáticas desta perspectiva são igualmente as definições quer na ciência
quer na lei. Na Proposta de Lei de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia
Nacional para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física), é definido, no
seu texto, o corpo como sendo ³o digno instrumento de uma vontade esclarecida´.
Vinte e um anos depois continuava ainda, embora sob outro prisma, a consagrar-se a
Proposta de Lei de 1939. Porque o corpo era encarado pelos teóricos como instrumento ao
51
serviço da mente, facilmente se entende o papel atribuído ao preparador físico, àquele que
está incumbido da educação física, como está descrito na página 19 doManual sobre
Cursos de Preparação Pedagógica e |écnica para |reinadores Desportivos, publicado em
1960, pelo Conselho Provincial de Educação Física (Província de Angola) onde se pode
ler:
³O professor de educação física, quando não seja treinador, deverá limitar-se à
preparação física da equipa e dos seus jogadores ou atletas e colaborar com o médico
na verificação dos resultados do ponto de vista funcional, de aprendizagem e de treino.
E, neste particular, cabe-lhe missão de esclarecimento, que não de interferência, junto
do treinador respectivo.´
Ora, é neste contexto que nos aparece, na década de 70, a primeira voz em Portugal,
Manuel Sérgio, que ao contrariar a visão cartesiana do ser humano, inicia a aplicação de
teorias da complexidade ao homem questionando a tradicional educação física. Seguindo
numa linha de pensamento e de investigação humanista, com referências importantes a
Merleau-Ponty e a Heidegger, Manuel Sérgio propõe uma nova epistemologia da educação
física e do desporto em geral. Renegando a educação física enquanto produto do
racionalismo (decorrente do corpo cartesiano, entendido como mera res extensa ou, por
outras palavras, como simples máquina sujeita às leis da natureza), Manuel Sérgio olha o
ser humano como um todo complexo, inseparável e indivisível, logo, ser corpo é ser
humano.
³[É] evidente que o corpo humano não é só o que a fisiologia descreve, nem o que a
anatomia desenha, nem o que a biologia, em suma, refere. Porque o corpo é a
materialização da complexidade humana. Razão tem Edgar Morin ao escrever: o ser
humano não é físico pelo seu corpo» (O Método 1. A Natureza da Natureza). De facto
ninguém tem um corpo. Há uma distância iniludível entre mim e um objecto que
possuo: posso deitá-lo fora sem deixar de ser quem sou. Com o meu corpo não sucede
o mesmo: sem ele eu deixo de ser quem sou. Por isso o meu corpo não é físico, no
sentido cartesiano do termo, não é Korper, mas o fundamento de toda a minha
existência, da minha própria subjectividade, o Leib´ (Sérgio 2003:182).
Um tal pensamento propõe-nos um corte epistemológico profundo: um rompimento, a um
tempo, com o positivismo e com uma tradição que atribuía, cartesianamente, o lugar
primacial no desporto à preparação física desligada da inteligência estratégia e táctica, bem
52
como da consideração do estado emocional e motivacional do indivíduo. Manuel Sérgio
propõe então a passagem da educação física (apenas corpo) à motricidade umana (o
homem enquanto todo complexo). A motricidade é considerada como algo que excede o
movimento biomecânico e animal, sendo expressão e produção da experiência e do
conhecimento da comunidade e do indivíduo.
Introduzindo a linguagem técnica de Heidegger (1962), consideremos um jogador de
futebol com uma bola. Como objecto, enquanto alguém lhe pega, vê e a analisa para, por
exemplo, decidir se é com essa bola que se vai jogar, a bola está à-vista (Heidegger 1962).
Quando o jogador joga focado no passe, concentrado no golo que quer marcar, a bola (e
passe a ironia...) está à-mão (Heidegger 1962). No entanto em qualquer destes modos de
ser, a bola não pode relacionar-se com o seu próprio modo de ser no sentido de se
questionar ou interpretar como o que é ou vai ser no mundo. Ao invés, o jogador de futebol
não é meramente um ³jogador de futebol´. Se lhe perguntarmos, justamente, quem é,
muito provavelmente responder-nos-à que é português, nascido em Lisboa, pai de um
filho, casado, etc. Ora, são estas dimensões que enquadram o seu passado e que lhe abrem
possibilidades e o projectam para o futuro. Ele encontra-se a si próprio enquanto pai,
marido, profissional, português e ao interpretar-se a si próprio projecta-se a si mesmo. Ele
é sempre-e-em-qualquer-momento, segundo a linguagem e entendimento heideggeriano,
essa mesma projecção. O que projectamos para nós próprios, o que esperamos, desejamos,
queremos ou aspiramos vir a ser no futuro, é fundamentalmente o que hoje contextualiza as
minhas acções e mesmo o próprio entendimento do passado, o qual está longe de ser
sempre o mesmo. A questão é pois ontológica, relacional, de forma e de conteúdo.
Heidegger (1962) aponta aquelas duas maneiras básicas do homem se relacionar, de se
envolver, com e no mundo, entendendo este como o todo significante, por oposição ao
entendimento Cartesiano do mundo como a totalidade dos entes. No modo à-mão as coisas,
os objectos, as ideias, etc., que utilizamos como que se constituem numa extensão de nós
próprios, para atingirmos este ou aquele objectivo. Quando o jogador remata, ele está
concentrado em fazer o golo e nesse momento, a bola, as suas chuteiras, a baliza, tudo o
que com ele se relaciona de uma forma não obstrutiva, está à-mão. A contrario, por
exemplo, se a bola se revela furada ou se a chuteira se rompe, esses objectos tornam-se
obstrutivos para a acção do jogador; ele interrompe a sua acção, analisa-os, pondera como
os arranjar ± então, eles estão à-vista. A ciência da motricidade humana, e voltando a
53
Manuel Sérgio, promove então a compreensão e a explicação do movimento intencional
que surge em acções, nos modos à-mão e à-vista, mas sobretudo no primeiro:
³Não há educação de físicos, mecanicamente considerados, nem processos de
colonização de técnicos ou professores autoritários, porque o educando, ou o atleta, ou
o bailarino, ou o paciente, é um sujeito que só de modo inter, trans, multidisciplinar
poderá conhecer-se e que não pretende a superação de si, a partir de si, mas a
superação de si, ao apelo do Outro, ou de Deus´ (Sérgio 2005: 52.).
Encara-se a ciência da motricidade humana como sendo a ciência da abrangência do corpo:
o corpo-memória, o corpo-estrutura, o corpo-conduta, o corpo-razão, o corpo-emoção, o
corpo-cultura, o corpo-natural, o corpo-lúdico, o corpo-produtivo e o corpo com
necessidades especiais (Sérgio 1994). Daqui decorre que:
³[A] motricidade humana [se] funda no sujeito, no humano, no social, no cultural.
Problematizá-la significa equacionar, não um físico, mas o Homem em toda a sua
amplitude e profundidade. Reduzir ao físico a motricidade humana equivale a
perpetuar o positivismo´ (Sérgio 2005: 243-4).
Com esta argumentação Manuel Sérgio sintetiza a sua filosofia ao defender que passar da
educação física à motricidade humana equivale a passar do corpo-objecto ao corpo-sujeito
e assim se entende a sua definição de motricidade humana.
³A motricidade humana, como energia para o movimento intencional da
transcendência e do sentido, como consciência de um facto irredutível que é a
superação constante (superação física, biológica, antropossociológica), como conduta
motora ou acção, é uma ciência do homem, como afirmação de identidade, no quadro
geral das ciências´ (Sérgio 2005: 244).
Inverte-se assim o paradigma cartesiano, onde se cavou um fosso entre o ser e o pensar.
Assim, em Manuel Sérgio, na linha de Heidegger (1962), não é pensando que somos mas
sim é sendo que pensamos. Vá somos-no-mundo, já temos um passado, já estamos
interessados e a projectar o futuro. Tudo tem já significado para nós. Esse significado vem
da equiprimordialidade do ser e do mundo como constitutivos da nossa acção.
Desta forma, é num contexto relacional, com base nas expectativas que temos para o futuro
e na forma como entendemos hoje o passado que tivemos, que abrimos portas e
escolhemos caminhos para o que vamos viver (Polt 1999). Assim, Dasein, o ser-no-mundo
54
que somos, é aquilo que previamente já se experimentou no ser permanente e
estruturalmente projectado sobre o futuro. Por isso ser-no-mundo é acção, é o futuro
transformado em acção, passando por nós, em direcção ao ter sido que o passado é.
³[N]o-mundo estamos já e sempre em acção. A acção é por isso primária ao homem e
ao mundo. Ou dito de outra forma, é o mundo feito humano na linguagem, no
significado, na abertura do que pode ser, do que pode vir, das possibilidades que o
futuro pode trazer´ (Ilharco 2004: 144).
O homem é então o ser cuja essência se encontra no seu modo de ser, na sua existência.
Esta existência, conforme à perspectiva que seguimos e aos autores em que assenta esta
investigação, é algo de contínuo, de emergente, de espontâneo, de incerto, de incompleto,
de complexo. Neste contexto, tomando-nos como o ser-no-mundo heideggeriano, citando
Manuel Sérgio (2003), dado o corpo não mais poder ser considerado como matéria,
necessitamos então de uma consciência corporal, bem como do reconhecimento da sua
importância. Só pelo e com o meu corpo posso eu ser eu, em toda a minha dimensão e
complexidade humana, enquanto projecto global da própria humanidade.
A perspectiva da motricidade humana, conforme ao trabalho de Manuel Sérgio, sendo
antidualista e antimecanicista, preconiza na teorização e na prática do desportoa
necessidade de uma reforma não programática mas paradigmática, que tenha em conta as
noções de sistema, de organização e auto-organização e de complexidade, defendendo a
passagem do corpo-objecto ao corpo-sujeito. Para Manuel Sérgio o desporto fundamentase
no sujeito, no humano, no social e no cultural. Problematizá-lo significa equacionar não
um físico mas o Homem em toda a sua amplitude e profundidade; reduzir o desporto ao
físico equivale a perpetuar o positivismo. ³O Homem é um apelo à transcendência e, como
tal, um ser práxico que na totalidade corpo-alma-natureza-sociedade e pela motricidade
procura transcender e transcender-se´ (Sérgio 1994: 26).
Assente nestes princípios, que entendem o desporto não como uma actividade física mas
como uma actividade humana, fundou-se em Portugal, na década de 1980, a Faculdade de
Motricidade Humana (FMH), que tomou então o lugar do extinto Instituto Superior de
Educação Física (ISEF), onde há cerca de vinte anos estudou Vosé Mourinho.
55
c  *
EMOÇÕES E INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
56
Ainda não há muito tempo, talvez não mais de duas décadas, que os líderes e gestores de
todo o mundo, decorrente de uma visão cartesiana e mecanicista, com a consequente
divisão, separação e descontextualização do objecto de estudo, entendiam que o processo
decisório se consubstanciava apenas com base num elemento: a razão. Alargando este
conceito à temática da liderança podemos imaginar com relativa facilidade a ideia de líder
± e de liderança ± que lhe está subjacente. Trata-se do homem directo, frontal, que decide a
frio, com rigor, sem dúvidas e sem emoções. Pretendia-se, desta forma, transmitir, antes de
mais, a segurança do líder. Segurança nas suas competências e segurança nas suas
decisões. O líder, distanciado, como que fora do mundo das incertezas, da ambiguidade e
das emoções, estava no mais alto patamar da organização, aliás onde Frederick Taylor
(1856-1915), o autor que pela primeira vez propôs uma abordagem cientifica à gestão das
organizações, o havia colocado, e dessa forma exercia a sua autoridade de uma maneira
distante e segura. Ser emocional, ou mostrar sentimentos era sinónimo de fraqueza, o que
então não era admitido, tal como ainda tende a não o ser hoje.
Na sequência da discussão sobre os fundamentos e essência da liderança ± assunto que só
começou a ser debatido com alguma profundidade depois da Segunda Guerra Mundial±
surgem autores a questionar o quociente de inteligência (QI) dos líderes como factor
fundamental da boa liderança. Porém, só em finais do séc. XX nasce o conceito de
inteligência emocional, o qual encontra em Daniel Goleman o seu mais destacado
defensor. Goleman, que tem desenvolvido a sua investigação sobre liderança no
Consortion for Research of Emotional Inteligence in Organizations, na Rutgers University,
nos Estados Unidos da América, dedica-se ao tema e num curto espaço de tempo vê a sua
obra ter aceitação e ser divulgada por todo o mundo, em especial depois de em 1996 ter
publicado o best-seller Inteligência Emocional. As teorias de Goleman servem, pois, ao
nosso propósito de introduzir nesta investigação a base teórica da inteligência emocional
na liderança.
³Os parâmetros do mercado estão a mudar. Estamos a ser avaliados por novos
critérios. Vá não importa apenas o quanto somos inteligentes, nem a nossa formação ou
o nosso grau de especialização, mas também a forma como lidamos connosco e com
os outros´ (Bilhim 2004: 244).
E porque é que, afinal, tudo está a mudar? Afirmamos que, desde logo, estamos perante um
novo olhar sobre o homem, fundamentado nas novas teorias da complexidade. Vá não
57
separamos o que não está separado, nem dividimos o que nos surge sempre primeiro como
um todo. As partes são vistas no contexto do todo e o todo não pode ser visto sem a
interligação e interacção das partes. Como podemos, então, subtrair ao pensamento
humano, e ao pensamento humano transformado em acção, as emoções que nos
acompanham durante toda a nossa existência?
*   %& !
O neurocientista português António Damásio ± radicado nos Estados Unidos há mais de 30
anos e actualmente professor e director do Departamento de Neurologia da Universidade
de Iowa ± definiu a emoção da seguinte forma: ³No seu mais essencial, as emoções servem
para reagir de uma forma automática a uma série de ameaças ou oportunidades que se
põem a um organismo vivo´ (Damásio in Marques 2004:68). Se as emoções nos fazem
reagir de forma automática presume-se que essa reacção não depende de nós enquanto
opção única da razão, logo, será legitimo afirmar que estamos condenados a trabalhar com
elas em todos os processos activos das nossas vidas. Tal como não conseguimos não
pensar, não conseguimos, igualmente, pensar sem emoções, a não ser que, biologicamente
disso sejamos impedidos. Mas se isso acontecesse continuaríamos a ser nós próprios?
Continuaríamos a olhar o mundo da mesma maneira? Continuariam a ser os nossos actos, à
luz da nossa história, minimamente previsíveis?
Partindo da constatação científica de que o nosso sistema emocional está localizado e
perfeitamente definido numa parte do nosso cérebro, Damásio (2005), conta-nos uma
história, baseada na sua investigação, que nos sugere respostas para as perguntas acima
formuladas. Elliot11, um cidadão norte-americano na casa dos trinta anos, vivia uma vida
de sucesso. Marido e pai estimado, profissional reconhecido levava uma vida tranquila de
homem bem sucedido, quer profissional quer socialmente, até ao dia em que lhe foi
diagnosticado um tumor cerebral. Não era maligno e a sua extracção seria a solução para o
problema, ainda para mais porque uma vez removido era convicção cientifica de que não
voltaria a crescer. A operação foi um sucesso aparente e as perspectivas eram excelentes. O
tumor foi retirado, bem como o tecido do lobo frontal que tinha sido danificado. Segundo
nos descreve Damásio (2005), muitos e novos problemas, no entanto, ainda estavam para
11 Nome fictício atribuído por Damásio, por se tratar de um personagem real ao abrigo do sigilo médico.
58
começar. Durante a recuperação, família e amigos começaram a notar diferenças sensíveis
no comportamento de Elliot. Em contraposição ao homem activo, estável e equilibrado, um
novo Elliot revelava-se agora. Necessitava de incentivos para ir trabalhar, raramente ou a
muito custo terminava uma tarefa e a instabilidade começou a fazer parte da sua vida a tal
ponto que Elliot se tornou incapaz de tomar decisões. Esta sua nova personalidade depressa
o levou a dois divórcios e a vários despedimentos nos múltiplos empregos que obteve nos
tempos seguintes. Claramente ³Elliot já não era Elliot´ (Damásio 2005:56) e a sua vida
tornou-se um caos. Não obstante todos os traços da sua personalidade serem agora
diferentes, Elliot mantinha intactas todas as suas capacidades mentais e físicas. O seu
raciocínio não foi perturbado, o seu QI mantinha-se acima da média, como foi confirmado
pela realização de testes, e Elliot tinha também todos os seus sentidos inalterados. Assim,
em certa medida, Elliot ainda era Elliot. Mantinha-se o mesmo quanto às suas capacidades
neurológicas mas revelava-se outro quanto à operacionalização dessas mesmas
capacidades.
³Os seus problemas não eram resultado de doença orgânica» ou de disfunção
neurológica» ± por outras palavras doença cerebral ± mas sim o reflexo de problemas
de ajustamento emocional» e psicológico»´ (Damásio 2005: 59- 60).
Elliot era, desta forma, um homem com um intelecto perfeitamente normal que se traía a si
próprio pela incapacidade de tomar decisões em especial quando elas se revestiam de
natureza pessoal ou social. Enquanto paciente de Damásio, Elliot realizou todo o tipo de
testes até que o médico começou a desviar a sua atenção para uma questão até aí quase
ignorada: as emoções. E Damásio (2005) pôde comprovar, depois de mais uma das
inúmeras sessões com Elliot, que o caminho para a descoberta do que se estava a passar
poderia muito bem ser esse. Entendeu mostrar ao paciente imagens de catástrofes, como
casas a arder, edifícios a ruir em terramotos, pessoas feridas, etc., com o objectivo de tentar
perceber de que forma ele reagia a estímulos emocionalmente fortes e desconcertantes.
³[E]le disse-me, sem qualquer equívoco que os seus sentimentos se tinham alterado
desde a sua doença. Conseguia aperceber-se de que os tópicos que anteriormente lhe
suscitavam emoções fortes já não lhe provocavam qualquer reacção, positiva ou
negativa´ (Damásio 2005: 64, 65).
E foi neste ponto que se começou a fazer luz na investigação de Damásio. Imaginemos o
mais fanático fã de Vosé Mourinho que de repente se dava conta, ao ver um jogo de futebol
59
do Chelsea, que esse mesmo jogo já nada lhe dizia. Imagine-se um golo, na final da Liga
dos Campeões, e a reacção emocional do fã ser igual à de beber um copo de água. Ou
então, imagine-se ainda alguém a contemplar uma magnífica paisagem e a experimentar
um sentimento como se da visão mais trivial se tratasse. Em ambos os casos, recorde-se, as
pessoas já tinham experimentado sentimentos fortes e arrebatadores em situações
semelhantes, pelo que agora se apercebiam perfeitamente do que estava errado, ou seja, já
tinham sentido emoções em situações similares e agora estavam perfeitamente conscientes
de que já nada sentiam. Os exemplos poderiam ser muitos, mas estes são suficientes para
se perceber o estado de Elliot: saber mas não sentir (Damásio 2005). Dito por outras
palavras, Elliot estava consciente de tudo no mundo que girava à sua roda, tinha noção do
bem e do mal, do certo e do errado, do branco e do preto, mas não conseguia dar-lhes
funcionalidade, sublinhe-se, na vida real, porque privado de emoções era-lhe igual seguir
por um caminho ou por outro, logo não conseguia tomar decisões, não era capaz de optar.
Damásio escreve que começou ³a pensar que a frieza do raciocínio de Elliot o impedia de
atribuir diferentes valores» às diferentes opções, tornando a sua paisagem de tomada de
decisões desesperadamente plana´ (Damásio 2005: 70).
Depois de Elliot e até 1993, Damásio estudou mais 12 casos similares de lesões préfrontais.
Em todos eles o cientista observou ligações entre a perda de emoções e a
deficiência na tomada de decisão. As razões desta associação são explicadas por Damásio
nas suas obras O Erro de Descartes (1995), O Sentimento de Si (2000) e Ao Encontro de
Espinosa (2003). Interessa-nos, com este exemplo, ilustrar a associação, ou ligação, entre
emoções e comportamento, estabelecendo com certeza que aquelas estão intimamente
ligadas a este, de tal forma que a construção comportamental não mais será a mesma ± ou
perderá mesmo a sua funcionalidade ± se condicionada seriamente pelas emoções, quer
pela sua ausência, quer por uma overdose.
Todos sabemos que o excesso de emoções nos traz alterações comportamentais, basta
lembrarmo-nos de algumas das nossas atitudes quando experimentamos elevados níveis de
ansiedade ou nervosismo. O que ainda não sabíamos ± e ficou provado, nomeadamente
com os trabalhos de Damásio (1995, 2000, 2003) ± é que a sua ausência pode ser
igualmente dramática.
60
Assim, quando pensamos que temos de tomar uma decisão com a ³cabeça fria´, isto é, sem
qualquer tipo de influência emocional, estamos a laborar num erro porque as emoções
estão lá sempre, connosco, muitas vezes imperceptíveis, mas estão lá e sempre a participar
no processo decisório. No-mundo, envolvidos porque o que nos rodeia interessa-nos e
preocupa-nos, somos já-e-sempre o que somos emocionalmente, num certo tipo de
disposição (Heidegger 1962). Daí que se coloquem algumas questões: sendo as emoções
parte integrante da nossa vida, se a sua ausência ou o seu excesso nos provocam alterações,
se estamos condenados a viver com elas e a ser, até, felizes ou infelizes com elas, será
racional da nossa parte deixá-las simplesmente evoluir e mudar, actuando sem qualquer
tipo de controlo ou de influência sobre elas? Será razoável não olhar para as emoções e não
perguntar como e de que forma nos poderão elas ser mais úteis? Não será melhor
conhecêlas
para a sua utilização na justa medida em que elas poderão e/ou deverão ser usadas? E
constituindo as emoções um factor fundamental do nosso carácter, logo do nosso
comportamento, não será pertinente um conhecimento mais aprofundado e efectivo sobre
elas? A teoria da inteligência emocional diz-nos que sim. Mais: não só nos diz que sim,
como também nos aponta caminhos, ou seja, dá-nos pistas para sermos inteligentes sobre
as nossas emoções, para que possamos beneficiar delas e evitar ao máximo os seus efeitos
nefastos face às ameaças e às oportunidades com que somos confrontados no nosso dia a
dia.
Para que servem então as emoções? Charles Darwin (1809-1882) na sua obra | e
Expression of Emotions on Man and Animal publicada em 1872 ± entretanto traduzida
para português (Darwin 2006) ±, explica como as emoções constituem um sistema
complexo mas eficaz de adaptação ao meio envolvente. Depois de nos queimarmos,
passamos a ter uma relação emocional com o fogo que nos protege de nos queimarmos
mais vezes. Um susto que nos provoca o automóvel que surge a alta velocidade quando
atravessamos a rua, faz com que das próximas vezes tenhamos mais cuidado e naquele
momento dá-nos a força e a rapidez que nos permite correr e ficar a salvo. A raiz
etimológica da palavra emoção é motere, verbo latino que significa mover». Vuntou-se-lhe
o prefixo e-», que significa µpara¶, µpara fora¶, indicando também a noção de atenção bem
como o enfatizar da restante expressão da palavra (Introna e Ilharco 2000) ± o mover, neste
caso. Emoção é, assim, atenção, mover para. O agir, ou acção, está, desta forma, implícito
nas emoções, como, de resto, já poderíamos ter concluído da definição apresentada por
61
Damásio (2005). Num plano mais fecundo ± do que aquele já por nós acima transcrito ±
Damásio conclui sobre aquilo que considera ser a emoção:
³[A] emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples ou
complexo, com respostas disposicionais a esse processo, na sua maioria dirigidas ao
corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também
dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral)
resultando em alterações mentais adicionais´ (Damásio 2005: 153).
Desta forma entendemos a emoção como uma resposta a um elemento exterior ou, por
outras palavras, como um estado de alma reactivo em que a razão não é chamada a
participar. Assim, se a reacção for transformada em acção acabamos por reagir por impulso
± ou se quisermos, se na acção não tivermos coordenados (no sentido de ponderados,
equilibrados) emoção e razão ±, o que poderá aumentar a probabilidade de erro na resposta
dada.
Também Goleman et al (1995: 310) definiram emoção como referindo-se a um
³sentimento e aos raciocínios daí derivados, estados psicológicos e biológicos, e o leque de
propensões para a acção´. Vulgamos que as diferenças entre esta noção e a noção de
Damásio (2005) dizem mais respeito ao objecto de estudo de cada um deles do que
propriamente a divergências estruturais. No fundo poderemos fazer uma aproximação entre
as duas definições de molde a poder trabalhá-las em conjunto e sem antagonismos nos
objectivos que pretendemos explorar. Concluímos, assim, que tanto Goleman et al como
Damásio falam em estados emocionais, decorrentes de elementos exteriores (sobretudo),
que predispõem para a acção e reacção.
Vá referimos o que são as emoções e também constatámos que elas estão sempre presentes
ao longo da nossa vida. Sabemos igualmente que elas poderão ser usadas por excesso e por
defeito e que, num caso ou noutro, o desequilíbrio pode levar à tomada de más decisões,
justamente, o que pretendemos evitar em cada acto consciente das nossas vidas. O que
ainda não sabemos é como e em que medida as podemos usar para a melhorar o nosso
comportamento.
Ao nível da liderança, a teoria da inteligência emocional afigura-se-nos apropriada para os
nossos objectivos. No primeiro capítulo referimos alguns traços de personalidade e
comportamentais geralmente apontados como importantes na acção de Vosé Mourinho,
62
como, por exemplo, o entusiasmo, o humor, a empatia, o envolvimento e o
comprometimento com aquilo que faz. Neste capítulo revemos a teoria da inteligência
emocional com o objectivo de entender melhor alguns desses traços, exercício que nos
ajudará a dar uma profundidade acrescida à análise e aplicação de teoria ao trabalho de
Vosé Mourinho, que será apresentada na parte final desta dissertação..
No livro de 1996, bem como no artigo de 1998 ³What Makes a Leader´, publicado na
arvard Business Review, Goleman et al (2005) e Goleman (1998) questionaram o
quociente de inteligência e as competências técnicas dos líderes como sendo as
características mais importantes da liderança. As suas investigações apontavam para que
não obstante a inteligência analítica e matemática ter o seu grau de importância, a
inteligência emocional pudesse ser a condição sine qua non para a boa liderança. Mas o
que é, então, a inteligência emocional? De uma forma simplista, poder-se-á dizer que
estamos a ser emocionalmente inteligentes quando conseguimos ser inteligentes sobre as
nossas emoções. Na inteligência emocional assume-se que podemos conscientemente lidar
com as nossas emoções e com as dos outros, dar-lhes sentido e aproveitá-las eficazmente,
não de uma forma isolada mas conjugadas com a razão. É a ausência desta conjugação±
porque privado de um dos elementos estruturantes, a emoção ± que tornou Elliot (que sabe
mas não sente) diferente da maioria dos seres humanos (que sabem e sentem). Por isso
Goleman et al (1995) propuseram-nos a teoria das duas mentes, segundo a qual temos,
justamente, duas mentes: uma que pensa (e que se ocupa do departamento da razão) e a
outra que sente (e que se ocupa do departamento da emoção). Trata-se, em rigor, de duas
maneiras diferentes de saber, de entender o nosso próprio modo de ser mas que estão
sempre presentes em nós, em interacção. Dessa forma, assentando o nosso modo de ser nas
duas mentes não conseguimos de uma forma premeditada não pensar e não e não ter
emoções. Estas duas mentes tendem a trabalhar em equilíbrio para nos guiar na nossa
acção. As duas mentes constituem-se num sistema aberto e, portanto, são sujeitas a
pressões exteriores. São as ameaças e as oportunidades do meio que as fazem tender para o
equilíbrio, podendo, contudo, experimentar situações de caos. Estas acontecem quando
existe um desequilíbrio, ou seja, quando uma das partes tende a superiorizar-se à outra.
Assim, quando a razão ignora a emoção ou quando a emoção toma conta da razão, a
balança desequilibra-se, uma mente toma conta da outra e ao fazê-lo o mais provável que
aconteça é o erro. A teoria das duas mentes ± que, perceba-se, actuam num sistema
63
complexo de pensamento, logo interligadas, interelacionadas e em interacção constante,
não sendo, portanto, possível separá-las ou descontextualizá-las sob pena de ³Elliot deixar
de ser Elliot´ ± pressupõe, portanto, o justo equilíbrio entre as duas, logo um estado estável
da pessoa humana. A partir daí é possível ³jogarmos´ com e nas nossas emoções para delas
tirarmos partido, podendo, então, sermos emocionalmente inteligentes.
É certo que a teoria da inteligência emocional se pode aplicar em qualquer acto ou
circunstância da nossa vida, contudo, o objecto deste trabalho centra-se na liderança e nos
processos de comunicação e de interacção em que ela se traduz.
*(!%%!%.
Recordo-me de em Março de 2005 me ter deslocado a Stamford Bridge, o estádio do
Chelsea, para assistir ao encontro da Liga dos Campeões entre a equipa de Vosé Mourinho
e os espanhóis do Sevilha. A meio da segunda parte já o Chelsea ganhava por 4-0,
colocando em delírio os adeptos ingleses que enchiam por completo o estádio. Subitamente
todos os espectadores, em uníssono, iniciaram um cântico com uma única frase: ³Stand up,
stand up for the special one´. Ao mesmo tempo todo o estádio se levantou e à medida que
cantavam faziam uma vénia em direcção a Vosé Mourinho que continuava sentado no
banco da equipa. Tal como Vosé Mourinho, mantive-me sentado, a olhar ao meu redor e a
contemplar o espectáculo proporcionado pelos adeptos do Chelsea. Contudo, não continuei
sentado muito tempo... de súbito, um deles olhou para mim, com ar algo zangado, e
enquanto entoava os cânticos dirigidos a Mourinho, fazia-me sinal com as duas mãos para
que, também eu, me levantasse e fizesse a devida vénia ao seu líder, o special one. Foi o
que fiz. Serve este exemplo para dizer que ³os grandes líderes nos emocionam. Acendem
as nossas paixões e inspiram o melhor que há em nós. («) [A] Grande Liderança baseia-se
nas emoções´ (Goleman et al 2005). O carisma e a empatia que os líderes geram nos seus
seguidores podem levá-los a superarem-se e a conseguirem resultados inesperados,
simplesmente porque as pessoas seguem o líder, confiam nele e acreditam que sob a sua
liderança os melhores resultados serão conseguidos. Relembremos a derrota do FC Porto,
em casa, com os gregos do Panathinaikos. No primeiro jogo, nas Antas, os gregos
venceram por 1-0 e a tristeza abateu-se sobre os portistas. No final do jogo, Mourinho
disse à sua massa associativa e aos seus jogadores que nada ainda tinha acabado. O jogo da
64
segunda mão, em Atenas, seria para ganhar. Os adeptos portistas acreditaram que assim
seria e quando encontravam Mourinho na rua cobravam-lhe a promessa: ³ Nós vamos lá
ganhar porque você prometeu´. Os jogadores também acreditaram na promessa do seu
líder e no segundo jogo venceram por 2-0 e seguiram em frente na eliminatória. Este
episódio ilustra a importância que assume a comunicação ± que leva à empatia e ao
carisma ± entre líder e seguidores. O impacto da mensagem sobre o estado de espírito das
pessoas é fundamental e, por isso, a consciência do papel das emoções nos seguidores±
porque não há líderes sem seguidores ± faz a diferença entre a liderança poderosa, que
transforma e escreve a história, e a liderança comum.
No desenvolvimento das suas ideias, Goleman, Richard Boyatzis e Annie McKee (2005)
apresentam-nos no seu último livro, Os Novos Líderes ± A inteligência emocional nas
organizações, um novo conceito: liderança primal. Defendem Goleman et al que o ³papel
emocional do líder é primal ± isto é, vem em primeiro lugar ± em dois sentidos. É o
primeiro acto de liderança e, ao mesmo tempo, é o mais importante´ (Goleman et al 2005:
25). Ou seja, uma das principais acções do líder passa por conduzir as emoções colectivas
dos seus seguidores de forma a conseguir resultados e efeitos superiores ao simples
desempenho positivo das tarefas. Este aspecto, como à frente se verá e desde já se pode
intuir, é chave na liderança de Vosé Mourinho. Também aqui o todo ± se bem conduzido ±
vale mais que a soma das partes. Os seguidores, para além da liderança simplesmente
técnica ± o líder é o que sabe mais ± procuram uma ³relação de apoio emocional´
(Goleman et al 2005) que se traduza em empatia. Por isso, seja em que patamar for, desta
ou daquela maneira, por este ou por aquele caminho, a liderança cruza-se com esta
dimensão primal, o papel emocional do líder enquanto primeiro e mais importante acto de
liderança. No entanto, para que tudo isto funcione o líder terá de apelar, ou socorrer-se, da
sua inteligência emocional, na forma como conhece, entende e gere as suas emoções e as
dos seus seguidores. Estamos a falar de um circuito ± ou sistema ± aberto por oposição aos
circuitos ± ou sistemas ± fechados. Nestes últimos não existe comunicação nem dinâmica
interactiva e tomemos como exemplo o sistema circulatório humano (Goleman et al 2005).
O que está a acontecer no meu sistema não afecta o do meu vizinho. De todo não é isto que
acontece no capítulo das emoções. Neste caso falamos em sistema aberto porque as
emoções interagem entre os diversos indivíduos. A minha alegria ou a minha tristeza
provoca ± ou pode provocar ± estados semelhantes ou alterações do estado emocional
65
àqueles que comigo lidam diariamente. O mesmo princípio se aplica ao líder e à liderança
na relação que mantém com os seus seguidores. Daí que devamos falar em contágio e,
neste quadro, podemos entender as criticas de que Mourinho foi alvo, por parte dos seus
seguidores, por não ter festejado com eles a vitória na Liga dos Campeões, quando a
comitiva chegou ao Porto e desfilou pelas ruas da cidade enquanto o seu líder se refugiava
em casa, longe dos festejos e das multidões (Lourenço 2004).12 Para o bem e para o mal,
todos olham para o líder, os holofotes estão sempre sobre ele e, dessa forma, o líder
contagia não apenas pelo que diz mas pelas emoções que provoca, as quais vão muito para
além das suas palavras. Num caso e noutro cabe ao líder retirar das pessoas, com quem
trabalha, o melhor que há nelas, para as tornar mais válidas, mais competentes e mais
felizes. Quando o consegue, Goleman et al (2005) dizem que o líder cria ressonância,
quando acontece o contrário o líder cria dissonância. O que se pretende da parte da
liderança é pois criar ressonância. Daí que, no circuito aberto em que as emoções se
constituem, os investigadores que estamos a citar confiram uma importância muito especial
ao riso. A alegria é um sentimento de contágio fácil, enquanto que a irritabilidade é menos
contagiosa e a depressão quase não nos toca. O sorriso é, pois, o mais contagiante de todos
os sinais emocionais (Goleman et al 2005). É fácil, no nosso dia a dia, arrancar um sorriso
a alguém, mesmo que desconhecido, basta que façamos um sorriso e normalmente somos
retribuídos.
³É possível que o sorriso seja muito potente devido ao seu papel na evolução: segundo
especulações dos cientistas o riso e o sorriso evoluíram como formas não verbais de
cimentar alianças, indicando que a pessoa está descontraída e é amistosa, em vez de
estar na defensiva ou numa posição hostil. («) Em sentido neurológico, o riso é a
distância mais curta entre duas pessoas, porque liga instantaneamente os seus sistemas
límbicos´ (Goleman et al 2005: 30).
Desta forma se entende que a transmissão dos estados emocionais de um líder esteja
relacionada com a sua expressividade facial, com a sua voz e com os seus gestos. De todas
estas maneiras se transmitem sentimentos que podem ± ou não ± criar ressonância. Assim
se entende a ressonância que Mourinho criou nos adeptos do Chelsea que cantando em
coro se levantaram e fizeram a vénia ao Special One; assim se compreende a ressonância
12 Nessa altura, num episódio rocambolesco mas real, Vosé Mourinho esteve ameaçado, tal como a imprensa
referiu na altura e Lourenço (2004) relata.
66
que Mourinho criou, com um simples gesto, entre a massa associativa do FC Porto no final
do encontro com o Panathinaikos (capítulo 1). E o mesmo se poderá dizer de Luis Filipe
Scolari, seleccionador nacional, quando pediu ao povo português que colocasse bandeiras
nacionais nas janelas durante a realização do Euro 2004, em Portugal. A sua mensagem
passou de tal forma que uniu todo o país ± mesmo aqueles que não gostavam de futebol ±
em torno de um grupo de 23 elementos. Nestes casos houve liderança com ressonância.
**A! % .!5B'!%'!%.
De que forma, então, um líder consegue chegar a este estado de graça entre os seus
seguidores? Goleman et al (2005) falam-nos em domínios da inteligência emocional,
dizendo-nos que eles são quatro13, a saber, autoconsciência, autogestão, consciência social
e gestão das relações. As duas primeiras são competências pessoais e determinam a
autogestão. As duas últimas são competências sociais e determinam a gestão das relações.
Todos estes domínios estão interligados e interagem entre si através das suas várias
competências associadas, que são dezoito. Não vamos, neste trabalho, rever em detalhe
cada uma dessas competências. Pareceu-nos apropriado apenas fazer-lhes referência no
âmbito da exposição do essencial da teoria da inteligência emocional.
A autoconsciência, cujas competências associadas são a autoconsciência emocional, a
auto-avaliação e a autoconfiança, traduz-se na capacidade que temos de nos conhecermos
a nós próprios, enquanto seres com qualidades, defeitos, limitações, ambições, motivações
e valores. Só conhecendo-nos a nós próprios e às nossas emoções poderemos estar aptos a
conhecer os outros e as suas emoções. Pode considerar-se assim a autoconsciência como a
base da inteligência emocional.
A autogestão compreende as competências do auto-domínio emocional, transparência,
capacidade de adaptação, capacidade de realização, capacidade de iniciativa e optimismo
e é uma derivante da autoconsciência (Goleman et al 2005). Baseia-se na energia que os
líderes necessitam para atingir os seus objectivos. O líder tem de controlar as suas emoções
± neste caso emoções negativas ou perturbadoras que são aquelas que produzem
sentimentos negativos por oposição aos positivos, que são o melhor que há em nós ± para
13 No início dos seus estudos Goleman apontava cinco domínios da IE: Autoconsciência, Autogestão,
Motivação, Empatia e Aptidão Social.
67
delas não ficar refém. Desta forma se entende que o estado de espírito dos líderes não
pertence apenas à sua esfera pessoal de comportamento já que, como atrás foi referido,
devido ao contágio emocional do líder as suas emoções têm consequências no domínio da
sua equipa e do público. Por isso ³nenhum líder é capaz de gerir as emoções dos outros se
não for capaz de gerir as suas próprias emoções´ (Goleman et al 2005: 66).
Na consciência social encontramos como competências associadas oespírito de serviço, a
consciência organizacional e a empatia, sendo esta última, claramente, a mais importante.
Este é o domínio fundamental para gerar ressonância, assim se entendendo a importância
da empatia. Em sintonia com os seguidores o líder poderá decidir sobre a melhor maneira
de aproveitar das emoções dele e dos outros. Poderá conter tensões ou dividir alegrias,
aplacar optimismos ou aliviar pessimismos, enfim, poderá e deverá gerar os equilíbrios que
sirvam as tarefas.
Por fim, a gestão das relações engloba a liderança inspiradora, a influência, a capacidade
de desenvolver os outros, a catalisação da mudança, a gestão de conflitos, a criação de
laços e o espírito de equipa e colaboração. A gestão das relações começa com a
autenticidade ± ser honesto, verdadeiro, fazer o que se diz e dizer o que se faz ± uma
característica fundamental para a relação com os outros. Um líder autêntico inspira
confiança e esta facilita a capacidade de persuasão, a gestão dos conflitos, a disposição
para a mudança e a própria colaboração dos seguidores e desta forma torna-se mais fácil ±
e mais eficaz ± o entusiasmo geral à volta de um projecto comum.
*- !. !%%'!%.
A inteligência emocional eficaz implica todos aqueles domínios, pois a generalidade das
suas competências deverá e terá de ser usado. No entanto é a personalidade ±
características individuais únicas ± de cada um que faz com que este todo seja utilizado,
actue, em dosagens diferentes. É este doseamento, ou seja, a capacidade de o líder usar, ou
socorrer-se, mais deste ou daquele aspecto, em maior ou menor grau, nesta ou naquela
circunstância, que produz os diferentes estilos de liderança. Goleman et al (2005)
propõem-nos então seis estilos de liderança que não são, contudo, estanques, no sentido de
para a cada líder corresponder apenas um estilo de liderança. Um líder pode, de uma forma
marcante, ser seduzido por um estilo, mas nada o impede, na prática, de em determinado
68
momento, sob certas circunstâncias, actuar mais de acordo com outro estilo que possa
produzir resultados mais eficazes. Este aspecto ajuda-nos a perceber um outro tipo de
divisão. Dos seis estilos, quatro deles ± visionário, consel eiro, relacional e democrático ±
são geradores de ressonância. Os outros dois ± pressionador e dirigista ± tenderão a
produzir dissonância a não ser em situações muito específicas. Abaixo descrevemos
brevemente cada um dos estilos de liderança, com exemplos de aplicação prática a Vosé
Mourinho. Embora para quase todos os estilos possamos encontrar exemplos no
comportamento de Vosé Mourinho, o que é algo digno de registo e que analisaremos mais à
frente nesta dissertação, cremos que este treinador português se aproxima mais de um dos
estilos de liderança emocional. Mas, como referimos, tal análise é feita adiante no capítulo
9.
 !.,! !&!± Talvez a característica mais importante do líder visionário seja
a de inspirar os seus seguidores. Contudo, o seu segredo está na forma como o faz.
Este tipo de liderança encontra suporte na forma como exprime os seus objectivos.
Porque o que vale para os outros vale para si próprio, este líder sintoniza-se com os
seus subordinados porque partilha os mesmos valores, logo é autêntico. Assim, não
lhes incute ideias e fins sem que eles os descubram por si mesmos, e neles
genuinamente acreditem, embora, obviamente condicionados pelo caminho que o
líder lhes propõe e pelos objectivos a atingir. O líder visionário leva os seguidores a
realizarem as suas tarefas de uma forma envolvente, ou seja, deixa-lhes espaço para
que sejam eles a descobrir um caminho que ele próprio já imaginou. Com
Mourinho é isto mesmo que se passa com a técnica que apelidou de descoberta
guiada. A sua autenticidade e partilha dos valores que apregoa está bem expressa
quando, depois da derrota com o Panathinaikos, ele disse aos seus jogadores: ³Nós
vamos lá dar a volta à eliminatória e se alguém aqui não acredita que é possível
ganhar lá e passar às meias-finais que o diga já, porque fica cá e eu vou para a
Grécia com outro´ (Lourenço 2004: 151).
 !.c ."!± Este estilo encontra muito do seu fundamento na capacidade
relacional do líder com cada um dos seus subordinados. O líder vê o homem para
além do profissional e interessa-se pelo seu bem-estar dentro e fora do trabalho.
Conversa, ouve e aconselha de uma forma individual, porque cada ser humano é
uno e diferente. Goleman considera que este estilo não é muito praticado na
69
actualidade, no entanto é um estilo capaz de gerar ressonância já que os líderes
conselheiros ao estabelecer ligações ajudam as pessoas a identificar os seus pontos
fortes e fracos, criando uma ligação directa e efectiva ao seu desempenho. Não
sendo talvez o seu ponto forte, Vosé Mourinho pode, também aqui, encontrar
alguma fundamentação da sua liderança. Podemos perceber isso nas palavras de
Desmond Morris14: ³Mourinho identifica-se mais com a sua equipa do que
qualquer outro treinador. Ele está apaixonadamente envolvido com eles. («)
[D]iscordo ligeiramente do retrato que fazem dele como um pai para os seus
jogadores. Ele é mais como um irmão mais velho. Ou o chefe do bando´ (Morris in
Barclay 2006: 157-8).
 !. .%'!%.± Este estilo caracteriza-se pela partilha de emoções. O líder
celebra e o líder chora. Coloca a ênfase no ser humano e nos seus sentimentos mais
que no profissional e ao fazê-lo gera grandes laços de fidelidade e relacionamento.
É, no entanto, um estilo de liderança que não melhora de uma forma directa o
desempenho das pessoas. Embora Mourinho se emocione com os seus jogadores
não podemos considerá-lo um líder relacional já que ele raramente admite erros e
procura sempre de uma forma directa o aperfeiçoamento individual e colectivo,
sendo isto, para ele, o mais importante. Não dissocia, portanto, numa perspectiva
complexa, a felicidade pessoal do desempenho pessoal tal como se percebe das
palavras do jogador do Chelsea, Voe Cole: ³Ele é a primeira pessoa a olhar a sério
para mim e para a minha maneira de jogar´ (Cole in Barclay 2006: 142).
 !.'&!'± O líder democrático, tal como o próprio nome indica, recorre
aos contactos pessoais, à discussão, à partilha de ideias e às sugestões. Fá-lo em
reuniões, que podem ser alargadas, e escuta as preocupações dos participantes. Ao
ouvir os outros encontra grande parte do fundamento do seu próprio processo
decisório. Cria um clima emocional globalmente positivo e funciona melhor se o
líder tiver dúvidas. Pela própria personalidade, conhecimentos técnicos e
competência de Vosé Mourinho não o enquadramos directamente neste estilo de
liderança, como a análise final comprovará
14Autor do célebre best-seller O Macaco Nu.
70
Estes quatro estilos de liderança que acabámos de analisar geram, em maior ou menor
grau, ressonância. Vejamos agora, numa breve descrição, os dois estilos que deverão ser
usados com muito cuidado ou o seu resultado final poderá ser desastroso, porque gerador
de dissonância.
 !. !%± É um estilo de actuação utilizado em determinados
contextos porque não traça linhas claras de actuação. Quase sempre o líder está
focalizado nos objectivos, deixando para um plano completamente secundário as
pessoas, o que poderá ter como resultado ± e a médio/longo prazo tem seguramente
±a dissonância. Contudo, como referimos, num contexto determinado e em doses
moderadas a pressão pode levar a desempenhos positivos. É um estilo que pode ou
não identificar-se com Vosé Mourinho. Lembrarmo-nos da sua entrada no Estádio
da Luz para o jogo Benfica/Porto em 2003, antes dos seus jogadores, como forma
de os aliviar da pressão exercida pelos adeptos benfiquistas. Mourinho tenta sempre
retirar a pressão, ou demasiada ou não apropriada pressão, dos que consigo
trabalham. No entanto, a pressão em causa neste exemplo é algo que vem do
exterior da equipa, não é exercida pelo líder. Quando falamos na pressão exercida
pelo líder ± e aqui o enquadramento no estilo pressionador já será mais correcto ±,
então podemos afirmar que Vosé Mourinho se encaixa também neste estilo de
liderança. A comprovar esta análise estão as palavras de Rui Faria, no capítulo 7:
³Quem vive profissionalmente com ele tem de saber viver com grande pressão e ao
mesmo tempo tem de dar resposta positiva. A pressão que Vosé Mourinho exerce
sobre o seu grupo de trabalho é feita de um modo muito particular em função das
diferentes situações.´ Mourinho pressiona os jogadores, desfiando-os constante e
consistentemente, a dar o máximo deles próprios, a superarem-se, a ³serem os
melhores´.
 !.!!5! %± Este estilo de liderança preconiza a obediência cega, o que o liga
a uma forma eminentemente coerciva de estar na vida. Na sociedade actual é o
menos aceitável e tolerável podendo, no entanto, ser aceite em situações muito
esporádicas, como, por exemplo, face a ameaças.
Ficou assim revista a teoria da inteligência emocional, a qual, sob a perspectiva da
complexidade, constitui uma das bases teóricas desta investigação. Mostrámos que a sua
71
principal noção ± a emoção ± é algo intrínseco ao nosso ser. A inteligência emocional
diznos
que devemos ser inteligentes sobre as nossas emoções e as dos outros, noção que se
aplica com maior intensidade aos líderes. Alguns dos aspectos desta teoria ficaram
obviamente fora desta nossa abordagem. Não focámos aspectos como a aprendizagem ou o
aperfeiçoamento da inteligência emocional, ou mesmo o seu intrínseco valor na liderança
em comparação com o QI. Estes e outros pontos tiveram que ficar de fora dada a sua
menor relevância para o estudo do caso em análise.
72
c  -
O GRUPO E O COMPORTAMENTO GRUPAL
73
Não existe liderança que não se dirija a alguém. Por definição, liderar pressupõe o plural,
ou seja, um líder a comandar alguns ou muitos seguidores ou subordinados. A liderança em
causa nesta investigação ± a de Vosé Mourinho ± dirige-se, essencialmente, a um grupo de
profissionais, cerca de 30 a 35 elementos, na sua maioria jogadores de futebol, inseridos
num clube de topo mundial e, portanto, actuando num ambiente altamente competitivo. É
este o contexto da revisão da actividade de investigação sobre o fenómeno dos grupos, que
agora apresentamos; tema que, pelos vários exemplos enunciados, tudo indica deve
assumir uma posição importante na investigação sobre o trabalho e a liderança de Vosé
Mourinho.
- /0$
Numa perspectiva de complexidade, ao olharmos para uma equipa de futebol, para um
grupo concreto de profissionais de alta competição, olhamos para uma organização, um
sistema aberto e complexo, interactivo no seu seio e com o exterior. Trata-se de um todo
composto pelas partes que são os jogadores individuais, também eles, em si mesmo,
sistemas abertos, interactivos e complexos, que encontram o seu enquadramento e projecto
no todo de que fazem parte. Ao analisarmos o fenómeno dos grupos no contexto desta
investigação, não poderemos deixar de ver as partes ± os jogadores ± como um outro todo
dentro do todo maior que é o grupo ± a equipa de futebol.
Nos anos 30/40, sob forte influência dos autores do que hoje é conhecido como a escola
clássica da teoria organizacional, Frederick Taylor (1856-1915), Henry Fayol (1841-1925) e
Max Weber (1864-1920), encarava-se o indivíduo como uma peça singular, sem
interactividade grupal, emocional, motivacional. Partia-se do geral para o particular, ou
seja, determinava-se o espaço, o tipo de tecnologia e a tarefa para determinado objectivo e
só depois se ³encaixava´ o indivíduo que, assim, vinha em último lugar (Ferreira et al
2001), como se da última peça de um puzzle se tratasse. Esquecia-se ± ou desconhecia-se ±
que a organização é um todo complexo e, como tal, ela desenvolve actividades cuja
essência é o funcionamento grupal e não individual.
Mas o que é, então, um grupo? Numa primeira análise poderíamos ser levados a pensar que
a resposta seria fácil e até a questionarmo-nos sobre a necessidade de se procurar um
esquema conceptual para analisar o fenómeno grupos. Sendo o grupo algo tão essencial
74
para as nossas vidas ± todos nós fazemos parte de grupos formais ou informais, públicos ou
privados, pequenos ou grandes, profissionais ou lúdicos, nacionais ou internacionais, etc.±
não seria o bom senso condição mais que suficiente para a sua definição? A literatura
oferece-nos um vasto leque de posições sobre o tema. Stephen Littlejohn, a propósito da
comunicação em pequeno grupo afirma que a investigação sobre grupos se trata de uma
área ³particularmente confusa de estudo´ (Littlejohn 1988: 253). Vaz Freixo sublinha o
mesmo aspecto:
³[O] domínio da chamada dinâmica de grupo continua a ocupar um lugar
aparentemente mal definido nas ciências sociais: aspira a um lugar em disciplinas
como a psicologia social, a sociologia, a psiquiatria, a psicologia industrial, o serviço
social e a psicologia clínica. («) [A] dinâmica de grupo não se encontra organizada
em parte alguma´ (Vaz Freixo 2006: 176-7).
Esta passagem reflecte a dificuldade de recolha de material consistente sobre um tema em
que a literatura se encontra extremamente dispersa, surgindo por vezes nos seus
pressupostos e nos seus termos e expressões mesmo como algo contraditória. Assim,
seguimos um método de investigação e de sistematização assente num critério de
sobreposição. Este caminho tenta ser fiel à consensualidade de posições numa amplitude
que vai da psicologia à teoria organizacional, passando por áreas como a sociologia ou a
psiquiatria, entre outras. No entanto, não quisemos deixar de rever a investigação sobre
grupos já que, como se verá adiante ± e de alguma forma no primeiro capítulo se pôde já
constatar ± a noção, a dinâmica e o funcionamento grupal são aspectos fundamentais no
trabalho de Vosé Mourinho.
Das muitas noções de grupo que analisámos, todas elas, de uma forma geral, nos referem
as ideias de interacção, de interdependência e de consciência mútua dos seus membros.
Efectivamente, um grupo constitui-se através de uma série de pessoas, unidas em torno de
um projecto, de um objectivo, de valores comuns, ou de uma tradição ou de qualquer outro
laço cultural, emocional ou biológico, que na acção entre si, interdependente e
interrelacional,
conseguem atingir resultados impossíveis de obter individualmente. Esta
definição encerra em si própria uma outra extensão da noção de grupo. Pela interacção e
interdependência e/ou pelo seu objectivo final ± conseguido ou não de uma forma mais ou
menos eficaz ±, um qualquer acontecimento que afecte um indivíduo irá afectar igualmente
os outros elementos do grupo, de onde se conclui que existe sempre no grupo um qualquer
75
tipo de interacção entre os seus membros. Se tal não acontecer não existe grupo.
Efectivamente, os critérios em que se baseiam os investigadores para definir um grupo, tal
como a sua dimensão por exemplo, não são pacíficos e inclusivamente discute-se a questão
da interacção como elemento necessário para tal efeito. No entanto, adoptando uma
perspectiva de pensamento complexo julga-se não ser possível retirar do conceito de grupo
a interacção entre os seus membros. Tanto mais forte se coloca o argumento quanto mais o
colocarmos no campo do tipo de grupo que é uma equipa de futebol ± o objecto da nossa
investigação. É neste sentido, de uma interacção fundamental entre os elementos do grupo,
que podemos falar de grupo como um organismo e não apenas como um aglomerado de
indivíduos.
-( c.%/0
Aqui chegados ± à noção de grupo como organismo ± é importante introduzirmos o
conceito de cultura organizacional. A cultura de um grupo é determinante no seu
funcionamento interno, enquanto organismo, enquanto ser vivo e aberto ao exterior.
Segundo Edgar Schein (2004), a cultura é um conjunto tácito de pressupostos básicos sobre
como o mundo é e como deve ser, o qual é partilhado por uma comunidade de pessoas e
determina as suas percepções, pensamentos, emoções, e em grande parte o seu
comportamento. A cultura de uma organização, de um grupo, de uma equipa de futebol, no
seu nível mais profundo, é os seus valores básicos, a sua ideologia, a razão de ser de quem
está ali, da forma como está e como é. A cultura organizacional, seja de uma organização
formal ± como, por exemplo, uma empresa ou uma equipa de futebol ±, seja de uma
organização informal ± como, por exemplo, um grupo de amigos ±, constitui-se nos
pressupostos que guiam e modelam os comportamentos dos indivíduos e do grupo. Tratase
como que de um filtro, através do qual tudo é percepcionado e imediatamente
valorizado num sentido ou noutro. O mundo, a totalidade do que nos surge, surge já no
âmbito de um paradigma cultural (Vohnson 1992). A cultura não é assim algo que vem
depois daquilo que já experimentámos para nos ajudar a decifrá-lo, a valorizá-lo e a
compreendê-lo. A cultura vem antes de tudo isso. A cultura é como tudo surge. Trata-se de
valores evidentes em aspectos tangíveis, como por exemplo nas histórias que se contam e
que se não contam, nos rituais, na linguagem, na decoração dos escritórios, no layout, na
76
forma de vestir (Rosenfeld e Wilson 1999). A cultura é assim a forma usual e tradicional
de se pensar e fazer as coisas numa dada organização ou em dado grupo; essa forma ou
maneira de fazer as coisas por aqui é partilhada em maior ou menor grau por todos os seus
membros, e os novos elementos devem aprendê-la, e apreendê-la, e pelo menos
parcialmente aceitá-la, para serem tidos como membros da organização (Elliot Vacques in
Rosenfeld e Wilson 1999). Quando um novo elemento integra uma organização ele é
confrontado com uma nova realidade, e daí a importância do conhecimento dessa mesma
realidade. É nela que se irá mover, produzir e conviver e, portanto, é nessa contingência
que poderá ± e pressupõe-se que deverá ± trazer algo de novo, adiantar algo à organização,
a si próprio e aos outros e só o fará se enquadrado e contextualizado na nova cultura. Os
seus superiores poderão, no primeiro dia, apresentar-lhe a estrutura formal da organização
e essa passará então a conhecida. Contudo, essa estrutura formal não abarca a realidade
total da organização, já que a descrição formal não conseguirá nunca captar a essência da
vida organizacional. Por outras palavras só a vivência do dia a dia poderá entender quem
são os outros elementos, o que eles sentem, quais as histórias que contam e até quais as
regras informais que estão instituídas e pelas quais se pauta a vida na organização. É este
todo que se chama cultura organizacional e que extravasa em larga medida tanto as normas
formais como a própria ideia que temos da organização. Podemos conhecer ± de uma
forma mais ou menos profunda ± uma organização por fora mas só a conhecemos por
dentro quando conhecemos também a sua cultura organizacional. É desta forma que, no
nosso dia a dia, quando alguém nos pergunta como é a empresa onde trabalhamos,
raramente começamos a resposta com a descrição das normas que fazem a sua estrutura
formal (Rosenfeld e Wilson 1999; Tosi e Mero 2003).
³If a friend asks you to describe the new organization you have joined, it is highly
likely that you will begin to describe the culture of the organization. You might say
that the office appears friendly, your peers are approachable, no-one is pressurizing for
completion of your work, so long as the job gets done you can fill your work hours as
you like, and the new firm as a pleasant feel to it. People laugh and have a joke and the
work gets done just the same´ (Rosenfeld e Wilson 1999: 269).
São estes aspectos intangíveis, conjugados com os tangíveis, que nos dão a noção da
cultura organizacional. No fundo cultura é uma palavra-âncora que resume a actuação de
uma maneira geral, o clima que se sente e até as próprias noções gerais de como os
77
membros se sentem, se movem e como interagem numa organização. É desta forma que a
cultura organizacional acaba por influenciar os padrões de comportamento dos indivíduos.
Detalhando a análise da cultura organizacional, Cohen e Fink (2003) consideram que
existem cinco elementos importantes: (i) o ambiente empresarial, que determina o lugar
da empresa no mundo onde se move e que é definido pela concorrência, pelos clientes,
pela sua tecnologia, entre outros; (ii) os valores, que se traduzem nos conceitos e crenças
da organização; (iii) os eróis, que simbolizam os valores culturais e se destacam como
modelos neste ou naquele sector; (iv) os ritos e rituais, que são as rotinas da empresa; e
(v) a rede cultural, que perpetua os valores e a história da organização.
No desenvolvimento da cultura organizacional é importante o papel individual dos
membros do grupo ou da organização, não só quando interagem entre si mas também
quando se juntam à organização novos elementos. Falamos daquilo a que Cohen e Fink
(2003) chamam sistemas pessoais, isto é, toda a complexa teia de valores e de sentimentos
bem como a história que qualquer pessoa leva consigo mesma quando se integra numa
qualquer organização e assim entra num novo mundo de processos complexos em que
todos participam e todos interagem.
³[A] pessoa chega ao grupo com um conjunto de atitudes que ao combinar-se com os
demais participantes contribui para criar o que emerge. («) O indivíduo no grupo é
também o portador da cultura mais ampla, na medida em que trás normas valores e
percepções que são introduzidas no grupo por meio dos seus participantes´ (Cohen e
Fink 2003: 70).
Desta forma nota-se a influência que uma cultura mais abrangente tem sobre uma menos
abrangente ± cultura organizacional ± e, portanto, é importante pensar-se em termos de
evolução dessa mesma cultura. Com a actual diversificação da força de trabalho, com a
integração na sociedade globalizada de pessoas de diferentes continentes, países,
subgrupos étnicos ou raciais, de situações económicas diferentes, etc., os grupos, enquanto
sistemas abertos e complexos, estão em permanente evolução ou mudança, nunca podendo
fechar-se sobre si próprios, já que eles são em si mesmos uma importante componente da
produção e da sobrevivência de qualquer sociedade.
78
-*!0 /0 
Revista a noção de cultura organizacional, passamos agora à apresentação de tipologias de
grupos. Destacamos as propostas de Rabbie e Lodewijkx (1994), que nos apresentam um
critério contínuo que vai da categoria social, entendida como um grupo de dois ou mais
elementos que têm entre si pelo menos um elemento de ligação que os distingue dos
membros de outras categorias, à organização social, que se pode caracterizar como um
sistema social hierárquico de grupos organizados e que interagem quanto aos objectivos ou
à repartição de recursos.
Outra proposta interessante é a de MacGrath (1984), que apresenta uma distinção entre
grupos naturais, grupos artificiais e quase-grupos. Os grupos naturais, segundo MacGrath
(1984) são relativamente pouco investigados. Encaixam nesta categoria a maioria dos
grupos organizados que integram as organizações, como por ex., secções e departamentos,
grupos de trabalho e comissões e até mesmo as comissões de trabalhadores. Os grupos
artificiais, pelo contrário, são constituídos pelo investigador para fins de observação ou de
manipulação de varáveis. Desta definição emergem os quase-grupos, pela necessidade do
investigador muitas vezes ser obrigado a limitar a interacção entre os elementos do grupo
sob estudo ± por exemplo, determinando que só podem comunicar entre si através de
canais pré-estabelecidos, ou fixando a realização de tarefas sob a forma de sequências ou
esquemas previamente definidos, não deixando assim margem para a interacção e
interligação espontâneas.
Outra tese, a que à partida possivelmente mais se aproxima do fenómeno ³equipa de
futebol´, é a apresentada por Goldstein (1983). Enquanto características da dinâmica
grupal referem-se quatro vertentes: dimensão, formalização, composição e intimidade.
Vejamos então de que forma podemos enquadrar neste contexto teórico um grupo de
profissionais de alta competição.
Quanto à dimensão considera-se que os grupos podem ser grandes ou pequenos, não
existindo um limite para o seu tamanho. No entanto, quanto maior for o grupo, menor é a
possibilidade de interacção entre os seus membros, logo, mais se dilui o conceito de grupo
entre os seus membros. Goldstein (1983) considera como limite máximo para um grupo
pequeno trinta elementos. Numa equipa de futebol é hoje tendência generalizada a escolha
de 23 jogadores, sendo que três serão guarda-redes e os restantes dois para cada posição
79
em campo. O padrão de enquadramento da interacção reside na promoção de concorrência
para cada um dos lugares da equipa (a norma é de dois jogadores para cada posição,
podendo apenas jogar um), bem como na prevenção de eventuais lesões, havendo por isso
sempre outro jogador com as mesmas características para ocupar o mesmo lugar. Uma das
questões que se coloca quanto à dimensão do grupo refere-se à sua influência nos
processos de interacção e às consequências que daí advêm para a obtenção de resultados.
Quanto maior for o número de elementos num grupo, maior o número possível de
interacções, por um lado, e maior o número de interacções diferenciadas, por outro lado.
Este facto favorece a emergência de um subgrupo dominador, de uma sub-cultura, o que
por simpatia leva a que se criem condições para a emergência de um ou mais líderes. Neste
sentido, a complexidade crescente da organização ± pelo número de elementos que leva a
um maior número de interacções ± não nos conduz, necessariamente, ao aparecimento de
mais ideias e debate que possam gerar uma maior eficácia no desempenho das tarefas.
Segundo Gibb (1961) a produtividade das ideias decresce à medida que o número de
elementos aumenta. Este facto fica a dever-se às deficiências de comunicação que se criam
entre os elementos à medida que vai aumentando o número de interacções, ou seja, quanto
mais se estende a rede maior se torna a distância entre os elementos e menos directa se
torna a comunicação.
No que diz respeito à característica formalização, conforme a Goldstein (1983), os grupos
podem ser formais ou informais. Como o nome indica, os grupos formais regem-se por
normas e procedimentos estabelecidos. Nos grupos informais o relacionamento entre os
seus membros é muito próximo do relacionamento familiar (Goldstein, 1983), não
admirando pois vermos frequentemente os jogadores de futebol referirem o ambiente do
balneário como o de uma família. Desta proximidade entre os elementos resulta que a
partilha de informação, facilitada pela natureza informal do grupo, permite a fácil
introdução de novas ideias, permitindo também ajustamentos com vista à melhoria do
funcionamento do grupo (Rosenfeld e Wilson 1999).
Têm vindo a levantar-se dúvidas sobre a predisposição deste tipo de grupos para a
mudança, uma vez que a sua natureza pode fazer com que eles se tendam a fechar sobre si
próprios. A sua coerência natural, tal como a solidariedade psicológica característica de
uma estrutura quase familiar, não poderão deixar de ser consideradas neste aspecto. É
ainda importante referir que nos grupos informais existe uma menor tendência para a
80
formação de sub-grupos do que nos grupos formais; o que é facilmente compreensível
dada a base voluntária em que os primeiros assentam.
Na dimensão da composição tenta perceber-se o grau de semelhança entre os elementos do
grupo tanto no que se refere a características demográficas, sociológicas ou psicológicas.
Distinguem-se os grupos omogéneos e os eterogéneos. Quanto aos primeiros,
caracterizados pelos seus membros serem semelhantes e compatíveis no que toca às
necessidades e características pessoais, eles tendem a desenvolver melhor a funcionalidade
do grupo não gastando tantas energias na sua manutenção, pelo que também os seus
objectivos tendem a ser mais facilmente atingidos do que nos grupos heterogéneos. Assim
se entende uma das razões pelo qual Mourinho, na construção de uma equipa como o FC
Porto, pretendeu contratar jogadores jovens, ambiciosos e pobres (Lourenço 2004). Quanto
aos grupos heterogéneos é justamente a individualidade de cada um que tende a sobressair.
Por exemplo, Hoffman (1959), concluiu que num grupo heterogéneo as tarefas intelectuais
que envolvem resolução de problemas são mais facilmente e mais frequentemente
resolvidas. Os grupos heterogéneos tendem, em geral, a obter melhores resultados do que
os homogéneos.
Por fim, a intimidade dos membros do grupo, a última das vertentes analisadas por
Goldstein (1983). Nesta dimensão, o autor propõe uma divisão entre intimidade primária e
intimidade secundária. Numa situação de intimidade primária, aceita-se e promove-se o
contacto directo entre os elementos do grupo, desenvolvendo-se dessa forma valores e
atitudes dentro do colectivo. Na intimidade secundária o contacto é distante, não pessoal e
portanto fundamentado em papéis bem definidos. Também aqui se percebe como o
conceito de grupo primário se cruza com o que se passa numa equipa de futebol;
lembramo-nos dos constantes estágios para promover a ligação, a união e a amizade entre
os jogadores da equipa.
--9% 8.8!/0
Sejam os grupos de que natureza forem, enquanto organismos vivos estão sempre
confrontados com um processo natural de desenvolvimento. Disso depende a sua eficácia
já que o aperfeiçoamento das suas tarefas e do seu próprio funcionamento se desenvolve
com o tempo (Cohen e Fink 2003). Assim, aceitando que nenhum grupo pode ter eficácia
81
imediata ou eficácia absoluta, ele confrontar-se-á com vários estádios de desenvolvimento,
os quais uma vez identificados e ultrapassados ao longo do tempo, contribuirão para o
aperfeiçoar do seu funcionamento. Neste campo Tuckman (1965) apresenta-nos talvez a
mais clássica e aceite teoria das fases de desenvolvimento do grupo. Para o autor devemos
fazer a divisão em quatro fases: formação, turbulência, normalização e desempen o. A
formação refere-se à constituição do grupo, onde se inicia o conhecimento interpessoal e se
começa a incrementar as bases de afiliação e de aceitação; a turbulência é o período das
influências que levam, inúmeras vezes, ao conflito, já que a luta se desenrola no campo do
controlo e do papel de cada um dentro do grupo; a normalização surge na sequência e em
consequência do desenvolvimento das relações interpessoais que geram regras e normas de
convivência ± os elementos já se conhecem melhor e tendem a resolver os conflitos da fase
anterior; o desempenho, a fase em que pode dizer-se que o grupo se encontra finalmente
em velocidade de cruzeiro, surge como a fase de estabilização e de desenvolvimento do
grupo, entendendo-se e aceitando-se as diferenças, dividindo-se os papéis de liderança,
trabalhando-se em prol dos objectivos e, desta forma, conseguindo-se o comprometimento
de cada um e a interdependência operacional para que os fins do grupo sejam atingidos.
Embora esta teoria, como foi referido, seja talvez a mais aceite e divulgada, Obert (1979)
propõe uma outra aproximação, na qual sugere cinco fases de desenvolvimento do grupo,
desde o seu início até à fase da sua estabilização. Embora consideremos que, no seu todo,
não existem grandes diferenças entre as propostas de Tuckman e de Obert, julgamos que o
segundo autor vai um pouco mais longe ao propor-nos uma categoria adicional, o que na
prática nos remete para uma divisão mais detalhada, a qual nos parece mais consistente e
minuciosa face à dinâmica do desenvolvimento dos grupos. Assim, a primeira fase, a que
chamou Obert citado em Cohen e Fink (2003) chamou de filiação, reporta-se à fase inicial
do grupo. É a fase dos primeiros contactos com os outros elementos do grupo e com as
tarefas e os seus objectivos. Nesta fase ³os participantes tendem a preocupar-se com a
própria segurança e com o seu lugar no grupo mais do que com os esforços colectivos com
vista às tarefas´ (Obert in Cohen e Fink 2003: 134), pelo que o ambiente tem tendência
para a tensão entre os elementos e as interacções são conduzidas com cuidado,
sobressaindo a cordialidade e a superficialidade. Daqui resultam deficiências de eficácia na
execução das tarefas já que os executantes se dedicam a elas com muita energia mas, ao
mesmo tempo, estão pouco coordenados entre si, dadas as dificuldades de comunicação
82
que uma a distância emocional existente gera. Natural, pois, a necessidade de um maior
conhecimento entre os elementos, ao mesmo tempo que se torna imperativo criar
expectativas fundadas sobre as metas e os objectivos a atingir. Cabe aqui uma palavra
sobre a liderança do grupo, vital para facilitar e promover o conhecimento entre os seus
elementos, bem como para clarificar os objectivos de todos enquanto grupo.
Numa fase posterior surge o sub-agrupamento. Com o tempo vão criando-se laços entre os
elementos integrantes do grupo. Por diversos motivos os elementos do grupo tendem a
identificar-se mais com este(s) ou aquele(s) membro(s). São as chamadas ³alianças em
torno de problemas de trabalho´ que conferem um papel central às relações interpessoais.
As pessoas tendem a juntar-se àquelas com quem sentem mais afinidades e tendem a
afastar-se das outras, vistas como potencialmente perigosas. São assim criados os subgrupos
que levam a um maior desanuviamento do ambiente de trabalho, embora neste
contexto não possa afirmar-se que a informação se transmita de uma forma muito
consistente. De qualquer maneira existe a tendência para a cooperação entre os elementos
do grupo, porque ³[n]esta fase os grupos às vezes desenvolvem um sentimento de
unanimidade de propósitos e uma coesão que na verdade podem ser falsos, pois estão
alicerçados numa tendência para evitar conflitos e inibir avaliações´ (Cohen e Fink 2003:
135).
A terceira fase do desenvolvimento do grupo é a confrontação. Neste estádio de
desenvolvimento emergem as relações entre os subgrupos bem como as lideranças a eles
subjacentes. Trata-se de uma fase em que se podem descortinar lutas pelo poder e
³questionamentos em torno do papel dos participantes e da divisão do trabalho, bem como
dúvidas relativas à contribuição e à avaliação dos participantes´ (Cohen e Fink 2003: 135).
Por este motivo a aparente coexistência pacífica entre os membros começa a desaparecer
para dar lugar a visíveis afastamentos. Neste ponto vários perigos se colocam ao grupo,
como são por exemplo os casos de confrontos, resolvidos por meio de autoridade e de onde
resultam vencedores e vencidos, o que pode, por sua vez, gerar saídas de cena ou novos
conflitos. Neste último caso é seguramente a organização que sai a perder já que nos
conflitos as energias são concentradas no ataque ou na defesa de um aspecto geralmente
marginal aos interesses da organização em detrimento da produtividade do todo. No
entanto, o inverso da medalha também é verdadeiro, ou seja, na fase da confrontação
podem surgir oportunidades para a organização, como por exemplo o sucesso na resolução
83
de conflitos ± esclarecimento de mal-entendidos, etc.± o que pode conduzir a uma maior
coesão do que a observada inicialmente.
Em seguida temos a diferenciação individual, uma fase mais estável e onde a tendência da
interacção entre os membros vai para questões como a divisão do trabalho e a avaliação
dos participantes. A receptividade às diferenças entre cada um já é aceitável e as relações
interpessoais são mais autênticas. Cada um começa a assumir o seu lugar no grupo, o qual
passa a ser visto como um todo que é preciso desenvolver e melhorar. ³Este estádio pode
ser marcado por uma espécie de euforia, já que os filiados começam a perceber que é
possível participar no grupo sem ter de lutar até à morte ou ter de desistir totalmente da
maioria dos desejos´ (Cohen e Fink 2003: 136), por isso o ambiente do grupo vai
tornando-se coeso e forte, vivendo-se um sentimento de confiança e de progresso, também
muito por via das dificuldades vencidas nas fases anteriores.
Por fim a fase da colaboração. Para Obert (1979) são poucos os grupos que aqui
conseguem chegar. Entramos assim num momento do desenvolvimento do grupo onde as
relações entre os seus membros são autênticas e, desta forma, a critica ± positiva e negativa
± é feita num espírito construtivo e sem qualquer intenção que não seja a de promover a
eficácia geral do grupo. ³O grupo aprende a equilibrar esforços individuais e grupais nas
suas tarefas («), trabalhando cooperativamente quando o que se requer são muitas
opiniões e pontos de vista´ (Cohen e Fink 2003: 136). Nesta fase salienta-se o olhar para o
passado no sentido de se aprender para o futuro. É uma fase de introspecção permanente,
de reexame de processos face à apresentação de novos problemas. As questões deixadas de
lado nas fases anteriores são recuperadas e recicladas já que não existem mais
desconfianças. Estamos, pois, na fase de plena maturação do grupo, em que os seus
elementos ³crescem e desenvolvem-se individualmente´ (Cohen e Fink 2003: 136).
Pode, pois, parecer que nesta última fase se encontre o estádio de maior perfeição no
funcionamento do grupo. Contudo não é assim; é justamente neste último estádio de
desenvolvimento que encontramos dinâmicas de grupo que podem levar a erros
dramáticos. É claro que na colaboração encontramos o mais elevado nível de coesão do
grupo; também é claro que a coesão do grupo leve à eficácia do mesmo; o que já não é
claro é que coesão leve sempre à eficácia. Introduzimos, pois, um novo elemento, o
pensamento grupal, que decorre directamente dessa coesão e que muitas vezes concorre
84
para a tomada de más decisões que podem conduzir a estados de catástrofe. A coesão pode
de facto levar os elementos do grupo a tornarem-se vítimas da sua própria solidariedade.
Em ambiente de grande coesão ± ou unidade ± os comportamentos tendem a ser
consensuais e, muitas vezes, o essencial é esquecido. Coloca-se de parte a análise e a
discussão e tende a aceitar-se o que é proposto em nome dessa mesma coesão. Este tipo de
comportamento apresenta-se com maior intensidade se o grupo estiver envolvido num
ambiente extraordinário, ou seja, se estiver submetido a stress, se tiver necessidade de
apresentar resultados imediatos. Se o grupo sentir a pressão do tempo, entre outros
aspectos, então terá maior tendência para que os seus elementos aceitem as opiniões e as
sugestões uns dos outros sem as discutirem genuinamente e sem necessitarem de as
fundamentar. A decisão é de facto alvo de uma aceitação/aprovação consensual por parte
de todos os elementos do grupo. No entanto nenhum deles, individualmente, assume
verdadeiramente aquela decisão como sua; a desresponsabilização é geral, porque
ninguém individualmente tomaria a decisão. O grupo perde, desta forma, eficiência mental
o que leva a uma menor ± e em muitos casos errada ± capacidade decisória. Aqui chegados
± justamente em alturas que exigem uma mais competente capacidade de decisão± as
consequências podem ser desastrosas e mesmo irremediáveis, já que, pelo menos em parte,
o que parece concorrer para as fracas decisões é a confluência de vários factores que
tornam o grupo incapaz de ponderar as hipóteses em jogo bem como de considerar as
consequências de cada uma delas (Rego e Cunha 2004).
Talvez um dos exemplos mais conhecidos de pensamento grupal ± até pelas suas
dramáticas consequências ± seja o caso do Vaivém C allenger. Vejamos os factos, embora
de uma forma sucinta: a nave espacial norte-americana, com sete astronautas a bordo, foi
lançada para o espaço a 28 de Vaneiro de 1986. Decorridos 76 segundos depois do seu
lançamento o engenho explodiu matando todos os tripulantes, constituindo-se no mais
sério revés ± económico e científico ± de toda a história do programa espacial
norteamericano.
Sabe-se hoje que o acidente se ficou a dever a um problema em determinado
tipo de juntas/ligações que não apresentavam em condições suficientes para suportar os
baixos níveis de temperatura a que seriam sujeitas. Sabe-se igualmente que os responsáveis
da NASA foram atempadamente avisados ± cerca de um ano antes do lançamento ± para os
perigos que a missão corria. Sabe-se, ainda, que duas empresas subsidiárias da NASA (a
Rockwell e a Morton-Thiokol), ligadas à construção das referidas juntas manifestaram
85
dúvidas ± e disso avisaram a NASA através de pareceres ± quanto à exequibilidade de todo
o processo se fosse mantido aquele tipo de juntas. Sabe-se, por fim, que ³entalados entre as
pressões da NASA e a renitência da restante equipa de engenheiros, os próprios executivos
de topo da Morton-Thiokol (4 vice-presidentes, também eles engenheiros) acabariam por
tomar uma decisão de gestão» favorável ao lançamento ± contrariando, pois, a sua
anterior decisão´ (Rego e Cunha 2004: 274). O grupo de decisores da NASA manteve-se
então irredutível na sua posição de não adiar o lançamento. Porquê? Maier (cit. em Rego e
Cunha 2004: 275) sintetizou as causas do desastre em dois blocos, que levaram ao
pensamento grupal, o que por sua vez originou uma péssima decisão que custou a vida a
sete pessoas: ³a) a excessiva crença nos sistemas protocolos e políticas estabelecidos; b)
preocupações de curto prazo e interesses próprios míopes prosseguidos a expensas da
viabilidade a longo prazo e de uma orientação mais holística.´ Desta análise resultam duas
conclusões: que a administração da NASA ± ainda que de uma forma inconsciente ± se
auto-convenceu que a instituição era à prova de erro; e que as pressões económicas e
políticas eram muitas e bastante eficazes. Mais, ninguém quis assumir o papel de advogado
do diabo com receio de prejudicar objectivamente não só a sua carreira como a própria
posição no grupo. As três constatações levaram a um autismo que resultou em pensamento
grupal: sem discussão, sem uma adequada avaliação dos factos, sem fundamentação da
decisão, tomou-se a pior decisão que se poderia ter tomado e sete pessoas morreram em
consequência disso mesmo (Rego e Cunha 2004). A tragédia do VaivémC allenger pode,
pois, dizer-se que resultou de um esquema de pensamento grupal, só possível precisamente
em grupos coesos e unidos. Fica assim ilustrada a necessidade de permanente atenção ao
funcionamento dos grupos, entidades abertas e dinâmicas, organismos vivos, já que,
mesmo no seu estádio de maior desenvolvimento, os riscos que se colocam ao seu
funcionamento estão sempre presentes, em permanente mudança, podendo mesmo
revestirse
de maior gravidade quanto mais perfeito for precisamente o funcionamento grupal. Esta
questão lembra-nos a dúvida de Mourinho, depois da vitória na Taça UEFA, Taça de
Portugal e Liga Portuguesa, em 2003: ³será que o sucesso fez mal aos jogadores do FC
Porto, agora profissionais famosos com muitos títulos e também muito dinheiro?´
(Lourenço 2004); mais adiante voltaremos a este assunto.
86
-1 %0! /0
Um outro aspecto importante no grupo é o papel que cada um dos seus elementos
desempenha. Trata-se de um factor de relevo no funcionamento e na eficácia do grupo.
Nos comportamentos reconhecidos quer como racionais quer como habituais ou normais,
em qualquer campo das nossas vidas, lidamos com a previsibilidade. De facto alguma
coerência de atitudes e de acções relaciona-se com a nossa personalidade. Conhecer
alguém é, assim, em boa parte, ser capaz de antecipar os seus comportamentos. O
conhecimento, bem como Heidegger (1962) escreveu, assenta num elemento primordial da
ontologia humana: o futuro. Compreender é prever, é antecipar. Quanto mais previsíveis
formos aos olhos de alguém maior é o conhecimento desse alguém sobre nós mesmos.
Assim, no funcionamento de um grupo, é através da interacção que as pessoas se vão
conhecendo, que vão aprendendo a lidar umas com as outras, através da percepção dos
seus pontos fracos e dos seus pontos fortes, das suas preferências e aversões, das suas
necessidades, etc. Vão, pois, através do conhecimento, identificando as possíveis reacções
aos diversos estímulos e dessa forma acabam por se ajustar uns aos outros no convívio do
dia a dia. Todos esperam de todos reacções e comportamentos expectáveis, passe o
pleonasmo. Como todos são diferentes também os seus comportamentos o são, e desta
forma cada um vai-se ajustando e cimentando o seu lugar no grupo através de padrões
repetitivos de comportamento.
³Você não se comportará necessariamente sempre da mesma maneira, mas é possível
que repita um comportamento sempre que estiver dado grupo de pessoas ou numa
situação específica. Este tipo de comportamento especializado» é outra forma de
diferenciar os integrantes do grupo´ (Cohen e Fink 2003: 108).
É, pois, com base neste comportamento especializado que os integrantes de um grupo,
mais tarde ou mais cedo, adquirem papéis dentro do mesmo. Fazem-no acentuando o seu
próprio carácter ou por atribuição do papel por parte dos outros. Os papéis de cada um
resultam sempre de um estilo próprio, particular, que tem que ver com o modo como cada
um experimenta a vida enquanto ser que reage às ameaças e oportunidades que se lhe
colocam. Pode, por isso, acontecer que sejam os outros a atribuir-nos um papel, o qual
derivará das expectativas criadas pelos elementos do grupo. Quando tal acontece, de uma
forma geral, a pessoa tem tendência, mais tarde ou mais cedo, a agir conforme ao padrão
87
esperado, não só pela crença numa aceitação rápida dos seus comportamentos por parte do
grupo como também porque, na maior parte das vezes, os papéis propostos acabam por
não contrariar frontalmente a maneira como as pessoas se vêem a si próprias (Cohen e
Fink 2003). No entanto, o inverso também pode acontecer, ou seja, alguém não estar
disposto a aceitar o papel que o grupo lhe atribui. Nestes casos é necessário ser-se muito
determinado para recusar o comportamento que os outros esperam de nós; essa
determinação, no entanto, é rara (Cohen e Fink 2003). Contudo, seja o papel escolhido ou
imposto, de uma forma geral ele tende a reflectir a personalidade e as necessidades do
elemento do grupo. Do ponto de vista dos restantes elementos do grupo, cada indivíduo
será tanto mais apreciado quanto mais se identificar com as próprias necessidades do
grupo.
Cohen e Fink (2003) catalogam assim os papéis nos grupos conforme às suas finalidades.
Os autores consideram que existem papéis que se direccionam para a execução das tarefas
do grupo (papéis orientados para as tarefas); papéis que contribuem para o
desenvolvimento das relações inter-grupais (papéis socialmente orientados); e papéis que
tomam forma através das necessidades ou objectivos pessoais e que não são relevantes
para o grupo (papéis auto-orientados). É com base nesta divisão e num estudo feito por
Benne e Sheats (1948), que Cohen e Fink (2003) desenvolvem uma caracterização em
mais pormenor dos papéis no grupo.
Nos papéis orientados para as tarefas distingue-se o lançador de ideias, orientado para as
questões pragmáticas do grupo como, por exemplo, a proposta de tarefas ou de objectivos,
a identificação de problemas, etc.; o colector de informações que, como o nome indica,
reúne informação ao questionar o grupo sobre procedimentos, números, factos, sugestões
ou ideias; o fornecedor de informações, pelo contrário, vai bem preparado para as
reuniões, transmite ao grupo as informações disponíveis, dá sugestões e ideias; o
esclarecedor de problemas é muito importante no decurso das reuniões já que analisa as
ideias e sugestões que estão na mesa de trabalho ao mesmo tempo que esclarece dúvidas,
ameniza conflitos e apresenta alternativas; o resumidor, que faz uma espécie de acta não
oficial já que sistematiza as ideias ou sugestões apresentadas e fornece decisões ou
conclusões para que possam ser ponderadas pelo grupo; o sonda de consensos, que
questiona constantemente o grupo, no sentido de saber se se está seguro das decisões que
se vão tomando.
88
Quanto aos papéis socialmente orientados, identifica-se o armonizador, em geral o de
mais apurado sentido de humor, que orienta esta sua faceta no sentido de aliviar tensões
entre os elementos e fazê-los aceitar as diferenças existentes; o vigia, que tende a
promover o equilíbrio do grupo, ajudando a manter aberta a comunicação entre os
elementos de modo a os levar a pronunciarem-se sempre que necessário sobre problemas
mais ou menos sensíveis para o grupo; o protector, que se preocupa com os outros,
cimentando relações de amizade, sabendo ouvir, incentivando e apoiando; otransigente,
que procura compromissos, aceitando que tudo possa ser discutido e analisado e até
modificado, independentemente de quem lança a proposta ou a ideia, já que ele faz tudo
em função do bom funcionamento do grupo e do bom relacionamento entre os seus
elementos; o monitor padrão, que se preocupa com os caminhos que o grupo segue e
chama a atenção para as normas estabelecidas no sentido de tentar saber se eles estão em
conformidade com os desejos da maioria.
Quanto aos papéis auto-orientados pode dizer-se que eles são muitos e quase não têm fim.
Em geral são tolerados ou, em alternativa, ignorados e podem levar ao prejuízo do grupo,
embora a tendência seja para que eles tenham um peso menor relativamente aos outros
tipos de papéis. Neste campo podemos falar de papéis como o queixoso, o pal aço, o
playboy, o dominador ou o intriguista. São papéis que podem ser disfuncionais para o
grupo. Veja-se, por exemplo, o papel do palhaço que com as suas constantes piadas pode,
efectivamente, levar o grupo a alhear-se das suas tarefas (Cohen e Fink 2003).
Como em todas as temática do grupo, também os papéis são alvo de estudos que nos
oferecem uma infinidade de propostas. Optou-se por destacar a acima apresentada
especialmente pela sua divisão quanto às finalidades das tarefas. No entanto, outras se
poderiam aqui citar que no seu conteúdo acabariam por não divergir muito da proposta
apresentada. Rosenfeld e Wilson (1999) referem que tal como os grupos podem ser
formais ou informais também os papéis o podem ser. Assim, os papéis formais são os
atribuídos em função do trabalho ou das tarefas tal como elas são identificadas na
descrição do posto de trabalho. São papéis puramente profissionais, existindo antes da
pessoa concreta integrar a organização, já que esta mesma acaba por ser um sistema de
múltiplos papéis. Os papéis informais decorrem dos papéis formais porque no desempenho
das actividades profissionais surgem comportamentos individuais não especificados,
89
expectáveis ou não pelos demais, e que distinguem os profissionais uns dos outros, de
resto tal como acontece na vida social extra-profissional.
-3 c).!/0
São muitos os papéis num grupo e deles dependem em grande parte as relações
interpessoais. É desta forma que se sustentam as relações de trabalho, tornando-se, assim,
os papéis numa importante fonte de estabilidade não só para a vida profissional como
também para a vida pessoal dos membros de uma organização. Estar bem em todos os
campos da nossa vida é algo que buscamos permanentemente. Este equilíbrio não pode ser
conseguido de uma forma isolada mas, antes, de uma maneira global. Esta ideia entendese
porque dificuldades numa determinada dimensão acabam por afectar as outras, ou não
fosse o ser humano um todo complexo, sistema aberto para fora e para dentro de si mesmo
(Morin 2003). Ao assumirmos um papel num grupo, padronizamos comportamentos, os
quais uma vez desenvolvidos se tornam difíceis de alterar, não só por nós próprios como
pelos outros que, como se disse, esperam de nós um comportamento empático e ditado
pelo nosso papel. E se é verdade que a manutenção do nosso papel nos trás, na grande
maioria das vezes, relações cordiais, de simpatia, até mesmo de amizade com os outros,
por vezes, o inverso também é verdade e como resultado disso mesmo podem gerar-se
consequências graves para a produtividade, satisfação e desenvolvimento do grupo.
³[U]ma vez estabelecidas, as relações entre papéis tornam-se muito difíceis de ser
alteradas mesmo quando não mais atendem seus objectivos ou impedem o crescimento
e a mudança necessários («). Papéis padronizados bem desenvolvidos são muito
difíceis de alterar. Tendem a determinar e a moldar grande parte do nosso
comportamento e, quando se tornam obsoletos, eles funcionam como um
constrangimento a possibilidades muito mais satisfatórias na relação´ (Cohen e Fink
2003: 244).
Neste contexto parece-nos importante apresentar a definição de conflito em grupo,
proposta por Sherif (1906-1988) no âmbito do campo da psicologia social:
³A revisão da investigação empírica e experimental mais recente conclui sem margem
para dúvidas, que a agressão, o conflito (e a cooperação) não são fenómenos gerados
internamente, ou intrapsíquicos. São estados de relacionamento que emergem como
90
consequência de transacções entre as pessoas, em situações que promovem ou
bloqueiam os objectivos que perseguem´ (Sherif in Vala e Monteiro 2004: 431).
Daqui resulta que um conflito, geralmente, nasce do desentendimento entre duas ou mais
pessoas, logo, ele terá de ser resolvido pelo diálogo entre essas duas ou mais pessoas. Na
resolução de conflitos não se perspectiva outra forma de resposta que não a do diálogo.
Existem, no entanto, algumas premissas para que tal aconteça. Em primeiro lugar, a
aceitação de que efectivamente o conflito existe; depois, a abertura ao diálogo com a
convicção de que ninguém está totalmente errado ou totalmente certo, logo, terá de haver a
predisposição para a auto-análise e para a aceitação de erros próprios; terá igualmente de
existir disponibilidade para a mudança, já que a resolução terá de passar pela modificação
de comportamentos; por último, a intervenção de um mediador aceite por ambas as partes
pode revelar-se extremamente útil nos casos em que os litigantes extremem as suas
posições. Uma outra forma de terminar o conflito será a de uma das partes pura e
simplesmente abandonar o grupo. É algo que acontece inúmeras vezes, no entanto tal
opção não se aceita como a resolução de conflito; trata-se antes de capitulação. A
resolução do conflito terá que passar pelo entendimento e pela continuidade das partes na
relação existente.
Neste capítulo apresentámos uma revisão das teorias sobre o fenómeno dos grupos. Ficou
explicado, de acordo com os critérios escolhidos e apresentados no início do capítulo, a
definição de grupo, a sua constituição, evolução e manutenção, bem como a interacção
entre os seus elementos, entre outras aspectos. Nesta abordagem tentámos não perder de
vista a perspectiva em que nos inserimos: a complexidade. Assim, ao longo do capítulo
utilizámos noções da perspectiva da complexidade que nos pareceram pertinentes para
explicar o funcionamento do fenómeno do grupo, precisamente enquanto entidade
colectiva, global ± como um todo complexo composto por partes.
91
c  1
TEORIAS SOBRE LIDERANÇA
92
O tema da liderança é um assunto apaixonante e sempre presente. Não deve haver um
único dia das nossas vidas em que não pronunciemos, ouçamos ou leiamos as palavras
líder ou liderança. É assim quando olhamos para um jornal, quando vemos televisão ou
quando comentamos com um amigo um qualquer assunto político, desportivo ou até social.
O conceito de liderança e toda a sua envolvente entraram há relativamente pouco tempo
nas nossas vidas e a sua profusão linguística ± pelo menos em Portugal e no mundo mais
desenvolvido ± tem sido notória. De facto a palavra foi algo banalizada, de tal forma que é
duvidoso que ela seja sempre bem empregue e no seu contexto adequado. Mas o conceito
em si mesmo também levanta dúvidas, até pelas inúmeras abordagens teóricas muitas
vezes discrepantes. Não admira pois a dificuldade em definir ou até em traçar um perfil de
liderança. Vejamos a seguinte passagem:
³Which criteria really matter? Let¶s say it¶s time to elect a new world leader. Here are
some facts about the three leading candidates:
c%!% associates with crooked politicians and consults with astrologers. He¶s
had two mistresses. He chain-smokes and drinks eight to 10 martinis a day.
c%!%Cwas kicked out of the college twice, used opium as an undergraduate,
now sleeps until noon, and drinks a quart of whiskey every evening.
c%!%cis a decorated war hero. He¶s vegetarian, doesn¶t smoke, drinks only an
occasional beer, and hasn¶t had any extra-matrimonial affairs.
Whom did you chose? If you opted for c, you may be surprised at what you get:
c%!% is Franklin D. Roosevelt
c%!%Cis Winston Churchill
c%!%cis Adolf Hitler´ (Kets de Vries 2001: 280).
A história ensina-nos que têm sido muitos os erros na escolha da liderança; ainda assim,
cada vez mais, precisamos de líderes, sejam eles de cariz político, cultural, económico ou
social. Porquê? Porque vivemos num mundo em mudança e a nossa primeira reacção à
mudança é a ansiedade e perante esta o primeiro reflexo é o de procurar alguém que nos
possa guiar no sentido de conter essa mesma ansiedade. Assim, quando a mudançae a
ansiedade invadem o nosso mundo estão criadas as condições para a emergência da
liderança (Kets de Vries 2001). E a mudança parece ter vindo para ficar. Basta
lembrarmonos
da vida que levavam os nossos avós por comparação com a vida que levamos hoje. Há
93
60 anos ainda nos deslocávamos numa carroça puxada por burros. Há 30 anos o homem
pisou a Lua. Hoje estamos em Marte. Pensemos neste exemplo: uma edição do jornal
Público, hoje, contém mais informação do que aquela que uma pessoa na Idade Média
estaria exposta durante toda a sua vida. Há, então, dúvidas sobre a constante mudança que
atravessa as nossas vidas? Daí a necessidade em encontrar líderes na nossa vida. Trata-se
de uma resposta natural face aos nossos medos, receios e inseguranças. E curiosamente os
líderes tendem a emergir na mudança e ao mesmo tempo tendem a produzir e conduzir
essa mesma mudança. Eles estão à nossa frente, paradoxalmente entre o presente e o
futuro, porque vêem o que a maioria ainda não viu, conduzindo-nos precisamente para essa
visão de futuro. Daí que seja consensual que o fenómeno liderança implique a
característica influência. Trata-se de um fio comum na investigação sobre o tema:
³Definimos liderança como a capacidade de influenciar um grupo em direcção ao
alcance de objectivos´ (Robbins 2002: 304).
³Os líderes precisam de ter a habilidade de influenciar o comportamento de outras
pessoas´ (Cohen e Fink 2004: 252).
³[A liderança é] um processo de influencia social em que o líder busca a participação
voluntária de subordinados num esforço de atingir os objectivos organizacionais´
(Schriesheim et al (1978) in Kinicki e Kreitner 2006: 347).15
Fica pois claro que sem influência não há liderança, embora aquela não esgote esta última.
Adoptando a definição de influência proposta por Cohen e Fink (2004) ao afirmarem que
influência é qualquer acto ou acto potencial que afecte o comportamento de outra(s)
pessoa(s), somos levados a pensar no papel que têm os seguidores no fenómeno da
liderança. Trata-se de outra noção a reter: não há liderança sem plural, ou seja, não há líder
sem seguidores. Liderança pressupõe relação e relação pressupõe comunicação. E porque
de relações falamos, torna-se fácil perceber que é impossível a influência ser apenas num
sentido. O líder influencia mais ou menos os seguidores mas também é certo que os
seguidores influenciam mais ou menos o líder. Neste processo de influência mútua como
diferenciar então tecnicamente o líder dos seguidores? Consideremos o conceito de
influência líquida (Cohen e Fink 2004). Só quando a influência é líquida é que a podemos
conotar com liderança, ou seja, quando a influência que A exerce sobre B é maior, por
15 Para um conjunto mais alargado de definições consultar Cunha e Rego (2005: 21).
94
comparação, à que B exerce sobre A. É desta forma, tendo influência líquida, que o líder
consegue levar os seguidores na direcção por ele desejada.
A influência pode também ser formal ou informal. Falamos em influência formal quando
ela se escuda numa prerrogativa de posição, por outras palavras, quando ela advém de um
cargo ou de uma posição em determinado sistema social. Falamos de influência informal
quando ela não decorre de qualquer cargo mas sim das características de alguém, as quais
sobressaem num determinado contexto e fazem com que a liderança dessa pessoa seja
aceite de uma forma natural pelos outros (Cohen e Fink 2004). Por fim, para que o
conceito de influência ± em contexto de liderança ± fique esclarecido é necessário que se
clarifiquem dois conceitos adicionais: influência legítima e influência ilegítima. O
primeiro tipo de influência acontece quando esta não é imposta, tal como os resultados que
produz. Os seguidores aceitam essa influência com naturalidade porque atribuem ao líder
capacidades e competências para tal. A segunda forma de influência, a ilegítima, acontece
quando esta não é aceite naturalmente, é contestada pelos seguidores, mas ainda assim
vigora por imposição (Cohen e Fink 2004). Esta última classificação sugere que
consideremos uma outra noção, a qual está fora das definições de liderança acima
referidas, e que é considerada por alguns autores como uma perspectiva moral (Kinicki e
Kreitner 2006). Para estes autores ³a liderança não é um conceito moral´ (Kinicki e
Kreitner 2006: 347) e a história, com líderes como Pol Pot, Adolf Hitler, Estaline,
Pinochet ou Castro, mostra-nos e ensina-nos isso mesmo. Os autores citam Barbara
Kellerman para defenderem que os ³ líderes são como nós: dignos de confiança e
fraudulentos, cobardes e corajosos, gananciosos e generosos. Supor que todos os bons
líderes sejam boas pessoas é querer ser cego à realidade da condição humana´ (Kellerman
in Kinicki e Kreitner 2004: 347). Neste quadro os autores sustentam que o líder
desenvolve substanciais doses de autocrítica e de auto-conhecimento, identificando as suas
fraquezas e as suas forças. A partir daqui o líder desenvolve e aplica, no acto contínuo de
liderança, todos ou grande parte dos seus atributos positivos.
Também a questão do poder se prende com a influência. Embora as duas noções sejam
com frequência usadas de forma indistinta, o facto é que existe entre elas uma diferença
substancial. Poder não é mais do que a capacidade de exercer influência, logo, quanto
maior for a influência líquida maior é o poder.
95
Tendo já como base para uma aproximação à liderança termos como influência, poder e
seguidores, introduzimos agora um novo elemento, que faz uma ponte directa entre líder e
seguidores, e sem o qual dificilmente a liderança seria reconhecida e aceite: a confiança
(Robbins 2002). Confiança pode ser definida como ³uma expectativa positiva de que a
outra pessoa não irá agir de maneira oportunista ± seja por palavras, acções ou decisões´
(Robbins 2002: 326). A confiança não é um sentimento imediato mas algo que se vai
construindo ± também ± com o tempo. À medida que se conhece alguém, a relação vai
amadurecendo e começamos a acreditar, ou não, que essa relação nos vai trazer, ou não,
sentimentos positivos de um em relação ao outro e vice-versa. A confiança envolve risco,
de desapontamento ou abuso, porque existe vulnerabilidade. Assim, só passo a confiar em
alguém quando acredito, por diversos motivos, que o outro não tirará vantagem das
minhas vulnerabilidades. E quando confio, sigo« um líder para o caso que estamos a
investigar.
É claro que os pressupostos da liderança, quando a entendemos no seio de uma relação
interpessoal, não se confinam por aqui. Eles serão, de resto, abordados com maior
profundidade mais à frente neste capítulo quando apresentarmos os estudos que foram e
continuam a ser efectuados sobre o fenómeno da liderança desde os primórdios do século
passado. Cremos, no entanto, que sem os pressupostos acima referidos não existe
liderança. A partir daqui, deste conjunto de pressupostos, as conjugações são muitas,
também variando em função das características do próprio líder. De resto, a maioria da
actividade de investigação sobre o fenómeno da liderança tem tentando encontrar na figura
do líder a essência da liderança. Por isso é importante referir a etimologia da palavra líder
(portuguesa) que encontra a sua origem no inglês leader.
³Leader first appears in English in about 1300 as ledere, which is formed from Middle
English leden `to lead' and -er, a suffix added to a verb to designate a person or thing
who does the something described by the verb. Leden, first appearing in around 1125,
comes from Old English laeden µcause to go with one¶, which itself comes from Proto-
Germanic laidijanan. The Proto-Germanic is also the source of Old Frisian leda and
Old Saxon ledian, as well as Middle and modern Dutch leiden, Old High and modern
German leiten, and Old Icelandic leid a. The meaning `person in front' is first
recorded in 1570.´16
http://www.takeourword.com, 15 de Outubro de 2006.
16
96
Como podemos observar a expressão líder decorre de um estado físico: aquele que vai à
frente. Trata-se de uma ideia que ainda hoje se mantém e é por isso que para existir um
líder terão de existir seguidores ± por definição, aqueles que o seguem, os que vão atrás. A
questão deve então colocar-se também noutros termos: como se chega à frente? Que
atributos ou características serão necessários par se estar à frente dos que estão atrás?
Afinal o que é um líder para além de ser aquele que ocupa o topo de uma pirâmide?
Geralmente a palavra líder é associada à noção de poder, ou seja, quem detém o poder
económico, político, social, etc., é vulgarmente considerado líder. A título de exemplo é
relevante que Adolf Hitler tivesse o título de Der Fü rer ± o líder, ou Benito Mussolini Il
Duce, ou Fidel Castro El Commandante. Palavras diferentes, mas que envolvem a mesma
noção: o que vai à frente, o que conduz, o que comanda.
Mas será mesmo este, ou apenas este, o conceito de líder e da acção ± liderança ± que lhe
está subjacente? Qual a essência do conceito liderança? Qual a sua tradução prática em
termos de desempenho? Um líder é sempre líder ou só o é em determinadas situações? E se
assim for em quais? E qual o papel dos líderes num mundo em constante mudança? Estas
são apenas algumas das questões às quais, através de uma revisão das principais teorias
sobre liderança, procuraremos dar resposta nas páginas seguintes. Contudo, queremos
sublinhar que a clarificação do tema não se afigura fácil e muito menos consensual: ³não é
possível encontrar uma definição que concite consenso ± havendo mesmo quem considere
que há quase tantas definições de liderança quantas as pessoas que se dedicaram ao tema´
(Cunha e Rego 2005: 20). No entanto, como escreveu Vesuíno, existe uma suficiente
sobreposição entre as diferentes posições que nos permite, senão uma definição
universalmente aceite, pelo menos uma caracterização mínima do conceito (Vesuíno 2005).
Vamos assim em seguida tentar dar respostas àquelas questões através de uma revisão às
teorias propostas por diversos autores a partir da terceira década do século XX. Teorias que
tentam encontrar nos traços do líder, nos seus comportamentos e nas diversas situações em
que a liderança surge a resposta à pergunta ³o que é um líder?´ As teorias mais recentes
tentam caminhos novos, como o estudo da relevância do papel dos seguidores ou até uma
conjugação das conclusões de diversos estudos anteriores. Optou-se, no caminho seguido,
por descortinar na bibliografia revista os estudos com sobreposição de conclusões bem
como aqueles reconhecidos pela comunidade científica ± até por aquele critério ± como os
97
mais relevantes. Daí que muitos estudos e investigações tenham ficado de fora.
Acreditamos no entanto que focámos todos os de maior peso. Assim, as investigações que
a seguir descrevemos pareceram-nos suficientes para atingir os objectivos que nos
propomos neste capítulo: proporcionar uma ideia geral, mas rigorosa e profunda, sobre o
fenómeno liderança, levantando pistas para o entendimento do papel e da essênciado líder
e por simpatia da liderança no contexto organizacional.
1!%/%
O estudo sistemático sobre a liderança só se iniciou a seguir à Segunda Guerra Mundial.
Até aí a liderança era em grande parte um assunto quase mítico, que se relacionava apenas
com questões de classe e de posição social (Hooper e Potter 2005). Natural, pois ± e
também devido ao desempenho de muitos militares e políticos no conflito acima referido ±,
que o tema tenha suscitado a atenção dos académicos a partir da segunda metade da década
de 40 do século passado. Na tentativa de definir o conceito em causa, a primeira
abordagem ao tema, influenciada naturalmente pela estrutura militar, visou definir o líder
através dos seus atributos pessoais e dos seus traços de personalidade. Com esta ligação da
investigação à ideia de que os líderes seriam detentores de capacidades especiais e homens
superiores, o qual os diferenciava dos seus subordinados, nasceu a teoria do grande omem
ou, dito de uma forma menos enfática, a teoria dos traços de liderança (Robbins 2002).
Esta proposta visava estudar os traços de personalidade que um líder deveria possuir para,
enquanto líder, ser eficaz e determinante em qualquer situação. Olhava-se o líder,
atribuindo-lhe uma eficácia de carácter universal decorrente das suas características inatas.
Desta forma a essência da liderança não dependeria da aprendizagem mas sim da aptidão
natural de cada um (Rego e Cunha 2004). Esta teoria favorece a visão romântica da
liderança, na qual o líder é apresentado como o herói ou o cavaleiro branco, enviado para
salvar a organização das suas dificuldades (Cunha e Rego 2005), parecendo ser consensual
que os grandes líderes exercem um poderoso fascínio sobre os seus seguidores. O ser
humano gosta de se sentir confortável, acreditando em alguém que controle os
acontecimentos. Quem melhor, então, que alguém dotado de um dom superior capaz de
apaziguar as angustias e hesitações trazidas pelos ventos de crise ou mudança? No entanto,
como alertam Cunha e Rego (2005), este seguidismo é uma moeda com duas faces. Por um
98
lado, os líderes são capazes de aglutinar multidões à sua roda e levam a altos índices
motivacionais e de esperança entre os seus seguidores e, por consequência, a resultados
positivos; por outro lado, o seguidismo fervoroso pode levar à cegueira dos seguidores e
por consequência à perda de discernimento, o que pode levar a resultados catastróficos. É
claro que temos aqui uma visão com enfoque não no líder mas naqueles que em si
acreditam. No entanto, se transferirmos o objecto de estudo para o líder também
encontramos insuficiências nesta visão do grande omem. Segundo Kirkpatrick e Locke
(1991), os seis traços que diferenciam os líderes são: (i) a ambição e energia, (ii) o desejo
de liderar, (iii) a honestidade e a integridade, (iv) a autoconfiança, (v) a inteligência, e (vi)
os conhecimentos relevantes para o trabalho. Este estudo constitui apenas um exemplo da
investigação realizada neste tópico. São muitas e variadas as qualidades atribuídas aos
líderes, sendo que as atrás citadas se sobrepõem, senão todas pelo menos algumas, em
muitas das teorias. Estes traços, embora importantes, não esgotam nem definem as
capacidades do líder, pelo que nenhum deles por si só ou conjuntamente é garantia de boa
liderança. De resto, face ao estudo referido, pode com alguma segurança apontar-se quatro
limitações à teoria do grande homem.
³Primeiro não existe nenhum traço universal que possa prever a liderança em qualquer
situação. Na verdade os traços parecem prever a liderança em situações selectivas.
Segundo, os traços prevêem melhor o comportamento em situações fracas» do que
em situações fortes». As situações fortes são aquelas em que existem rígidas normas
comportamentais, fortes incentivos e tipos específicos de comportamento e claras
expectativas em relação a quais comportamentos são recompensados ou punidos.
Essas situações criam menos oportunidades para que os líderes expressem as suas
tendências inerentes. ( ) Terceiro, as evidencias são pouco claras quanto à separação
da causa e efeito. ( ) Finalmente os traços funcionam melhor para prever o
surgimento da liderança do que para distinguir os líderes eficazes dos ineficazes´
(Robbins 2002: 305).
Ou seja, e em suma, partindo da teoria do grande homem, um líder seria sempre e em
qualquer situação um líder, no entanto, nada nos garante que assim seja, até porque ele
pode não manter as suas características intactas ao longo da sua vida já que, a mudança
dos seus quadros mentais, psicológicos, emocionais, das suas capacidades físicas, etc.,
poderá muito bem acontecer. A experiência provou que a combinação de traços não
produz necessariamente uma liderança eficaz. Provou também que dois líderes com traços
99
de personalidade diferentes podem ser igualmente eficazes. Parece ser, contudo,
consensual a ideia de que determinados traços podem facilitar a boa liderança sem que tal
lhe confira, sublinhe-se, êxito só por si, ou automático.
1(!% c0%%! 
Da teoria do grande homem partiram os estudiosos, ainda na década 40 do século passado,
para um novo enfoque da questão da liderança. As teorias comportamentais que
apresentamos nesta secção tentaram saber se é ou não possível formar um líder (Bilhim
2004). Optou-se por estudar os comportamentos do líder, tentando encontrar indicadores
comuns da emergência da liderança. Nasceram então as teorias comportamentais de
liderança, com a proposta de que comportamentos específicos determinavam os líderes,
distinguindo-os dos não-líderes ou seguidores. Pelo que ficou dito ± e antes de passarmos
às teorias comportamentais que consideramos mais relevantes ± julga-se pertinente
debruçarmo-nos sobre as implicações que os novos estudos comportamentais tiveram
relativamente à teoria do grande homem. Ao fazê-lo vamos colocar o acento tónico no que
é essencial à liderança, tal como as teorias revistas o fizeram. Ao se aceitar a teoria do
grande homem, concluir-se-ia que as características do líder seriam inatas, logo ou se
nasceria líder ou não se nasceria líder. Quanto às teorias comportamentais, a questão é
colocada de forma inversa, ou seja, sendo os actos que fazem os líderes, esses actos, esses
comportamentos específicos, poderiam ser aprendidos, aperfeiçoados e corrigidos. Assim,
enquanto segundo a teoria do grande homem, ser-se líder não seria passível de
aprendizagem, segundo as teorias comportamentais ser-se líder seria uma questão de
aprendizagem. Em termos práticos, na perspectiva das teorias comportamentais a liderança
poderia ser produzida na quantidade e até na qualidade que desejássemos. Vá o mesmo não
se pode dizer da teoria dos traços do líder, que deixaria ao acaso ou aos desígnios de algo
desconhecido o facto de em cada momento existirem mais ou menos líderes ou, até
mesmo, em última análise, de nenhum de nós ser líder ou de todos sermos líderes. Estas
duas hipóteses apresentam-se-nos, pelo registo da própria história, pouco ou nada
prováveis.
Vamos debruçar-nos em seguida sobre os dois estudos comportamentais que nos parecem,
depois da pesquisa efectuada, serem consensuais entre os investigadores, em termos da sua
100
relevância para o desenvolvimento do estudo dos comportamentos do líder. Referimo-nos
aos estudos das escolas de Ohio e de Michigan, cujo quadro de abordagem incide sobre a
identificação do estilo universal ou ideal de liderança (Vesuíno 2005). Estes estudos
tentaram ³ identificar estilos comportamentais de liderança eficaz a partir da observação
directa e sem pressupostos teóricos´ (Vesuíno 2005: 63).
1(    "!Os estudos da Universidade Estadual de Ohio (EUA)
iniciaram-se em 1945 e orientaram-se para a análise dos factos com o intuito de verificar
as dimensões independentes dos comportamentos dos líderes (Vesuíno 2005; Robbins
2002). Para se ter uma ideia do trabalho realizado deve sublinhar-se que os investigadores
começaram a sua triagem em inquéritos onde tentaram identificar mais de mil dimensões
diferentes (Robbins 2002), as quais foram apresentadas a instituições militares e
organizações industriais (Vesuíno 2005). Em resultado da análise feita aos questionários
respondidos, em consequência do natural afunilamento proveniente de respostas similares
(83%), foram identificados dois factores que, segundo os estudos, explicavam e
fundamentavam o comportamento dos líderes: estruturação (initiating structure) e
consideração (consideration).
O factor estruturação reflecte-se na forma como o líder é capaz de definir, estruturar e
orientar não só o seu próprio papel e competências como igualmente os dos seus
subordinados com vista a atingir determinados objectivos (Vesuíno 2005; Robbins 2002).
O líder com um alto nível de estruturação deveria, tendencialmente, delegar poderes e
tarefas, esperando que os subordinados consigam atingir os padrões de desempenho
pretendidos, já que estes desenvolveriam um papel mais activo nas funções de
planeamento, comunicação, concretização de prazos, investigação de novas ideias, etc. De
alguma forma considera-se que esta noção de estruturação é a semente para as modernas
teorias de coac ing, em que o desenvolvimento da liderança é entendida no âmbito de uma
³relação adulto-adulto». Vá não é ao líder que compete descobrir o que é melhor para os
subordinados ± isso é algo que compete a cada um deles. Cabe-lhe ajudar cada
colaborador a descobrir a forma de expressar melhor os seus talentos´ (Cunha e Rego
2005: 33).
101
Quanto à consideração o enfoque está na capacidade do líder em manter relações de
confiança mútua, de respeito pelas ideias e pelo carácter dos funcionários, bem como uma
atenção permanente aos sentimentos e bem-estar (Robbins 2002) daqueles últimos. Um
líder com um alto grau de consideração tende a debruçar-se e a ajudar os seus
subordinados a um nível puramente pessoal; a sua relação é de amizade e de
disponibilidade, tratando todos os seus subordinados como iguais (Robbins 2002).
Em termos conclusivos, as pesquisas efectuadas com base nas duas definições atrás
referidas apontavam os líderes com grau elevado nas duas dimensões como capazes de
³obter altos níveis de desempenho e satisfação dos funcionários com maior frequência do
que aqueles com baixa pontuação numa dessas dimensões ou em ambas´ (Robbins 2002:
306). Contudo existem excepções a esta regra. No que concerne à estruturação, os estudos
provaram que uma alta pontuação do líder nesta dimensão levou a um maior número de
reclamações e a absentismo e índices mais baixos de produtividade por parte dos
subordinados que executavam trabalhos repetitivos e rotineiros. Quanto à consideração,
são os próprios líderes que se colocam em xeque já que os estudos provaram existir maior
desconfiança relativamente ao seu desempenho por parte dos seus subordinados (Robbins
2002). Em suma os estudos de Ohio acabaram por concluir que existe uma tendência para
a obtenção de melhores resultados gerais por parte dos líderes com alta pontuação nas
duas dimensões, no entanto, as excepções apontam para a existência de algumas lacunas
no próprio estudo, que esquece, como se viu, os factores ambientais ou situacionais da
liderança. Por outro lado o one best way, suposto resultado da optimização daqueles dois
factores, parece mais um mito do que realidade, já que escasseiam tanto argumentos
teóricos como evidência empírica que inequivocamente o confirmem (Vesuíno 2005). No
entanto, deve também prestar-se atenção ao reverso da medalha, pois algo de positivo
pode retirar-se dos estudos de Ohio:
³The Ohio State studies had a profound impact on leadership thinking and research.
Perhaps their major impact is that wide use has been made of the Leader Behaviour
Description Questionnaire (LBDQ), for measuring consideration and initiating
structure. These concepts have become part of the conventional wisdom about
leadership and are the basis of many programs to train leaders´ (Neal e Mero 2003:
252).
102
1((    !'"!5%. Na mesma altura dos estudos da Universidade de Ohio,
também na Universidade de Michigan (EUA), a partir do Survey Research Center, se
desenvolveram estudos sobre o comportamento dos líderes. Aliás ambas as aproximações
foram algo semelhantes (Bilhim 2004; Vesuíno 2005). Tanto os estudos de Ohio como os
de Michigan cruzavam as características comportamentais do líder com a sua eficácia na
liderança. Os autores dos estudos de Michigan entrevistaram uma série de líderes de vários
tipos de organizações (industrias, escritórios, etc.) com alta e com baixa produtividade.
Também em Michigan se concluiu por duas dimensões de comportamento, a que
chamaram orientação para o funcionário e orientação para a produção. Constatou-se que
os líderes mais voltados para os seus subordinados privilegiavam as relações interpessoais,
interessavam-se pela situação dos seus funcionários e aceitavam as diferenças entre os
membros do grupo (Robbins 2002). Por sua vez, os líderes que privilegiavam a produção
tendiam a preocupar-se mais com a execução das tarefas, olhando o indivíduo apenas como
um meio para atingir o fim em vista; eram líderes que valorizavam essencialmente as
questões técnicas e práticas do trabalho (Robbins 2002). Destas constatações resultaram
algumas conclusões, nomeadamente a de que os melhores resultados eram obtidos pelos
líderes orientados para o funcionário já que estes ³exerciam um controlo mais geral e
distante, procuravam exercer funções distintas das funções desempenhadas pelos
funcionários, delegavam em maior grau, davam ordens com menos frequência e concediam
maior liberdade aos funcionários para eles executarem as suas tarefas específicas´ (Vesuíno
2005: 60).
Estes estudos acabaram no entanto com as mesmas críticas que haviam sido feitas à
pesquisa de Ohio, as de que eles não resolviam o problema essencial, ou seja, que não
comprovavam uma relação directa entre o comportamento do líder e a sua eficácia e
também que ao não abordar factores situacionais a lacuna se tornava evidente: ³[p]orque
não são, em última análise, os princípios que são validados ou invalidados mas antes as
situações que os tornam específicos que permitem que se proceda a essa validação´
(Vesuíno 2005: 63).
103
1*!% c!5'!%! 
Constatada a relativa insuficiência das teorias comportamentais tornou-se claro para os
investigadores do fenómeno da liderança que se estava perante um processo bem mais
complexo do que porventura de inicio eles terão imaginado.
³Assim, o fracasso na obtenção de resultados sólidos e a insatisfação crescente, tanto
da parte dos especialistas como da parte dos utilizadores, quanto à robustez dos
modelos [anteriores] e ao seu interesse prático, conduziu à investigação dos factores
situacionais´ (Bilhim 2004: 345).
Desta forma optou-se pelo caminho da contextualização do líder no seu ambiente, ou seja,
estudou-se o tema da liderança efectiva inserido na complexa teia relacional que se
estabelece entre os traços de personalidade, os comportamentos e ± e aqui reside o passo
seguinte ± os factores situacionais. Parte-se assim para a abordagem do problema em
contextos reais, justamente para se tentar identificar as diversas condições situacionais:
³A relação entre estilo de liderança e eficácia sugere que, sob a condição a, o estilo x
pode ser adequado, enquanto o estilo y é mais indicado para a situação b, e o estilo z
mais apropriado para a situação c. Mas o que seriam essas situações a, b e c?´
(Robbins 2002: 309).
Foi na procura deste tipo de entendimento que nasceram as teorias contingenciais, que
vamos abordar de seguida. Vamos considerar cinco delas em virtude de termos constatado
que são as mais citadas entre os investigadores do fenómeno em causa.
1* .9!.. Talvez o estudo que maior projecção alcançou tenha sido o do
Modelo de Fiedler, proposto por Fred Fiedler. Este modelo sugere-nos que não existe um
estilo ideal de liderança e, como tal, o objecto do estudo da liderança deve recair sobre a
sua eficácia em determinada situação. Daqui decorre que ³ a eficácia dos grupos depende
da adequação da relação entre o estilo de interacção do líder com os subordinados, e do
grau em que a situação permite o seu controlo e influência´ (Bilhim 2004: 346).
O primeiro passo deste estudo tentou identificar o estilo básico de liderança de um
indivíduo ± no sentido de saber se ele é orientado para a tarefa ou para o relacionamento
± e com esse propósito Fiedler elaborou o questionário do colega menos preferido
104
(LPC)17. O questionário apresenta-nos um grupo de 16 adjectivos que contrastam entre si
(aberto±reservado; intolerante-tolerante; prestável-indiferente; comunicativo-inacessível,
etc.), pedindo-se aos inquiridos que classifiquem, numa escala de um a oito, o colega com
quem menos tenham gostado de trabalhar. Com base nas respostas Fiedler acreditava
conseguir determinar o estilo básico de liderança de cada pessoa (Robbins 2002). Se a
pontuação for alta, ou seja, se a pessoa com quem menos se gostaria de trabalhar for
descrita em termos favoráveis, o inquirido estará voltado para o relacionamento. A
situação inversa ± uma pontuação baixa ± significará que as preocupações incidem sobre a
produtividade, logo o indivíduo está voltado para a tarefa. Aqueles cuja pontuação for
intermédia ficam de fora da previsão teórica sobre o seu estilo de liderança. Uma vez
obtido o resultado final, Fiedler assume que o estilo de liderança é fixo (Robbins 2002), o
que significa, por exemplo, que se nos depararmos com uma situação em que o líder seja
orientado para o relacionamento e ela requerer um líder orientado para a tarefa, os dois
aspectos não poderão coexistir e, portanto, devido à inflexibilidade do estilo de liderança,
ou se muda a situação ou se muda o líder.
Depois de encontrado o estilo básico de liderança através do questionário LPC, Fiedler
debruça-se sobre a situação propriamente dita, introduzindo três variáveis que determinam
se uma situação é favorável ou desfavorável ao líder (Bilhim 2004). São elas a relação
entre líder e liderados, que se traduz na confiança, credibilidade e respeito que os
subordinados nutrem pelo líder; a estrutura de tarefa, ou seja, a forma como estão
estabelecidos os procedimentos no trabalho; e o poder de posição, que determina a
autoridade para contratar, despedir, agir disciplinarmente, promover, etc. os seus
subordinados. O passo seguinte no modelo de Fiedler é avaliar a situação em relação
aquelas três variáveis contingenciais. ³A relação entre líder e liderados é boa ou má, a
estrutura de tarefa é alta ou baixa e o poder da posição é forte ou fraco´ (Robbins 2002:
310). Estas variáveis foram integradas numa escala, que parte do positivo para o negativo,
registando diversas situações intermédias (seis) ao longo deste percurso. Segundo Fiedler
(Robbins 2002), quanto mais alta for a pontuação nas três dimensões acima referidas
maior controlo ou influência o líder consegue na estrutura, o que lhe proporcionará um
alto grau de conforto na sua liderança.
17 LPC ± Least Preferred Co-worker.
105
Por fim a adequação do líder às situações. Partindo dos resultados do questionário LPC e
da avaliação das variáveis situacionais ± ou contingenciais ±, a teoria de Fiedler tenta
adequar o estilo básico de liderança à situação concreta, para que se possa obter o máximo
de eficácia na liderança. Fiedler concluiu, então, que os líderes orientados para a tarefa
conseguem uma maior eficácia tanto em situações favoráveis como desfavoráveis, ao
passo que os líderes orientados para o relacionamento são mais eficazes em situações
intermédias, ou seja, em situações nem favoráveis nem desfavoráveis.
1*(!%!%'!%. DC.%'"%. Um outro estudo, de alguma forma na
mesma linha, foi levado a cabo por Paul Hersey e Ken Blanchard, sob o nome de teoria
dos ciclos de vida (Vesuíno, 2005), ou teoria da liderança situacional (Robbins, 2002). A
novidade é aqui a inserção dos seguidores e do seu comportamento no estudo da eficácia
liderança. Pela primeira vez nos estudos sobre liderança tem-se em conta directamente não
apenas o líder mas também os que o seguem. ³Esta é uma teoria contingencial que centra
seu foco sobre os liderados. A liderança bem sucedida é alcançada pela escolha do estilo
adequado que Hersey e Blanchard argumentam ser contingente ao nível de prontidão18 dos
liderados´ (Robbins 2002: 312). Desta forma, estamos perante uma nova abordagem que
analisa a eficácia da liderança pela aceitação ou não dos líderes por parte dos liderados, ou
seja, independentemente do que o líder faça ou diga o seu sucesso encontra-se, de alguma
forma, dependente das acções de quem ele lidera. Por isso esta teoria também se socorre
das ³duas dimensões de Fiedler: a tarefa e a relação´ (Bilhim 2004: 348), mas vai mais
longe ao conjugar o estilo básico de liderança com a maturidade dos liderados, entendida
esta como ³a capacidade e a disposição das pessoas assumirem a responsabilidade de
dirigir o seu próprio comportamento´ (Bilhim 2004: 347), para que ³à medida que a
maturidade dos colaboradores aumenta o líder [deva] começar a reduzir o comportamento
de tarefa e a aumentar o comportamento de relacionamento´ (Vesuíno 2005: 133). Estamos
assim perante um modelo que conjuga as dimensões da liderança com a maturidade dos
liderados, estabelecendo assim uma correlação entre a actuação do líder e a maturidade
dos liderados (Vesuíno 2005). Assim, como observa Robbins (2002), esta teoria acaba por
18A tradução desta obra que estamos a seguir é brasileira. Na pesquisa que efectuámos constatámos que as
versões portuguesas deste estudo traduzem ³prontidão´ por ³maturidade´. Entende-se que esta última
tradução para portuiguês é mais fiel ao original pelo que, salvo quando se trate de transcrições literais, se
adoptará o termo maturidade.
106
encontrar alguma analogia com a relação entre pais e filhos. À medida em que estes se vão
tornando mais responsáveis e mais experientes na vida ± situação que podemos definir,
grosso modo, por maturidade ±, menor tende a ser o controlo exercido sobre eles por parte
dos seus pais.
Assim, no âmbito deste modelo, como se operacionaliza e de que forma a liderança? Desde
logo Hersey e Blanchard tipificaram quatro estilos comportamentais de liderança ±
determinar, persuadir, compartil ar, delegar. Cada um destes estilos resulta da
combinação entre o comportamento de tarefa e o comportamento de relacionamento
(Bilhim 2004). O comportamento de tarefa pode ser entendido como a medida em que o
líder orienta o liderado para a tarefa: como, quando e onde realizá-la; o comportamento de
relacionamento é a forma como o líder se relaciona bilateralmente com os seus liderados: o
apoio que lhes dá, a forma como os ouve e como apoia os seus esforços, etc.
Nesta teoria definem-se quatro graus de maturidade dos liderados, gradualmente da baixa
para a alta maturidade. No primeiro nível, de maturidade baixa, os subordinados não
revelam capacidade e disposição, ou então, são pessoas inseguras; no segundo nível, que
situa a maturidade entre baixa e moderada, as pessoas não têm uma capacidade especial
mas revelam disposição ou confiança; no terceiro nível, onde a maturidade é moderada a
alta, existe capacidade mas não existe disposição, ou então, as pessoas são inseguras;
finalmente, no quarto nível, de maturidade alta, existe competição e segurança (Bilhim
2004). Bilhim (2004) conjuga todos estes factores da seguinte forma:
³Determinar (tarefa elevada e baixo relacionamento) ± O líder define os papeis e
indica o que, quando e onde, as diversas tarefas são feitas. Salienta um comportamento
directivo;
Persuadir (tarefa elevada e elevado relacionamento) ± O líder dá a maior parte das
orientações e convence os liderados a adoptarem os comportamentos desejados;
Compartilhar (tarefa baixa e relacionamento elevado) ± Há partilha de decisão entre o
líder e os subordinados, em que o papel daquele é o de facilitar a comunicação;
Delegar (tarefa baixa e baixo relacionamento) ± O líder dá pouca direcção e apoio,
mas identifica o problema, deixando aos liderados a responsabilidade de execução´
(Bilhim 2004: 348).
107
Definidos os parâmetros desta teoria chega-se à fórmula proposta por Hersey e Blanchard.
Assim, porque a eficácia da liderança depende da capacidade e da segurança (motivação)±
que se traduzem no grau de maturidade dos liderados ±, esta teoria situacional defende que
para se atingir os melhores resultados e a melhor eficácia da liderança, o líder terá de
adoptar a atitude correspondente a cada grau de maturidade dos seus liderados. Desta
forma se o(s) seu(s) subordinado(s) se encontrarem no primeiro grau de motivação para
executar uma tarefa o líder deverá fornecer orientações claras e específicas (determinar);
se a situação envolver o grau dois de motivação, o líder deverá envolver-se nas orientações
para a tarefa e também envolver-se com os liderados ± comportamento de relacionamento
± para os conquistar´ (persuadir); se a envolvente for de grau três, de motivação, o líder
terá de comunicar, apoiar e participar no processo (compartilhar); finalmente, numa
situação de quarto nível, o líder não necessitará de fazer grande coisa (Robbins 2002). Por
aqui podemos ver que esta teoria para além de reconhecer o papel dos seguidores, atribui
ao líder espaço de manobra nas suas acções para adequar os procedimentos às
necessidades e lacunas dos liderados. Dependendo da situação, os líderes adoptarão
comportamentos diferentes, no entanto, a situação nesta teoria tem aqui como sujeito os
liderados e não a tarefa ou o ambiente.
1**!%%'%AE 7. Até esta fase dos estudos sobre liderança
pressupôs-se que os líderes tratam de forma igual todos os seus subordinados. No entanto,
qualquer um de nós, no nosso dia a dia, nas organizações onde trabalhamos, percebemos
com facilidade que não é bem assim. As empatias, os interesses, até mesmo os gostos
pessoais variam de pessoa para pessoa e este facto traduz-se naquilo que para nós se torna
em algo indesmentível: não há dois relacionamentos iguais. A teoria da troca lídermembro
vem, justamente, ao encontro desta análise e argumenta que por ³pressão do
tempo´ (Robbins 2002; Bilhim 2004) o líder acaba sempre por estabelecer um
relacionamento diferente ± talvez mesmo especial (Robbins 2002) ± com um pequeno
grupo dos seus liderados. Formam-se desta maneira dois grupos ± o in group e o out group
± cujas relações com o líder, sendo diferentes, se vão mantendo estáveis ao longo do
tempo. A diferenciação é sempre realizada pelo líder, embora os seus critérios não sejam
apresentados de uma forma clara nesta teoria. Existe, no entanto, alguma evidência
empírica que sugere que nos in group se incluem pessoas ³em função da similaridade de
108
atitudes e características de personalidade ou por possuírem um nível de competência
superior ao dos demais membros´ (Robbins 2002: 313) e que, embora elas sejam sempre
escolha do líder, é com base nessas mesmas características pessoais que elas são
escolhidas. Este grupo recebe, naturalmente, mais atenção por parte do líder e é mesmo
provável que essa atenção se estenda a privilégios vários (Bilhim 2004), enquanto que o
out group é tratado com uma autoridade mais formal. A teoria da troca líder-membro
defende que os elementos do in group mostram ³maiores taxas de realização, menos
saídas e maior satisfação com o seu superior´ (Bilhim 2004: 349).
1*-!%c%!"E 7F'!8. Esta teoria foi apresentada por Robert House
(1971) e retira dos estudos da universidade de Ohio alguns dos seus principais elementos
(estrutura de iniciação e consideração) (Bilhim 2004; Robbins, 2002). Assenta na ideia de
que os subordinados aceitam o comportamento do líder no pressuposto de que este os
conduzirá, de forma imediata ou futura, à satisfação das suas necessidades e à resolução
das suas ansiedades. O comportamento do líder é, pois, de natureza motivacional uma vez
que o liderado busca satisfação através da qualidade das suas realizações, sendo a função
do líder apoiar, conduzir e ensinar nesse sentido. Assim, esta teoria defende que a função
da liderança é uma função condutora, já que ela define as metas a atingir e terá de
assegurar o apoio e a orientação para esse objectivo. ³Os termos meta e caminho derivam
da convicção de que os líderes eficazes abrem os caminhos para ajudar os seus liderados a
atingirem os seus objectivos, tornando a jornada mais fácil ao reduzir os seus obstáculos´
(Robbins 2002: 314).
House (1971) fala-nos em quatro comportamentos de liderança. O líder directivo dá a
conhecer as expectativas que sobre os seus subordinados, define e calendariza as tarefas e
orienta o percurso dos seus executores até ao objectivo estar concluído; o líder apoiante é
amigável e preocupa-se com as necessidades e com o bem-estar dos seus subordinados; o
líder participativo ouve e consulta os subordinados, aceitando as suas ideias para o
processo de tomada de decisão; e o líder orientado para a realização determina metas
ambiciosas e espera dos seus subordinados a sua realização ao mais alto nível.
Ao contrário do modelo de Fiedler, House (1971) defende a flexibilidade do líder,
afirmando que os quatro comportamentos de liderança podem ser usados isoladamente ou
109
em conjunto, dependendo para isso da situação e das opções que o próprio líder quiser
tomar.
Na situação, factor situacional ou factor contingencial, House (1971) distingue duas
variáveis: as ambientais, na esfera de intervenção dos liderados (estrutura de tarefa,
sistema formal de autoridade e grupo de trabalho); e as que fazem parte das características
pessoais do funcionário (centro de controlo, experiência e capacidade adquirida).
³Os factores ambientais determinam o tipo de comportamento requerido do líder como
um complemento para que os resultados atingidos pelos subordinados sejam
maximizados, enquanto as características pessoais do funcionário determinam como o
ambiente e o comportamento do líder são interpretados´ (Robbins 2002: 314).
Com base nesta interpretação, a teoria caminho-objectivo conclui que a liderança se torna
ineficaz quando for redundante em relação às variáveis ambientais ou incongruente face às
características do funcionário (Robbins 2002). Abaixo revemos algumas previsões de
eficácia da liderança baseadas na teoria de House (1971):
(i) A liderança directiva conduz a mais satisfação quando existe pressão ou quando
as tarefas não estão bem definidas, do que quando aquelas são altamente
estruturadas e planeadas.
(ii) A liderança apoiante conduz a um maior desempenho e a uma maior satisfação
dos subordinados quando a tarefa é estruturada e bem definida.
(iii) A liderança directiva pode ser entendida como redundante se os subordinados
forem muitos competentes e/ou forem muito experientes.
(iv) A liderança orientada para a realização serve as expectativas e as ansiedades
dos subordinados, na medida em que, quando as tarefas forem estruturadas de uma
forma ambígua, aqueles acreditem que os seus esforços venham a levar a
desempenhos superiores.
1*1 .AE%!'!0%. Trata-se do mais recente contributo da abordagem
contingencial e foi proposto por Victor Vroom e Philip Yetton em 1973. O modelo
líderparticipação
apresenta um conjunto de regras sobre a forma e a intensidade do
envolvimento do líder no processo decisório perante as diferentes situações. Os autores
110
reconhecem que a estrutura de tarefa pode ser mais ou menos rotineira e desta forma
defende-se nesta teoria que perante situações diferentes os líderes deverão ajustar os seus
comportamentos no sentido de conseguirem atingir a maior eficácia possível. Este é, pois,
um modelo normativo que nos fornece uma espécie de árvore de decisão (Bilhim 2004),
com um conjunto de regras que deverão ser seguidas sequencialmente consoante a
situação ou situações. A metodologia assenta em sete situações contingenciais para as
quais deverão ser adoptados um de entre cinco estilos de liderança. São eles: (i)
Autocrático I (AI); Autocrático II (AII); Consultivo I (CI); Consultivo II (CII); e Grupo II
(GII).
Na sua definição podemos entender o estilo de liderança AI como aquele em que o líder
pensa, resolve e decide com base na informação que dispõe na altura; em AII tenta
recolher primeiro informação junto dos subordinados e só então decide; em CI o líder
discute o problema com algum ou alguns dos seus subordinados de maior confiança sem,
no entanto, o fazer em grupo. A decisão não está no entanto vinculada à opinião dos
inquiridos; em CII a partilha é feita em grupo e a decisão continua a ser individual; em GII
a partilha é total e a decisão passa pela aceitação do grupo. O líder poderá adoptar
qualquer um destes comportamentos, cabendo-lhe a ele decidir que posição de liderança
deverá seguir perante as sete variáveis contingenciais apresentadas pelo modelo: 1)
Importância da decisão; 2) Grau de importância da aceitação de uma decisão por parte dos
subordinados; 3) Existe ou não informação que chegue para tomar a decisão; 4) Em que
grau de boa ou má estruturação se coloca o problema; 5) Se a decisão do líder for
unilateral ela será aceite ± e em que grau ± pelos subordinados; 6) Os subordinados estão
ou não envolvidos ± ³vestem a camisola´ ± com os objectivos da empresa; 7) A decisão
pode produzir conflitos posteriores entre os subordinados.
Esta foi a grelha contingencial apresentada, como se disse, em 1973, por Vroom e Yetton.
Mais recentemente estes autores adicionaram-lhe cinco variáveis tentando assim prever o
maior número possível de situações diferenciadas. São elas: 8) Se os subordinados quando
chamados ao processo decisório reúnem ou não informação suficiente; 9) Até que ponto a
pressão do tempo pode limitar o envolvimento dos subordinados; 10) Se são razoáveis os
custos para reunir subordinados geograficamente separados; 11) Qual a importância
atribuída à celeridade da tomada de decisão; 12) Importância do modelo participado como
ferramenta para o desenvolvimento das capacidades de decisão dos subordinados.
111
1-!% '%! &!'% <
A partir dos anos 80 a investigação voltou, de alguma forma, a centrar-se na pessoa do
líder e nos seus traços. Foi como que o revisitar da teoria do grande homem tentando
aprofundá-la à luz de novos conceitos. De entre as novas vertentes da investigação
destacam-se aqui três delas, comuns aos diversos planos de estudo entretanto surgidos:
³Primeiro enfatizam os comportamentos simbólicos e emocionalmente apelativos do
líder. Segundo, tentam explicar como certos líderes são capazes de conseguir níveis
extraordinários de comportamento por parte dos seus liderados. E terceiro, esvaziam a
complexidade teórica e procuram ver a liderança de maneira próxima àquela de uma
pessoa comum´ (Robbins 2002: 317).
Também neste campo os estudos são muito diversos, quer a nível conceptual quer mesmo
a nível de terminologia. Optámos por incluir neste estudo três teorias que nos pareceram as
mais coerentes e abrangentes nesta problemática. Coerentes a nível de percurso e
abrangentes a nível temático.
1-!%% !7!!%%Esta Teoria, proposta por McElroy (1982)
centra-se na actuação do líder. Assim, defende-se que a liderança é um conceito atribuído
pelos seguidores a determinado indivíduo ao reconhecerem nele certos traços, tais como a
inteligência, a personalidade ousada, a aptidão verbal forte, a agressividade, a
compreensão e o engenho (Bilhim 2004). Sob outro prisma é-lhe ainda reconhecido
espírito e capacidade de iniciativa e consideração elevada, o que faz da pessoa em causa
alguém capaz de ser reconhecido como líder.
1-(!%%!%%c%! &!'%Como resultado, de alguma forma, da evolução
da teoria anterior surgiu a teoria da liderança carismática (Bilhim 2004). Esta teoria
constitui-se, segundo Rego e Cunha (2004), como ³um dos temas mais discutidos (e
controversos) em torno da liderança´. No entanto, parece consensual a ideia deque existe
liderança carismática quando os seguidores atribuem ao líder capacidades heróicas ou
extraordinárias de liderança com base no seu comportamento (Robbins 2002; Bilhim
19 O conjunto de teorias que agora se apresenta sob o nome de neocarismáticas tem sido referido também
sobre outras designações; por exemplo, Bilhim (2004) adopta o termo teorias implícitas da liderança.
112
2004; Rego e Cunha 2004). A etimologia de carisma é grega e significa ³dom da
inspiração divina´, o que acaba por reforçar esse carácter transcendental, de alguma forma,
ligado ao heroísmo. Porque este é um tipo de liderança atribuída, ou seja, ela existe pelo
reconhecimento dos seguidores, em grande medida os estudos têm como objectivo a
identificação dos factores de tal atribuição. Questionou-se se ela derivaria dos atributos
particulares do indivíduo, se proviria da situação ou se acabaria por ser uma conjugação
das duas. Parece ser hoje consensual a ideia da interacção (Rego e Cunha 2004). Klein e
House (1995), citados por Rego e Cunha, problematizam metaforicamente a questão ao
considerarem três elementos que concorrem para o surgir da liderança carismática: a faísca
(o líder a quem são atribuídos comportamentos e características carismáticos); a matéria
inflamável (os seguidores receptivos ao carisma); o oxigénio (o ambiente carismático,
usualmente caracterizado pelo ambiente ou percepção de crise, daí decorrendo um
ambiente de desânimo e pouca motivação gerado pela situação).
Mas quais serão, então, as características do líder carismático? Robbins (2002) e Bilhim
(2004) citam Conger e Kanungo (1998) na proposta de cinco características-tipo inerentes
aos líderes carismáticos, e que diferenciam estes últimos dos líderes não carismáticos. São
elas:
1) Visão e Articulação (têm uma visão, que se traduz na meta proposta, e que
promete um futuro melhor - a sua aptidão permite-lhes um esclarecimento cabal e
claro da sua visão);
2) Risco pessoal (assumem os riscos e estão prontos para o insucesso que lhes
poderá trazer mesmo o auto-sacrificio; tudo em prol da visão);
3) Sensibilidade ao ambiente (avaliam e preocupam-se com as questões
contextuais, adaptando os recursos para a mudança necessária);
4) Sensibilidade para as necessidades dos liderados(estão atentos e entendem as
capacidades dos subordinados e são sensíveis face às suas necessidades e
sentimentos);
5) Comportamentos não convencionais (adoptam comportamentos novos, pouco
convencionais e que não estão de acordo com as regras pré-estabelecidas).
(Robbins 2004).
113
De acordo com estas características é natural que a influência exercida seja igualmente
específica. Daí a proposta de Shamir et al (1993), citados por Robbins (2002) e por Rego e
Cunha (2004), que nos traça um percurso de influência do líder carismático: ele inicia-se
com uma visão que promete a continuidade fixando o trajecto que parte do presente em
direcção a um futuro melhor; o líder informa os seguidores sobre as suas expectativas (de
alto desempenho) e manifesta a sua convicção de que os subordinados conseguirão
alcançar os objectivos propostos; esta atitude desencadeia o instinto de auto-estima e de
auto-confiança dos liderados; o líder apresenta, assim, um novo sistema de valores ao
mesmo tempo que exemplifica para os seguidores o comportamento a ser adoptado por
todos; por fim, o líder carismático submete-se a auto-sacrifícios e adopta comportamentos
não convencionais, provando o seu envolvimento, coragem e convicção em relação à visão
por si proposta.
Neste quadro a liderança carismática provoca efeitos directos nos seguidores. Segundo
Robbins ± que se fundamenta nos estudos de House (1971), Conger e Kanungo (1998),
Kirkpatrick e Locke (1991), entre mais alguns outros ±, existem estudos suficientes que
nos permitam concluir pela positiva sobre uma ligação directa causa/efeito entre a
liderança carismática e os altos índices de desempenho e de satisfação dos liderados. ³As
pessoas que trabalham para líderes carismáticos são motivadas a realizar esforços extras
no trabalho. Como gostam do seu líder e o respeitam, expressam maior satisfação´
(Robbins 2002: 318).
Uma outra questão investigada no âmbito da liderança carismática é a seguinte: nasce-se
carismático ou aprende-se a sê-lo? A maioria dos estudos indica-nos que o carisma pode
ser aprendido e a esta ideia não é alheio o facto de muitos estudos neste sentido terem sido
feitos com base experimental em estudantes universitários. A título de exemplo,
recuperamos brevemente os estudos efectuados por Howel e Frost, na década de 80.
Foram identificadas e posteriormente ensinadas a vários alunos universitários ³etapas de
liderança carismática´, as quais eles deveriam colocar em prática com os seus colegas.
Cumpridas essas etapas os resultados foram inequívocos:
³Os pesquisadores descobriram que foram capazes de aprender a projectar carisma.
Além disso, os liderados desses estudantes exibiram desempenho mais alto nas tarefas,
melhor adequação ao trabalho e melhor ajuste ao líder e ao grupo, se comparados com
outros indivíduos liderados por líderes não carismáticos´ (Robbins 2002: 318).
114
A terminar, de referir ainda que a liderança carismática pode não ser útil em todas as
situações em que se pretenda altos níveis de desempenho. Ela parece estar mais talhada
para tarefas que impliquem questões ideológicas, com maior relevância quando as
organizações se encontram na sua fase inicial ou quando necessitam de mudança, ou
quando o ambiente é incerto e tenso (Robbins 2022; Bilhim 2004).
11!%%% %''!%.!%%% )%'!%.
No âmbito da escola neo-carismática passamos agora a uma das mais recentes abordagens:
a liderança transaccional e a liderança transformacional. Daí que o assunto se preste a
muitas dúvidas e a algumas confusões: desde logo muitos autores ao referirem-se ao tema
titulam: ³Liderança Transaccional versus Liderança Transformacional´ (Ferreira et al,
2001) como se de uma oposição se tratasse; depois, pela confusão que se pode estabelecer
entre estes dois tipos de liderança e as definições ± e diferenças ± de gestão e liderança;
por fim porque alguns autores tendem a não clarificar a diferença conceptual entre
liderança transformacional e liderança carismática.
Bernard Bass iniciou os estudos sobre as lideranças transaccional e transformacional na
década de 80 e é hoje visto como o ³pai´ desta teoria. Definiu os conceitos e é citado em
todos os manuais dedicados ao tema. A liderança transaccional incide no esclarecimento
do papel e dos requisitos das tarefas dos funcionários bem como em atribuir-lhes
recompensas ou castigos pelo seu desempenho efectivo (Kinicki e Kreitner 2006). Daí que
este tipo de líder conduza, induza e motive os seus seguidores através do processo de
troca, de transacção (recompensa/desempenho). Este modelo de liderança procura
igualmente que os objectivos dos liderados sejam compatíveis entre si e que se enquadrem
no objectivo global da empresa pelo que não se poderá dizer que há objectivos distintos ou
antagónicos. Esta ideia tem por base uma permanente coordenação de interesses e
negociação de conflitos (Ferreira et al 2001).
A liderança transformacional, ao contrário da transaccional que envolve a atribuição
penalidades e de recompensas aos seguidores, é definida em termos de efeitos sobre os
seguidores. Ela fundamenta-se no processo através do qual os líderes incutem confiança,
tentam desenvolver a liderança nos outros, revelam postura de auto-sacrifício e revelam-se
também como patrocinadores de uma moralidade que induz os seguidores, por acreditarem
115
e admirarem o líder, a que se transcendam na prossecução das suas tarefas em prol do
objectivo último do grupo (Kinicki e Kreitner 2006). Em suma, o líder transformacional
focaliza os interesses da organização e leva os subordinados a ultrapassar os seus
interesses, em torno do objectivo final, conseguindo assim um óptimo empenho dos
seguidores o que leva à geração de grandes mudanças e de elevados desempenhos.
A liderança transaccional e a transformacional são dois modelos que se complementam:
³[a] liderança transformacional é construída em cima da liderança transaccional ± produz,
nos liderados, níveis de esforço e de desempenho que vão além daqueles obtidos apenas na
abordagem transaccional´ (Robbins 2002: 319). Bass admite, no entanto, que ambos os
estilos podem ser eficazes em situações distintas: ³o transformacional em períodos de
fundação organizacional e de mudança, e o transaccional em períodos de evolução lenta e
ambientes relativamente estáveis´ (in Rego e Cunha 2004: 235).
Por outro lado, não se pode confundir liderança carismática com liderança
transformacional. É certo que para se ser líder transformacional tem de se ser também
carismático, no entanto, este estilo não esgota aquele.
³O líder puramente carismático pode querer que os seus liderados adoptem a visão de
mundo carismática, e param por aí. O líder transformacional tenta inculcar em seus
seguidores a capacidade de questionar não apenas as visões já estabelecidas, mas até
aquelas colocadas pelo próprio líder´ (Avolio e Bass in Robbins 2002: 319).
Para além desta argumentação importa referir ainda outras questões não menos
importantes para o esclarecimento desta problemática. Assim, temos exemplos de líderes
carismáticos (estrelas do desporto, do cinema, etc.) que nada têm de transformacional;
também é de realçar, pelo acima exposto, que os líderes transformacionais procuram
fortalecer, em diversos sentidos, os seus seguidores, ao passo que os líderes carismáticos,
tantas e tantas vezes, pretendem apenas ser seguidos, tornando fracos e dependentes os
seus liderados.
Os líderes carismáticos geram inúmeras vezes relações amor/ódio, enquanto nas lideranças
transformacionais é mais difícil encontrar sentimentos tão extremados. Por fim, os líderes
transformacionais podem encontrar-se em diversos níveis das organizações enquanto os
carismáticos tendem a posicionar-se no topo (Cunha e Rego 2004).
116
Em suma, a liderança transformacional transforma os liderados no sentido de estes
passarem a perseguir os objectivos da empresa deixando os seus próprios interesses para
segundo plano. Se esta é a conclusão, devemos então questionar de que forma consegue o
líder produzir essa modificação nos seus subordinados?
Sendo certo que as alterações fundamentais passam pelos valores, crenças, objectivos,
necessidades e motivações, que outros factores podem concorrer para essa mudança?
Segundo um estudo de Kark et al (2003), citado por Kinicki e Kreitner (2006), os líderes
transformacionais tendem a seguir quatro princípios de liderança, que produzem resultados
directos nos seus funcionários:
a) a motivação inspiracional, que estabelece uma visão sedutora do futuro, usando
argumentação emocional e exibindo optimismo e entusiasmo, factores que
transmitem esperança no futuro e um objectivo comum;
b) a influência idealizada, que oferece um padrão de comportamentos que serve de
exemplo, tais como, o auto-sacrificio em prol do grupo ou a exibição de elevados
padrões éticos;
c) a consideração individualizada, que visa a motivação, a valorização, o ensino e
a transferência de poder para os funcionários;
d) por fim, a estimulação intelectual, que tem como finalidade levar os
funcionários a questionar-se, não só a si mesmos, como também ao status quo
estabelecido, incentivando-os assim a serem inovadores e criativos na resolução
conjunta dos problemas da organização (Kinicki e Kreitner 2006).
Este quadro resume-se apenas ao campo teórico, pelo que não se pode pensar ou adivinhar
a liderança transformacional ± de resto como qualquer outra ± como um mundo ³cor-
derosa´.
Por este motivo, e dentro de uma lógica realista, deixa-se aqui um excerto de um
artigo de Vohn Huey, publicado pela revista Fortune, a 21 de Fevereiro de 1994:
³Os poucos chefes que vislumbraram a ocorrência de tudo isto [o crescimento
exponencial da mudança] declararam-se transformacionais e adoptaram conceitos
como empowerment, workout, qualidade e excelência. O que eles não fizeram ± bem
no fundo ± foi abandonar o controlo ou as suas convicções fundamentais sobre a
liderança. Como diz Vames O¶Toole, um professor e especialista em liderança: noventa
117
e cinco por cento dos líderes americanos dos nossos dias falam as coisas certas.
Apenas 5% as fazem´.
13!%%A8.1
A Liderança Nível 5 já não nos aparece inserida no quadro conceptual das lideranças
neocarismáticas. Em abono da verdade, devemos salientar que ela não se enquadra em
qualquer modelo de liderança pré-estabelecido. Vamos, pois, até novos desenvolvimentos
considerá-la como uma perspectiva adicional ou complementar ao anterior modelo, uma
vez que estamos perante um desenvolvimento polvilhado de noções e conceitos que
encontram a sua génese nas teorias neocarismáticas.
A palavra-chave deste conceito apresentado pelo antigo professor universitário Vim
Collins, no best-seller intitulado Good to Great (2001), é a umildade. Parte-se do
princípio que sem humildade nunca um líder poderá chegar ao nível 5 de liderança. O
aparecimento e desenvolvimento desta teoria encontra o seu fundamento na questão: Uma
boa empresa pode tornar-se numa excelente empresa? E em caso afirmativo, como?
Collins desenvolveu a partir de meados da década de 80 uma pesquisa onde procurou
identificar empresas que tivessem conseguido a evolução do bom para o excelente e
comparou-as com outras que não atingiram o nível excelente de desempenho. Num
universo de 1435 empresas estudadas, Collins identificou 11 empresas no topo da
pirâmide do desempenho e a sua comparação com as restantes permitiu-lhe concluir que
existem algumas alavancas que transformam as empresas de boas em excelentes. Uma
dessas alavancas foi apelidada de liderança nível 5, ou seja, essas empresas
protagonizavam um conjunto de características próprias que evidenciavam um
determinado estilo de liderança. A envolvente deste estilo baseia-se na integridade e na
ética do líder e encontra muitos dos seus valores na liderança transformacional. A
novidade desta teoria tem que ver com a humildade e com a modéstia, as quais fazem com
que os líderes nível 5 se afastem dos holofotes mediáticos.
³Por conseguinte, este novo perfil é o de um líder servidor da organização, dedicado e
competente. Vá não é o salvador tocado por alguma graça divina inacessível ao comum
dos mortais. Também já não é alguém cujo fim é exclusivamente de natureza
118
económico-financeira, mesmo que isso implique o sacrifício pelos valores do respeito
e da dignidade das pessoas´ (Cunha e Rego 2005: 33).
Desta forma, podemos encontrar alguns traços deste tipo de liderança: modéstia, vincada
determinação, esforços e ambição canalizados para a organização, introspecção sem
dificuldade em assumir o confronto com os próprios erros e a determinação em manter por
tempo indeterminado e duradouro um desempenho organizacional altamente eficaz.
Assim, podemos considerar os líderes de nível 5 líderes autênticos, que se envolvem
directamente na organização enquanto um todo e que buscam uma relação próxima e
directa com os seus subordinados. Embora estas sejam noções que, de alguma forma, se
sobrepõem a algumas das teorias de liderança anteriormente analisadas, nomeadamente a
transformacional, é importante salientar que: ³[o] comportamento novo e inesperado desta
teoria gira em torno da conclusão que os líderes bons a excelentes não são apenas
transaccionais e transformacionais, mas, o mais importante, são humildes e fortemente
determinados´ (Kinicki e Kreitner 2006: 369). Como exemplo atentemos no seguinte caso,
referido por Kets de Vries. Num seminário sobre liderança, que incidia sobre casos reais,
de Vries ouviu o seguinte exemplo da plateia:
³I¶m a very good manipulator. Sometimes I have a good idea and manage to present it
in such a way that others think it¶s really their idea. Then they run with it and the idea
is implemented. If it turns out to be successful, I¶m delighted, of course. So I go home,
open the liquor cabinet in my study, and pour myself a shot of the best whiskey. I raise
my glass in a toast. But a toast to whom? To myself? Is there no more to it? I guess I
have to do without the applause´ (Kets de Vries 2001: 316).
Trata-se apenas de um exemplo, com alguns traços de maquiavelismo, mas que não deixa
de apontar a capacidade do líder para ser humilde, ao não querer nem sentir a necessidade
de µcolher os louros¶.
Neste capítulo apresentámos uma revisão das principais teorias sobre liderança, as quais
utilizaremos para a análise que faremos mais à frente do trabalho de Vosé Mourinho.
Caberia também aqui uma referência à teoria da inteligência emocional, a qual, no entanto,
não é feita porque a temática, constituindo uma base teórica importante nesta investigação,
mereceu um capítulo inteiro nesta dissertação. No capítulo seguinte completamos este
trabalho de revisão das teorias sobre liderança. Apresentaremos uma revisão da
investigação em curso sobre liderança, tendo como critério em temáticas a relevância
119
directa para este estudo. Assim focaremos os temas liderança e complexidade e as
emoções na liderança.
120
c  3
INVESTIGAÇÃO EM CURSO EM COMPLEXIDADE E LIDERANÇA E
EMOÇÕES E LIDERANÇA
121
Traçámos acima o panorama histórico e conceptual dos temas que ajudam a compreender a
problemática da liderança num contexto profissional contemporâneo. Esses temas foram
apresentados de uma forma sistémica e enquadrados numa sequência de teorias
estabelecidas que adiante utilizaremos para compreender o estilo e os princípios da
liderança de Vosé Mourinho.
Nesta investigação sugerimos que a base teórica primeira, a partir da qual Vosé Mourinho
desenvolve a sua liderança e o seu trabalho, são as teorias da complexidade, com um
acentuado apelo à inteligência emocional. É no pensamento complexo, cujos estudos são
protagonizados por Edgar Morin entre outros, que Vosé Mourinho assenta o seu trabalho,
sendo o primeiro, pelo menos na gestão desportiva, a operacionalizar aquela perspectiva
paradigmática numa área concreta da actividade humana.
Neste capítulo apresentamos uma revisão sobre a investigação mais recente no que respeita
à temática da liderança, no âmbito da perspectiva que seguimos na dissertação. Centrámos
a investigação revista e apresentada neste capítulo em dois aspectos fundamentais:
a) a liderança assente nas, ou influenciada pelas, teorias da complexidade, e a sua
consequente operacionalização; tentámos saber se o fenómeno da liderança tem
sido alvo de estudos que a investiguem numa perspectiva complexa ou, dito de
outra forma, se o desenvolvimento desses eventuais estudos tem sido no sentido da
identificação de uma liderança µcomplexa¶ e operacionalizada;
b) o papel e desenvolvimento das emoções na liderança, em especial se estivermos
a falar de liderança assente em princípios da complexidade; neste campo, os
estudos são recentes, mas a sua difusão no mundo organizacional tem sido
acelerada. A questão que nos preocupa de momento, alvo da nossa pesquisa,
respeita à interligação e interacção entre emoção e liderança.
A investigação que efectuámos, em parte com recurso à Internet, nomeadamente através da
Biblioteca do Con ecimento Online, centrou-se nos journals académicos mais relevantes
para a temática em causa, bem como na identificação de livros recentes, com credibilidade
aceite no meio académico, que abordassem alguma das temáticas acima identificadas.
Daqui resultou uma primeira conclusão: trabalhos que relacionem liderança e
complexidade não abundam. A aproximação que se faz à problemática que observámos é
122
não só reduzida como está dispersa ao nível do seu tratamento. O enfoque que se dá ao
tema, em geral, não parte da área da liderança em si mesma ou da complexidade, mas antes
parte de outras áreas de estudo, como por exemplo a psicologia, a educação, ou a
sociologia, e por isso as investigações em causa trazem consigo agendas diversas da que
nós aqui seguimos.
Vá no que diz respeito à inteligência emocional, como conceito que dá forma a um estilo de
liderança, só através do seu enquadramento, precisamente como uma forma de liderança,
se poderá fazer a passagem à complexidade. Assim, procurar na inteligência emocional±
sem qualquer contextualização de liderança ± ligações, por si só, à perspectiva da
complexidade pareceu-nos desajustado. Desta forma o que se procurou foi descortinar
como a investigação tem vindo a evoluir na problemática emocional e nas suas ligações
com a temática da liderança.
Quanto à literatura científica publicada em livro, existem alguns autores com trabalhos que
aplicam, directa ou indirectamente, a perspectiva da complexidade à temática da liderança.
Entre eles, destacamos as obras de Ralph Stacey, inglês, que toca na temática da liderança
no âmbito da sua investigação do fenómeno da estratégia, e a de Margaret Wheatley,
norteamericana,
focada mais claramente na temática da liderança. Trata-se de dois autores cujas
obras têm tido um impacto interessante no mercado mundial. O livro de Wheatley,
Leaders ip and t e New Sciences, publicado em 1999, é um best seller mundial. Além
disso, as ideias apresentadas por Wheatley e por Stacey podem também ser utilizadas para
o estudo do trabalho e da liderança de Vosé Mourinho.
3%%%% 8 !5% '%.
A aproximação da complexidade à liderança não pode, em virtude da própria perspectiva
da complexidade, ser entendida de uma forma isolada ou descontextualizada da realidade
organizacional em que o líder se apresenta como o topo do ou dos vários contextos
organizacionais. Muitos elementos concorrem, cruzam-se e interagem entre si para
podermos compreender o contexto organizacional no seu todo e como um todo. A
liderança é um desses contextos e, também aqui, são vários e variados os elementos na
dinâmica da complexidade. Não será de estranhar, por isso, que entendidas as organizações
como sistemas vivos ± para aqueles que partem de pressupostos que se relacionam com a
123
complexidade ±, que as organizações espelhem os valores, as crenças e as culturas,
podendo desta forma dizer-se ³tell me what your organizations are like, and I shall tell you
who you are´ (Schwaninger 2000).
3(G !%%
Alguns dos estudos mais recentes, como referimos no capítulo anterior, apontam a
liderança carismática como uma das abordagens que mais se tem evidenciado nos últimos
tempos. O líder carismático arrasta multidões e contagia-as ± basta observarmos o caso de
Vosé Mourinho. É sobre este tópico que Bono e Ilies (2006) publicaram este ano o paper
³Charisma, positive emotions and mood contagion´. O título identifica de imediato a
problemática em questão, fazendo a ligação entre o carisma do líder emocionalmente
positivo e o envolvimento dos seguidores mediante emoções positivas que contagiam as
suas disposições. Aqueles investigadores estudaram o papel das emoções positivas na
liderança carismática, bem como as reacções emocionais e os estados de espírito que o
líder emocional positivo provoca nos seus seguidores e ainda de que forma tudo isto afecta
o desempenho do grupo. Em termos de investigação no terreno, Bono e Ilies (2006)
basearam-se em análises laboratoriais, criando condições num grupo de estudantes para a
emergência de liderança entre eles. ³Our purpose in this series of studies was to examine
the effects of leaders¶ positive emotional expressions on follower mood and perceptions´
(Bono e Ilies 2006: 330). Desta forma pretendeu-se estudar três vectores: os efeitos das
expressões e atitudes do líder emocional positivo sobre os seus seguidores; os efeitos das
expressões e atitudes do líder emocional positivo sobre as disposições dos seguidores; a
forma como os dois anteriores efeitos se cruzam com a eficácia da liderança. Quanto a
conclusões elas não andaram longe daquilo que seria de esperar:
³Results of our studies clearly indicate that leaders¶ emotional expressions play an
important role in the formation of followers¶ perceptions of leader effectiveness,
attraction to leaders, and follower mood. Our results also suggest that charismatic
leadership is linked to organizational success, at least in part, because charismatic
leaders enable their followers to experience positive emotions. More importantly, our
results indicate that the behaviour of leaders and managers can make a difference in
the happiness and well-being of the followers by influencing their emotional lives´
(Bono e Ilies 2006: 331).
124
Não pode, contudo, existir liderança carismática sem que exista, entre líder e seguidores,
empatia entendida esta como a capacidade de compartilhar os sentimentos de outrem, de
nos colocarmos na pele» do outro (Cunha e Rego 2004). Desta forma compreende-se o
papel que a empatia desempenha nas relações emocionais entre líder e seguidores. Este é o
tema dos estudos de Kellett et al (2006), que visam entender o papel da empatia na
eficácia e na relação do líder com os liderados. Uma primeira conclusão deste estudo
indica que a empatia é um factor que favorece o reconhecimento da liderança ou, se
quisermos, que facilita a emergência da liderança efectiva. Assim a empatia surge como o
principal factor de mediação entre as emoções dos seguidores e as do próprio líder; e isto,
tanto na liderança orientada para as tarefas como na liderança orientada para o
relacionamento. No entanto, ³because perceptions of relations leadership require feelings
of being understood and valued, it is important for a leader to accurately detect emotions
and to experience and express empathy´ (Kellett et al 2006: 157). Os autores fazem notar
que estas ideias só se aplicam quando falamos de emoções positivas, como a empatia, já
que as emoções negativas, como a zanga, dificultam todo o reconhecimento de liderança
por parte dos seguidores.
Esta relação, entre líder e seguidores, também foi estudada por Wong e Law (2002), já não
na perspectiva da empatia mas na da inteligência emocional em geral. Os autores fazem a
ponte entre a inteligência emocional dos líderes e a dos seguidores, correlacionando-as
com a produtividade e a satisfação no trabalho. Concluem que existe uma ligação directa
entre inteligência emocional e performance laboral, já que a inteligência emocional leva a
maiores índices de envolvimento. No entanto, este caso só é observável em tarefas que
envolvam altos e médios níveis de inteligência emocional. Esta generalidade de líderes e
de seguidores emocionalmente inteligentes leva aquela pesquisa para fora do mundo
empresarial, vindo a concluir que, uma vez observados altos níveis de inteligência
emocional, as pessoas conseguem atingir uma melhor life satisfaction.
O papel das emoções na liderança, especificamente o ser emotivo (emotionallity), é um
dos cinco aspectos mais importantes, referidos como super-traços de personalidade por
Digman (1990), e utilizados em estudo recente (Andersen 2006). Recuperando o estudo
sobre os traços de personalidade do líder, Andersen (2006) introduz o que nos parece uma
inovação nos estudos de liderança, a ideia de representação: ³[m]anagement and
leadership in formal organizations are not about possessing special traits. It is about
125
acting´ (Andersen 2006). Esta análise sugere que a representação não pode estar
dissociada da personalidade de cada um. Assim, o que o estudo pretende saber é o peso da
personalidade na liderança, já que esta não se esgota naquela. Aliás, ³the personality
approach to leadership is only one approach to leadership. The instrumental approach
(what leaders do) and the symbolic approach (how leaders and leadership are perceived)
are dominating the field today´ (Anderson, 2006: 1). Neste estudo tenta-se igualmente
perceber o impacto da liderança e do comportamento do líder para a eficácia das
organizações. As respostas não são conclusivas, ou pelo menos, não adiantam muito ao
que já se sabia. Anderson (2006) conclui que não existem, de facto, traços de
personalidade universais relacionados com a liderança e também que os traços de um
líder, por si só, não conseguem explicar os resultados gerados ao nível da eficácia da sua
organização. No entanto, o estudo conclui pela existência de relação entre o
comportamento do líder e a sua personalidade, sendo que a validade desta conclusão é
sugerida para qualquer pessoa em qualquer profissão. Em tese geral, contudo, Andersen
(2006) propõe que a liderança talvez não tenha tanto impacto na eficácia organizacional
como se tem pensado até aqui... é algo que fica no ar. Para aquele investigador,
concluindo, liderar ou gerir não assenta em quem és (w o you are), mas antes assenta na
representação daquilo que és (acting) e do que fazes para atingir os objectivos a que te
propões.
3*c0.@!%!%%
Os papers acima referidas foram identificados devido à abordagem que fazem ao papel
das emoções no fenómeno da liderança. O outro eixo da nossa pesquisa, como acima foi
referido, incidiu na temática da complexidade e liderança. Este é o nosso critério de fundo,
porque é sob a perspectiva da complexidade, apresentada no capítulo 2 e sobre a qual
assenta o trabalho de Vosé Mourinho, que toda a nossa análise e utilização de teoria se
baseará e baseia.
Nesta temática, complexidade e liderança, queremos chamar a atenção para o número
especial sobre ³Complexity and Leadership´ da revista académica Leaders ip Quaterly
(LQ), uma das mais influentes na área, que deverá ser publicado em inícios de 2007. Vale
a pena destacar uma passagem do call for papers divulgado por este journal:
126
³Complexity is the study of the dynamics of interaction. It is not so much concerned
with what individuals do as it is about the mechanisms by which things happen.
Complexity examines the clustering of ideas and people, and what happens when
these clusters interact. This dynamic approach conceptualizes organizations not as a
set of formalized roles, but rather as a set of processes and mechanisms that generate
emergent, typically unexpected, outcomes. Complexity science covers such topics as
neural network activities, interaction, interdependency, adaptive tensions, catalysts,
knowledge production, and bottom-up decision-making. In this special edition, the
editors pose the question, What role does leadership play in complex interactive
dynamics? This broader question suggests more specific questions, such as: What is
leadership? How are complex dynamics coordinated and motivated? What
implications do emergence and adaptive tension have for organizations and
leadership? How are traditional top-down leadership styles and emergent bottom-up
processes coordinated in complex adaptive systems? How do leadership processes
unfold over time? How can dynamic leadership processes be studied?´
Trata-se sem dúvida de questões pertinentes sobre o fenómeno da liderança, sobreas quais
a epistemologia da complexidade poderá vir a proporcionar avanços interessantes.
Enquanto aguardamos pelo resultado deste call for papers, pela revisão de literatura
efectuada destacamos três artigos entretanto publicados: Schneider e Sonner (2006) com
Organizations as Complex Adaptive Systems: Implications of Complexity | eory for
Leaders ip Researc ; Schwaninger (1999) com Managing Complexity ± | e Pat |oward
Intelligent Organizations; e Knowles (2001) com Self-Organizing Leaders ip: A Way of
Seeing W at is appening in Organizations and a Pat way to Co erence.
Uma liderança enquadrada e adaptada às teorias da complexidade é o que nos propõem
Schneider e Somers (2006). Os dois investigadores contrastam os princípios da teoria geral
de sistemas com os da teoria da complexidade, no sentido de abrir pistas para o
estabelecimento e investigação de uma liderança operacionalizada nos princípios da
complexidade. Os autores concluem que a teoria da complexidade está especialmente
vocacionada para compreender e responder aos tempos de mudança contínua e por vezes
dramática que as organizações vivem no mundo contemporâneo. No entanto, essa teoria
não explica e muito provavelmente não resolve tudo, especialmente em casos de mudança
que tendam para a catástrofe, como, de acordo com os autores, é exemplo a recente guerra
na ex-Vugoslávia. É desta forma que os autores apontam um ³lado negro´ da teoria da
127
complexidade no que toca à conceptualização da liderança. Em primeiro lugar, não
existem garantias de que uma liderança potencialmente complexa consiga prosseguir os
critérios de interesse (visão, missão, papel na sociedade, etc. da organização), porque ³as
has been demonstrated, unforseen consequences are a defining characteristic of a CAS
[Complex Adaptive System] framework´ (Schneider e Somers 2006: 362). Assim, os
autores sugerem que a liderança deve encorajar o desenvolvimento de uma identidade
organizacional que reflicta variação bem como auto-semelhança, e desta forma essa
identidade poderá, potencialmente, servir de contra-poder às forças que poderão
eventualmente levar à destruição do sistema. Estes autores manifestam preocupação
quanto aos processos de auto-organização e/ou emergência organizacional. Isto porque,
embora esses processos estejam validados nos campos da física e da biologia, o mesmo
não acontece no campo dos sistemas sociais. Esta posição serve para os autores sugerirem
a necessidade de se prosseguir investigação sobre a validade dos conceitos da teoria da
complexidade para os sistemas sociais; validade essa que, em princípio, estes
investigadores aceitam. Shneider e Sommers (2006) admitem, por exemplo, que a
liderança possa ser crucial para o processo de auto-organização, como aliás sugere
também Knowles (2001). Este último investigador, na linha de Stacey e de Wheatley,
autores que abordaremos de seguida, cruza a auto-organização com o fenómeno da
liderança, bem como noções de complexidade com conceitos sobre os sistemas vivos.
Knowles (2001) apresenta-nos o conceito de liderança auto-organizada e define-a como o
suporte da liderança operacional e da liderança estratégica. Para Knowles (2001), os
líderes eficazes necessitam de se mover consciente e tranquilamente entre estes dois
papéis à medida que as situações assim o exijam; o autor chama-lhe a ³dança da
liderança.´ Neste processo, Knowles (2001) considera existirem nove variáveis padrão:
identity, intention, issues, relations ips, principles, t e work, information, learning, e
structure/context. É sobre estas variáveis que incide o papel específico de liderança. O
líder deve manter a organização atenta ao que aquelas nove variáveis significam, na dupla
dimensão do que a organização é hoje e do que ela quer ser no futuro. Knowles (2001)
sugere que é desta forma que a organização, enquanto sistema, ganha a sua coerência:
³In some organizations the people are working coherently, energetically, and
effectively. Information flows freely and the parts are well connected. These
organizations are self-organizing and have many of the characteristics of living
128
systems. In other organizations, the people struggle with mixed messages and
incoherence. The information flow is blocked and the parts are disconnected.
Confusion, cynicism, and burnout hamper the organization's effectiveness. These
organizations are treated by their leaders as if they are machines to control and
manipulate; these are command-and-control organizations. In my experience, most
people in organizations are hard working, intelligent, and well-intentioned. Very few
people get up in the morning with the express intent of messing up their organization.
So why is it that in some organizations people blossom, while in others they wither?´
Numa outra perspectiva, Schwaninger (2000) focando igualmente a dimensão interna da
organização, e fazendo uso da lei da variedade necessária de Ashby (1956), sugere que a
variedade organizacional deve ser determinada pela variedade do contexto da organização.
Constatando a turbulência e dinamismo das sociedades actuais, Schwaninger (2000)
propõe que a resposta a esta complexidade é o que é fundamental para a gestão e liderança
contemporâneas. Face a esta comprovada complexidade, o investigador não propõe um
mas a junção de três modelos. A partir de um meta-modelo, que não é mais que uma
globalidade tripartida, logo, embora sofisticada, essencialmente reducionista, Schwaninger
(2000) conclui que o seu meta-modelo é uma ferramenta de trabalho relevante para se
estudar e responder aos desafios que as novas situações complexas colocam. O
investigador defende ainda que o seu meta-modelo facilita o conhecimento das
necessidades das organizações emergentes na sociedade do conhecimento, bem como
proporciona a conectividade entre estudiosos em diferentes domínios do saber ±
económico, sociológico, etc.
No campo dos livros, recentemente publicados e com credibilidade estabelecida, a
abordagem da liderança sob a perspectiva ou no âmbito das teorias da complexidade é
também algo relativamente novo. No entanto, alguns autores merecem referência, como
Wheatley e Stacey. Margaret Wheatley publicou em 1990 o livro Leaders ip and t e New
Science ± Discovering Order in a C aotic World. Nesta obra a investigadora propõe-nos
uma forma de olhar as organizações assente em princípios complexos que regem a
natureza. Para Wheatley, as organizações são encaradas como sistemas vivos que se
autoorganizam
a partir do caos. Neste contexto de caos e de auto-organização surgem os
líderes, entendidos por Wheatley como os mais eficazes. Mas de que forma avaliar então
129
essa eficácia? Para a investigadora a eficácia do líder advém da sua capacidade de
conjugar os princípios de evolução da natureza com as especificações das organizações.
³You think because you understand one you must understand two, because one and one is
two. But you must also understand and´ (Meadows in Wheatley 1999: 10). É neste campo
de ligações complexas que Wheatley desenvolve o seu raciocínio, que olha para a natureza
para entender o ser humano, considerando assim estes dois elementos como um todo
inseparável e conexo. Na sua obra, que visa desenvolver um novo modelo organizacional,
Wheatley socorre-se, essencialmente, de três áreas da ciência: física quântica, sistemas
auto-organizados e teoria do caos. À primeira vai buscar o que chama um novo modelo de
pensar, observar e percepcionar o mundo que nos rodeia; à segunda área, a dos sistemas
vivos auto-organizados, vai procurar caminhos de entendimento para noções como
desequilíbrio e mudança, bem como para qual o papel da desordem como fonte de
crescimento; é também com base nesta segunda área que Wheatley apresenta um novo
modelo de relacionamento entre autonomia e controlo; por fim com o auxílio da terceira
área, a teoria do caos, Wheatley tenta demonstrar a necessidade do caos como processo
que conduz à criação de uma nova ordem, num mundo onde caos e ordem coexistem, e
onde a estabilidade nunca está garantida mas também nunca é inteiramente desejada.
Numa linha não muito distante da de Wheatley encontramos a obra de Ralph Stacey,
Douglas Griffin e Patrícia Shaw, entre outros investigadores, baseados em Inglaterra. Este
grupo de académicos tem publicado trabalhos individuais e em conjunto, assentes na teoria
da complexidade, focando essencialmente a estratégia organizacional. Nas suas últimas
obras estes autores tentam demonstrar a necessidade de olhar as organizações além dos
limites do pensamento sistémico, de modo a poder obter-se um envolvimento efectivo da
própria vida, enquanto todo, no todo das organizações; a criatividade da vida humana terá
de ser a criatividade da vida organizacional. Estes autores têm feito um apelo crescente à
filosofia e à teoria social como estratégia de ajustamento da perspectiva da complexidade,
e das suas teorias da física e da biologia, à actividade social dos homens. Entre os autores
utilizadas por Stacey e colegas, contam-se Immanuel Kant, Edmund Husserl e George
Herbert Mead, como referimos no capítulo 2.
130
c  :
DISCUSSÃO EXPLORATÓRIA: ENTREVISTA A VOSÉ MOURINHO
131
Este é o primeiro de dois capítulos que discutem de forma exploratória, com Vosé
Mourinho e com Rui Faria, o seu principal adjunto, as principais temáticas desta
investigação, sobre as quais recairá a nossa análise, a apresentar no Capítulo 9. Neste
capítulo apresentamos a entrevista que realizámos a Vosé Mourinho. No capítulo seguinte
apresentamos a entrevista realizada a Rui Faria.
Ambas as entrevistas foram efectuadas no mês de Vunho de 2006, separadamente, em
momentos e em locais diferentes. Nas duas discussões tentou abordar-se, ainda que por
vezes de forma indirecta, as bases do trabalho de Vosé Mourinho, como líder de um grupo
de profissionais. Desta forma colocámos o actual treinador do Chelsea e o seu adjunto
perante questões relacionadas com (i) a perspectiva da complexidade, (ii) com a liderança e
com o funcionamento dos grupos, com a cultura organizacional, (iv) com as emoções, a
auto-consciência, e (iv) com o treino e a aprendizagem e interacção inter e intra-grupal. A
razão da escolha destas temáticas prende-se com a relevância de cada uma delas na
presente investigação. A complexidade é a nossa perspectiva paradigmática de fundo. A
liderança num contexto grupal e organizacional é o próprio terreno da investigação. A
inteligência emocional é um dos principais blocos teóricos que escolhemos para assentar
este estudo. Dada a actividade concreta que estamos a analisar, o treino é onde o trabalho
concreto de Vosé Mourinho é mais visível e mais se manifesta.
As entrevistas que a seguir se apresentam ± a Vosé Mourinho neste capítulo e a Rui Faria
no capítulo seguinte ± constituem, quanto a nós e aos próprios entrevistados, como nos foi
referido, um interessante exercício de clarificação conceptual do trabalho prático de Vosé
Mourinho.
A entrevista semi-estruturada que realizámos a Vosé Mourinho, tal como a que decorreu
alguns dias depois com Rui Faria, assentou então nos seguintes tópicos: a complexidade
como perspectiva de fundo; o exercício concreto da liderança de Vosé Mourinho; o grupo e
a sua cultura; e a aprendizagem e o treino.
:c0.@!%H
A introdução da nossa conversa com o treinador do Chelsea prendeu-se com a clarificação
da aproximação da complexidade como suporte teórico do trabalho desenvolvido, como
132
treinador de futebol, por Vosé Mourinho. Para Mourinho, esta sua opção ficou a dever-se a
uma conjugação de factores.
³Quando entrei para o Instituto Superior de Educação Física (ISEF), para me
licenciar, precisamente, em educação física, houve um livro que me marcou pela
negativa ± mas que fui obrigado a estudá-lo ± e que é visto como uma ³bíblia´ da
metodologia da educação física e do desporto. É uma obra de um tal Matveiyev que
foi ± e ainda é ± um marco no ensino relativamente aos desportos individuais.
Porém, em meu entender, uma coisa é um desporto individual com um homem a ser
preparado para um determinado objectivo e outra é um desporto colectivo onde um
homem por si só nada vale. As qualidades que se podem trabalhar num desporto
individual com um só atleta não têm nada a ver com as qualidades que se trabalham
num desporto colectivo, ainda por cima num desporto como o futebol, com 11
futebolistas ± para não dizer vinte e tal. Ora, eu revelei-me completamente
discordante, como estudante minimamente atento e talvez até facilitista ± já que eu
só pretendia acabar o curso porque sabia que a minha pesquisa posterior iria ser
bem mais importante que aqueles cinco anos de licenciatura. Fui obrigado, em
simultâneo, a debitar a minha sabedoria sobre algo com que não concordava e a
tentar desenvolver ideias sobre as quais estava em completo desacordo. O
Matveyev é de facto uma bíblia para os desportos individuais mas de pouco vale
para os colectivos. Acredito, hoje, que vai haver ± e já está a haver ± um corte com
aquele passado porque o homem é um ser complexo e no caso concreto da minha
profissão, no futebol, temos de perceber que onze homens à procura de um
objectivo é completamente diferente de um homem à procura de um objectivo.
Assim, a minha metodologia foi toda virada nesse sentido. Depois recebi
influências diversas baseadas na minha própria experiência. Manuel Sérgio,
filósofo e meu professor no antigo ISEF, também foi fundamental na minha
aprendizagem porque não me apresentou caminhos rígidos que eu teria de trilhar
nem verdades feitas às quais eu me deveria agarrar e sim pistas para novos
entendimentos. Mas, para responder directamente à pergunta, depois de tudo o que
me começaram a ensinar tive a necessidade interior de escolher outro caminho e
escolhi o da complexidade.´
133
Ficaram, então, ainda enquanto estudante universitário, definidos os contornos do
pensamento e das escolhas de Vosé Mourinho. As ideias convencionais não o convenceram
e ainda no ISEF iniciou-se a sua contestação ao pensamento reinante. A vida e a profissão
trouxeram-lhe o resto.
³Tudo isto foi acelerado quando eu me tornei treinador principal. Vá tinha pensado
sobre isto, porque enquanto treinador adjunto ou preparador físico tentava não
perder a minha identidade, uma vez que estava a ser comandado, enquanto
treinador adjunto, por um treinador principal que tinha ideias e filosofia de
liderança com as quais eu não me identificava. Portanto aí a minha evolução foi,
necessariamente, por força da minha posição secundária, algo lenta. Mas quando de
facto me senti senhor do meu trabalho, do meu grupo, do meu destino foi quando
comecei a sentir necessidades de trabalhar neste sentido´.
Vosé Mourinho é um homem pragmático e mais do que com ideias ou conceitos exprime-se
com exemplos práticos. Voltemos, então à pergunta: Porquê a complexidade?
³Qual é o homem mais rápido do mundo? Vamos supor que é o Francis Obikwuelu,
que faz menos de 10 segundos em 100 metros. É muito rápido e não conheço
nenhum jogador de futebol que o consiga igualar numa corrida de 100 metros. No
entanto, numa partida de futebol, 11 contra 11, penso eu, o Obikwuelu seria o mais
lento! Dou ainda outro exemplo: um caso paradigmático de um jogador actual lento
é Deco20. Se o colocássemos numa corrida de 100 metros com os homens do
atletismo ele faria uma figura ridícula. É descoordenado a correr, não tem
velocidade terminal, muscularmente de certeza que está carregado de fibras de
contracção lenta e nada de fibras de contracção rápida. No entanto, num campo de
futebol, é um jogador dos mais rápidos que conheço porque velocidade pura não
tem nada a ver com a velocidade no futebol. A velocidade no futebol tem a ver com
análise da situação, de reacção ao estímulo e capacidade de o identificar. No
futebol o que é o estímulo? É a posição no campo, a posição da bola, é o que o
adversário vai fazer, é a capacidade de antecipar a acção, é a percepção daquilo que
o adversário vai fazer, é a capacidade de perceber que espaço é que o adversário vai
20Internacional português actualmente ao serviço do Barcelona FC, de Espanha. Deco já conta no seu
currículo com vitórias nas ligas espanhola e portuguesa, para além de ter conquistado duas Ligas Europeias
pelo FC Porto e pelo Barcelona FC.
134
ocupar para receber a bola sozinho, etc. Daí que, por exemplo, se um jogador meu
estiver a marcar o Obikwuelu, que tem, comparado com os jogadores de futebol,
um arranque de grande explosão, isso obrigará o meu jogador a arrancar sempre
mais tarde numa desmarcação. Contudo, porque o futebol não é a sua área de
desempenho, Obikwuelu vai, com grande probabilidade, deslocar-se para onde não
deve, logo, o meu jogador vai conseguir estar ao pé dele no momento em que ele
tem condições para receber a bola. Nesta forma de analisar a velocidade um
jogador lento do ponto de vista tradicional é, afinal, um jogador rápido numa
perspectiva complexa porque se vai deslocar numa altura em que os outros não
esperam, num momento correcto, num momento em que o companheiro com bola
precisa que ele se desloque. Desta forma, tudo isto é complexidade e o homem é
um todo complexo no seu contexto, por isso trabalhar qualidades individualizadas
e/ou descontextualizadas da complexidade do jogo é, para mim, um erro grave´.
É por este motivo que Mourinho afirma que, numa perspectiva reducionista, ao
descontextualizar-se o homem de uma realidade complexa muitos pensam que estão a
reduzir o grau de complexidade do contexto, logo que estão a tornar o trabalho mais fácil.
Para Mourinho este raciocínio é um erro já que a descontextualização esquece o
fundamental, que é o jogo.
³Ainda se pensa que ao reduzir-se a complexidade se está a tornar as coisas mais
fáceis. Quanto a mim estamos apenas a criar condições de sucesso ao jogador
somente em treino. É que ao fazê-lo depois não se encontra qualquer
transferibilidade para o jogo. Por exemplo, há 10 anos atrás o Eusébio era treinador
de guarda-redes do Silvino, no Benfica. O Eusébio colocava a bola à entrada da
área e rematava com o intuito de treinar o guarda-redes. O problema é que o Silvino
não conseguia treinar porque as bolas entravam todas na baliza. Ele, assim,
simplesmente não treinava porque os remates eram descontextualizados daquilo
que naturalmente é o jogo, onde um jogador não aparece 100 vezes, isolado frente
ao guarda-redes e em condições óptimas de remate. Trata-se de uma situação
descontextualizada da realidade e da complexidade do jogo. No entanto, existem
muitos treinadores que fazem isto como treino de finalização. Não concordo, em
absoluto, porque a situação é fictícia e, repito, descontextualizada da realidade do
jogo onde os jogadores têm de contar sempre com a oposição do adversário. Por
135
isso, eu não faço finalização descontextualizada. Tenho, isso sim, de criar
condições de treino integrado onde estou a trabalhar a complexidade do jogo
através de situações o mais próximo possíveis do real, daquilo que se espera que
venha a ser o jogo. Por isso, quando trabalho a finalização dos meus jogadores
coloco-lhes oposição porque é isso que acontece no jogo, ou seja, antes de finalizar
o meu jogador tem o adversário pela frente e tem de ultrapassá-lo para só então
efectuar o remate. Assim, ao fazer o treino de finalização desta forma estou a fazer
do treino o próprio todo do jogo, onde não estou apenas a treinar a finalização e os
meus avançados, mas também os meus defesas, que terão nos seus jogos,
avançados pela frente, os meus médios e o meu guarda-redes. Por isso eu não
coloco o meu treinador de guarda-redes a rematar sozinho para a baliza para treinar
o meu guarda-redes, porque essa situação é de estímulos repetitivos e o jogo nada
tem de estímulos repetitivos´.
Pelas palavras de Vosé Mourinho ficou clara a importância que a noção de todo tem no seu
trabalho. Mas será esta a única forma de funcionar de uma equipa? Para Mourinho sim,
essa noção é fundamental para a obtenção do sucesso. O todo terá de estar sempre no topo
das prioridades. O que muda, no entanto, porque evolui, porque se transforma, porque se
adapta é o próprio todo mas isso em nada muda a questão: seja qual for o patamar em que
se encontre, o todo será sempre primordial.
³Talvez com um exemplo isto se entenda melhor. Este ano trouxe para o Chelsea
jogadores com um perfil totalmente diferente daqueles que trouxe há dois anos
atrás quando aqui cheguei. Porquê? Porque é que contratei ³estrelas´ como um
Schevshenko ou Ballack? Porque para mim a questão é a seguinte: nada pode ser
construído tendo como centro dessa construção alguém especial. Especial é sim o
que se quer construir e quando temos um grupo todos têm de ser iguais na e para a
obtenção do fim a que todos se propõem. Objectivamente o Shevshenko é um
campeão e o Ballack também. Têm qualidade, estatuto, fama, são ricos e já
ganharam muitos troféus. Tudo isto é um facto indesmentível mas uma coisa é eles
serem o centro, o núcleo da construção de uma equipa que se quer fazer porque
estão rodeados por vinte zés-ninguém e outra coisa é estes dois jogadores chegarem
a um grupo onde os outros já são campeões, famosos, ricos e que neste momento
estão preparados como equipa, como grupo, como individualidades para receberem
136
jogadores que neste momento são da mesma dimensão do que eles. Quem eram
Lampard, Terry, Drogba há dois anos atrás? Não eram estrelas mundiais,
seguramente. E neste momento quem são? São iguais ao Shevshenko ou ao
Ballack. E mesmo estes vão dar mais de si porque o seu estatuto não é superior em
relação aos outros e assim vão ter de se superar para não ficarem abaixo dos outros.
Portanto é tudo uma questão de equilíbrio. A minha filosofia de manter o equilíbrio
mantém-se, o que subiu foi um patamar no enquadramento dos jogadores´.
Para Vosé Mourinho o todo, o grupo, vem primeiro do que as partes. O grupo vem primeiro
do que o indivíduo ± não só conceptual mas culturalmente. Mas como se mantém um
equilíbrio em grupos constituídos por homens, cada um com a sua personalidade,
expectativas e forma de pensar? Ainda para mais homens mediáticos, talvez dos mais
mediáticos do mundo. No todo que constitui o seu grupo onde está, afinal, o individual e
onde está o todo, ou o colectivo?
³Eu sacrifico o individual pelo colectivo. Um jogador de grande importância no
Chelsea disse-me uma vez que determinado colega de equipa não podia trabalhar
comigo. Perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me que o colega era demasiado
frágil para trabalhar comigo. Das duas uma, ou eu considerava esse colega um caso
especial e modificava a minha forma de actuação relativamente a ele ou ele não
teria hipótese de trabalhar comigo. A este nível, e penso que a nível empresarial,
para uma empresa com grandes objectivos, com uma visão bem definida, entendo
que o todo jamais pode ser sacrificado porque o todo, neste caso, é mais que o
grupo humano que trabalha. Muito mais que isso. Quando eu trabalho com um
grupo de vinte e tal homens, não existimos só nós. Somos nós, mas é também o
patrão, os investidores, os adeptos e por aí fora. A estrutura é gigante e nós somos o
micro sistema integrado no macro. Por isso, o todo nunca pode ser sacrificado.
Tenho por exemplo um jogador que me diz: ³mas porque é que eu saí da equipa se
só cometi um erro? Só um e nada mais?´. Simples. Porque o erro que ele cometeu
custou ao grupo três pontos. Depois, esquece-se que tem um colega há seis meses
no banco de suplentes a fazer pressão porque também quer jogar. Ora se ele
cometeu o erro o outro, que espera a oportunidade, também pode dizer: ³então
estou a trabalhar à espera da oportunidade, estou a trabalhar em altos níveis e não
tenho possibilidade de dar o meu contributo directo? Se o outro erra e não sai, então
137
quando é que vou jogar? Nunca?´ Eu penso que da parte de um profissional
ambicioso esta questão tem toda a pertinência e até legitimidade, portanto, quando
tal acontece, eu tenho de colocar o jogador suplente em campo, não só por uma
questão de justiça mas também para tornar eficaz a pressão que eu quero que o meu
grupo internamente sinta. Ora, ao fazer isto, considero que o todo está a ser
beneficiado porque sai o que cometeu o erro e estou a colocar outro no pressuposto
que não vai cometer erro e com níveis de motivação elevadíssimos´.
Ficaram, então, traçadas a ideias chave de Vosé Mourinho relativamente aos princípios
mais marcantes do seu trabalho. A perspectiva da complexidade é a aproximação certa na
forma como encara, organiza e projecta o seu trabalho: o todo no centro das partes, que
interessam enquanto viradas para o todo e ao serviço do todo.
:(c.%H/0
Cultura, equipa, grupo são tudo noções às quais Vosé Mourinho dá grande importância.
Existe uma µcultura Vosé Mourinho¶? Traduz-se em quê? Como é a sua relação com o
grupo, com as ³estrelas´? Mourinho começou por falar da cultura de grupo, e como
teremos oportunidade de comprovar mais à frente, a sua opinião não difere da de Rui Faria.
³Acho que há [uma cultura Vosé Mourinho]. De tal forma que mesmo quem não
está dentro a sente. Por exemplo, li hoje afirmações do Schevchenko21 a um jornal
italiano onde ele disse: tenho um sistema táctico preferido e uma posição preferida
para jogar, mas eu sei que este treinador conseguiu tudo o que conseguiu porque a
equipa está à frente de tudo, logo, nesta equipa estou disponível para aquilo que ele
quiser». É bom que tenhamos em conta que quem proferiu esta afirmação é um dos
melhores jogadores do mundo que foi bola de ouro há três anos atrás. Ele que
nunca trabalhou comigo, conhecemo-nos no campo de futebol ³bom dia, boa tarde,
boa sorte e até amanhã´ e consegue transmitir uma mensagem que expressa a
maneira como nós jogamos, a maneira como eu falo, como os jogadores falam de
mim e de nós. É uma cultura porque extravasou a própria família e os de fora já se
21Schevshenko havia sido contratado por Mourinho pouco antes da realização desta entrevista, no entanto,
ainda não tinha trabalhado no Chelsea sob as ordens de Mourinho já que estava no gozo das suas férias, de
resto, tal como Mourinho.
138
aperceberam. Mais que uma cultura Vosé Mourinho é uma cultura das equipas
treinadas por Vosé Mourinho. É uma coisa de equipa, que parte de mim mas que vai
sendo progressivamente aceite por todos que a vão cultivando e defendendo. E
depois tens sempre no grupo jogadores que pelo seu estatuto são muito importantes
no funcionamento do mesmo. Ora, se conseguirmos que eles defendam os mesmos
valores, é muito mais fácil implementar uma cultura, neste caso a minha. Quando
comecei a lidar com grandes estrelas, enquanto treinador adjunto no Sporting, Porto
ou Barcelona, eu tinha mais ou menos a idade dos jogadores (cerca de 30 anos).
Essa proximidade de idade ajudou-me muito a saber o que é importante para eles e
o que é difícil para eles aceitarem« Um dos segredos é conseguir sistematizar bem
aquilo que é fundamental. Aconteceram-me coisas enquanto adjunto que não
esqueci. Por exemplo: Tinha treinadores que proibiam falar ao telefone no
autocarro. Eu ia lá atrás buscar uma água ao frigorífico e tinha jogadores sentados
no chão a falar ao telefone. Comecei a pensar: quando for treinador principal, se
disser que é proibido falar ao telefone, das três uma: ou vou andar para a frente e
para trás durante uma viagem de três horas para apanhar os que estão no chão a
falar ao telefone ou fico sentadinho no meu banco cá à frente e eles estão a gozar
comigo ou, então, vou dizer que é permitido falar ao telefone com uma condição:
com o telefone no modo silêncio para quem quiser dormir a sesta poder estar
descansado. Como muitos deles estavam habituados a andar escondidos e tinham
medo do treinador, ficaram encantados da vida. Consegue-se os objectivos
analisando bem a situação, tendo bom senso e criando um clima favorável. Assim
que cheguei ao Chelsea e falei com eles sobre isto, eles andavam no autocarro a
telefonar uns para os outros para ver se ³entalavam´ algum que se tivesse
esquecido de tirar o som e não me lembro de uma vez o telefone ter tocado no
autocarro. É uma coisa básica, que se tornou automática. Para haver liderança tem
de haver disciplina, para haver disciplina tem de haver regras, e as regras têm de ser
definidas com bom-senso. Quando estabelecemos regras que não são cumpridas a
cem por cento estamos a perder poder. Por isso entendo ser preferível regras
cumpridas a cem por cento e que lhes deixam um pouco de espaço à capacidade de
decisão e de comunicação entre eles. É fundamental. Dou ainda outro exemplo
mas, agora, num campo algo diferente. Nas minhas equipas, por questões
139
fisiológicas e de recuperação, é proibido beber álcool depois dos jogos. A
determinada altura, no Porto, tivemos um jogo que ganhámos e os jogadores vieram
pedir-me para, ao jantar, beberem uma cerveja ou vinho. Fui peremptório e disselhes
que não. A seguir expliquei-lhes a razão da minha resposta negativa: porque
daqui a três dias há jogo e o álcool atrasa a hidratação, a reposição dos minerais,
etc. Eles ainda tentaram argumentar que jogaram bem e que golearam o adversário
mas a minha resposta foi sempre negativa. Um par de semanas mais tarde, a seguir
a um mau resultado, ninguém me veio pedir para beber coisa nenhuma. Tínhamos
perdido com o Gil Vicente. A seguir ao jogo, já na sala de jantar do restaurante, eu
disse-lhes: ³Bebam vinho e cerveja, se quiserem´. Eles ficaram espantados com
aquela súbita generosidade da minha parte, em especial, depois de uma derrota.
Expliquei-lhes, então, que aquilo não tinha que ver com ganhar ou perder. Só
tínhamos jogo daí a uma semana e uma cerveja ou um copo de vinho não traria
quaisquer consequências. Logo, as razões que nos levam a dizer ³sim´ ou ³não´
não têm que ver com ganhar ou perder, mas sim com razões lógicas. É a cultura do
bom-senso.´
Na µcultura Vosé Mourinho¶ não têm sido poucas as manifestações do grupo em torno do
seu líder. Nos clubes por onde tem passado, Vosé Mourinho tem sido um líder admirado,
não discutido, e, acima de tudo, seguido pelos seus jogadores. A frase de Vorge Costa ±
antigo capitão do FC Porto, em recente entrevista a um canal português de televisão, faz
prova disso: ³por Mourinho morreríamos em campo se fosse preciso.´ Porquê, então, os
jogadores sempre com o seu líder? Terá alguma coisa que ver com a cultura do grupo?
³Acho que sim. A questão passa muito pelos momentos maus em termos de
resultados ± não em termos de comportamentos, porque aí nunca facilito. Posso
ganhar um jogo que me deixa satisfeito pelo resultado mas insatisfeito pelo
desempenho, e pode haver jogos que se perdem e em que se sente que os jogadores
perderam porque o futebol é um jogo e porque se pode perder, mas em que não há
razões para penalizar, antes pelo contrário. A cultura do futebol, em termos
comportamentais e de grupo, é uma cultura resultadista. Ganhas eu dou-te, perdes
eu tiro-te, ganhas eu beijo-te, perdes eu castigo-te. Comigo não é assim.´
140
Solicitámos então a Vosé Mourinho que concretizasse a sua argumentação no caso concreto
de uma equipa de profissionais, como as que ele lidera, em que os seus elementos são
unanimemente considerados µestrelas¶.
³Até agora, as minhas estrelas foram estrelas que cresceram comigo. Crescemos ao
mesmo tempo. Quando treinei o Porto ninguém era estrela e todos acabámos por
crescer juntos e afirmarmo-nos a nível nacional. Quando fui para o Chelsea os
jogadores que lá estavam não eram estrelas de dimensão mundial e também
acabámos por crescer nessa direcção. Ganhámos juntos. Foi um crescimento
grande. É por isso que em Inglaterra, e voltando ao exemplo que falei há pouco,
dizem que eu modifiquei o meu conceito de compra, porque comprei o
Schevchenko e o Ballak. Eu não modifiquei o meu conceito de compra. Comprei
estrelas para o meio de estrelas. Nunca teria comprado Schevchenko e Ballak para
uma equipa sem estrelas, para uma equipa que nada ganhou, para uma equipa de
jogadores sem títulos, para uma equipa que iria ser construída à volta daquelas duas
figuras. Neste momento eles são estrelas mas eu também tenho o Frank Lampard
que foi bola de prata, o segundo melhor jogador do mundo na época passada, tenho
o Terry que foi o melhor jogador do futebol inglês, tenho titulares das diferentes
selecções, enfim, bicampeões. Não mudei o meu conceito. Acho é que o meu
grupo, os meus jogadores, estão num patamar e num estatuto em que os outros vêm
para uma realidade que é a deles. A mim surpreendeu-me, pela positiva, a
inteligência do Schevchenko nessa abordagem. ³Eu venho para ser útil, venho para
melhorar, estou contente por vir jogar nesta realidade´, e não aquilo que ele
eventualmente teria dito há dois anos atrás, que seria ³eu venho tentar ajudar esta
equipa a ser campeã´. Eu não mudei o meu conceito por isso posso afirmar que ao
longo da minha carreira nunca fui confrontado com uma estrela num plano, numa
galáxia diferente, e que tivesse que ter um tratamento diferente.´
Vosé Mourinho programa ao pormenor. Desde a questão técnica, à táctica, passando pela
gestão do dia a dia, nada é deixado ao acaso. Neste aspecto assume uma importância
relevante as relações no seio do próprio grupo em que o treinador tem de gerir homens de
diversos países, de diversos continentes, de diversas culturas.
141
:* 0!2%5H!
O trabalho das debilidades do sistema de jogo concreto é uma das ideias que emerge da
pressão constante que Vosé Mourinho coloca sobre si mesmo para sistematizar, isto é, para
cruzar a prática com a teoria. Para Mourinho, os homens têm tendência a revelar o melhor
que existe em si mesmos. Dessa forma, potenciar o melhor que há nos outros é sempre o
mais fácil, porque é o que é mais exposto. Ao ser exposto torna-se uma evidência para
todos. Mas é pelas debilidades, que qualquer um tenta esconder, que se pode surpreender,
afirma Mourinho.
³Na minha liderança dou muita importância às debilidades ± minhas ou do
adversário. Seja qual for a estratégia que se trabalhe em futebol, temos sempre de
nos confrontar com um lado negativo. E da mesma maneira que trabalho algo e que
tento potenciar o que de bom o exercício tem e o que vamos conseguir retirar
daquele trabalho, normalmente procuro também encontrar o lado negativo que
sempre existe. Por exemplo, o sistema 4x4x2 com que fui campeão no Porto, foi
muito mais trabalhado e ponderado nos aspectos que considerei serem as
debilidades desse sistema do que propriamente nas suas virtudes porque fui
percebendo e acreditando que o bom do sistema ia ser fluído, quase que intuitivo,
por isso o lado negativo tinha mais necessidade de trabalho ± é por aqui que
podemos perder, é por aqui que este sistema pode perder eficácia, portanto é neste
campo negativo do sistema que vamos trabalhar porque no campo psicológico é
positivo ter um bom domínio da situação. Por isso, quando em jogo nos deparámos
com situações típicas que conduziam ao fracasso do sistema, aquilo estava tão
presente em nós e havia tanta confiança na resolução do problema que quando ele
surgia acabava por ser de fácil resolução. É quase a mesma coisa que pessoas a
viver numa cidade em guerra. Quando vem um míssil já se reage automaticamente,
até as crianças, percebem os sinais e sabem como reagir. É um caso específico em
que a minha liderança se traduz: isto tem um problema, portanto, vamos resolvê-lo.
Logo, quando as situações desfavoráveis acontecem em jogo, os jogadores estão
cómodos e tranquilos na resolução do problema e não são apanhados de surpresa.
Portanto o trabalho não é só no sentido positivo, tal como o jogo também não o é.
No jogo tu vais à procura das limitações do adversário mas também tens de estar
atento e preparado para as tuas próprias limitações´.
142
No que ao adversário diz respeito, a questão da imprevisibilidade também ocupa um lugar
importante. Aqui a lógica de pensamento de Mourinho assenta na ideia de diminuir ao
máximo o imprevisto, num contexto de aprendizagem e de interacção.
³Eu acho que não há sistemas perfeitos, mas o nosso sistema é tanto mais perfeito
quanto mais estivermos preparados para as suas debilidades naturais, logo temos de
trabalhar as imperfeições do nosso sistema. Ora eu trabalho muito a parte negativa
do meu sistema e rotinamos tanto esse trabalho que essa parte negativa acaba por
ser encarada com naturalidade e isso reflecte-se em confiança. Eu acho que aquilo
que se torna mais difícil no jogo é sermos confrontados com situações que
desconhecemos porque o desconhecido é sempre desconfortável. Colocando isto de
outra forma, tudo se resume a comodidade e ela acontece quando não somos
apanhados desprevenidos. Ora, a imprevisibilidade tem que ver com aquilo que tu
fazes e estás preparado para fazer e com aquilo que os outros fazem e que tu
presumes que eles possam fazer. É isto o mais difícil e é necessário inteligência da
parte de todos os meus jogadores. No fundo tentamos reduzir ao máximo a
imprevisibilidade que o jogo tem´.
Um tema importante, que se relaciona com a confiança, é o método que Vosé Mourinho
utiliza para treinar, obtendo dos seus jogadores os comportamentos que pretende. Trata-se
da já famosa no mundo do futebol ³descoberta guiada.´
³A minha descoberta guiada não tem tanto que ver com o perceber mas sim com o
sentir, ou seja, com o que eles sentem em determinado tipo de situação ou de
movimentação. Eu pergunto-lhes o que eles sentem a nível de experimentação«
vamos experimentar e sentir a nível posicional que estou apoiado« a nível mental
não tenho medo de errar porque isto está coberto« É daqui que partimos,
executamos em treino e recebo o feedback que me permite mudar de acordo com
isso. Tenho essa elasticidade, que é ter a capacidade de promover alterações dentro
do próprio exercício por aquilo que me dizem. Se entender, pelo que me dizem, que
o exercício não está adequado à situação, logo na altura altero-o. Às vezes, ao fim
de três minutos, já introduzi uma nova regra no exercício de forma a adaptá-lo
aquilo que os jogadores estão a sentir. No fundo é também a operacionalização
directamente ligada à descoberta guiada.´
143
:-AH!%%
Com base no que acima ficou dito sobre a perspectiva que informa o trabalho de Vosé
Mourinho, não admira que o treinador português do Chelsea defina o seu estilo de
liderança como um ³sempre presente´, em especial nos pequenos detalhes do trabalho do
dia a dia. Vosé Mourinho considera a presença física do líder ± de qualquer líder ±
fundamental para o funcionamento eficaz do grupo. Um olhar apenas, por vezes, faz voltar
de novo o grupo ao rumo certo.
³Eu penso que liderança tem de estar sempre presente. Ela sente-se nas mais
pequenas coisas, nos mais pequenos detalhes com um olhar ou com a presença do
líder por si só. Eu tenho jogadores que me dizem que na realização de um exercício
mesmo em que eu não tenha parte activa ± porque é um exercício já com alguma
rotina ± que a minha ausência faz toda a diferença. Eu próprio fiz a experiência no
Chelsea. Durante algum tempo, premeditadamente, deixei de exercer liderança e
pensei vamos lá ver no que isto vai dar». Cheguei à conclusão que não havia
hipótese de me afastar. Mesmo que o estádio de maturação de um grupo seja forte,
fruto de um trabalho de dois, três, quatro anos, a liderança não pode deixar de ser
exercida todos os dias. Eu realizei esta experiência, que considerei fundamental,
porque era a primeira vez que ia treinar uma equipa três anos seguidos e queria
perceber ± e senti que naquele momento podia fazê-lo ± se a minha actividade
enquanto líder se podia diluir precisamente pelo estado de maturação do grupo.
Como líder daquele grupo, por um lado pensava que não, mas por outro lado
pensava que talvez isso fosse possível. Estamos a falar de homens, de homens de
primeiro nível, de jogadores de grande capacidade De repente percebeu-se que
sem disciplina se perdiam qualidades enquanto grupo. Outra característica da
minha liderança é o funcionamento pela parte negativa. Por vezes provoco, nos
treinos, situações de insucesso que me possam dar a possibilidade de exercer
liderança directa, na verdadeira acepção da palavra. Quando preparo um treino
estou a preparar uma actividade global e nunca o faço sem perceber quais são as
implicações aos diferentes níveis. Por isso digo que cada exercício tem uma
dominante, porque nunca treino um factor isolado ± por exemplo em determinado
exercício a dominante é o aspecto táctico porque é aquele que está a ser mais
potenciado. Assim, falo em dominante para caracterizar o principal objectivo do
144
exercício, aquele que tem maior preponderância. Por exemplo tenho exercícios de
dominante psicológica, quando os exercícios que se apresentam são
premeditadamente muito fáceis de realizar para que, sem que eles se apercebam,
consigam fazer tudo bem. Isto acontece se eu no final da semana chegar à
conclusão que os objectivos, por qualquer motivo, não foram cumpridos. Como
estamos a um ou dois dias antes do jogo, eu sei que já não tenho tempo de rectificar
nada, logo, o trabalho, bem ou mal, está feito. Aí eu modifico os dois últimos
treinos, em relação àquilo que estava a pensar fazer quando programei a semana de
trabalho, e faço exercícios fáceis no sentido de atingir outros objectivos, neste caso,
conseguir subir os níveis de confiança e motivação que ficaram algo abalados pela
semana menos conseguida. Portanto aqui não há qualquer objectivo táctico, que se
comprova pela facilidade dos exercícios e sim um objectivo psicológico que se
traduz no facto de eu ir à procura de subir os níveis de confiança da equipa. Por
tudo isto devo referir que uma unidade de treino ± um treino na linguagem comum
± é dinâmica. Muitas vezes temos de ter a capacidade de análise para que ela não
seja exactamente aquilo que se planificou. A planificação deve ser flexível,
portanto, face àquilo que planeei posso, por diversos motivos, concluir que o
exercício que seria o próximo não o vai ser. Quando vou para um treino sei, ao
nível psicológico, quais são os itens que eu pretendo realçar, as tais dominantes. Sei
o que vou provocar ou para onde o exercício nos vai levar. Estou preparado para
perante um novo exercício de dominante táctica difícil não conseguir atingir os
objectivos que pretendo. Assim, já sei que naquele dia vou ter de estar
particularmente atento e virado para reacções positivas ou negativas e tentar
modificar o exercício para que ele seja mais eficaz´.
Procurámos que Vosé Mourinho fosse o mais concreto possível sobre a forma como
desempenha a liderança nos seus grupos. Questionámo-lo, nomeadamente, se era um líder
distante ou um líder que consegue ser família dos seus seguidores?
³Sou tudo. Sou distante, sou perto, sou muito perto e sou longínquo. Consigo ser
tudo, dependendo do momento, da situação, da análise que faço e daquilo que
penso que é importante. Analiso caso a caso, momento a momento, personalidade a
personalidade, e a minha forma de actuação é perfeitamente individualizada e de
acordo com o momento e a análise que dele faço. Não tenho um comportamento e
145
uma forma de actuação estereotipada. Se calhar há jogadores que nunca abracei na
vida, porque sinto que eles não sentem necessidade. São jogadores que não
precisam de um instinto paternalista. Ou porque apesar de precisarem ou poderem
precisar eu acho que o conflito ou a inexistência de intimidade pode contribuir, de
acordo com as suas características de personalidade, para uma maior motivação e
rendimento. No fundo vai tudo desembocar no mesmo: é a procura de rendimento.
O meu tipo de relação não tem como fim a relação em si, ser amigo ou não ser
amigo, o jogador gostar de mim ou não. O único objectivo é o rendimento do
grupo, em primeiro lugar, e, indirectamente, os rendimentos individuais, porque são
eles que vão contribuir para o rendimento do grupo.´
Sobre este assunto, lembrámo-nos então de uma situação concreta. No final do campeonato
inglês, em Maio de 2005, quando festejava a conquista do título, Mourinho abraçou-se a
uns jogadores e não a outros; perguntámos-lhe se sabia exactamente quem estava a
abraçar?
³Sabia, sabia. Sabia exactamente quem estava a abraçar. Três dias antes tinha
perdido a meia-final da Liga dos Campeões e sabia exactamente quem é que estava
mais abalado. Quem estava pior não eram os jogadores que no ano anterior tinham
sido campeões europeus no Porto nem aqueles que estavam no Chelsea pela
primeira vez e tinham perdido uma meia-final a primeira vez nas suas vidas. Quem
estava pior eram os que, pelo segundo ano consecutivo, tinham perdido uma meiafinal
da Liga dos Campeões. O Chelsea perdeu no ano em que eu fui campeão
europeu e depois perdeu no meu primeiro ano. Quando acaba o jogo do Liverpool
eu sei perfeitamente que o Gallas, o Terry, o Lampard e outros que perderam duas
vezes seguidas são os que, naquele momento, precisam de mim. Naquele dia não
cumprimentei, por isso o Paulo Ferreira ou o Ricardo Carvalho. Estavam tristes
como eu estava mas não tinham tido a decepção da vida deles, porque a vida tinhalhes
sorrido ao mais alto nível dez meses antes.
Mourinho é, pois, um líder que tudo tenta prever. Não só as reacções dos seus adversários,
como também as dos seus próprios jogadores. E também não apenas as reacções positivas,
mas também as negativas, de uns e de outros. De resto, é precisamente sobre os aspectos
negativos que Vosé Mourinho, como já foi descrito, prefere trabalhar.
146
Em seguida centrámos a nossa conversa na problemática do envolvimento e do controlo
emocional. Focámos então a relevância da auto-consciência na gestão do todo.
³[A minha confiança] vem da consciência que tenho das minhas capacidades a
todos os níveis. A nível de operacionalização do treino, que é um aspecto marcante
da nossa profissão, porque todos os dias se treina, percebi desde muito cedo que era
muito forte nesse aspecto, porque trabalhei com gente do mais alto nível e eu
operacionalizava com uma facilidade grande. Tinha ideias claras, tinha ideias
discordantes e tinha ideias que não se podiam operacionalizar pelo estudo dos
manuais tradicionais. Se formos procurar exercícios de treino em futebol, numa
perspectiva mais mecanicista ou cartesiana, chegamos a uma biblioteca qualquer e
saímos carregados de material. Se formos à procura de uma perspectiva integrada
de treino, vamos à melhor livraria do mundo e não encontramos nada. Eu tinha
ideias diferentes daquilo que estava estabelecido mas isso não me chegava. Temos
de ter a capacidade para desenvolver e operacionalizar. Eu consegui ser discordante
e ao mesmo tempo encontrar as soluções para a minha discordância. Por outro lado,
é muito difícil ser o líder principal, mas, para mim, é mais fácil, neste momento, ser
o líder principal com o estatuto que consegui. O estatuto pode ajudar na liderança,
até porque há muita gente que, por norma, é obediente à hierarquia. Sinto isso em
Inglaterra, é mais fácil liderar porque o jogador inglês é obediente à hierarquia. O
jogador latino não é especialmente obediente à hierarquia. É obediente à
competência. Não sou obediente porque tu és treinador; sou obediente porque sabes
mais disto que eu, porque és bom, porque treinas bem, porque tens razão. Fui
adjunto em diferentes realidades latinas ± Barcelona e Porto ± e senti que podia
liderar, que me respeitavam, que tinha uma capacidade natural para treinar, para
explicar, para liderar´.
Vosé Mourinho sempre foi alguém com uma confiança grande na vitória (aceitem este
testemunho de alguém que o conhece há 40 anos«). Perguntámos-lhe: ³isso é totalmente
teu, acreditas sempre na vitória. Porquê? Onde vais buscar essa crença?
³O optimismo, a crença, tem que ver com a noção da realidade. Relaciona-se
directamente com a maneira como preparas a equipa e te preparas a ti próprio,
como sentes o estado emocional dos jogadores, como sentes o teu domínio sobre
147
eles. Tem que ver com a competência de todos. Cada vez penso mais que eu sou
gestor de muitas áreas dentro de um clube, e que todas elas vão convergir para uma
coisa que é o rendimento durante 90 minutos. Por isso é importante ter um bom
departamento médico, um bom departamento de observação e todos os outros que
giram em torno de uma equipa de futebol. Uma coisa é teres um departamento
médico preparado para o tratamento e outra é teres um departamento preparado
para o tratamento e para a prevenção. Quanto melhor preparadas estiveram as
estruturas mais fácil é conseguires vencer. Consegui sempre criar boas estruturas ao
meu redor´.
Vosé Mourinho está atento às emoções, dos profissionais do seu grupo e até dos seus
adversários. A forma como comunica, e entra nas ³guerras´ com outros treinadores,
nomeadamente antes dos jogos, é pensada.
³Estou atento. Por exemplo: houve um técnico que foi embora do Chelsea este ano
± preparador físico da equipa B ± porque eu abri o caminho para ele se ir embora.
Num dia em que jogávamos em casa, o Geremy estava convocado. Convoquei 17,
só se equipavam 16, e o Geremy ficou de fora. Estava no balneário, triste, mas
estava lá sentado no seu sítio. O tal treinador chegou, nessa altura, junto do Geremy
e disse (eu estava na casa de banho e ouvi): ³Outra vez? Outra vez de fora?´ O
Geremy explicou que era assim, que só se equipavam 16 e que tinha ficado de fora.
E o outro continuou a gozar. Foi despedido! Porquê? Porque tenho de combater
todos os comportamentos que quebrem, ou tentem abrir, uma brecha no conceito de
grupo e de equipa. Sempre tentei que a equipa B se sentisse como parte integrante
da equipa A, os métodos de trabalho são os mesmos, a maneira de jogar e de treinar
é a mesma e assim tento incutir um conceito de abertura para todos eles se sentirem
parte integrante.´
Nesta entrevista a Vosé Mourinho tentámos ilustrar, num testemunho na primeira pessoa, os
traços principais do seu trabalho, da sua prática e do seu estilo. As respostas de Vosé
Mourinho servir-nos-ão, bem como o material apresentado no primeiro capítulo e, ainda, a
bibliografia já disponível sobre o treinador do Chelsea, como base para a análise da sua
liderança num grupo de alto rendimento. Essa análise será feita no Capítulo 9. No entanto
148
não queremos deixar de destacar já, na sequência da apresentação desta entrevista, algumas
das ideias centrais que Mourinho protagoniza enquanto líder.
Vosé Mourinho rejeita o reducionismo positivista e adopta um modelo complexo de
actuação, suportado na ideia de um todo integrado, no âmbito do qual as partes têm o seu
sentido. O indivíduo surge-nos aqui, também ele como um todo complexo, mas como parte
de um todo ainda mais complexo que é o grupo, e para o qual as partes têm
obrigatoriamente que convergir. Também no campo técnico/táctico o todo ± o jogo ±
aparece como a primeira determinante, a partir da qual tudo é feito. A própria liderança de
Mourinho parte do todo e acaba no todo, sendo uma liderança integrada que começa e
acaba no próprio jogo e na sua preparação. Os actos de liderança de Mourinho são
concretizados muitas vezes com a bola, o elemento sem o qual o jogo não existiria. A
cultura do seu grupo, integral e integradora, começa no líder mas fundamenta-se e
desenvolve-se nos seus seguidores, eles também elementos com sub-culturas e
personalidades diversas. Finalmente, a gestão da emoções é feita do geral para o particular,
sendo Mourinho simultaneamente o líder próximo e o líder distante, o líder que detecta e
que age, que pune e premeia, mas, sobretudo, o líder sempre presente, sempre próximo e
sempre em função do todo.
149
c  ;
DISCUSSÃO EXPLORATÓRIA: ENTREVISTA A RUI FARIA
150
A entrevista que realizámos em Vunho de 2006 a Rui Faria abordou os mesmos temas que
os da entrevista a Vosé Mourinho, apresentada no capítulo anterior: a complexidade como
perspectiva de fundo; o exercício concreto da liderança de Vosé Mourinho; o grupo e a sua
cultura; e a aprendizagem e o treino. Porque trabalham juntos e partilham as mesmas
ideias, esta conversa com Rui Faria pretende ser um complemento da anterior, mas
segundo uma visão diferente, a visão do liderado. Pretendeu-se também recolher o ponto
de vista de Rui Faria por se tratar de alguém que trabalha com Vosé Mourinho há cerca de
seis anos sendo, como tal, um observador privilegiado dos métodos de trabalho de Vosé
Mourinho e da sua evolução.
;c0.@!%H
Seguindo, então, a mesma técnica, isto é, uma entrevista semi-estruturada, iniciámos a
discussão exploratória com Rui Faria em torno da problemática da complexidade,
relacionando-a com o trabalho dos grupos liderados por Vosé Mourinho.
³Vulgo que, observando aquilo que é a nossa realidade, o sucesso é fruto de muitos
factores: a globalidade das coisas, desde o processo de liderança à sua organização, a
uma análise concreta do que se pretende, à definição clara de objectivos, à
organização das estruturas para atingir esses objectivos. Toda esta estruturação e todo
este processo, que naturalmente surge da figura principal, que é o Vosé Mourinho,
permite criar uma organização e um processo que, pela forma como ele se
desenvolve, cria condições para atingir os objectivos. Basicamente, julgo que é um
fenómeno de liderança e de organização e sequênciação de um processo. Muitas
vezes perguntam-me se somos melhores que os outros ou, simplesmente, diferentes.
Eu diria que somos a conjugação dos dois factores. Trabalhamos de uma forma
diferente, porque cada processo tem uma identidade muito própria, à imagem de
quem o cria. Independentemente das pessoas poderem ter concepções idênticas, na
realidade quando se trata de chegar ao terreno e de operacionalizar, o processo é
naturalmente diferente. É preciso combinar isso tudo. Somos diferentes e somos
melhores pela forma como as coisas são operacionalizadas, tornando-as diferentes do
normal justamente porque partimos de pressupostos diferentes, de concepções
diferentes. Somos diferentes pelo processo natural de quem lidera, pelas suas
151
características e pela forma como se organiza todo o processo e se estabelece uma
interacção natural na procura dos objectivos. Quer pela forma como se treina quer
pela forma como se interage com as pessoas envolvidas no processo, tudo se torna
muito próprio e muito à imagem de quem lidera.´
Sobre esta interacção com o cunho pessoal do líder, Rui Faria comenta que Vosé Mourinho
age, reage e interage de uma forma muito própria. Daí que, em seu entender, se possa falar
com segurança num padrão de trabalho fundamentado na perspectiva da complexidade.
³Vulgo que, pela abordagem que fazemos do processo, complexidade é a palavrachave
de toda a nossa actuação à frente de uma equipa de futebol. Entendemos que
sendo esse processo complexo, pela relação que existe, olhando para o produto final
que é a equipa e o que se pretende como equipa no seu todo, estabelecemos uma
linguagem comum que seja inteligível para todos e que seja a identidade dessa
equipa. A equipa em si, como estrutura, é importante mas todas as estruturas
envolventes também são importantes. E quando falo nas outras estruturas, falo nos
diferentes departamentos ± o departamento médico, de futebol, de rouparias, de
observação« Tudo isto são estruturas que interagem e que não podem ser vistas
como algo isolado. Elas são uma necessidade que nós temos e que fazem parte de
toda a organização. Só a perfeita interacção e o perfeito rendimento de cada uma
destas estruturas permite que o produto final, que é o jogo em termos de equipa,
possa funcionar da melhor forma e sem embaraços. O entendimento do fenómeno
enquanto complexo é perceber que ele necessita de viver nessa perspectiva, com uma
interacção globalizada entre todas as estruturas da organização. No entanto, a
complexidade não se restringe aqui aos processos e aos próprios departamentos. A
outro nível, ela passa, também e obviamente, pelo homem enquanto um todo
complexo.´
Rui Faria mantém a mesma linha de raciocínio, ao tomar cada entidade, seja ela o clube, a
equipa de futebol, ou o próprio jogador individual, como um todo; como um todo
complexo. Sob esta perspectiva, chama a atenção para o facto de, ao contrário do que
muitas vezes é comentado e do que possa parecer à maioria de nós, o futebol não ser um
jogo físico.
152
³O jogo joga-se fundamentalmente com a cabeça. A mente tem de estar sempre
presente em relação a tudo, e o jogo tem de começar por ser um fenómeno pensado.
O cérebro não está isolado dos pés; as coisas não acontecem dessa forma. Os pés
funcionam num processo que passa pela mente. Tudo passa pelo modelo que
pretendemos. Modelo é, no fundo, o entendimento da complexidade que é o jogo e a
identidade do treinador em função desse jogo. É olhar para o jogo, modelá-lo na
perspectiva do treinador, e trabalhá-lo depois em função disso. Sendo o jogo
resultado de interacção entre indivíduos pensantes, o que se pretende é que essa
linguagem seja comum. Isto só se consegue se todo o processo de treino e de jogo for
concebido numa perspectiva de organizar comportamentos que criem essa linguagem
comum. Tem de se pensar o jogo a cada minuto e a cada segundo.´
;(c.%H/0
Em seguida abordámos o funcionamento da equipa de futebol como um grupo. Unidade e
diversidade, o todo e as partes, como se conjugam estes aspectos numa equipa liderada por
Vosé Mourinho?
³Os jogadores são todos diferentes, pela sua natureza e personalidades próprias. Mas,
porque são membros do mesmo grupo, pretendemos que eles pensem a mesma coisa
sobre o jogo. Naturalmente que as suas características são diferentes. Posições
diferentes exigem jogadores diferentes e características individuais diferentes. Daí o
facto de se querer os melhores sob o ponto de vista da execução. Mas sob o ponto de
vista do pensamento do processo, queremos unicidade, queremos que os jogadores
funcionem dentro do mesmo guia, do mesmo plano de pensamento. Quanto mais
conseguirmos que as coisas aconteçam com os jogadores todos a pensar exactamente
a mesma coisa no mesmo segundo, melhor o processo organizado irá surgir. Ser
desorganizado é a coisa mais fácil do mundo. Por isso, nos treinos, insistimos muito
na habituação. O treino cria hábito e depois, no jogo, em vez do acto ser pensado, ele
surge de forma subconsciente e natural. No entanto, durante o jogo, também existe
espaço para o raciocínio devido à imprevisibilidade que obriga a que se tenha que
decidir num determinado momento. Mas tentamos pensar o máximo nos treinos de
forma a tentar reduzir a imprevisibilidade, para que no jogo não se tenha que
153
encontrar novas respostas ou, pelo menos, que tenhamos que o fazer o mínimo de
vezes possível«´
Quer na entrevista de Vosé Mourinho, quer na de Rui Faria, fica claro que a eliminação da
imprevisibilidade ± embora ambos obviamente assumam que essa eliminação nunca pode
ser completamente atingida devido à complexidade do jogo e da acção humana± é um dos
esforços fundamentais na preparação da equipa.
³Exactamente: treinar para o jogo, por natureza diminui a imprevisibilidade. O treino
desta forma vai ao encontro das necessidades do jogo. É muito mais específico e
direccionado, e nesse sentido encontram-se respostas em treino para um conjunto de
situações que depois surgem no jogo. Mas também há o lado estratégico que tem que
ver com as características de cada equipa, com os fenómenos modelizados por outros
indivíduos, que nos obrigam a ter de os estudar para diminuir a imprevisibilidade.
Temos de tentar diminuir ao máximo, quer pelo treino quer pelo estudo do
adversário, a imprevisibilidade de um fenómeno que será sempre imprevisível. Mas
quanto mais munidos de respostas a essa imprevisibilidade estivermos, menor será
essa imprevisibilidade. Uma das formas de conseguirmos isso é trabalhando sobre
um modelo mental geral em função do que se pretende. Quando se diz que a equipa é
mais importante que o indivíduo, no fundo pretende-se isso: que todos eles se
centrem na equipa e, por consequência, que todos sejam interdependentes uns dos
outros. Se um estiver mal isso vai atrapalhar o trabalho do outro e por consequência o
trabalho do grupo.´
Poderá questionar-se, nesta filosofia de pensamento, até que ponto o todo não estrangula as
partes. Porque tudo continua a ser desempenhado por homens, que entram em campo e são
obrigados a decidir, como encontramos então, mantendo a coerência do todo, o espaço do
individual? Rui Faria defende e justifica o individual em função do todo.
³O individual existe. Mesmo na filosofia de jogo ninguém corta a individualidade de
cada um. Quando eu falei numa mentalidade, numa linguagem comum como equipa,
ela tem de surgir no jogo mas sem inibir o como fazer para que isso aconteça. O que
é importante é que o jogador utilize as suas capacidades individuais e as suas
características em função do grupo. Porém, o indivíduo com as suas características
próprias tem de continuar a existir senão não fazia sentido a escolha, o querer um
154
indivíduo com determinadas características, se depois fosse para as aniquilar. As
características que cada um tem são para nós importantes, logo não queremos que
elas desapareçam, ao invés, queremos é que elas se evidenciem, queremos
potencializá-las no todo. Em termos comportamentais trata-se exactamente do
mesmo. Cada um tem a sua personalidade só que ela tem de viver segundo as regras
que são comuns a todos. Mas isso acontece em todo o sítio, é a própria vida. Quando
a individualidade se quer sobrepor ao conceito de equipa aí as coisas não estão a
acontecer da forma que nós queremos, que consiste em trabalhar no sentido da
estabilidade, e nesse sentido quanto maior for a coerência ± entendida aqui como a
capacidade de perceber que um indivíduo está a ter um comportamento negativo para
essa estabilidade ± melhor se atingirão os resultados que se pretendem. Posso dar o
exemplo do Ricardo Carvalho quando disse não perceber as decisões do treinador.
Ora quando um jogador coloca em causa as decisões do líder, automaticamente está a
colocar em causa a própria liderança perante o resto da equipa. Logo, outro pode vir
dizer: se ele falou eu também posso falar» e depois o mais fácil é instalar-se a
desorganização. Isso seria viver no clima de desorganização quando o que se
pretende é o clima de estabilidade, ordem e organização. Portanto, não podemos
permitir que sentimentos negativos surjam na equipa. Quando vamos na estrada e
quebramos as regras temos sanções São sanções que servem de exemplo para o
todo e para o fortalecimento do todo. A sanção pretende a reorganização do todo e
não a punição em si mesma. Por isso não interessa se, quando temos de punir,
punimos este ou aquele jogador. Trata-se de um elemento de uma estrutura que tem
de funcionar em estabilidade, porque a desorganização acaba por ser a
individualidade de cada um. Daí que esses comportamentos individuais tenham de
ser dirigidos para o colectivo. É desta forma que entendemos a grande importância
das sanções para o grupo perceber que as coisas não andam nem podem andar à
deriva.´
Tanto Vosé Mourinho como Rui Faria defendem existir uma cultura específica dos grupos
liderados pelo treinador português. Aliás, para Rui Faria, trata-se claramente de uma
cultura desenvolvida à imagem do líder do grupo.
³Existe uma µcultura Vosé Mourinho¶ nos grupos que ele lidera. Trata-se de uma
cultura à sua imagem. Perante a sua personalidade, ideias e forma de estar no futebol,
155
o modelo de jogo transmite exactamente isso. É ele que define o todo que somos, que
define os objectivos e tudo o resto, e portanto o processo de liderança é a identidade
de quem o concebe. No entanto, a cultura também tem que ver com a cultura de
quem a recebe. Dou um exemplo. Quando jogámos com o Barcelona o Mourinho foi
para a guerra, entrou em polémicas e deu o corpo às balas. Depois vimos os
jogadores do Chelsea a dar abraços aos do Barcelona, a tirar fotografias com adeptos,
etc. Ora isto no FC Porto não aconteceria. Eu estou a ver um jogador ou adepto do
Barcelona ir dar um abraço ao Vorge Costa22 e este a responder logo com um pontapé
ou uma cabeçada. No Porto era todos por um e um por todos, logo, se o treinador
estava em ³guerra´ toda a gente estava em ³guerra´. No Chelsea isso passou ao lado
dos jogadores.´
;* 0!2%5H!
No que respeita ao treino e à aprendizagem, mais uma vez, e à semelhança de Vosé
Mourinho, Rui Faria colocou o acento tónico na imprevisibilidade como arma para atacar o
adversário. Também aqui noções como interacção, mensagem, todo e globalidade
encontraram eco. A partir destas noções, Rui Faria começou a sua análise sobre qualidade
de trabalho versus quantidade de trabalho.
³Sou um bocado avesso à quantidade. Prefiro a qualidade do trabalho. Se
trabalharmos com qualidade precisamos de trabalhar menos. A qualidade é a
selecção do que treinar concretamente e também nesta perspectiva nós somos
diferentes. A selecção exacta do que é necessário em detrimento do que é extra é
fundamental já que o tempo para treinar é muito pouco devido à sobrecarga de jogos
numa equipa como o Chelsea, que disputa quatro troféus por temporada. Tem de se
seleccionar o que é mesmo importante treinar em cada um dos dias, e depois
encontrar, em função da nossa necessidade, o melhor treino. Muitas vezes, quando
estamos em processos de recuperação e temos que treinar também sob o ponto de
vista estratégico para diminuir a imprevisibilidade do jogo, temos de encontrar
formas de treinar atendendo a que estamos a trabalhar, essencialmente, esse aspecto
porque ele pode definir o sucesso dos objectivos. A este nível, a densidade
22Antigo capitão do FC Porto, quando Mourinho era o treinador.
156
competitiva só nos dá tempo para recuperar fisicamente e não melhorar fisicamente.
Não é preciso treinar muito para treinar bem.´
Não é, no entanto, por esta premissa que o tempo de duração dos treinos é deixado ao
acaso. No Chelsea, sob o comando de Vosé Mourinho os treinos têm, tendencialmente, a
mesma duração dos jogos. Não se pense, contudo, que esta opção encontra o seu
fundamento principal na componente física dos atletas.
³Tudo tem que ver com um estímulo que vai ao encontro do tempo de exercício e de
concentração. Isto leva-nos para um aspecto que é um fenómeno mais mental que
outra coisa. A concentração é um fenómeno treinável. Pretendemos ter o rendimento
e concentração máximos numa hora e meia de treino ± que é exactamente o tempo de
jogo ± procurando desta forma que o jogador consiga estar concentrado os 90
minutos. Um segundo de desconcentração no jogo é o suficiente para ³morrer´.
Queremos que durante essa hora e meia não haja muitas pausas, para adaptar o tempo
de esforço ao tempo do treino. Um indivíduo que não está habituado a ler, lê as
primeiras quatro ou cinco páginas e à sexta ou sétima já tem a cabeça noutro sítio.
Com a regularidade de leitura adquire-se a capacidade para ler vinte, trinta ou
quarenta páginas seguidas. Isto é concentração e por isso é um fenómeno treinável.
Sob o ponto de vista mental direccionado para o jogo, como aquilo que se faz é
adquirir formação mental e comportamental, os jogadores tem de pensar e ser
inteligentes para observar. Daí o Vosé Mourinho dizer que só quer jogadores
inteligentes nas suas equipas, portanto, eles têm de perceber e para isso têm de
pensar. Como pensar exige concentração e porque concentração máxima é o que
pretendemos nessa hora e meia de jogo, o melhor é começar logo pelo treino.´
Portanto, pode considerar-se que para Rui Faria o fundamento do treino é a preparação
inteligente dos jogadores, no sentido de ele ter de ser pensado por todos. Esse raciocínio é
global, envolvente e complexo no todo que é o treino, enquanto ponto de partida para o
todo que é o jogo.
³Vulgo que nada é separado. Eu apresento a questão como uma dimensão de
complexidade porque na realidade quando vamos para o terreno tem de lá estar tudo.
Quando se transmite informação sobre um adversário transmitem-se características
fundamentais sobre esse adversário, que são importantes para cada jogador perceber
157
como é a dinâmica de jogo da equipa e portanto exige-se-lhes que pensem. Resulta
daqui que, automaticamente, o fenómeno tem de ser pensado e exige que os
jogadores tenham de ter a percepção e capacidade para perceber o que se lhes está a
transmitir. Daí a necessidade de se afirmar que eles têm de ser inteligentes para mais
facilmente conseguirem resolver os problemas que tenham pela frente. É a questão
do homem enquanto todo complexo, ou seja, é por isso que há jogadores que têm
grande capacidade técnica e no fundo sob o ponto de vista mental não a sabem
utilizar. São aqueles jogadores que fazem uma ou duas fintas e depois no último
toque ± que é o mais importante porque tem que produzir sempre um qualquer
resultado ± é completamente disparatado, ou seja, o produto final, resultado daquela
acção, foi uma catástrofe que nada tem a ver com a eficácia que se exige no futebol.
Assim, o momento da decisão final, do último toque, é um momento de inteligência,
e que passa também pelo treino. Numa fracção de segundo tem de se decidir e decidir
bem e isso também é treinado. Portanto, quando se treina temos de tentar chegar aos
aspectos fundamentais na perspectiva do treino. Quando se treina sob o ponto de
vista do jogo está a treinar-se processos de decisão. Quantos e quantos não são os
jogadores que mesmo sendo mais lentos que outros chegam primeiro à bola? Isto
acontece porque no momento da analise da situação são mentalmente mais rápidos
que os outros e nestes casos uma fracção de segundo é o suficiente para se
anteciparem e chegarem primeiro. Assim, não importa ser-se mais rápido sob o ponto
de visto físico. O que verdadeiramente conta é ser-se mais rápido sob o ponto de
vista mental. Daí se explica que homens com 40 anos possam ainda jogar futebol.
Eles têm limitações físicas que os leva a ser mais lentos mas ultrapassam essa
fragilidade sendo mais rápidos sob o ponto de vista mental, ao anteciparem as
situações, ao anteciparem o que vai acontecer no jogo«´
Portanto, a avaliar pelas palavras de Rui Faria, o treino em toda a sua complexidade, pode
ser entendido como uma representação do real, que é o jogo. Logo, o treino será a
antecipação do jogo a todos os níveis: concentração, esforço, limite.
³O jogador só pode jogar no limite se treinar no limite« e o jogo é o espelho do
treino. Quanto maior for a determinação no treino maior é a determinação no jogo.
Temos de jogar e treinar no limite. Mas o treinar no limite exige a mentalidade de
treino no limite, portanto a mentalidade está antes da acção. Por isso temos de nos
158
preocupar com as diferentes características mentais de cada jogador: se é mais
nervoso, mais intimidável, se encara o jogo desta ou daquela maneira, etc. Por
exemplo, temos de observar, em dia de jogo, antes ou durante o almoço, os
comportamentos que são e não são normais. É evidente que temos de conhecer
profundamente o carácter de todos os jogadores e isso vai acontecendo com o tempo,
depois trata-se de descodificar as suas reacções. Se descortinamos algo anormal a
nível emocional com algum jogador, falamos com ele, e fazemos passar a mensagem
que entendemos ser a melhor na altura, esperando que tudo corra bem e que ele
supere o que está mal. Em treino estas questões não se colocam porque normalmente
o jogador cumpre aquilo que se pretende. Dois dias antes ninguém tem problemas.
No dia anterior, ou no dia do jogo, no fundo na hora do exame é que as coisas podem
ter reflexos negativos. Aí é que percebemos o sentimento de cada um e vemos se
algo está mal. No momento é que decidimos qual a melhor resposta a dar a essa
situação´.
;-AH!%%
Abordadas as temáticas da aprendizagem e da cultura de um grupo liderado por Vosé
Mourinho, a conversa com Rui Faria mudou, necessariamente, de rumo: liderança. Vosé
Mourinho motiva como poucos e induz nos seus grupos a convicção de que é sempre
possível ganhar. Estamos agora no campo concreto da liderança.
³Vulgo que há um aspecto decisivo que é a imagem do treinador, o seu carisma, a sua
personalidade e fundamentalmente a sua empatia. Em todas as estruturas tem de
haver um líder e uma equipa de futebol não foge à regra. No entanto temos de olhar
para esta questão em termos globais. A winning mentality não se cria apenas nos
jogadores. Ela tem de emergir em toda a estrutura e quanto maior for a empatia maior
será a qualidade do produto final. O estabelecimento de empatias entre as diversas
estruturas vai criar um melhor produto final mas fundamentalmente, a primeira
imagem é aquela que é transmitida pelo líder, por quem tem poder de decisão. No
caso concreto de Vosé Mourinho, quando falo em globalidade refiro-me a todos os
níveis. A confiança que ele apresenta em todo o processo até à concretização do
trabalho faz com que os jogadores comecem a absorver, logo de inicio essa
159
mentalidade vencedora. É o primeiro passo, que vai permitir que todos os outros
aconteçam de uma forma natural.´
Nesta winning mentality onde entram, então, se é que entram, os afectos. Será o líder
µamado¶ pelos seus seguidores? Poderá o líder ser odiado e, no entanto, continuar a ser o
líder?
³Embora o facto de ser amado pelos seguidores ajude, acho que é mais importante
que gostem da forma como se trabalha. Mas acima de tudo os jogadores gostam de
coerência de quem lidera. É determinante para quem lidera ter sempre o mesmo tipo
de resposta para situações idênticas com as diferentes pessoas. Comportamentos
diferentes do líder para situações similares só levantam sentimentos negativos entre
liderados. Vulgo, pois, que a coerência se sobrepõe à necessidade dos jogadores
gostarem do líder. Até porque não acredito que toda a gente goste, por exemplo, de
Vosé Mourinho pela pessoa que é, pela sua frontalidade, pela forma como diz as
coisas, às vezes agressiva em determinadas situações. Para além disso ele não é o
tipo de líder que anda sempre aos beijos aos jogadores« Pelo contrário, ele muitas
vezes assume até um carácter provocatório, o que lhe permite trabalhar muito com o
lado emocional de cada um dos indivíduos. Quem vive profissionalmente com ele
tem de saber viver com grande pressão e ao mesmo tempo tem de dar resposta
positiva. A pressão que Vosé Mourinho exerce sobre o seu grupo de trabalho é feita
de um modo muito particular em função das diferentes situações e é sempre com o
objectivo de um rendimento superior e eficaz. A exigência é sempre grande para
todos os que trabalham com ele. Na execução do processo o rendimento decada um
tem de ser sempre ao mais alto nível. Todos temos de estar identificados com o que
ele quer e desempenhar as tarefas em função disso sempre ao mais alto nível. Por
vezes é natural que haja reacções negativas a este nível superior e daí a necessidade
de colocar pressão para que as pessoas acordem e voltem outra vez a render ao mais
alto nível.´
Rui Faria acentua a importância de ser consistente na liderança. Por várias vezes, Faria
refere a coerência da liderança de Vosé Mourinho. A coerência é considerada fundamental
não apenas na liderança de um grupo, mas na liderança de um projecto.
160
³Liderar é ser coerente; é ter a capacidade e a inteligência para definir um projecto e
conseguir empatia entre todos os liderados e responsáveis pelo processo. Liderar é
coerência no sentido de ter um projecto e ideias que possam ser adaptáveis e postas
em prática. A coerência passa por aí: objectivos atingíveis. Só assim se poderá fazer
os outros acreditar que é possível alcançar algo, logo, para mim, sem coerência não
existe liderança efectiva. Como é que se pode levar os outros a acreditar em algo em
que eu próprio não acredito?´
Vá com a conversa a caminhar para o fim quisemos obter de Rui Faria a sua abordagem a
algumas questões que têm marcado a imagem de Mourinho e que podem ser relevantes
para caracterizar a sua liderança. Falamos de uma certa linguagem ³guerreira´ que
Mourinho imprime no seu discurso e que tem reflexos no seu grupo; estamos também a
falar da identidade do grupo de Vosé Mourinho. Uma identidade que se percebe também
através da identificação da identidade do seu adversário. Ora esta constatação leva-nos à
pergunta óbvia: quem é afinal o adversário? Somente adversário ou mais que isso,
inimigo?
³É inimigo porque é o adversário, mas também o inimigo no sentido de ser um alvo a
abater porque queremos ganhar. Falo por mim: não cumprimento ninguém da outra
equipa antes do jogo. Eu não estou ali para ser simpático, estou ali para ser antipático
e se assim interpretarmos o termo inimigo então, na realidade, ele é meu inimigo
porque eu quero ganhar e ele quer opor-se à minha necessidade de ganhar. Portanto,
o objectivo é ganhar sempre, se puder ser por 4 ou 5 que seja, mas o objectivo
primeiro é ganhar, é por isso que, provavelmente, falamos em inimigo. Na minha
perspectiva eles são hostis. Por isso a única coisa que nós, treinadores, queremos que
os nossos jogadores vejam são os três pontos resultantes da vitória, não interessando
quem é o adversário ou em que terreno estão. Quando os jogadores entram em campo
só têm o pensamento na vitória e na forma como a vão conquistar. É por isso que
dizemos que não nos interessa saber nem onde nem contra quem vamos jogar. O que
temos é de estar sempre preparados para o jogo com uma mentalidade agressiva e
forte.´
O material apresentado neste capítulo, a entrevista a Rui Faria, e a entrevista a Vosé
Mourinho apresentada no capítulo anterior, constituem-se como duas peças importantes do
161
material empírico relevante para esta investigação. Assim, a informação apresentada nestes
dois capítulos, bem como o material do capítulo 1 e, embora com menor relevância, as
várias obras já publicadas sobre o trabalho de Vosé Mourinho, nomeadamente a sua
biografia escrita pelo autor desta dissertação, constituem o objecto da análise que
apresentamos no capítulo seguinte, o qual, sobre a perspectiva da complexidade,
introduzida no capítulo 2, utilizará o corpus teórico por nós apresentado nos capítulos 3 a
6.
162
c  <
ANÁLISE
163
Neste capítulo iremos analisar a forma de trabalhar e a liderança de Vosé Mourinho à luz da
perspectiva da complexidade, apresentada no capítulo 2 desta dissertação, e no âmbito da
aplicação das teorias e da investigação revistas nos capítulos 3, 4, 5 e 6. Assim, tentaremos
explicar Mourinho pela teoria ± no sentido de que as suas acções encontrem eco e
explicação em formulações teóricas já estudadas ± mas também pretendemos explicar a
teoria por Mourinho ± no sentido em que este treinador de futebol operacionaliza, pela
primeira vez numa equipa de futebol, muitos dos conceitos e noções apresentados,
nomeadamente os da perspectiva da complexidade.
Vamos num primeiro momento olhar o trabalho de Vosé Mourinho à luz da perspectiva
paradigmática acima referida e tentar perceber como ele a operacionalizou no seu trabalho,
nomeadamente na sua liderança, numa equipa de um clube de futebol; a seguir focaremos a
sua acção enquanto líder à luz da teoria da inteligência emocional, ou seja, analisaremos de
que modo a acção de Mourinho pode ser descrita e analisada no âmbito desta teoria;
seguidamente iremos olhar a investigação sobre grupos para tentar explicar não só o modo
de funcionamento de Mourinho enquanto líder de um grupo, como também a evolução
deste mesmo grupo, nomeadamente no que respeita à sua formação, desenvolvimento e
manutenção; de seguida utilizaremos as várias teorias de liderança, anteriormente
apresentadas, para analisar e tentar enquadrar de um modo pragmático a acção efectiva de
liderança de Vosé Mourinho; finalmente concluirmos este capítulo com a apresentação de
uma análise global à liderança da acção de Vosé Mourinho, tentando ligar e integrar as
análises anteriormente apresentadas, e utilizando para isso metaforicamente os resultados
do projecto do genoma humano, referidos por nós nesta dissertação no capítulo 2 ± esta
subsecção final dividir-se-á numa primeira parte que procurará destacar e recuperar as
principais ideias fortes que saíram da nossa análise e numa segunda que apresentará uma
análise integrada da investigação levada a cabo por nós sobre a liderança de Vosé
Mourinho.
<  0%'!%.!2%%c0.@!%0 !"
Tal como é explícito desde o capítulo 2 é na teoria da complexidade que Mourinho
encontra o mais forte suporte teórico do seu trabalho. Daí que, por definição, não possamos
falar na liderança de Vosé Mourinho num contexto isolado. Porque o seu trabalho se traduz
164
numa acção complexa, integrada e relacional, ao falarmos de liderança fundamentada na
complexidade estamos a falar ± e teremos de falar ± no próprio universo do seu trabalho,
sendo que, por isso, seremos obrigados a fazer aqui uma teia de ligações, para explicar o
trabalho e método de Vosé Mourinho.
Assim, como ponto de partida da análise do trabalho de Vosé Mourinho à luz da perspectiva
da complexidade partimos de uma das noções de maior poder, a noção do ³todo que está
na parte que está no todo´, amplamente utilizada por Morin. Esta noção deve ser entendida
sob perspectivas diversas: o todo é o resultado da interacção entre as partes; enquanto
globalidade, o todo é o que governa, o que modela as partes; é o todo, também, que de
alguma forma está inscrito, gravado, em cada parte; e, finalmente, o todo é diferente da
soma das partes. Nos parágrafos seguintes utilizaremos estas variações da ideia central
acima referida para analisar a liderança e os processos de interacção e de trabalho de Vosé
Mourinho.
Relembrando o que atrás foi dito sobre a noção de paradigma, e o enquadramento enquanto
tal da perspectiva da complexidade, com a chegada de um novo paradigma ³[w]hat were
ducks in the scientist¶s world before the revolution are rabbits afterwards´ (Khun
1996:111). O que antes era um atleta de alta competição, um jogador de futebol, entendido
em função das suas dimensões física, psicológica, técnica, táctica, disciplinar, etc., com
Mourinho mudou. Mudou o entendimento de fundo do jogador, da equipa, do jogo, do
treino, do clube, etc. Como abaixo analisamos, e como foi referido no Capitulo 7, nuns
casos directa noutros indirectamente, Vosé Mourinho encara o seu trabalho pela
globalidade. Seja qual for o fenómeno que foque, Mourinho não o isola. No jogador não
separa o físico do mental, do psicológico, do emocional, do técnico, do táctico. Ao
contrário do que desde Max Weber (1930) é pacificamente aceite na sociologia e em áreas
afins, no relacionamento que Mourinho tem com os seus jogadores ele não separa a vida
profissional da vida pessoal de cada um deles ± interessa-lhe o homem, o todo. Exemplo
disto mesmo é o teor da carta que endereçou aos jogadores mal chegou ao Chelsea, no
Verão de 2004: ³A partir de agora, cada exercício, cada jogo, cada minuto da vossa vida
social tem de centrar-se no objectivo de ser campeão´. Fica clara a ideia de globalidade de
Mourinho em torno de um objectivo. Sempre, quer na vida profissional quer na vida social
± como se em Mourinho se pudesse fazer esta divisão, que não pode ± o objectivo de ser
campeão terá de estar presente.
165
A própria equipa de futebol não é entendida isoladamente, mas como uma entidade, um
grupo com uma identidade e um projecto próprios, inserido numa teia de relações e numa
hierarquia de estruturas. Rui Faria foi directo, no capítulo 8, ao chamar a atenção para este
facto. Não são apenas os jogadores que ganham ou perdem no final de um jogo. Eles nem
lá estariam se não existissem outras estruturas a trabalhar, ao mesmo tempo e em profunda
ligação, para o mesmo objectivo. Essas estruturas ± departamento médico, departamento de
futebol, departamento de observação, direcção, rouparias, etc. ± são interactivas com a
equipa e só também com elas a equipa pode funcionar no sentido literal do termo. Daí que
Rui Faria afirme que ³[s]ó a perfeita interacção e o perfeito rendimento de cada uma destas
estruturas permite que o produto final, que é o jogo em termos de equipa, possa funcionar
da melhor forma e sem embaraços´.
Mourinho também não divide a equipa em efectivos e suplentes, não distingue o que se faz
no jogo do que se faz no treino, não separa claramente a comunicação no seio na equipa da
comunicação com os media. Lembremos o caso da conferência de imprensa de Mourinho
em Barcelona, descrito no primeiro capítulo desta dissertação. Na altura, ao dizer
antecipadamente aos jornalistas não só a constituição da sua equipa inicial como também a
do seu adversário, Mourinho não só enviou a mensagem para os seus jogadores de total
conhecimento do Barcelona, por isso, motivando-os e reforçando-lhes a confiança, como
também enviou para o seu adversário a mensagem ³vocês para mim não têm segredos.´
Desde logo é o próprio Mourinho que assume o corte epistemológico em que assenta a
globalidade da sua acção: ³Acredito hoje que vai haver ± e já está a haver ± um corte com
aquele passado [a perspectiva reducionista tradicional aplicada ao futebol], porque o
homem é um ser complexo e no caso da minha profissão, no futebol, temos de perceber
que onze homens à procura de um objectivo é completamente diferente de um homem à
procura de um objectivo.´ À complexidade do homem individualmente considerado,
Mourinho acrescenta a complexidade da interacção grupal. Ao olhar para onze homens que
buscam um objectivo, Mourinho vê-os como partes constitutivas da equipa e como uma
equipa que se manifesta nas suas várias partes. Também a sua metodologia de treino não
contempla divisões nos diversos sectores da equipa: não trabalha separadamente a defesa,
o meio-campo ou o ataque; sobretudo não trabalha aspectos descontextualizados de um ou
de outro movimento ou fase de jogo.
166
O que existe no seu trabalho é a ³dominante´, ou seja, o trabalho foca um aspecto sem
esquecer que é o todo que está em acção e que, por isso, devidamente enquadrados muitos
outros factores estão também a ser trabalhados. Foi justamente Mourinho, na entrevista que
apresentámos no capítulo 7, que nos alertou para este facto: ³Eu próprio quando preparo
um treino estou a preparar uma actividade global e nunca o faço sem perceber quais são as
implicações aos diferentes níveis. Por isso digo que cada exercício tem uma dominante.´
Assim, esta noção de dominante introduzida por Mourinho é um dos conceitos através dos
quais ele operacionaliza a perspectiva da complexidade no seu trabalho concreto do dia-
adia.
É desta forma que Mourinho concretiza, por exemplo, num treino de dominante táctica
outros objectivos secundários, como por exemplo a motivação. ³Eu sabia que o Camacho ±
treinador benfiquista ±, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic pelo Sokota. Ora,
quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minha equipa contra as
investidas atacantes do Sokota´ (Mourinho in Lourenço 2004). Com este exemplo
pretendemos ilustrar a abrangência do trabalho de Mourinho ± Mourinho visa treinar o
todo, simultânea e integradamente. No exemplo acima, em campo, a treinar tacticamente a
sua equipa, realizou também um acto claro de liderança de uma forma motivacional: ele
sabia que estava a passar uma mensagem de confiança na vitória ao treinar de forma
condicionada, entendida esta, aqui, de uma forma positiva, já que, a sua condicionante era
saber que ia estar a ganhar, daí preparar os seus jogadores para defrontar o Sokota, o tal
que só entrava quando o Benfica estava a perder.
Mourinho vê o homem, neste caso os profissionais da sua equipa como um todo complexo.
Não separa a sua vida profissional da sua vida social ou, se quisermos, não vê em cada um
deles dois homens, um profissional e o outro social, conforme podemos concluir pelo que
foi descrito no capítulo 1 sobre a necessidade de disciplina na vida pessoal: ³[A]cho que
quem sentir que precisa de disciplina na sua equipa, em vez de ir à procura dos aspectos
disciplinares nus e crus (pontualidade, rigor, etc.), deve ir antes pelo rigor táctico, pela
procura de uma determinada disciplina táctica. É assim que eu consigo uma disciplina
global´ (Oliveira et al 2006:178). Um outro exemplo que aqui se pode dar tem que ver
com a recusa de Mourinho em fazer marcações individuais aos jogadores adversários,
mesmo que estes sejam os melhores do mundo. Para o técnico, se se pretende promover a
solidariedade entre os jogadores, dentro e fora do campo, não pode, depois, ter a
incoerência de mandar um jogador seu marcar individualmente um adversário. Se assim
167
acontecesse esse jogador só se preocuparia com o jogador adversário e não± e também ±
com os seus colegas de equipa, sendo que o inverso também é verdade porque a equipa se
deixaria de preocupar com esse seu colega bem como com o jogador adversário« Seria
introduzir uma componente desajustada de individualismo na equipa, prejudicando a
coerência e a ligação de grupo, justamente, aquilo que Mourinho combate e não aceita
(Oliveira et al 2006). Leia-se, pois, as palavras de Morin que explicam bem a posição do
próprio Vosé Mourinho: ³O enfraquecimento de uma percepção global conduz ao
enfraquecimento do sentido de responsabilidade, cada um tende apenas a ser responsável
pela sua tarefa especializada, assim como conduz ao enfraquecimento de solidariedade,
cada um deixa de entender o seu laço orgânico («)´ (Morin 1999:19), com o grupo onde
está inserido.
Ainda neste contexto, a título de exemplo, vejamos a questão da concentração enquanto
dominante nos treinos de Vosé Mourinho. Para Mourinho é na preparação dos jogos de
menor importância que a questão se coloca com especial pertinência. Por saberem que vão
ter um adversário mais fácil, os jogadores têm tendência a uma maior desconcentração na
preparação do jogo. É no treino global e de uma forma integrada ± e não numa qualquer
iniciativa isolada ± que Mourinho resolve o problema. Ao colocar-lhes exercícios de
elevada dificuldade ± e eventualmente de impossível resolução ± durante os treinos,
Mourinho obriga-os a errar, logo obriga-os a uma maior concentração para tentar evitar os
erros sucessivos que o técnico ± consciente e premeditadamente ± lhes provoca (Oliveira et
al 2006).
Em Mourinho, como foi dito, o jogador tem uma dimensão global. É nesta globalidade,
que é o resultado da aplicação da perspectiva da complexidade ao seu trabalho, que
Mourinho enquadra a acção dos seus profissionais. O seu jogador deve, pois, reflectir
socialmente aquilo que é profissionalmente, sendo o contrário também correcto. Ele só será
disciplinado em campo, inserido no seu grupo, se o for fora dele e vice-versa. É neste
contexto de globalidade que descortinamos o individual complexo que é o ser humano.
Para Mourinho o jogador é um todo, parte de um outro todo que é a equipa, com
características físicas, técnicas e psicológicas que terão de ser desenvolvidas enquanto
globalidade. É dessa forma que o treinador não separa o físico do psicológico, logo, não
trabalha nem um nem outro aspecto descontextualizadamente. De resto nada no seu
trabalho é descontextualizado. Relembremos a sua entrevista no capítulo 7, quando fala no
168
treino que Eusébio ministrava ao guarda-redes Silvino. Eusébio colocava a bola à entrada
da área e rematava para Silvino tentar defender, pressupondo que era desta forma que
treinava o jogador. O entendimento de Mourinho a este respeito é bem diferente. Os
remates de Eusébio eram descontextualizados daquilo que é o jogo ³onde um jogador não
aparece cem vezes isolado frente ao guarda-redes e em condições óptimas de remate´. Essa
situação de treino está descontextualizada da realidade e da complexidade do jogo. Para
Mourinho é uma situação fictícia porque em jogo os jogadores têm de contar sempre com a
oposição dos adversários. Por isso Mourinho procura criar condições de treino integrado,
onde trabalhe a complexidade do jogo através de situações o mais próximo possíveis do
real, isto é, o mais próximo possível ³daquilo que se espera que venha a ser o jogo´
(Mourinho in Capítulo 7). Ainda um outro exemplo de não separação do físico do
psicológico, mas com um outro enfoque, é-nos dado por Mourinho numa resposta a um
jornalista do jornal O Jogo, quando este lhe perguntou se a sua equipa ± o FC Porto ±
estava bem fisicamente. Mourinho respondeu: ³Não consigo falar disso. Não sei onde
acaba o físico e começa o psicológico ou o táctico. Para mim, o futebol é a globalidade, tal
como o homem´ (Mourinho in Oliveira et al 2006: 40).
Os tradicionais factores treináveis surgem na totalidade que é o treino e enquadrados num
trabalho que tem que ver directamente com o jogo que se pretende jogar. É desta forma
que se entende que Mourinho refira, como exemplo, que o velocista Francis Obikwuelu
num campo de futebol seja um jogador lento. A sua massa muscular, rapidez e explosão
nunca poderão colmatar a velocidade de raciocínio, posicionamento em campo e
antecipação de jogadas, próprias de um jogador de futebol, simplesmente, porque o seu
todo não está trabalhado nesse sentido, não está contextualizado nesse tipo de esforço
global, mental, físico, psicológico, emocional, etc., que o futebol exige e é.
Alargando a análise que temos vindo a fazer, saindo do todo que o jogador de futebol é
para o todo que é o grupo, a lógica de Mourinho permanece inalterável. Aqui também a
parte ± o jogador ± só pode ser vista e contextualizada no/pelo grupo. O grupo é o mais
importante e a parte interessa enquanto ao serviço do todo. O global, aqui, assume o termo
colectivo, pelo que a parte pode e deve ser sacrificada pelo todo já que não é concebível a
evolução da parte sem ser ao mesmo nível e ao mesmo ritmo da evolução do todo. No
entanto, o todo deve ser também o contexto que proporcione a cada jogador individual, a
cada parte, a manifestação da sua singularidade plena. Desta forma o individual é também
169
muito importante. Não se trata de não ver a floresta (a equipa) por só se ver as árvores (os
jogadores), mas de ver as-árvores-e-a-floresta. Pretende-se assim atingir uma coerência e
uma consistência organizacional de grupo elevadas. Compreende-se assim que ³estrelas´
como Ballack e Schevchenko só agora tenham chegado ao Chelsea: o grupo já era, ele
mesmo, constituído por estrelas.
É com uma forte ideia de colectivo, de todo que governa as partes, que o grupo trabalha
com vista a um outro todo que é o jogo. Neste campo, o treino é encarado, não como uma
preparação do jogo mas como uma parte desse todo que é o processo de jogo e de treino e
de jogo. Aqui Mourinho introduz-nos a ideia de treino como projecção/representação do
real que é o jogo. Assim, por exemplo, a duração dos treinos é igual à dos jogos, como
referiu Rui Faria: ³Pretendemos ter o rendimento e concentração máximos numa hora e
meia de treino ± que é exactamente o tempo de jogo ± procurando desta forma que o
jogador consiga estar concentrado os 90 minutos´. Repare-se, mais uma vez, na
complexidade de processos que esta noção de Rui Faria envolve: a ideia de um treino ter a
duração de um jogo não passa essencialmente por uma adaptação de esforço físico mas sim
de esforço mental, ou melhor, de esforço humano global. A dominante que se pretende
privilegiar é a da concentração, já que a resistência física acabará por acontecer
naturalmente enquadrada num fenómeno mental, psicológico, emocional mais vasto. Nesse
fenómeno mais vasto, que faz do treino a projecção/antecipação do jogo, incluímos ainda o
tratamento da imprevisibilidade, que Mourinho pretende reduzir tanto quanto possível. Só
o treino enquanto perspectiva de jogo poderá proporcionar o surgir de situações
imprevisíveis, ou impossíveis ou difíceis de planear, e que, uma vez treinadas, possam ser
transferidas para o real, trabalhando dessa forma essa mesma imprevisibilidade. Sendo o
treino, afinal, como o jogo, o imprevisto em jogo é o imprevisto em treino, logo, quando se
chega ao jogo, através desta µrepresentação¶ do real, o que era imprevisível no treino
deixou de o ser em jogo. Atente-se que não está aqui em causa a pretensão, de resto não
secundada pela perspectiva da complexidade, de se chegar a uma situação de
imprevisibilidade zero; tão só se pretende reduzir ao mínimo possível as situações
imprevistas que possam surgir já que, para Mourinho o que é mais difícil no jogo é o ser-se
confrontado com situações que se desconhece. Em suma, ³porque o desconhecido é sempre
desconfortável´, referiu-nos Mourinho continuando ³ora, a imprevisibilidade tem a ver
170
com aquilo que tu fazes e estás preparado para fazer e com aquilo que os outros fazem e
que tu presumes que eles possam fazer.´
O objectivo é tentar jogar antes ± o treino ± o que se pensa que se vai jogar a seguir ± o
jogo. Mas atenção, o treino, encarado globalmente como Mourinho o faz, é como o jogo.
Mais, o treino é o jogo intensamente« É por esta razão que Mourinho não faz, por
exemplo, treinos de conjunto, ou seja, um jogo normal de 11 contra 11, tal como num
encontro de futebol. Os treinos são sectoriais, ou seja, focados na(s) situação(ões) que
Mourinho quer treinar. O que acontece a cada momento num jogo de futebol é uma dada
situação concreta, não o jogo todo ao mesmo tempo; ou seja, ou se está no meio-campo,
em transição ou com as equipas tentando ganhar o controlo da bola; ou uma equipa ataca e
outra defende; ou um contra-ataque que se inicia, etc. São estas situações concretas que
Mourinho treina, enfatizando um dado aspecto em cada treino. Por exemplo se o aspecto a
enfatizar for a defesa, Mourinho escolhe o sector do terreno de jogo onde a defesa actua e é
nessa zona que projecta a situação de jogo com avançados, médios e guarda-redes. Desta
forma treina a defesa e também o resto dos sectores do jogo, no contexto dessa situação
específica. Esta aproximação tem várias vantagens sobre o próprio jogo. Para além de
manter a aproximação global ao jogo, a simulação do jogo obtém maior intensidade já que,
encolhendo o terreno de jogo e focando apenas uma dada situação, a bola passa muito mais
vezes pelos jogadores do que em situação real e daqui também decorre um aumento das
situações imprevistas o que, ao acontecerem, irão diminuir a imprevisibilidade do próprio
jogo. Assim, o treino não só é o jogo, como é um jogo intenso. ³O jogador só pode jogar
no limite se treinar no limite« e o jogo é o espelho do treino. Quanto maior for a
determinação no treino, maior é a determinação no jogo´, referiu-nos Rui Faria. Mais uma
vez se aplica aqui a ideia de globalidade de Mourinho: é jogando o jogo através do treino
que se joga da mesma forma o jogo. Um jogador pode, assim, tornar-se um grande jogador
de futebol, precisamente jogando muito e bom futebol. Esta é uma ideia clara, nas palavras
do próprio Mourinho. Em Israel, numa visita a convite de Shimon Peres, disse à
assistência: ³Um grande pianista não corre à volta do piano ou faz flexões com as pontas
dos dedos. Para ser grande toca piano. Toca a vida inteira. E ser um grande jogador não é
correr, fazer flexões ou exercício físico em geral. A melhor maneira de se ser um grande
jogador é a jogar futebol´.
171
Esta ideia de continuidade, no âmbito da aproximação heideggeriana, descrita no capítulo
2, projecta-nos para o futuro, no sentido de que mais importante que entender o nos trouxe
até ao presente é a projecção que somos para o futuro. Para Heidegger (1962) o homem,
Dasein, é o ser-aí imerso e envolto no mundo, interessado, já com um passado e sempre
projectando para o futuro e o seu futuro. Entendamos, agora, Mourinho na sua permanente
necessidade de projectar não apenas o seu futuro singular, como também, ou sobretudo, o
da sua equipa. Voltemos então à sua afirmação (Capítulo 1): ³tenho a certeza que para o
ano vamos ser campeões´. Enquadrado nesta temática, Mourinho ao prometer a vitória
mais não fez que projectar-se para o seu futuro envolvendo a sua equipa neste mesmo
projecto de futuro, que se traduz na vitória. É neste enquadramento que podemos entender
Mourinho quando ele diz aos seu jogadores do Chelsea, Frank Lampard, Vohn Terry , Voe
Cole e Wayne Bridge, no primeiro contacto que manteve com eles: ³ I need to know that
you are winners («) [b]ecause I am a winner and now so are you. We will win things
together´ (Lampard 2006: 315); ou ainda quando disse, alguns dias depois, a Frank
Lampard: ³You are just as good as Zidane, Vieira or Deco and now all you have to do is
win things. You are the best player in the world but now you need to prove it and win
trophies´ (Lampard 2006: 311). Ganhar é então o futuro, e o futuro é aqui a determinante
do presente. Com base no que escolhemos para nós próprios enquanto projecção de futuro,
assim determinamos as nossas acções hoje. Em Mourinho concluímos, pois, que o
fundamento do seu trabalho, das suas acções, em suma, do seu dia a dia, se encontra no
futuro que ele quer e projecta e que, por isso, é com olhos postos no futuro que
encontramos as suas motivações e acções porque é por e para ele que Mourinho está
sempre virado. Mourinho, nós, fazemos o que fazemos pelo futuro, pelas possibilidades
que nos pode vir a dar, pelo que queremos que ele nos possibilite. Desta forma entendemos
em Mourinho uma ambição de ganhar que se renova nas próprias vitórias já conseguidas.
Ganhar, ganhar sempre é, afinal, o futuro que aí vem e pelo qual importa lutar.
<(G 40%!% .!5B'!%%!%% !"
Nessa constante luta pelo futuro Vosé Mourinho é um líder emocional. Ele emociona-se e
emociona os outros ± seguidores ou não. Quem não se recorda de o ver, no final da vitória
da Taça UEFA, em Sevilha, a correr aos saltos à roda do campo a celebrar a vitória? Quem
172
não se recorda de o ver a celebrar efusivamente, muitas vezes com os seus próprios
jogadores, quando a sua equipa marca um golo ou consegue uma vitória? Quem não se
recorda de o ver e ouvir nas Conferências de Imprensa onde as suas frases, tantas e tantas
vezes polémicas e desconcertantes, correm mundo pela forma e pelo conteúdo com que as
profere? E que dizer, igualmente, das reacções que provoca? Amor, ódio, admiração,
desdém, respeito, despeito, mas nunca indiferença. Em Vosé Mourinho é todo um mundo
de emoções que gira à sua roda, que o influenciam e lhe modelam os comportamentos. Tal
como ficou descrito no capítulo 3 ³a grande liderança baseia-se nas emoções´ (Goleman et
al 2005) e pelo que temos afirmado ao longo desta dissertação Mourinho encaixa nesta
noção. A sua relação emocional com os seus seguidores é poderosa e podemos comprovála
tanto no que respeita aos seus jogadores como aos seus adeptos. Quando perdeu em casa
frente ao Panathinaikos (Capítulo 1) Mourinho gerou empatias e criou compromissos logo
no final do jogo. Aos adeptos portistas disse-lhes que nada ainda estava acabado e que no
jogo da segunda mão, na Grécia, o FC Porto ainda tinha uma palavra a dizer. Aos seus
jogadores disse-lhes que quem não acreditasse na vitória não iria com ele à Grécia, para o
jogo da segunda mão. E tudo isto ele veio dizer depois aos jornalistas para que todos
conhecessem a sua forma de pensar relativamente à eliminatória. A verdade é que, nas ruas
do Porto, todos lhe cobraram a ambição e Mourinho ouviu frases como: ³Mister, não se
esqueça que disse que isto ainda não está terminado. Temos de ir lá ganhar, nós
acreditamos«´ (Lourenço2004: 151). No balneário nem um jogador lhe disse que não
acreditava e 15 dias depois o FC Porto ganhou 2-0 na Grécia e passou a eliminatória.
Mourinho não só contagiou os portistas numa dinâmica de vitória levando-os a acreditar
que tal era possível, como fez vir ao de cima toda a ambição dos adeptos e jogadores do
FC Porto, tudo o que todos eles tinham de melhor para dar no sentido da vitória. Mourinho
criou ressonância e ao dizer aos jogadores que quem não acreditasse não jogava, Mourinho
não mais fez que consagrar a noção de liderança primal introduzida por Goleman. Como
pudemos observar no capítulo 3 ³uma das principais acções do líder passa por conduzir as
emoções colectivas dos seus seguidores de forma a conseguir resultados e efeitos
superiores ao simples desempenho positivo das tarefas´. Ora Mourinho, mais que na tarefa,
que seria o jogo da Grécia, estava interessado na ambição dos seus seguidores. Sem ela não
seria possível ganhar. O seu primeiro acto de reabilitação da equipa depois da derrota foi
pois primal, logo emocional, empático e os seus jogadores encontraram nele o apoio
173
emocional que se pretende dos líderes nos momentos difíceis. É o tal sistema aberto,
focado no capítulo 3, que permite o contágio das emoções. De resto, os mais recentes
estudos no âmbito da inteligência emocional, conforme descrevemos no capítulo 6,
apontam neste sentido. O paper ³Charisma, positive emotions and mood contagion´ de
Bono e Ilies (2006) sugere-nos que o líder emocionalmente positivo influencia de forma
mais eficaz os seus seguidores. Neste estudo destaca-se ainda a importância das expressões
na liderança eficaz e o modo como elas influenciam os seguidores.
E como se é, como se consegue, então, ser emocionalmente inteligente? Goleman et al
(2005), conforme apresentámos no capítulo 3, referem que existem quatro domínios da
inteligência emocional face aos quais o líder tem de se confrontar. São eles a
autoconsciência, a autogestão, a consciência social e a gestão das relações. Quanto maior
for a qualidade do líder nestes quatro domínios, mais qualificada será a sua influência, logo
a sua ressonância sobre os liderados.
Assim, relativamente à autoconsciência podemos afirmar que Vosé Mourinho é um líder
que se conhece a si próprio, logo, conhece-se enquanto ser emocional o que lhe facilita o
conhecimento do outro e das emoções do outro. Mas vejamos, então, alguns exemplos que
suportam a ideia de que Mourinho, o líder, é possuidor de uma forte autoconsciência,
enquanto domínio da inteligência emocional. Desde logo, quando escolheu o desemprego
em Portugal para se tornar, definitivamente, treinador principal de futebol. Mourinho sabia
bem o que queria, mas também sabia bem o que valia: ³Não tenho medo nenhum do
futuro. Tenho uma grande confiança em mim e nos meus conhecimentos. Sei que posso
fazer a diferença e que posso vencer´ (Mourinho in Lourenço 2004: 25). E porquê? Porque
é que Mourinho sabia que podia vencer? No capítulo 7 desta dissertação Mourinho refere:
³[A minha confiança] vem da consciência que tenho das minhas capacidades a todos os
níveis´. Num outro patamar, no do optimismo com que enfrenta os seus obstáculos,
Mourinho continua a dar provas de uma autoconsciência vincada:³O optimismo, a crença,
tem que ver com a noção da realidade. Relacionam-se directamente com a maneira como
preparas a equipa e te preparas a ti próprio´. É notória a relação de compromisso entre a
autoconsciência de Mourinho e o projecto de futuro que traça para si e para os seus
seguidores. Vá antes abordámos a forma de Mourinho projectar e conseguir projectar os
seus seguidores para o futuro. Mourinho projecta o seu futuro, da forma única que projecta,
porque têm em si desenvolvida de uma forma fecunda e poderosa as suas capacidades de
174
autoconsciência. Em suma, é por acreditar, quase sem limites, em si e nas suas capacidades
que Mourinho promete, como prometeu no Porto, a vitória no ano seguinte.
A autogestão é o segundo domínio da inteligência emocional e segundo Goleman et al
(2005) deriva da autoconsciência. Aqui trata-se do líder gerir as suas emoções para poder
com eficácia lidar com as emoções dos outros. Neste campo Mourinho tem, igualmente,
provas dadas como se pode constatar nas palavras de Frank Lampard: ³From the moment I
saw [Mourinho] handle the media on his first day at Chelsea I knew that there was
something which set him apart from everyone else´ (Lampard 2006: 313). Esta frase
demonstra a forma como Mourinho gere, entre outras coisas, a pressão e sabe-se bem como
a comunicação social inglesa é pressionante. Lampard ao ouvir o ³boss´23 falar com os
jornalistas ficou, pelas suas palavras, logo ali influenciado por Mourinho. Ele sabia que
estava perante um homem diferente, logo, tinha ele próprio de corresponder e ser diferente.
Durante toda a sua primeira temporada em Inglaterra as críticas ao Chelsea foram ferozes e
também aí Mourinho marcou a diferença ao geri-las até à vitória final: ³Talvez as críticas
nos tenham tornado mais fortes. Tínhamos de fechar a concha, depois de criarmos uma
coisa forte lá dentro. Passámos esse período e depois veio um período bonito´ (Mourinho
in Barclay 2005: 149). Ao gerir com eficácia as suas emoções, Mourinho projecta este tipo
de comportamento para os seus jogadores. Antes dos resultados práticos eles acontecem na
mente dos seus liderados: ³[Q]uando temos um treinador que todos os dias repete que nós
somos os melhores, que não vai aparecer ninguém que seja melhor, isso entranha-se nos
jogadores e nós vamos para o campo convencidos disso´ (Terry in Barclay 2005: 153-4). É
à luz destes exemplos que se compreende, por fim, a autogestão de Mourinho: ³Lampard
[afirmou] que Mourinho tinha o jeito especial de conseguir transmitir a sua confiança
espantosa» a cada um dos jogadores´ (Barclay 2005: 154). E se há coisa que podemos
comprovar ao longo desta dissertação é que confiança é algo que não falta a Mourinho e
aos seus seguidores. É nesta confiança que Mourinho assenta a sua autogestão.
Abordámos de uma forma explicativa em Vosé Mourinho ± ou seja, com base na teoria
explicámos a prática ± os dois primeiros domínios da inteligência emocional. Estes
pertencem à esfera das competências pessoais do líder. Passamos agora aos dois últimos
23 Expressão que Lampard usa com frequência e entre aspas de uma forma carinhosa no seu livro quando se
refere a Mourinho.
175
domínios que se inscrevem na esfera das competências sociais e, por consequência,
determinam a gestão das relações.
Na consciência social a sintonia entre líder e seguidores é fundamental. Em sintonia mais
facilmente se gerem conflitos, aplacam iras, resolvem problemas. Aqui a palavra-chave é
empatia e a relação empática que Mourinho cultiva e mantém com o seu grupo é de toda a
relevância conforme tem vindo a ser demonstrado. Daí que a sua relação com o grupo seja
altamente personalizada conforme, por exemplo, podemos concluir das suas palavras,
registadas no capítulo 7, depois de confrontado com questão da sua liderança, se ela era
uma liderança próxima ou distante do seu grupo: ³Analiso caso a caso, momento a
momento, personalidade a personalidade, e a minha forma de actuação é perfeitamente
individualizada e de acordo com o momento e a análise que dele faço´. É deste modo de
agir personalizado ± mas que não separa o individual do grupo ± que Mourinho gera
empatias que se traduzem depois em situações como as que resultam das palavras de Vohn
Terry: ³Todos os resultados são para o treinador. Ele trabalha muito, ele e a sua equipa. No
campo, lutamos uns pelos outros, mas, no fundo, é para ele. Ele é o maior, acreditamos que
é o maior, e temos sorte por o termos connosco´ (Terry in Barclay 2005: 152).
Na gestão das relações importa-nos verificar de que forma Mourinho se relaciona
globalmente com os seus seguidores e como usa a sua inteligência emocional nesse mesmo
relacionamento. Para Goleman et al (2005) a gestão das relações começa com a
autenticidade ± honestidade e frontalidade ± e só a partir daqui se consegue ressonância a
níveis como os da gestão de conflitos, colaboração e mudança, entre outros. Ora, neste
campo, a autenticidade de Mourinho começa na própria comunicação. Quando chegou ao
Chelsea, com um grupo de jogadores provenientes de diversos países a falarem diferentes
línguas, Mourinho, desde logo, instituiu o inglês como língua oficial do Chelsea: ³Se vocês
[os jogadores] estiverem na minha mesa ao pequeno-almoço e eu só falar português, vocês
viram as costas e dizem-me: Que grande ( ). Desculpa, mas nunca mais me volto a
sentar à tua mesa». A língua tem de ser o inglês. Quem não falar fluentemente quando vier,
tem de estudar´ (Mourinho in Barclay 2005: 152-3); portanto, a gestão das relações
começa logo pelo factor fundamental da comunicação: a linguagem. Foi desta forma que
Mourinho atingiu outros objectivos que se prendem com a gestão das relações: ³Se formos
a alguns lugares, a um canto talvez encontremos ingleses, a outro canto franceses e, em
alguns clubes, a outro canto os negros. Não gosto nada disso. Não pode dar certo´
176
(Mourinho in Barclay 2005: 152). É desta forma inclusiva e global que Mourinho gere as
relações com e entre os membros do seu grupo. É sendo frontal, honesto, em suma,
autêntico que ele consegue imprimir o seu ritmo e a sua dinâmica. Para isso abre a porta do
seu gabinete a qualquer hora, basta que alguém necessite falar com ele, olhos nos olhos e
expor-lhe o seu problema (Lourenço 2004). Por isso se lêem declarações de seguidores
seus, como por exemplo as de Didier Drogba, no jornal Record no dia 13 de Março de
2006: ³Mourinho mudou-nos de tal forma que ninguém fora do clube poderá imaginar.
( ) Antes de o conhecermos éramos futebolistas normais, agora somos guerreiros que
lutam uns pelos outros.´ Também pelas mesmas razões o antigo internacional inglês Ian
Wright declarou: [C]onsegue-se ver a camaradagem que existe entre ele e a equipa. Existe
ali um profundo respeito. Consegue-se ver que eles o adoram genuinamente´ (Wright in
Barclay 2005: 151). E no fundo é esta a globalidade que Mourinho pretende e consegue
nos grupos por si dirigidos.
Segundo Goleman et al (2005) para se ser líder tem de se ser emocionalmente inteligente e
quanto mais isso se conseguir mais qualificada será a liderança. Uma outra premissa de
Goleman et al (2005) é a de que ser emocionalmente inteligente implica ser forte em todos
os domínios da inteligência emocional. Vá o mesmo não acontece para as competências de
cada um dos domínio ± enunciadas no capítulo 3 ± em que, segundo Goleman et al ³[é]
interessante notar que nunca encontrámos um líder, por mais destacado que fosse, com
domínio em todas as competências da IE. Mesmo líderes muito eficazes são apenas fortes
em meia dúzia de competências de IE.´ (Goleman et al 2005: 60). Pela conjugação destas
competências, Goleman et al (2005) identificaram um conjunto de estilos de liderança,
cada uma com um leque de competências, onde as características de cada líder se podem
enquadrar e entrecruzar com maior ou menor abrangência.
Porque quando falamos num grupo, como se disse, falamos de um sistema aberto e este
pressupõe relação importa agora virarmo-nos para essa relação inteligentemente emocional
que o líder Vosé Mourinho mantém com os seus liderados. É através das suas acções que
poderemos enquadrá-lo nos estilos de liderança propostos por Goleman et al (2005) que,
como sabemos, são seis e não se excluem uns aos outros, podendo o líder actuar mais de
acordo com este ou com aquele em função das suas características e/ou do momento.
177
Assim, poderemos dizer que de uma forma geral o estilo visionário é o que mais pontos
tem em comum com o estilo de liderança de Vosé Mourinho. Se fossemos obrigados a
escolher apenas um como aquele que melhor o definisse seria, justamente, o visionário.
Entronca aqui ± e mais uma vez ± a permanente projecção de Mourinho para o futuro e ao
fazê-lo ele é permanente fonte de inspiração para os seus seguidores. Mourinho não os
obriga a seguir caminhos por si definidos, antes, apresenta-lhes propostas ± relembremos o
seu método da descoberta guiada ± para atingir objectivos que podem e devem ser
atingidos ± relembremos igualmente a sua promessa, quando chegou ao FC Porto e
prometeu o título no ano seguinte. Mourinho é, pois, um líder sempre presente, em
permanente mudança, que ouve e sabe ouvir e que traça objectivos passíveis de serem
atingidos, justamente os principais factores que definem o estilo de liderança visionário.
O estilo conselheiro, que Goleman et al (2005) afirmam estar em desuso, não será
propriamente o estilo de Vosé Mourinho. Este estilo privilegia bastante o individual e,
como está amplamente descrito, Mourinho não abdica em circunstância alguma do grupo
em favor do individual. Ainda assim, num raciocínio totalmente abrangente, poderemos
afirmar que ³porque cada ser humano é uno e diferente´ e Mourinho tem algumas atenções
neste campo conforme está dito por Rui Faria, no capítulo 8, quando se refere às
preocupações individuais que a equipa técnica tem antes da realização de qualquer jogo ou,
ainda, quando Mourinho afirma, também no capítulo 7 que, na hora da derrota, sabe
exactamente quais os jogadores que necessitam mais ± e têm ± a sua atenção. De qualquer
forma, repetimos, não é este o estilo que mais se enquadra na forma de liderança de Vosé
Mourinho.
O estilo relacional caracteriza-se essencialmente pela partilha de emoções. O líder celebra
e chora com os seus liderados. Aqui encontramos profundas raízes na forma de liderança
de Mourinho. As suas celebrações já foram mencionadas ao longo desta dissertação.
Avançamos agora com o lado inverso da questão. Mourinho esteveimpedido pela UEFA,
por castigo, de se sentar no banco em Roma frente à Lázio. Costinha, jogador portista
estava igualmente impedido de jogar, mas por lesão. O jogador ficou em Portugal e
Mourinho seguiu para a capital italiana. Vejamos o início da troca de SMS entre Mourinho
e Costinha quando o treinador se separou dos seus jogadores, ou seja, quando eles foram
para o balneário e ele foi para a bancada do Estádio Olímpico de Roma: ³Costa, estou a
sentir-me mal, muito frustrado. O pessoal a preparar-se lá em baixo e eu aqui longe deles
178
todos. Muito triste´ (Mourinho in Lourenço 2004: 158). É ainda enquadrado neste estilo
relacional que se entende a presença de Mourinho na sala de operações, em momentos
diferentes, junto dos seus jogadores César Peixoto e Derlei (Capítulo 1). Por isso ele
afirmou que ³é importante para um jogador saber que tem a seu lado, numa altura muito
difícil da sua vida, o treinador´ (Mourinho in Lourenço 2004: 197). Em suma este estilo
relacional liga-se intimamente a uma característica de Mourinho que temos vindo a colocar
em relevo ao longo desta dissertação: a de Mourinho como líder sempre presente,
acrescentamos agora, nos bons e nos maus momentos.
O estilo democrático é outro dos estilos que não se traduz no ponto forte de Mourinho.
Embora escute as preocupações dos seus seguidores não o faz, contudo, ao nível de
reuniões alargadas. Os contactos pessoais que Mourinho mantém com os seus jogadores
são sempre feitos ao nível de um enquadramento específico, fundando-se geralmente em
questões da esfera pessoal e portanto que carecem de alguma intimidade. Na esfera do
grupo a própria descoberta guiada, enquanto método, não contradiz a nossa afirmação de
que Mourinho não se enquadra neste estilo. A descoberta guiada só acontece enquanto
método, porque Mourinho sabe bem para onde quer ir e para onde quer que o seu grupo vá.
Trata-se assim de uma questão metodológica onde Mourinho mais do que tentar que os
seus jogadores descubram o fim, quer que eles descubram os meios para lá chegar e,
mesmo esses, são ³guiados´, ou seja, Mourinho quer, afinal, que eles descubram o
caminho que ele já traçou. No entanto, aqui e ali, ouve e decide em função da opinião do
grupo. Esta ideia encontra fundamento na sua opção de chamar os dois capitães do Chelsea
(Terry e Lampard) e perguntar-lhes se deveria contratar mais um jogador português
(Ricardo Carvalho) uma vez que já tinha contratado dois (Lampard 2006).
O estilo pressionador pode ou não ser identificável com a liderança de Vosé Mourinho,
consoante a perspectiva em que nos coloquemos. As palavras de Rui Faria, no capítulo 8,
podem, se descontextualizadas, levar-nos a pensar que Mourinho é um líder pressionador:
³Quem vive profissionalmente com ele tem de saber viver com grande pressão e ao mesmo
tempo tem de dar resposta positiva´. À luz deste raciocínio, como explicar, então, que
sendo este um estilo que, segundo Goleman et al (2005), a médio/longo prazo conduz à
dissonância, isso não aconteça no caso de Vosé Mourinho, já que os resultados que
apresenta são bem prova disso? Em primeiro lugar teremos de ter em conta a
especificidade do mundo que estamos a tratar ± o futebol. Faz parte da própria essência do
179
futebol de alta competição, nos nossos dias, elevados e por vezes quase insuportáveis
níveis de pressão sobre todos os seus intervenientes. Desde patrocinadores a adeptos,
passando por empresários de futebol e presidentes de clubes, todos querem ganhar e, por
isso, aqui o futuro de cada elemento joga-se quarta a quarta, domingo a domingo. Hoje no
futebol a manutenção do posto de trabalho está muitas vezes dependente da vitória ou
derrota no ³próximo jogo´. Estamos pois a falar de um mundo onde todos estão habituados
a viver sob constante pressão, o que desde logo, nos deixa a ideia de que a pressão a que
Goleman et al (2005) se referem tem um impacto muito diferente numa organização
comum ou numa organização desportiva de alta competição. Portanto, quando falamos em
³Mourinho líder pressionador´ julgamos dever enquadrá-lo num contexto diferente dos
líderes de outras organizações que não aqueles em que Mourinho se move. Depois, existe
ainda um outro factor que nos ajuda a compreender a questão. Como foi dito, no trabalho
de Vosé Mourinho, não só o jogo como também os treinos são realizados nos limites de
cada um. Essa é uma fórmula vencedora de Mourinho e essa é, igualmente, uma outra
forma de pressão. Mourinho pressiona neste sentido porque sabe que assim pode ganhar. A
pressão, neste caso, é exercida de dentro para dentro, do treinador para os jogadores. No
entanto, enquanto líder, Mourinho poderia aproveitar a pressão exterior, aquela que é
exercida pelos elementos exteriores ao jogo, para igualmente prosseguir os seus objectivos
de vitória. Contudo, essa pressão não é aceitável em Mourinho e temos disso bons
exemplos. Recorde-se quando Mourinho entrou, premeditadamente, no Estádio da Luz,
antes dos seus jogadores. Ele já sabia que os assobios e as vaias dos adeptos benfiquistas
iriam ser muitos. Como está descrito no capítulo 1, Mourinho quis entrar primeiro para que
a descarga emocional dos benfiquistas incidisse primeiro sobre si, numa tentativa de
poupar os seus próprios jogadores e libertá-los de mais esse momento de pressão exterior.
Um outro caso é-nos transmitido por Lampard (2006). Acabado de chegar a Inglaterra, no
ano de 2004, para treinar o Chelsea, Mourinho declarou aos jornalistas ingleses que o
objectivo, para essa temporada, não passaria pela vitória na liga inglesa já que essa época
iria ser de adaptação. No entanto não foi isso que disse aos seus jogadores: ³You will read
in the press and hear in the media me saying that I don¶t expect us to win the league in my
first season. I want you to be very clear that I have said this only to keep the pressure of all
out of us´ (Mourinho in Lampard 2006: 322). Mourinho quis assim anular a pressão
exterior. O curioso é que, no seguimento das suas palavras acima descritas, foi logo de
180
seguida, o próprio Mourinho, a pressionar dessa mesma forma os seus jogadores: ³I also
want you to know that I do expect us to win the Premiershiep this season. I know that we
will. We are winners and winning is all that matters´ (Mourinho in Lampard 2006: 322).
Podemos assim concluir que inserido num contexto de alta pressão Mourinho é, em certa
medida, um líder pressionador, no entanto, destacamos aqui duas singularidades: a pressão
é encarada quase como uma banalidade do dia-a-dia, logo, muito diferente da pressão nas
outras organizações em que ela acaba por ser algo esporádica, só em casos extremos
colocando em causa o posto de trabalho de alguém; em Mourinho a pressão só é aceite no
circuito fechado do grupo sendo que se tenta sempre anular a que vem do exterior. Daí as
palavras do capitão do Chelsea, Vohn Terry: ³He¶s very clever at what he does and takes
the pressure out of the players´ (Derbyshire 2006: 250). Consideramos, pois, Mourinho um
líder pressionador mas não no contexto descrito por Goleman et al (2005). É desta forma
que a pressão que Mourinho exerce sobre o seu grupo não leva à dissonância.
Por fim, o estilo dirigista, que preconiza a obediência cega, fruto de uma forma coerciva de
estar na vida. Mourinho, em definitivo não encaixa aqui. A resposta está já dada, através
dos muitos exemplos anteriores e que explicam os restantes estilos. Porém, gostaríamos
aqui de fazer uma ressalva. Mourinho é, sem dúvida um disciplinador. Essa disciplina
vêm-nos explicada por Rui Faria, no capítulo 8. Essa disciplina, assente em regras, é
encarada como uma forma democrática de trabalhar em grupo visando permanentemente o
equilíbrio do mesmo. Não se poderá confundir, pois, disciplina com dirigismo em
Mourinho, tal como não se poderá confundir democracia com ditadura só porque ambas
produzem leis e obrigam os seus cidadãos a cumpri-las.
<*c.%!I!'%/0%7%." !"
Não se pode falar de complexidade sem se falar de grupo, enquanto todo complexo
composto de partes, tal como não se pode falar do trabalho de Vosé Mourinho sem nos
determos na noção de grupo para o enquadrar, em termos epistemológicos, no
desenvolvimento do seu trabalho. É evidente que em todos os quadrantes profissionais da
vida existem grupos e são eles que desenvolvem as respectivas tarefas. No entanto, a
maneira como para eles olhamos e os enquadramos no dia a dia pode assumir diferentes
formas. Em Mourinho, a noção de grupo é vista à luz da complexidade daí resultando que
181
o grupo não é apenas o somatório das partes que o compõem. Ele é mais do que isso mas,
essencialmente, não é isso (a soma das partes). O grupo (o todo) existe em si mesmo como
entidade e não é a soma ou a junção de outras entidades mais pequenas (partes).
Imaginemos, então, um grupo de 20 pessoas a produzir calçado numa linha de montagem;
imaginemos esse mesmo grupo, com exactamente o mesmo número e as mesmas pessoas a
produzir o mesmo calçado mas sem estarem organizados numa linha de montagem, com
cada um dos elementos a produzir de uma forma individual, do princípio ao fim, os
diferentes pares de sapatos. É fácil entender que o produto final será necessariamente
diferente. Porquê? Porque embora as pessoas sejam exactamente as mesmas o grupo, esse,
já é diferente. E porque? Porque as conexões, as relações ± profissionais e pessoais ± entre
elas mudaram, logo o todo surgiu diferente, com outra interacção, logo, com outra
identidade. Olhando apenas as partes o grupo manteve-se inalterável, no entanto, ao
olharmos o todo podemos constatar que ele mudou substancialmente. Esta noção entronca
no que ficou descrito no capítulo 2, quando nos referimos ao projecto do genoma humano.
Tal como o ser humano, também o grupo se distingue, se materializa e se compreende pelo
seu todo complexo e não pelas partes divididas e separadas. Serve esta introdução para
situarmos a análise do grupo de Mourinho, como ele o vê e como ele o constrói,
necessariamente diferente da análise de outrem que olhe para o grupo através de um ângulo
reducionista. Assim se entende, igualmente, a perspectiva com que Mourinho olha o seu
grupo: ele é, tal como o próprio o afirma no capítulo 7, mais importante que qualquer parte
e, por isso, sacrifica qualquer parte pelo grupo. É, pois, por este motivo que a ³estrela´ é o
grupo e não um qualquer jogador ou, dito de outra forma, todos os seus jogadores são
iguais perante o grupo e o grupo que é, é muito mais e diferente que a soma das partes, e
esse sim, é a verdadeira estrela, é ele que atinge ± ou não ± os objectivos. Com esta
premissa global Mourinho pretende, no interior do seu grupo, nas partes, uma
homogeneidade global: de valores, de métodos, de princípios, de pensamento«Essa
homogeneidade está bem espelhada na sua filosofia quando, pela primeira vez na sua vida
profissional, na época 2002/2003, ele escolheu a equipa ± o FC Porto ± de raiz: Mourinho
foi à procura de jogadores ambiciosos, pobres e sem títulos ganhos (Lourenço 2003). E foi
em torno desta ideia central que construiu o FC Porto que viria a ganhar todos os títulos
nas provas em que participou ± à excepção de uma taça de Portugal e de uma supertaça
europeia ± nos dois anos seguintes. Para o que agora nos interessa focar é perfeitamente
182
secundário o tipo de jogador que Mourinho pretendia; o que importa neste momento é
realçar que Mourinho queria um jogador tipo, para conseguir criar um grupo de iguais
entre iguais, onde não houvesse quaisquer discrepâncias, fossem elas económicas,
pessoais, técnicas, ou outras. É que para Mourinho só nesta uniformidade global se poderia
construir o grupo e assim, só no e pelo grupo, cada um dos jogadores poderia ver as suas
capacidades técnicas, físicas, económicas, etc., melhoradas. Foi o que aconteceu e ³esse´
FC Porto acabou por evoluir a ponto de, dois anos depois, ter conseguido o título de
campeão europeu. Alguns anos mais tarde, em Vunho de 2006, Mourinho, já ao serviço do
Chelsea, contratou para a sua equipa nomes sonantes, ricos e com títulos ganhos, como
foram os casos de Schevchenko e Ballack. Logo aí Mourinho foi acusado de trair as suas
convicções. A este propósito impõem-se aqui um esclarecimento. Quando Mourinho
chegou ao Chelsea, os jogadores que já lá estavam e os que contratou eram profissionais
que em termos económicos estavam basicamente todos ao mesmo nível, que ainda não
tinham ganho títulos, mas ambiciosos ± e Mourinho certificou-se disse conforme podemos
comprovar no início deste capítulo. Portanto a homogeneidade do grupo era evidente. Dois
anos depois, estes mesmos jogadores, ou a sua esmagadora maioria, eram já ³estrelas´ de
nível mundial fruto de dois campeonatos seguidos conquistados em Inglaterra e de terem
atingidos duas meias-finais na liga dos campeões europeus. O que aconteceu foi que esses
jogadores subiram de patamar, passaram de relativamente desconhecidos a mundialmente
famosos, logo, como está dito no capítulo 7, pelo próprio Mourinho, havia que adaptar as
contratações à nova realidade. Assim, se Mourinho mantivesse a sua filosofia, aí sim,
levaria a desequilíbrios no plantel, já que iria contratar jogadores que não estariam em pé
de igualdade com os restantes. Desta forma, as contratações de Schevchenko e Ballack
mais não foram que permitir a continuidade de um grupo homogéneo, agora constituído
por jogadores vencedores e famosos. Mais uma vez descortinamos, aqui, numa perspectiva
complexa, a essência da questão: o que define a realidade não são as partes divididas e
separadas mas, antes, as suas conexões, as suas relações. Percebe-se agora a principal
finalidade de Mourinho quando constrói e mantém um grupo: homogeneidade entre as
partes, sempre num campo relacional.
É a partir desta homogeneidade que Mourinho introduz a sua cultura de grupo ou, como
ficou descrito no capítulo 7, a µcultura Vosé Mourinho¶. Ficou dito, no capítulo 4, com base
na teoria de Schein (2004) a importância de que se reveste a cultura organizacional. Para
183
Shein (2004) a cultura de uma organização, ou de um grupo, constitui-se pelos seus valores
básicos, a sua ideologia, a razão de ser de quem está ali, da forma como está e como é. Ora
em Mourinho o primeiro traço dessa cultura, que é igualmente entendida fora do seu grupo,
é justamente a supremacia do grupo perante o individual. Relembremos as palavras de
Schevchenko, citado por Mourinho, a um jornal italiano, antes de começar a trabalhar no
Chelsea: ³Nesta equipa estou disponível para aquilo que [Mourinho] quiser´ (Capítulo 7).
Entendemos aqui a aceitação tácita de Schevchenko, estrela mundial, da ideologia do
grupo de Mourinho, ou seja, a sua disponibilidade para realizar o trabalho que o treinador
quiser em prol do grupo e do sucesso colectivo. É este fim, o sucesso do grupo e não do
individual, a ³razão de ser de quem está ali, da forma como está e como é´. Trata-se, pois,
de uma cultura assente no sucesso do grupo e não uma cultura assente no sucesso da
³estrela´, como por exemplo, no Real Madrid onde os seus jogadores eram apelidados de
³galácticos´. Em Mourinho, galáctico é o grupo e as partes sabem bem disso.
Com esta cultura Mourinho ajuda a fomentar e a manter um factor que considera (Capítulo
7) fundamental para o bom desempenho do grupo: a união, ou coesão do grupo. Como
todo complexo que é, o seu grupo é um todo coeso, unido e solidário. Utilizando a
linguagem técnica heideggeriana, introduzida no capítulo 2, os jogadores estãoà-mão uns
dos outros, isto é, cada um deles, instintiva e intutivamente, assenta transparentemente o
seu comportamento no comportamentos de todos os outros. Mesmo fora dos campos de
futebol o grupo tem de continuar a ser grupo, assente nos seus valores que não
desaparecem ou fazem um intervalo quando não desempenha a sua actividade profissional.
Como já foi explicado no início deste capítulo, a solidificação, o desempenho, a
manutenção dos valores vão-se construindo em todos os actos da vida de cada uma das
partes, não havendo diferenças entre a vida profissional e a vida social. Foi assim que
pudemos ver, através da televisão, a equipa inteira do Chelsea deslocar-se ao hospital para
visitar o seu guarda-redes Petr Cech, após este ter sofrido uma grave lesão na cabeça
durante um jogo da liga inglesa e que chegou a colocar em causa o futuro profissionaldo
jogador. É também desta forma que se explica a solidariedade que Mourinho preconiza
entre os membros do seu grupo, ao serviço da coesão e união do mesmo. Se Mourinho quer
jogadores solidários não pode adoptar uma táctica de marcação homem-a-homem que em
nada promove a entreajuda, logo, a solidariedade. A propósito das normas que Mourinho
implantou assim que chegou ao Chelsea, escreveu Barclay (2005:183): ³Insistiu que os
184
jogadores tinham de se comportar como uma unidade dentro e fora do campo´. Porém,
além do grupo como um todo, Mourinho promove também nos seus grupos um outro
factor determinante para o sucesso. É aquilo a que usualmente se refere como winning
mentality, a que podemos chamar uma ³cultura de vitória´. Para a nossa análise resulta
claro que é a vitória, em cada jogo e em todos os jogos, em termos da consistência cultural
dos grupos de Mourinho, que os pode equilibrar. O todo e as suas partes, cada uma das
partes como partes desse todo, ou seja, a equipa do Chelsea como grupo, entidade
colectiva, e os seus jogadores individualmente considerados como jogadores do Chelsea,
só estão equilibrados, balanceados, vencendo. Recordemos alguns exemplos já
anteriormente citados ao longo desta dissertação. Um deles está patente quando falou aos
seus jogadores ± do FC Porto ± a seguir à derrota, em casa, com o Panathinaikos. Ao
passar-lhes a mensagem de que quem não acreditasse na vitória não iria jogar o encontro
da segunda mão, na Grécia, Mourinho mais que reequilibrar o todo pretendeu no imediato
reequilibrar as partes que estavam a reagir mal em termos psicológicos à derrota (Lourenço
2003). Os jogadores entenderam a mensagem: só se ganha acreditando que é possível
ganhar. Os jogadores acreditaram e ao reequilíbrio das partes seguiu-se o reequilíbrio do
todo coroado com a vitória na Grécia. Um outro exemplo prende-se com Frank Lampard.
Quando Mourinho lhe disse que ele era o melhor jogador do mundo mas que para ter esse
reconhecimento teria de ganhar troféus, mostrou-lhe claramente que uma coisa não pode
estar dissociada da outra, logo, havia em Lampard um desequilíbrio que tem que ver com
qualidade e eficácia. Esse equilíbrio só se atinge quando uma acompanha a outra. Para
Lampard ficar na história não lhe bastava o reconhecimento teórico do seu valor, teria de
ter o reconhecimento prático, consubstanciado na vitória. Esta cultura de vitória, o ³só a
vitória interessa´ ou ³o segundo é o primeiro dos últimos´ é um outro factor reconhecido
em Mourinho e que explica o alto nível motivacional que existe em todos os seus grupos.
Porém, um grupo não nasce feito. Desde a sua formação até ao estádio de maturação plena,
várias são as etapas a percorrer e cabe ao líder um olhar atento sobre esse
desenvolvimento. Descrevemos no capítulo 4 as várias fases pelas quais um grupo passa.
Interessa-nos, agora, saber como Mourinho desenvolve o seu grupo e o mantém na sua fase
mais madura, justamente, tendo em vista o permanente equilíbrio. Coloca-se, então, a
pergunta: também aqui será Mourinho diferente? A resposta não é fácil, até porque a nossa
análise não é comparativa, contudo, a liderança de Mourinho neste campo sugere-nos
185
algumas ideias, sobretudo na primeira fase de desenvolvimento do grupo (filiação) e na
última (colaboração). Focamos em especial estas duas por dois motivos: porque as
consideramos de fundamental importância já que, quer num caso quer noutro, ou se
efectivam os seus pressupostos ou não existirá grupo já que a fase inicial pressupõe a
criação do grupo, logo, se ela não se realizar não existirá grupo e na sua fase final se ela
não consolidar o grupo, este desmantelar-se-á. As fases intermédias visam essencialmente
as relações, logo, as conexões entre os elementos do grupo, que podem correr melhor ou
pior, desta ou daquela maneira, mas que, geralmente, não fazem depender de si a
manutenção e a continuidade do grupo.
Em Mourinho é notória a atenção à fase inicial do grupo. Quando escolheu e desenvolveu
o seu primeiro grupo (equipa do FC Porto, na época 2002/2003), Mourinho foi para estágio
assim que os jogadores se juntaram pela primeira vez: ³Ao fim de três dias de trabalho
comecei a ter o feedback dos [jogadores] mais antigos: Mister, há aqui na rapaziada nova
muita qualidade. Mais, a µcriançada¶ é muito boa gente »´ (Mourinho in Lourenço 2004:
123). Não foi por acaso que Mourinho fez questão de deixar esta passagem registada na
sua biografia. Ela reflecte a preocupação do treinador na integração dos novos elementos
do seu grupo, tal como a sua preocupação nesta fase de formação do grupo. É por este
motivo que Mourinho descreve pormenorizadamente o primeiro dia de folga, nesse mesmo
estágio, do FC Porto. Os jogadores, por opção própria, saíram juntos do estágio, jantaram
juntos e chegaram ao hotel juntos. À chegada Mourinho e esperava-os e ouviu Vorge Costa,
o capitão portista, dizer-lhe: ³Fomos todos juntos e temos aqui um grande grupo´
(Lourenço 2004: 123). Esta situação mereceu de Mourinho o seguinte comentário: ³É
difícil exprimir o que sente um treinador ao ouvir o capitão falar assim. Vinte e tal homens
que estavam juntos apenas há cinco dias, na sua primeira folga optaram por continuar
juntos, jantar juntos e confraternizar juntos. Era o meu grupo que estava a nascer´
(Mourinho in Lourenço 2004: 123). Relacione-se, agora, esta situação com a teoria do
desenvolvimento do grupo preconizada por Obert (1979). Segundo o autor, esta primeira
fase, filiação, caracteriza-se pelos primeiros contactos, em, que os elementos tendem a
preocupar-se mais consigo do que com o grupo, pelo que o ambiente pode gerar tensões
várias. Nesta fase, segundo Obert, o papel do líder é fundamental já que lhe cabe a tarefa
de facilitar e promover o conhecimento entre as pessoas. Pelo exposto fica claro o papel
desenvolvido por Mourinho: o seu grupo, que ali estava a nascer, não se manteve unido e
186
coeso apenas nos primeiros cinco dias de trabalho. Ele continuou desta forma na primeira
folga dos seus elementos, fora da actividade profissional.
Cabe aqui ainda uma nota à selecção que Mourinho fez para a criação do seu grupo.
Digamos que esta é uma fase anterior à criação do grupo, logo, uma fase em que ainda não
existe grupo portanto a questão do seu desenvolvimento não se coloca, mas que
consideramos fundamental para a sua posterior criação. Quais os critérios, então, de
Mourinho, para a escolha dos elementos do seu grupo? Podemos encontrar a resposta na
sua biografia. Continuamos situados na equipa do FC Porto, da época 2002/2003: ³Com
Vosé Mourinho optou-se por fazer também uma análise cuidada às qualidades morais dos
homens. Tanto quanto bons jogadores procurou-se bons homens porque, sendo o futebol
um desporto colectivo, é do grupo, como um todo, que tem de emergir a qualidade´
(Lourenço 2004: 123-4).
A atenção de Mourinho às questões atinentes ao grupo, como se disse, não se fica pela sua
fase inicial. Passemos agora à fase final proposta por Obert (1979), a colaboração, à qual,
segundo o investigador, muito poucos grupos conseguem chegar. Trata-se da fase de
maturidade plena de um grupo, altura em que todas as outras fases foram plenamente
ultrapassadas. O grupo vive, assim, um período estável. Ora é nesta estabilidade que os
perigos podem acontecer. No capítulo 4 referimos o desastre do vaivém Challenger, uma
consequência de pensamento grupal dos mais altos quadros da NASA. Vamos agora a um
exemplo que se passou com Vosé Mourinho e que nos dá uma ilustração cabal da sua
atenção especial aos momentos em que todo o seu grupo está a funcionar com grande
eficácia.
A época de 2002/2003 terminou com o FC Porto vitorioso em todas as frentes: vitórias no
campeonato português, na Taça de Portugal e na Taça UEFA. Mourinho manteve a
estrutura deste grupo na época seguinte pelo que as alterações foram apenas de pormenor.
A ³máquina´ estava afinada, todos se conheciam, todos jogavam ³quase de olhos
fechados´. Só que à partida para a nova temporada uma dúvida assaltou Mourinho: será
que o sucesso nos fez mal? (Lourenço 2004). Mourinho longe de viver as vitórias do
passado recente estava já concentrado nas vitórias que projectava para ofuturo e não se
deixou levar pelo ambiente de euforia. Temendo uma reacção negativa ao sucesso, por
parte dos seus jogadores, o treinador tomou medidas, a nível táctico como se relata no
187
capítulo 1, ³obrigando´ os seus jogadores a ³descer à terra´ e a concentrarem-se apenas no
que estava para vir e não no que tinha passado. Desta forma se compreende como
Mourinho manteve um grupo vencedor e o resultado ficou à vista: no final da temporada
Mourinho e a sua equipa venceram a liga portuguesa e a liga dos campeões.
Não queremos terminar esta sub-secção sem fazer uma reflexão sobre o conflito em grupo,
uma temática que consideramos de importância capital para o funcionamento do grupo e
no qual o comportamento do líder, perante o conflito, assume papel de fundamental
importância. No Capítulo 4 focámos esta questão através dos estudos de Sherif (1967). O
conflito como fenómeno emergente num grupo, resultante do desentendimento entre duas
ou mais pessoas, é entendido como prejudicial ao bom funcionamento do mesmo e, como
tal, a tendência natural, enquanto acto de liderança, é a sua extinção. O estudo apresentado
enquadrava-se numa perspectiva sociológica do grupo, pelo que não se considerava
especificamente o papel do líder como mediador ou mesmo como parte do conflito. Neste
capítulo de natureza prática interessa-nos saber, uma vez feito o enquadramento da
temática, de que forma Mourinho é líder na gestão de conflitos dentro do seu grupo.
Importa, desde já, destacar a forma como Mourinho encara o grupo em relação às partes: o
grupo está acima das partes e, como o próprio referiu, não existe qualquer dúvida em
sacrificar a parte pelo todo, o indivíduo pelo grupo. Esta premissa leva-nos a uma primeira
conclusão. Em Mourinho qualquer parte que contribua ± e aqui se inclui o conflito ± para o
mau funcionamento do grupo, será sacrificada. Não temos registo, no nosso estudo, de
qualquer conflito entre partes ± jogadores ± de qualquer grupo liderado por Mourinho que
tivessem levado a uma atitude extrema por parte do líder ± Mourinho. No entanto, este
³sacrifício´ já aconteceu nos grupos comandados por Vosé Mourinho. Convém aqui
distinguir-se duas formas de conflito. O conflito entre pessoas e o conflito entre pessoas e o
sistema. Em ambos os casos Mourinho já tomou atitudes radicais. Relembremos dois
casos. Mourinho, entrou em conflito com o jogador Vítor Baía do FC Porto, depois de uma
discussão entre ambos no balneário, logo no início da época 2002/2003 (Lourenço 2004).
Mourinho entendeu suspender Vítor Baía e mandar instaurar um processo disciplinar. No
entanto, logo na altura, Mourinho fez questão de ³[dar a Baía] a garantia de que quando ele
regressasse estaria em pé de igualdade com todos os outros para poder lutar pela
titularidade´ (Mourinho in Lourenço 2004: 129). Acima de tudo Mourinho garantiu justiça
e clareza de processos no desempenho das tarefas do dia a dia. Baía iria ser julgado pelo
188
clube e depois disso estaria em condições de ambicionar, no seu grupo, o mesmo que os
seus colegas. A verdade é que, concluído o processo disciplinar com todas as implicações
que teve em termos de sanções impostas pela justiça do clube, Baía voltou à baliza do FC
Porto, tendo sido um dos pilares das conquistas da Taça UEFA, nesse mesmo ano e da
Liga dos Campeões no ano seguinte. O segundo caso tem que ver com o romeno Adrian
Muttu. Mourinho estava há poucos meses no Chelsea e numa análise anti-doping Muttu
acusou elevados níveis de cocaína no sangue. Claramente este foi um conflito não entre
pessoas mas entre uma pessoa e o normal funcionamento do grupo, ou seja, um conflito
entre a pessoa e o sistema. Não eram ± e não são ± admitidos no grupo comportamentos
sociais que aos mais diversos níveis fragilizem o funcionamento do mesmo. Também não é
admitido qualquer comportamento que fragilize, igualmente, o comportamento da própria
parte. Mourinho, neste caso, afastou Muttu do grupo, o que levou ao seu despedimento.
Por este exemplo se entende a primazia do grupo sobre o individual. Repare-se que no
primeiro caso, Baía não colocou em causa o normal funcionamento do grupo, questionando
apenas, pela discussão criada, a autoridade do líder. Neste caso Mourinho não se excluiu
do grupo como elemento do mesmo e resolveu o conflito internamente numa óptica, como
nos referiu Rui Faria (capítulo 8), de ³reorganização do todo e não [d]a punição em si
mesma´. No segundo caso Muttu colocou em causa princípios do grupo e do seu
funcionamento, portanto, Mourinho considerou que não havia espaço para a punição
individual como reorganização do todo. Aqui Mourinho foi implacável e, neste sentido,
deixou bem vincada a sua liderança e a autoridade daí decorrente. É pois nesta lógica de
³reorganização do todo´ que devemos entender a actuação de Mourinho na resolução de
conflitos no seu grupo. Esta lógica reorganizadora deve obedecer a um princípio: o da
coerência ± não em absoluto, em termos de princípios abstractos; mas relativamente à
aplicação concreta de princípios éticos, morais e de equidade a uns e a outros. É por isso
que Rui Faria afirma (capítulo 8) que ³não interessa se, quando temos de punir, punimos
este ou aquele jogador´ já que o importante é, quando necessário, punir ± ou premiar,
dizemos nós ± seja quem for não importando quem, com critérios de justiça e de bom
senso iguais.
A problemática do conflito no seio do grupo, que acabámos de analisar introduziu já o
estudo da liderança de Mourinho. Vimos como Mourinho enfrenta no terreno, enquanto
líder, algumas situações e conflitos com que se depara no dia a dia. A contextualização da
189
sua liderança foi, contudo, a dinâmica de grupo. Na sub-secção seguinte vamos analisar a
actuação de Vosé Mourinho à luz das diversas teorias sobre liderança introduzidas nos
capítulos acima.
<-!%  7!%% 0.!'%% %%7%." !"
Nesta secção apresentaremos a análise do trabalho de Vosé Mourinho à luz das teorias
sobre a liderança anteriormente expostas. Começámos este capítulo de análise pelo
enquadramento do trabalho de Mourinho na perspectiva da complexidade. Sob esta
perspectiva paradigmática, fizemos em seguida uma leitura do seu trabalho no âmbito da
teoria da inteligência emocional, exposta no capítulo 3, bem como no contexto de várias
teorias sobre grupos, apresentadas no capítulo 4. Analisaremos em seguida a liderança de
Mourinho na sua acção enquanto treinador de futebol profissional. Porque a liderança só
pode ser vista como uma parte do todo que se constitui no resultado final do seu trabalho,
iremos repescar alguns exemplos anteriormente apresentados e fazer ligações a teorias
também já expostas noutros capítulos além das que apresentámos sobre o fenómeno da
liderança propriamente dito. Sob a perspectiva da complexidade, a liderança de Mourinho
pode e deve ser entendida através das suas diversas e múltiplas relações com os outros
aspectos do seu trabalho. Se quisermos, utilizando a própria terminologia de Mourinho,
vamos olhar agora a liderança como uma dominante desta dissertação sem, contudo, a
descontextualizar, de modo a nunca se perder de vista o todo.
A liderança de Mourinho tem sido um dos aspectos do seu trabalho mais discutido por todo
o mundo. O consenso é quase unânime: Mourinho é um líder de eleição. As explicações
para o facto têm sido muitas, diversas e por vezes contraditórias. À excepção do livro
Mourin o: Porquê |antas Vitórias? (Oliveira et al 2006), que relaciona ± embora de forma
pouco aprofundada porque não era esse o seu propósito ± a liderança de Mourinho com a
teoria da complexidade, em nenhum outro estudo sobre a temática conseguimos
descortinar a mais leve aproximação ao que colocamos em causa nesta investigação: a
prática e o estudo da liderança de Mourinho sob a perspectiva da complexidade. Daí que,
quanto a nós, na sua generalidade, as análises comuns sobre a liderança de Vosé Mourinho
resultem erradas. Elas separam o que não pode ser separado, adoptando uma visão
reducionista e analisando o tema, de uma forma tradicional, através do isolamento dos seus
190
vários aspectos, separando-os de um todo que, quanto a nós e conforme ao que temos
vindo a defender, não pode ser dividido.
Como foi dito acima, a palavra líder está associada a poder e, conforme a sua etimologia,
significa aquele que vai à frente. Trata-se de um poder formal ± o poder de dar ordens, de
decidir, de exigir, etc. ±, mas trata-se também de um poder informal, não substantivo, que
se traduz na capacidade natural que alguém tem de influenciar os outros. A liderança de
Mourinho fundamenta-se também nesta segunda forma de poder. Aliás, e face ao que
temos vindo a apresentar, parece podermos afirmar que o seu poder informal é a base do
seu poder formal.
Vosé Mourinho é o Special One. Sem qualquer conotação política ou cultural, lembramos
aqui os epítetos de líderes que referimos no capítulo 5: Commandante, Fü rer, Duce. Estas
noções, e muitas outras existem a este nível, tentam captar o líder na sua totalidade, na sua
globalidade, em todos os seus aspectos. Vosé Mourinho é o Special One, uma noção que
nada de concreto quer dizer, que não traduz em nada palpável a forma como actua, mas
que marca qualitativamente a sua forma de ser. O Special One é, desta forma, a maneira
como as pessoas o olham na sua globalidade, uma globalidade que extravasa o campo
profissional. Acreditamos que é assim que Vosé Mourinho é visto pela generalidade das
pessoas, embora de uma forma possivelmente mais intuitiva e instintiva do que analítica ou
reflectida: quando o criticam, quando o apoiam, quando dele falam, as pessoas não se
referem apenas ao treinador, ao comunicador, ou ao líder. Referem-se a Vosé Mourinho, à
sua globalidade, para o bem ou para o mal referem-se ao Special One, referem-se a um
todo e ao todo que faz dele o que ele é. Não perguntámos a Vosé Mourinho, ao longo das
conversas que com ele mantivemos durante a realização desta dissertação, se é desta forma
que ele se vê a si próprio, como o Special One. Preferimos contribuir para uma resposta
cabal através da realização deste estudo.
Conforme ao apresentado no capítulo 5, podemos constatar que a investigação actual tende
a recuperar as visões mais antigas da liderança, enquadrando-as nas novas realidades. A
teoria do grande homem, da segunda metade dos anos 40 do século passado, é assim, de
alguma maneira, recuperada na perspectiva dos traços característicos de personalidade. No
fundo, falamos no culto da personalidade de que um qualquer líder pode ser alvo. No caso
de Vosé Mourinho este aspecto liga-se também à forma como empresas, como a Samsung
191
ou a American Express, entre outras, usam a sua imagem para promover os seus produtos.
O anúncio da Samsung é elucidativo. Mourinho atira-se um pára-quedas de um
helicóptero, lança-se em rappel de um edifício, salta de um telhado para outro ± Mourinho
é um autêntico Vames Bond, um super-homem, um grande omem. Tal como o agente
britânico 007, Mourinho faz sonhar o comum dos mortais porque todos nós gostaríamos de
ser um pouco Vames Bond ou um pouco Mourinho. Esse foi possivelmente o raciocínio do
departamento de marketing da Samsung. E o que têm em comum Vosé Mourinho, Vames
Bond, os grandes homens, para nos fazer sonhar? São corajosos, determinados, arrojados,
são competentes naquilo que fazem, enfrentam os perigos e têm boa figura, entre outras
qualidades. Seria impossível traçar aqui todos os traços de personalidade de Vosé Mourinho
que concorrem para a sua imagem. Vamos deter-nos em alguns deles que surgem com
mais evidência no anúncio da Samsung, para posteriormente os enquadrarmos na teoria
dos traços de personalidade.
Quais os traços da sua personalidade mais marcantes, segundo o anúncio que estamos a
explorar? Mourinho é corajoso, basta lembrarmo-nos da forma como se impôs na
profissão, enfrentando e rompendo com cânones estabelecidos, facto que muitas guerras,
inimizades e ódios lhe custaram; Mourinho é também determinado e exemplo disso mesmo
é a forma como nunca se desviou do caminho por si traçado ao longo destes anos de
profissão; Mourinho é arrojado, já que arrisca e por isso se expõe como poucos ± imaginese
o incómodo que seria se ele tivesse falhado na previsão que fez sobre a constituição da
equipa do Barcelona... (ver capítulo 1); Mourinho é competente e os resultados que obteve
provam-no bem; e Mourinho tem boa figura, tal como Roger Moore, Sean Connery ou
Pierce Brosnnan, alguns dos actores que interpretam o personagem Vames Bond. Estes
atributos projectam uma imagem global de Mourinho para o exterior. No interior da
organização onde trabalha são-lhe reconhecidos ainda outros atributos, tais como a
ambição (o querer ganhar sempre), a honestidade e a integridade (olhos nos olhos, o que
diz faz e o que faz diz) e a inteligência (está sempre um passo à frente dos outros). E com
estes três últimos atributos, juntando-os aos anteriormente focados, confrontámos
Mourinho com os seis traços de personalidade que segundo Kirkpatrick e Locke (1991)
diferenciam os líderes, tal como o descrevemos no capítulo 5: (i) a ambição e energia, (ii) o
desejo de liderar, (III) a honestidade e a integridade, (iv) a autoconfiança, (v) a inteligência
e (vi) os conhecimentos relevantes para o trabalho ±, concluindo que ele pontua
192
positivamente em todos eles. Mas será que a personalidade de Mourinho explica na
totalidade o estilo e a eficácia da sua liderança? Os argumentos apresentados no capítulo 5
sugerem que não.
Passemos agora em revista as teorias comportamentais e vejamos se o comportamento de
Vosé Mourinho, à luz destas teorias, nos fornece pistas para um melhor entendimento da
sua liderança. Que Mourinho tem um comportamento específico, disso não temos dúvidas.
Mas será que esse comportamento específico justifica a eficácia da sua liderança?
De acordo com os estudos das universidades de Ohio e Michigan, revistos no capítulo 5,
Mourinho é um líder orientado para as tarefas já que determina objectivos e exige sempre o
máximo dos que com ele trabalham: ³[N]os treinos, parece que estamos a jogar, tal é a
intensidade e a concentração. Parece que estamos mesmo no jogo. Temos de estar
verdadeiramente acordados para o treino´, referiu Tiago, jogador profissional de futebol,
em entrevista concedida ao jornal A Bola, no dia 27 de Dezembro de 2005.
Mas também conforme ao entendimento dos estudos das universidades de Ohio e Michigan
Mourinho é igualmente um líder orientado para o relacionamento. O antigo jogador
internacional inglês Ian Wright traçou-lhe este perfil depois de ter visto Mourinho celebrar
uma vitória com os jogadores do Chelsea: ³[s]e outro treinador abraçasse os seus
jogadores, eles poderiam ficar imóveis ou encolher-se instintivamente pela surpresa ou
pelo embaraço[, mas com Mourinho] consegue-se ver a camaradagem que existe entre ele
e a equipa´ (Ian Wright in Barclay 2005: 151). Esta camaradagem foi também patente no
final da eliminatória com o Barcelona, na época 2004/2005, em que o Chelsea saiu
vencedor. Mourinho entrou em campo a festejar e lançou-se sobre as costas de Vohn Terry,
uma atitude que mereceu de Desmond Morris, o seguinte comentário, relatado por Barclay
(2006:150-1): ³Foi esse grande observador da raça humana (e adepto inveterado de
futebol) Desmond Morris que chamou a minha atenção para isso. Não consigo pensar
noutro treinador que tivesse podido fazer aquilo», acrescentou (...). Ambas as pernas de
Mourinho ficaram no ar. Foi uma expressão de linguagem corporal que eu nunca tinha
visto no futebol. Significa que ele é um dos jogadores.´ Noutra ocasião Morris havia já
referido: ³I disagree slightly with the portrayal of Mourinho as a father figure to his
players. He is more like an elder brother. Or the leader of the gang´ (Morris in Batty
2006:150).
193
Os estudos das universidades de Ohio e de Michigan, base das teorias comportamentais
sobre a liderança, mostram-nos o cruzamento da liderança orientada para a tarefa com a
liderança orientada para o relacionamento como algo determinante da eficácia da liderança.
Embora obviamente aceitando a relevância destas investigações, neste nosso trabalho
defendemos que elas ajudam a entender o fenómeno da liderança, são mais peças do
puzzle, mas que a liderança em geral ± e a liderança de Vosé Mourinho, em particular ± não
se esgota nem se explica naqueles dois tipos de comportamento. Ainda na linha
comportamental, queremos recuperar a investigação de Andersen (2006), apresentada no
capítulo 6, porque cremos que ela vêm acrescentar, ou talvez acentuar, algo de pertinente
para o reconhecimento de um comportamento de líder, com aplicação no caso de estudo
que estamos a trabalhar. Andersen (2006) observa o comportamento do líder sob um
ângulo global, introduzindo-nos a ideia de acting do líder, que traduzimos aqui por
representação. Refere Andersen (2006) que em termos de liderança, não importa tanto
quem o líder é (w o you are), mas sim como ele representa aquilo que pretende ser, o líder;
isto é, o seu acting específico, a sua representação da liderança, é determinante para a sua
liderança efectiva. É desta forma, através do acting, que a liderança tem impacto nos
liderados ± neste ponto do nosso argumento, é importante alertar para o facto de o
entendimento do conceito de acting, proposto por Andersen (2006), e aqui utilizado por
nós, poder eventualmente extravasar em alguns aspectos o referido por aquele
investigador. Entenda-se que o acting, na sua substância, não está ligado a falsidade ou a
qualquer outra adjectivação que nos possa levar a pensar que enquanto líder, porque se está
a representar, um indivíduo não estaria a ser ele próprio, não estaria a ser genuíno. Pelo
contrário, ser um líder eficaz, submetemos nós na linha da argumentação que estamos a
apresentar, implica ser capaz de genuinamente actuar à líder, de representar genuinamente
a actuação típica de liderança. A expressão à líder, por nós sugerida, quer precisamente
indicar esta representação genuína dos comportamentos gestuais, vocais, expressivos, etc.,
típicos de uma liderança efectiva.
Andersen (2006) é claro quando afirma que a representação do líder não está dissociada da
sua personalidade. O acting é algo que decorre da essência da liderança e a liderança
decorre do ser que se é, por outras palavras, do ser que o líder é. A representação em causa
tem que ver directamente com a essência da acção na liderança, com um agir em função da
situação que traduz de uma forma directa aquilo que se é, o líder. O líder para o ser,
194
enquanto tal, entre outros aspectos referidos de diversas formas e em diversos contextos
pela investigação, deve também actuar à líder. O acting é desempenhar actos de liderança,
é dar ordens, é fazer análises e estabelecer conclusões, é comparar propostas e escolher, é
articular sugestões e visões, é ser capaz de se impor, é falar mais alto quanto tal é
necessário, é saber manter o controlo quando todos à sua volta se descontrolam, é uma
disponibilidade permanente para arriscar e mudar, é um querer ser o primeiro, é ir à frente,
é ganhar ± protagonizar este tipo de comportamentos sistematicamente é actuar à líder. A
eficácia deste tipo de comportamentos será tanto maior quanto mais genuína, embora,
obviamente, esta dimensão não seja suficiente para fazer um líder efectivo; a competência,
a coerência e a equidade, os resultados obtidos, e outros factores, como vimos em teorias
acima revistas, devem igualmente ser tidos em consideração. Actuar à líder por isso não é
condição suficiente para se liderar, para se ser líder; mas, quanto a nós, face ao exposto,
tende a ser uma condição necessária.
Assim, o acting de Mourinho traduz-se na forma como ele diz o que diz e faz o que faz. O
líder tem de actuar à líder. Entendemos esta expressão como a forma de posicionamento
do líder perante os seus seguidores: Mourinho dirige, dá ordens, sugere articulações e
visões, usa da palavra com eloquência, impõe a sua posição pela sua competência e
autoridade, questiona os outros e questiona-se a ele mesmo muitas vezes, etc. Mourinho é
um líder à líder, com uma actuação e uma representação que fazem dele o elemento de
principal influência nos seus seguidores. O líder não é só o que é mas também e
essencialmente o que mostra e o que ± e como ± o transmite. É esta imagem global que o
líder mostra e apresenta aos seus seguidores, a qual os influencia e faz com que estes o
sigam. Assim, o conceito à líder aqui proposto mais que um conceito agregador e teórico, é
uma noção que visa indicar a experiência de empenho, de dedicação efectivamente sentida,
de envolvimento dos seguidores naquilo que é determinado pelo próprio envolvimento do
líder. Assim se compreende o acting de Andersen (2006). Esta noção é importante para a
compreensão da liderança de Mourinho. Aliás este acting, e alguns dos papéis a que está
associado, encontram expressão prática noutros personagens que Mourinho representa; os
das campanhas publicitárias, como por exemplo, a da Samsung, onde se compara
Mourinho a Vames Bond.
Passamos agora às teorias contingenciais, as quais vêm acrescentar um outro elemento ao
estudo da liderança: o ambiente. O ambiente, o contexto, passa assim a ser alvo de
195
conjugação com os traços de personalidade e com o tipo de comportamento do líder. O
meio em que o líder se move e exerce a sua liderança é agora o aspecto a investigar. Tentase
perceber que estilo de liderança será por isso o adequado para cada e determinada
situação.
Antes de avançarmos para a análise propriamente dita, impõe-se-nos uma nota prévia.
Acreditamos ser importante referir que num aspecto importante a situação não surge
simplesmente perante Mourinho, mas antes é ele que a procura e que a provoca. Esta ideia
assenta num princípio de trabalho de Mourinho, o que visa reduzir a imprevisibilidade do
jogo, como forma de atingir os objectivos pretendidos. Provocando a situação concreta,
Mourinho diminui obviamente a imprevisibilidade, já que condiciona o que pode
acontecer, preparando-se antecipadamente para isso. Em termos mais gerais, quando
Mourinho decidiu aceitar o convite para treinar o Chelsea questionámo-lo sobre as razões
da sua escolha. Respondeu que queria treinar em Inglaterra porque, na sua opinião, sendo a
Inglaterra um país de topo do futebol mundial havia, no entanto, muito trabalho a
desenvolver ao nível táctico, situação que não era tão visível, por exemplo, em Itália ou em
Espanha. Este exemplo mostra-nos como Mourinho projectou a situação que pretendia, de
algum modo escolheu um contexto que lhe pareceu mais favorável ao seu trabalho; este
exemplo ilustra o esforço que Mourinho coloca na construção da previsibilidade da
situação. No entanto, qualquer situação é, evidentemente, imensamente vasta e complexa,
não se confinando a alguns aspectos táctico-estratégicos. Como foi referido no capítulo 5,
na investigação desenvolvida por Hersey e Blanchard (1974), o estudo dos seguidores
surgiu como um dado novo na problemática da liderança. Defendiam aqueles
investigadores ± pelo menos na análise de Robbins (2002) - que a tendência natural do
líder era conjugar a sua liderança com a maturidade dos seus subordinados, fazendo uma
analogia com a relação entre pais e filhos: à medida que estes vão crescendo, a tendência
natural daqueles é a de exercer menos controlo nas suas vidas. A presente investigação
sobre o trabalho de Vosé Mourinho, contudo, sugere que, ao nível da liderança, as coisas
não se passam desta forma. Desde logo se constata que Mourinho é um líder sempre
presente. Conforme à etimologia da palavra, apresentada no capítulo 5, Mourinho é o que
está lá na situação, onde as coisas acontecem, à frente. ³Eu penso que um líder tem de estar
sempre presente. [A liderança] sente-se nas mais pequenas coisas, nos mais pequenos
detalhes, com um olhar ou com a presença do líder por si só´. Esta afirmação de Mourinho
196
não é apenas uma intuição sua. Ele fez questão, como afirmou na entrevista que
apresentámos no capítulo 7, de fazer a experiência. Mourinho premeditadamente deixou de
exercer a liderança na equipa de futebol do Chelsea durante algum tempo: ³queria perceber
± e senti que naquele momento podia fazê-lo ± se a minha actividade enquanto líder se
podia diluir exactamente pelo estado de maturação do grupo. («) Estamos a falar de
homens, de homens de primeiro nível, de jogadores de grande capacidade« De repente
percebeu-se que sem disciplina se perdiam qualidades enquanto grupo´. Na perspectiva do
liderado, as palavras de Mourinho também não deixam margem para dúvidas: ³[e]u tenho
jogadores que me dizem que na realização de um exercício, mesmo que eu não tenha parte
activa, («) a minha presença faz toda a diferença´. Atente-se nas palavras de Frank
Lampard, um dos jogadores-chave da actual equipa do Chelsea: ³When we are on the pitch
he is always with us ± in every move we make and every kick we take´ (Lampard 2006:
331). Por aqui se percebe, quanto a nós, um dos factores fundamentais da liderança de Vosé
Mourinho e que contraria, de alguma forma a tese de Hersey e Blanchard (1974). Ao
contrário dos pais, que mesmo ausentes, nunca deixam de o ser, a liderança requer a
presença constante e efectiva do líder. O líder só o é enquanto está lá, à frente, agindo à
líder, enquanto influencia, determina, motiva, caso contrário, deixará de o ser. É por esta
razão que Mourinho está literalmente sempre presente, chega aos treinos antes de todos os
jogadores e só sai depois de todos eles terem saído (Lourenço 2003). No modelo de Hersey
e Blanchard (1974), existem quatro estilos comportamentais de liderança: determinar,
persuadir, compartilhar e delegar. Embora se possa identificar a liderança de Mourinho
com os três primeiros estilos, face àquilo que já foi apresentado neste trabalho, não
revemos Mourinho no último estilo, no delegar, seja qual for o grau de maturidade dos
seus liderados.
Continuando no campo das teorias contingenciais sobre a liderança, podemos enquadrar de
forma pertinente o estilo de Vosé Mourinho na teoria do caminho-objectivo. Nesta teoria,
House (1971), o seu autor, defende que os líderes eficazes abrem e indicam caminhos aos
seus liderados, ajudando-os assim a atingir os objectivos pretendidos (Robbins 2002). Esta
teoria assenta do pressuposto de que os subordinados aceitam o comportamento do líder e
criam a expectativa de que este os conduzirá à satisfação das suas necessidades ou
ansiedades. Compreendem-se, à luz desta ideia, as palavras de Lampard: ³All I can say is
that he has an intuitive understanding of the way people work, of their dreams and desires,
197
and how to harness that energy and convert it in a winning formula´ (Lampard 2006: 312).
House (1971) distingue quatro comportamentos de liderança: líder directivo, líder apoiante,
líder participativo e líder orientado para a realização. É este último que pretendemos
realçar, já que nesta teoria é o estilo que mais se identifica com a liderança de Mourinho.
Assim, o líder orientado para a realização é aquele que determina metas ambiciosas e que
espera dos seus subordinados a sua realização ao mais alto nível (House 1971). Trata-se de
um tipo de comportamento que reflecte bem o de Vosé Mourinho. Quanto aos objectivos, já
foi amplamente referido que Mourinho está focado na vitória, que quer sempre vencer e
que quer que essa ambição seja natural, que se transforme na base da cultura da sua equipa.
Não houve um único campeonato, uma única prova em que ele tenha participado, desde
que é treinador principal, em que os seus esforços e ambições não tenham sido
concentrados na vitória final. Mas vencer, obviamente, todos o querem. O ponto crítico é o
de querer e de conseguir levar a cabo, aos mais variados níveis, o que é necessário para
atingir aquele objectivo. Pode dizer-se que quem muito quer, estuda, trabalha, inova e
arrisca; quem apenas deseja, espera.
Face a esta cultura de vitória e à pressão para os seus jogadores dêem sempre o melhor
deles mesmos, referiu-nos Rui Faria (capítulo 8): ³[q]uem vive profissionalmente com ele
tem de saber viver com grande pressão e ao mesmo tempo tem de dar resposta positiva.
(«) A exigência é sempre grande para todos os que trabalham com ele´. Daqui resulta,
ainda nas palavras de Rui Faria, que ³[t]odos [têm] de estar identificados com o que ele
quer e desempenhar as tarefas em função disso, sempre ao mais alto nível´. Trata-se de
desafio puro, de o jogador se sentir pressionado, desafiado, e de isso o motivar para
melhorar o seu desempenho, para se esforçar para atingir resultados excepcionais.
Com esta análise sobre a relevância das teorias contingenciais para a análise da liderança
de Vosé Mourinho avançou-se já algo de relevante na investigação do objecto desta
dissertação. No entanto, é claro que este grupo de teorias não é ainda resposta suficiente
para o caso que investigamos em toda a sua dimensão. Conforme veremos a seguir, através
da aplicação à liderança de Vosé Mourinho de teorias mais recentes, as teorias chamadas
neocarismáticas, nas quais se inclui a inteligência emocional, acima já aplicada, são as que
melhor explicam o sucesso da liderança de Vosé Mourinho, embora, quanto a nós, não
sejam também suficientes.
198
Em rigor, a perspectiva da complexidade, que modela tanto esta investigação como a
própria liderança de Vosé Mourinho, traz-nos algo de novo à temática da liderança. No final
deste capítulo procuraremos identificar, caracterizar e sistematizar, tanto quanto possível
numa investigação deste género, o que há de substancialmente novo na liderança de
Mourinho e na teorização que aqui procurámos fazer.
Como se disse no capítulo 5, as teorias neocarismáticas enfatizam os comportamentos
simbólicos e emocionalmente apelativos do líder. Tentam explicar como os líderes
conseguem levar os seus liderados a altos desempenhos, tendendo a esbater distâncias
entre líder e liderados. A teoria da atribuição de liderança, neste sentido, vem dizer-nos que
a liderança é um conceito atribuído e não conquistado. Assim, McElroy (1982) defende
que a liderança é atribuída pelo reconhecimento e a atribuição de capacidades
extraordinárias a alguém parte dos liderados. Repesca-se aqui, de alguma forma, a teoria
dos traços de personalidade, sendo atribuído e reconhecido ao líder por parte dos liderados
características como a inteligência, a personalidade ousada e vincada, a aptidão verbal
forte, a agressividade, a compreensão, o espírito e a capacidade de iniciativa, entre outros
traços. A partir do desenvolvimento desta visão chega-se à liderança carismática. Ao
olharem para o líder, com os traços distintivos de personalidade que nele vêem, os
seguidores tendem a atribuir-lhe capacidades extraordinárias ou heróicas de liderança.
Surge, então, como que uma auréola em volta do líder, tendendo os seguidores a
considerálo
como alguém superior, capaz de feitos incríveis e de vir a realizar os sonhos dos
elementos da equipa. Em bom rigor, acredita-se cegamente, segue-se e espera-se que o
líder guie os seguidores pelo caminho que leva à realização do sonho de todos e de cada
um. Neste campo assume particular destaque a empatia entre seguidores e líder, sem a
qual, conforme defendemos no capítulo 6, não existe a liderança carismática. Como
defendem Kellett et al (2006), a empatia não só favorece o reconhecimento da liderança
como também concorre como o principal factor de mediação entre as emoções dos
seguidores e as do próprio líder. Esta relação empática de Mourinho com o seu grupo
percebe-se pelas palavras do próprio Mourinho no seu texto sobre a final da Liga dos
Campeões, em Gelsenkirchen. O jogo já tinha terminado, a festa no campo também, e
Mourinho esperava pelos jogadores. Escreveu ele: ³[p]ela primeira vez esperei por eles na
porta do balneário e beijei-os a todos. 26 de Maio de 2004, Gelsenkirchen: somos imortais´
(Mourinho in Lourenço 2004: 224). Um outro exemplo surge-nos na sua visita a Israel,
199
quando, numa palestra perante cerca de 250 treinadores de futebol israelitas e
palestinianos, Mourinho mostrou uma fotografia sua abraçado ao jogador do Chelsea Frank
Lampard e afirmou: ³parece um abraço, mas é mais do que um abraço« é um abraço que
mostra que confiamos um no outro. Sem uma palavra, ele está a dizer-me: « Obrigado». É
um abraço que repetimos, jogador após jogador, porque somos uma família´ (Mourinho in
Barclay 2006: 52).
Como enquadramos, então, Mourinho na liderança carismática? Do ponto de vista dos seus
traços de personalidade parecem-nos evidentes as ligações. Quanto à sua inteligência e
competência cremos que elas são unanimemente reconhecidas. Destacamos, por exemplo,
as palavras do jogador Deco, que com ele trabalhou dois anos e meio, ao serviço do FC
Porto: ³[u]m treinador com uma inteligência superior, muito ambicioso, que exige que os
jogadores também o sejam´ (Deco in Alves 2003: 137). Mourinho tem, igualmente, uma
forte personalidade, como procurámos mostrar no capítulo 1 e como é visível na entrevista
apresentada no capítulo 7. São muitos os exemplos que se podem apontar. Veja-se como
relatámos no capítulo 1 a formula do ³tudo ou nada´ com que ele saiu do Benfica, ou o
modo como expulsou os seus ³superiores´ num treino de estágio no União de Leiria.
Mourinho tem também uma aptidão verbal forte. As suas conferências de imprensa, a
forma como fala e como reage às perguntas, tal como Lampard o viu assim que ele chegou
ao Chelsea e que nós já descrevemos acima, provam bem aquela sua característica.
Mourinho é agressivo, marca a agenda. Esta faceta nota-se pela forma como ele entra nos
mind games com os seus adversários ± o jornal britânico | e |imes, em Novembro de
2006, chamou-lhe t e mind games master. Também a capacidade de iniciativa é um factor
determinante em Mourinho. Lembremo-nos, por exemplo, da forma como preparou a
equipa para a final da liga dos campeões ao entregar, facto inédito, a cada um dos seus
jogadores DVD¶s individuais da equipa adversária. Vosé Mourinho é, pois, desta forma,
com estes traços de personalidade e alguns outros, um líder eficaz. No entanto, outros
líderes podem ser caracterizados de forma idêntica. Porém, apenas alguns deles seriam
considerados líderes carismáticos. Analisemos então, de um ponto de vista técnico, porque
é Vosé Mourinho um líder carismático.
Relembremos Klein e House (1995) e a sua fórmula metafórica que nos explica o
aparecimento de uma qualquer liderança carismática. Os três elementos que concorrem
para o seu surgimento, conforme vimos no capítulo 5, são a faísca (o líder a quem são
200
atribuídos características e comportamentos carismáticos); a matéria inflamável (os
seguidores receptivos ao carisma); e o oxigénio (o ambiente carismático, caracterizado
pelo ambiente de crise que levava à pouca motivação).
Quando Vosé Mourinho (a faísca) chegou ao FC Porto, tal como foi dito no capítulo 1, a
equipa (matéria inflamável) ocupava um modesto sexto lugar na liga portuguesa, já tinha
sido afastada da Taça de Portugal e estava praticamente de fora da Liga dos Campeões.
Para além disto ia para o terceiro ano consecutivo sem ganhar o campeonato português. O
ambiente era, pois, de crise com jogadores e adeptos (matéria inflamável) descrentes, a
necessitarem de um rumo, de alguém que os levasse a acreditar em algo (oxigénio).
Mourinho chegou ao FC Porto e perante estes três elementos ± e sendo parte de um deles ±
criou a combustão necessária ao surgimento da sua liderança carismática. Fez faísca,
afirmando: ³Para o ano vamos ser campeões.´. Com esta frase, premeditada, porque ³a
equipa do FC Porto estava moribunda por essa altura´ (Mourinho in Lourenço 2004: 99),
Mourinho ³quis dar a entender aos portistas, logo no primeiro dia, que estava no clube para
ganhar´ (Lourenço 2004: 99). Depois, pretendeu também ³motivar as hostes´ (Lourenço
2004) com uma mensagem globalizante, para o interior (todos no clube) e para o exterior
(todos os adeptos portistas e até adversários).
E motivou de tal forma que mais tarde, o presidente portista, Pinto da Costa, afirmaria que
³naquela sua frase de apresentação aos jogadores ± Para o ano vamos ser campeões!» ±
[Mourinho] apresentou o seu melhor cartão de visita e o seu mais perfeito retracto.
Confiança, determinação, vontade de transmitir a indómita vontade de vencer à sua gente,
tudo estava sintetizado naquela frase´ (Pinto da Costa in Lourenço 2004: 98). A partir daí,
pode dizer-se que Mourinho conquistou a nação portista e as suas atitudes enquanto líder
foram constantemente alimentando a chama da sua liderança carismática. Foi assim
quando disse à massa associativa do FC Porto que a eliminatória com o Panathinaikos, que
havia ganho o primeiro jogo nas Antas, ainda não tinha terminado e foi assim quando
entrou mais cedo no relvado do estádio da Luz enfrentando um monumental coro de
assobios e vaias dos adeptos do Benfica, dois episódios que descrevemos no capítulo 1.
Como acontece com qualquer um de nós, as nossas atitudes estão directamente ligadas às
nossas características pessoais, aos nossos traços de personalidade. Conger e Kanungo
(1998) propõem-nos, conforme ao apresentado no capítulo 5, cinco características-tipo
201
inerentes ao líder carismático: o líder carismático protagoniza uma visão ambiciosa e
articula-a com clareza; o risco pessoal é outra das características do líder carismático; a
sensibilidade ao ambiente é outro aspecto do seu comportamento; a sensibilidade para as
necessidades dos liderados também; e, por fim, tende a destacar-se algum tipo de
comportamentos não convencionais no líder carismático.
Vejamos então de que forma Mourinho, enquanto líder carismático, se posiciona perante
esta formulação proposta por Conger e Kanungo (1998). O líder carismático protagoniza
uma visão e articula-a explicitamente de forma a prometer, de uma maneira clara e bem
definida, um futuro melhor para toda a equipa. Mourinho tem metas bem definidas e todas
elas passam pela vitória, por vencer sempre. Esta é uma característica já identificada e
analisada. No entanto, queremos sublinhar a exequibilidade das metas propostas por
Mourinho, essencialmente por dois motivos: em primeiro lugar, esta exequibilidade é
decorrente da própria forma de estar de Mourinho que passa pela coerência global entre o
que se faz e o que se diz, entre o tratamento de uns e o de outros, entre o que pretendemos
e o tipo de trabalho que fazemos para o conseguir. A este propósito referiu-nos Rui Faria
(capítulo 8): ³A coerência passa por aí, [por] objectivos atingíveis. («) Como é que se
pode levar os outros a acreditar em algo em que eu próprio não acredito?´ Depois, essa
coerência assenta na própria evidência dos factos, ou seja, até hoje, Mourinho ganhou
sempre em todos os campeonatos que disputou do princípio ao fim. Pela promessa de
vitória passa também a promessa de um futuro melhor, mais competente, melhor em
termos colectivos e em termos individuais. Foi assim quando Mourinho chegou ao Benfica.
Sobre o que disse aos jogadores da equipa no seu primeiro contacto, Mourinho refere:
³[p]rometi-lhes duas coisas: primeiro a garantia de µqualidade de trabalho¶. Com isso eles
próprios iriam melhorar individual e colectivamente. A outra promessa foi « frontalidade»´
(Mourinho in Lourenço 2004: 39).
Esta noção de coerência organizacional como um dos fundamentos da liderança é
destacada por Knowles (2001), em paper referido no capítulo 6, precisamente a propósito
de aspectos centrais da liderança acima referidos por Mourinho e Rui Faria. Para Knowles
(2001) é através do que a organização é oje e de como ela se projecta para o futuro que
ela ganha coerência. Esta dupla dimensão da empresa ± o que ela é hoje e o que ela quer
ser no futuro ± é algo que se constrói em processos comunicacionais francos e consistentes,
precisamente o que Mourinho e Faria referem. Para Knwoles (2001) quando a
202
³[i]nformation flows freely («), the parts are well connected´; é por esse motivo que
Mourinho promete frontalidade e Rui Faria nos fala em objectivos atingíveis, o que
significa que o futuro e o presente estão bem ligados, ou seja, t e information flows freely
and t e t e parts are well connected. Atente-se que as partes são mais do que apenas os
jogadores: as partes são o líder e os liderados, a equipa técnica e os jogadores, os jogadores
uns com os outros, a equipa, os adeptos e o clube, e, acima de tudo, o futuro e o presente.
A coerência, por isso e como acima referimos, passa por objectivos atingíveis. Os
objectivos têm que ser atingíveis mas ambiciosos. É tarefa do líder desenvolver a ambição
para que no futuro se venha a ser melhor do que o que hoje já se é, e que aquilo que hoje se
faz esteja ligado, consistente e coerentemente, mas também com plausibilidade, àquilo que
se quer para o futuro.
O risco pessoal é outra das características do líder carismático, na concepção de Conger e
Kanungo (1998). Os líderes assumem os riscos, estando preparados para o insucesso que
os poderá levar ao auto-sacrificio; isto em nome da visão. Mourinho, quando chegou ao FC
Porto, em Vaneiro de 2002, não gostou de muitos dos vícios instalados na equipa. Sentiu
que necessitava de mudar porque havia, entre o plantel, gente instalada pouco disposta à
mudança (Lourenço 2004). O treinador assumiu riscos e enfrentou os jogadores no final de
um jogo, em Belém, em que a sua equipa havia sido copiosamente derrotada pelo
Belenenses: ³[disse-lhes que] se tivesse de ficar para a história do clube como o treinador
que ao fim de tantos anos falhara o apuramento para as competições europeias, ficaria. No
entanto, ou as coisas mudavam muito rapidamente ou, se fosse preciso, até com os juniores
jogaria´ (Mourinho in Lourenço 2004: 109). Esta passagem revela também um outro
aspecto do trabalho e da liderança de Vosé Mourinho: a sua competência técnica, a sua
capacidade de diagnosticar o que se passa num grupo, de extrair disso consequências, de as
assumir e agir em função disso mesmo.
A sensibilidade ao ambiente é outra das características de Mourinho, enquanto líder
carismático. Revisitemos, a propósito, as palavras de Rui Faria (capítulo 8): ³A equipa em
si, como estrutura, é importante mas todas as estruturas envolventes também são
importantes. E quando falo nas outras estruturas, falo nos diferentes departamentos ± o
departamento médico, de futebol, a rouparia, a observação« Tudo isto são estruturas que
interagem e que não podem ser vistas como algo isolado´. Por isso, Mourinho afirma
(capítulo 7): ³não somos só nós [a equipa de futebol]. Somos nós, mas é também o patrão,
203
os investidores, os adeptos e por aí fora´. É com este olhar atento ao exterior da sua equipa,
ao ambiente que a rodeia, que se entende o exemplo, descrito no capítulo 1, em que
Mourinho ofereceu o troféu conquistado pelo Chelsea, nos Estados Unidos, ao tratador da
relva de Stamford Bridge. E com um olhar mais abrangente, respeitante ao contexto de
todos nós, pode ainda referir-se que Mourinho se dedica também a causas humanitárias;
por exemplo, no dia em que escrevemos esta página, 9 de Dezembro de 2006, Vosé
Mourinho aceitou ser o patrono de uma instituição londrina de apoio a crianças vítimas de
cancro, a CLIC Sargent. De resto, as causas humanitárias são um objectivo que Mourinho
insiste em prolongar para além da sua própria carreira como treinador de futebol: ³quando,
dentro de treze anos, eu tiver acabado a minha actividade no futebol, consigo ver-me
envolvido a cem por cento em acções humanitárias. Sempre pensei em problemas no
Médio Oriente e em África, e não exclusivamente no futebol´ (Mourinho in Barclay 2006:
200-1).
Nas características do líder carismático, sugeridas por Conger e Kanungo (1998), inclui-se
ainda a sensibilidade para as necessidades dos liderados. Também neste campo Mourinho é
um líder forte. Recordem-se as suas palavras, relatando a sua atitude em relação aos seus
jogadores, depois de estes terem perdido as meias-finais da Liga dos Campeões para o
Liverpool (capítulo 7). Mourinho abraçou alguns deles em sinal de conforto. Aqueles que
Mourinho reconfortou com mais atenção foram escolhidos intencionalmente: ³[q]uem
estava pior [psicologicamente] eram os que, pelo segundo ano consecutivo, tinham perdido
uma meia-final da Liga dos Campeões. («) Quando acab[ou] o jogo de Liverpool eu
[sabia] perfeitamente que o Gallas, o Terry, o Lampard e outros que perderam duas vezes
seguidas [eram] os que, naquele momento, [precisavam] de mim´. Como exemplo desta
atenção e cuidado de Vosé Mourinho podemos referir o que aconteceu na parte final de um
jogo da liga inglesa, contra o Blackburn, quando Tiago foi substituído e não tinha no banco
do Chelsea o necessário material de apoio para um jogador que acaba de despender
consideráveis energias físicas e psicológicas ± água, casaco, vitaminas, cobertores, etc.
Vosé Mourinho reagiu de imediato na defesa do seu jogador: ³Mourinho explodiu e, em
segundos, o fisioterapeuta, Mike Banks, corria pelo túnel até ao balneário para ir buscar
aquilo que faltava´ (Barclay 2006: 171-2). Outros exemplos se poderiam descrever, como
aqueles que têm que ver com a constante acção de Mourinho para aliviar a pressão exterior
sobre os seus jogadores, conforme ao que foi descrito neste capítulo e em anteriores.
204
Cremos que o que foi dito atesta bem a constante atenção que Vosé Mourinho dedica aos
seus liderados.
Por fim, o líder carismático é também caracterizado por algum tipo de comportamentos
não convencionais. Ele adopta muitas vezes comportamentos novos, pouco comuns, que
não se adaptam às regras pré-estabelecidas. Lembrando-nos do início de carreira de Vosé
Mourinho, concluímos que foi desta forma que Mourinho marcou a sua entrada no futebol.
Mourinho entrou com um discurso diferente do habitual e com métodos diferentes dos
habituais, o que causou as mais diversas reacções. Houve logo quem o odiasse e quem o
amasse. Relembremos as palavras do treinador de futebol Manuel Vosé, quando soube que
Mourinho o iria substituir na União de Leiria: ³se Mourinho pensa que isto é uma selva e
ele o Tarzan está muito enganado´ (Lourenço 2004: 77). É certo que esta frase foi
proferida num contexto em que Manuel Vosé achava que Mourinho lhe deveria ter dito
pessoalmente ± o que não é norma no futebol, pelo menos em Portugal ± que seria ele o
seu substituto, no entanto, ela não deixa de espelhar todo um ambiente menos favorável
que estava cimentado em relação a Mourinho. Manuel Vosé não foi o único e desde
treinadores a anónimos, passando por jornalistas e comentadores, muitos foram os que
criticaram duramente o então jovem treinador ± e muitos são os que ainda hoje o criticam.
Arrogante, egoísta e insensível foram apenas algumas das palavras com que muitos o
adjectivaram. Mourinho era visto como uma ameaça, como alguém que estava a romper
com os cânones tradicionais. Mourinho tinha consciência disso. Antes mesmo de iniciar a
sua carreira como treinador profissional de futebol, quando saiu de Barcelona, já estava
ciente desse facto: ³[s]ei que vou para uma luta, para um meio onde se calhar não me irei
sentir muito cómodo porque a mentalidade é um pouco diferente. Para além deste factor,
também tenho a consciência que não pertenço ao clã, àqueles que dão as cartas, aos que
distribuem o jogo´ (Mourinho in Lourenço 2004: 24). Mourinho já sabia, assim, que iria
enfrentar os poderes instalados, já sabia que era diferente, que iria ser diferente e já havia
decidido que o seu percurso estava traçado e dele não se iria desviar. É por isso que
desencadeou ódios, mas também paixões.
³Vosé Mourinho [não é só] um bom treinador ao jeito tradicional. Ele é mais do que isso: é
um treinador novo, para um futebol novo!´ (Sérgio in Lourenço 2003: prefácio), e é isso,
nas palavras de Amhurst (2005:75), que ³verdadeiramente assusta («) [os] outros´. Vosé
Mourinho ³ousou contrariar princípios que durante anos fizeram doutrina em gerações de
205
treinadores mal preparados, pouco conhecedores e prisioneiros de uma inaceitável
subserviência a dirigentes igualmente limitados («)´ (Fernando Guerra in jornal A Bola, 2
de Março de 2004). A maneira de actuar de Mourinho, o seu polémico estilo ³na
linguagem e nos actos, irreverente, desafiador, estimulante, aguerrido, emocional e frio,
inteligente também nas estratégias fora do campo, acutilante, às vezes mesmo feroz na
agressividade ± e, caramba!, a qualidade técnica deste jovem treinador são um caso muito
sério, quiçá nunca antes visto, pelo menos em Portugal´ (Santos Neves in jornal A Bola, 3
de Outubro de 2003). Desmond Morris referiu o que muitos já constataram vezes
suficientes: ³[nós] ficamos suspensos das palavras dele. Ele diz coisas que são relevantes e
que fazem pensar. Evita lugares-comuns. Não se deixou apanhar pela mentalidade do
desmazelo de « o futebol é mesmo assim»´ (Morris in Barclay 2006: 188). São palavras de
jornalistas, escritores, treinadores, professores universitários, que espelham a maneira
como Vosé Mourinho é encarado por muitos: um líder novo, um homem carismático, que
veio romper com o pensamento instalado. Mas esse rompimento é mais fundo do que uma
mera mudança de estilo ou de cultura. Como defendemos nesta investigação, trata-se de
propor a acção numa actividade concreta, bem como o seu entendimento, à luz da
perspectiva da complexidade, rompendo com uma tradição de séculos que todos nós,
consciente ou inconscientemente recebemos como herança.
Constate-se, pois, o que temos vindo a defender, ainda que por vezes de forma implícita,
nesta dissertação: Vosé Mourinho é o primeiro profissional no mundo a operacionalizar a
perspectiva da complexidade à profissão de treinador de futebol. Será possivelmente um
dos primeiros a operacionalizar plenamente, isto é, a concretizar até aos mais pequenos
pormenores da acção quotidiana, aquela mesma perspectiva paradigmática a um qualquer
domínio concreto da acção humana. Um dos desafios que se segue, evidentemente fora do
objecto e das possibilidades desta investigação, é o de estudar e conceber a
transferibilidade plena do trabalho de Vosé Mourinho para o mundo das organizações em
geral. No que respeita à liderança, um tópico importante no mundo organizacional
contemporâneo, tentámos dar um primeiro passo com esta investigação.
Um líder carismático afirma-se, mas tem de manter a chama acesa. Shamir et al (1993)
propõem um trajecto do líder carismático. Para o líder carismático o presente deve ser o
experimentar a possibilidade e a exequibilidade de um futuro melhor. Mourinho tem
protagonizado esta aproximação nos clubes por onde tem passado, prometendo títulos e
206
vitórias ± e conseguindo-os. O líder carismático informa sobre as suas perspectivas e
ambições de alto rendimento bem como sobre a sua convicção de que esses mesmos
objectivos serão alcançados. Mourinho promete a evolução qualitativa das competências
de cada um dos seus liderados, fazendo-os acreditar, conforme referimos acima, que eles
são capazes de ganhar, que são até os melhores do mundo. Esta atitude desencadeia
sentimentos novos, intensifica a auto-estima e a auto-confiança nos jogadores e os
resultados são visíveis, conforme o mostrámos e continuaremos a referir através de
declarações de jogadores como Drogba, Lampard, Vorge Costa e outros. Na trajectória do
líder carismático, conforme a Shamir et al (1993), destaca-se ainda o comportamento do
líder, o qual deve ser um exemplo a seguir pelos seus liderados. Ao mesmo tempo que lhes
apresenta um novo sistema de valores, o que em Mourinho se traduz também na insistente
mensagem de que o trabalho de um grupo de futebol não termina quando se abandona o
estágio ou o estádio, o líder está sempre presente, exibindo a cada momento o código de
conduta que a todos deve guiar, em todas as facetas da sua vida, quer profissional quer
social. Por fim o líder carismático tende a submeter-se a auto-sacrifícios em prol do grupo.
A entrada de Mourinho no estádio da Luz à frente dos seus jogadores, para os poupar às
vaias dos adeptos do Benfica, como foi descrito no capítulo 1, é uma prova disto mesmo.
A liderança carismática, conforme se defende no capítulo 5 na apresentação dos diversos
estudos, provoca efeitos directos nos seguidores, ou seja, constata-se uma relação
causa/efeito entre a liderança carismática e o alto rendimento, por um lado, e a satisfação
dos liderados, por outro lado. O alto rendimento dos atletas de Mourinho é provado através
dos êxitos que consegue nos seus grupos. Quanto à satisfação dos que consigo trabalham,
atente-se nas palavras de Vítor Baía, guarda-redes do FC Porto, citado por Miguel Sousa
Tavares: ³[ele é] o melhor treinador que já tive. Com ele não há treinos para entreter nem
corridinhas inúteis à volta do campo. Tudo é feito em função do jogo seguinte e treinamos
só a forma de o vencer´ (Baía cit. por Sousa Tavares in Lourenço 2004: prefácio); e Baia
proferiu estas palavras numa altura em que estava suspenso por Mourinho« ; ou ainda as
palavras de Pedro Mendes, antigo jogador de Mourinho no FC Porto e actualmente a jogar
em Inglaterra: ³[é] um treinador com uma metodologia de treino fantástica. Grande parte
dos jogadores do Chelsea estão completamente fascinados com o tipo de trabalho que
Mourinho está a praticar´ (Mendes in Vornal de Notícias, 26 de Fevereiro de 2005).
207
Pelo que ficou dito pode concluir-se que Vosé Mourinho é um líder carismático na plena
acepção técnica desta classificação. Devemos então questionar: conjugada com os outros
tipos de liderança, anteriormente apresentados, ficará desta forma inteiramente explicada a
liderança de Vosé Mourinho? Cremos que ainda não. Mourinho é tudo aquilo que temos
vindo a referir e a suportar teoricamente, mas não só, como adiante defenderemos.
Vamos, por fim, entrar num dos últimos desenvolvimentos das teorias neocarismáticas: a
liderança transaccional e a liderança transformacional, propostas por Bernard Bass, na
década de 80 do século passado. Como afirmámos, no capítulo 5, estas duas teorias
complementam-se, uma vez que o líder pode socorrer-se de ambas. Conforme afirma
Robbins (2002), a liderança transformacional é construída ³em cima´ da transaccional.
Bass detalha esta ideia ao afirmar que em períodos de fundação ou mudança
organizacional a liderança transformacional é a mais eficaz e que em períodos de
estabilidade organizacional ou de evolução da instituição lenta se aplica com maior grau de
eficácia a liderança transaccional. De uma forma ou de outra, repita-se, as duas podem
complementar-se, completar-se e o mesmo líder pode fazer uso de ambos os estilos de
liderança.
Recordemos, pois, que a liderança transaccional, precisamente pela sua essência de
estabilidade, tende a ser usada no dia a dia. O líder foca a sua acção no esclarecimento, nos
requisitos e no desenvolvimento das tarefas dos liderados, socorrendo-se de recompensas
ou de castigos para a sua realização. Aplicando esta noção ao trabalho diário de Vosé
Mourinho, conjugando-a com a sua noção de grupo, relembremos as palavras do jogador
Frank Lampard: ³Mourinho gives you the option: you can take the right route or the wrong
route ± but if you take the wrong route, he will know about it and there will be
repercussions´ (Lampard 2006: 317); ou então fixemos as palavras de Rui Faria (capítulo
8), que aborda o mesmo tema, mas já numa perspectiva complexa: ³[a] sanção pretende a
reorganização do todo e não a punição em si. Por isso não interessa se, quando temos de
punir, punimos este ou aquele jogador. Trata-se de um elemento de uma estrutura que tem
de funcionar em estabilidade, porque a desorganização acaba por vir da individualidade de
cada um´. Vimos como Mourinho lida com o castigo. Vejamos agora como lida com a
recompensa. Na final da Liga dos Campeões o ³[g]rande Pedro Emanuel, homem da minha
confiança, apto para todo o serviço´ (Mourinho in Lourenço 2004: 177) ± foi assim que
Mourinho se referiu a Pedro Emanuel, jogador do FC Porto, na sua biografia, no capítulo
208
em que ele próprio relata a final da Taça UEFA, em Sevilha ± estava no banco, sentado ao
lado de Vosé Mourinho. Pedro Emanuel, por quem, como se viu, Mourinho nutria grande
respeito e admiração, como qualquer outro jogador ansiava por participar na final; no
entanto, estava ³tapado´ já que no seu lugar estava a jogar o capitão Vorge Costa. A cinco
minutos do fim da partida o FC Porto vencia o Mónaco por 3-0 e, portanto, a vitória estava
assegurada. Na biografia de Vorge Costa relata-se como Mourinho lidou com o problema ±
moral ± de colocar em campo Pedro Emanuel: ³[Mourinho chamou Vorge Costa] à linha
lateral e perguntou-lhe se concordava com a entrada de Pedro Emanuel. Não por sentir que
o resultado estava em risco mas por uma questão de justiça para com um dos líderes do
balneário. («) Com os cinco minutos que esteve em campo, Pedro Emanuel garantiu o
prémio de jogo, que era só pago a quem jogasse, nem que fosse só um minuto´ (Santos e
Cerqueira 2005: 118). É claro que, neste caso concreto, a verdadeira recompensa de Pedro
Emanuel, aquela que Mourinho lhe quis dar, foi poder participar de facto no jogo, poder
dizer que foi campeão europeu, muito mais que a recompensa monetária referida na
biografia de Vorge Costa, embora esta, obviamente, também tenha de ser equacionada.
A liderança directa de Mourinho é exercida sobre um grupo de tamanho médio, cerca de 33
pessoas, pelo que Mourinho é, simultaneamente, um gestor do dia a dia e um líder com
visão de futuro, logo, ele é um líder transaccional, conforme acabámos de ver e um líder
transformacional, conforme veremos de seguida. Trata-se, pois, da ideia de Robbins (2002)
quando afirma que a liderança transformacional é construída em cima da transaccional.
Porém, antes de passarmos à análise da liderança transformacional em Mourinho, impõe-se
um esclarecimento. Em grande parte a liderança transformacional confunde-se com a
liderança carismática. Ambas têm efeitos directos e bastante positivos sobre os seguidores,
levando-os a conseguir resultados extraordinários. Ambas as lideranças incutem altos
níveis de confiança e motivação. Ambas se revelam patrocinadoras de uma moral que deve
ser seguida pelos seguidores. Também ambas revelam postura de auto-sacrifício. Em
conclusão, quer a liderança transformacional quer a liderança carismática foca os interesses
da organização, levando os subordinados a contornar os seus interesses pessoais em nome
do objectivo final do grupo. O que as distingue, então? Desde logo a noção de que a
liderança transformacional está, de alguma forma, associada à liderança transaccional.
Existe o pressuposto de que o líder, virado também para o dia a dia e não apenas para uma
visão de futuro, com uma perspectiva de mudança, está mais perto dos seguidores e tem
209
com eles uma relação mais íntima. O segundo elemento distintivo da liderança
transformacional face à carismática reside no facto de que o comportamento do líder
carismático tende a levar a que os seguidores o sigam, a que adoptem a sua visão, mas a
que fiquem por aí; o líder transformacional, por seu lado, tenta desenvolver nos seus
seguidores instintos de liderança, tendendo a torná-los mais autónomos do que o líder
carismático. Assim se compreendem as palavras de Avolio e Bass: ³O líder puramente
carismático pode querer que os seus liderados adoptem a visão de mundo carismática e
ficam por aí. O líder transformacional tenta inculcar em seus seguidores a capacidade de
questionar não apenas as visões já estabelecidas, mas até aquelas colocadas pelo próprio
líder´ (Avolio e Bass in Robbins 2002: 319).
Mourinho, como vimos anteriormente, reúne características de líder carismático, pelo que
não nos vamos agora deter nas características que são comuns a esta e à liderança
transformacional. Abordaremos apenas as características que extravasam a liderança
carismática encontrando apenas fundamento na liderança transformacional. Não
perderemos de vista que este tipo de liderança assenta na liderança transaccional, olhando
por isso para esta temática transaccional/transformacional na sua globalidade.
Segundo o estudo de Kark et al (2003), citado no capítulo 5, são quatro os princípios
adoptados pelos líderes transformacionais e que produzem resultados directos nos seus
subordinados. Os dois primeiros ± motivação inspiracional e influência idealizada ± têm
relação directa com a liderança carismática, e embora com outra terminologia eles foram
analisados acima, precisamente no contexto de liderança carismática de Vosé Mourinho.
Conclui-se então que o comportamento de Vosé Mourinho é caracterizado por aqueles dois
aspectos. Quanto à terceira característica ± a consideração individualizada ±, consideramos
que apenas em parte ela é inserida nos princípios da liderança carismática, estando por isso
mais directamente ligada à liderança transformacional, cuja teoria abaixo aplicaremos à
liderança de Vosé Mourinho. A última característica do líder transformacional ± a
estimulação intelectual ± sai da esfera da liderança carismática, pelo que a vamos também
abordar no contexto da liderança de Vosé Mourinho.
A consideração individualizada visa a motivação, a valorização, o ensino e a transferência
de poder para os subordinados. Só este último aspecto se desvia dos princípios da liderança
carismática, pelo que é, apenas, sobre ele que nos iremos deter. Dividamos, em primeiro
210
lugar, os liderados por Mourinho em dois grupos: a equipa técnica, que é simultaneamente
líder (dos jogadores) e liderada (por Vosé Mourinho), e os jogadores, apenas liderados,
embora aqui possamos considerar os capitães de equipa também como líderes ± no entanto,
não considerámos este facto relevante para o momento da análise. Assim, neste último
grupo, nos jogadores, não há delegação de poderes por definição; a delegação de poderes
para o capitão de equipa durante o jogo não é uma opção do treinador, é uma regra do
próprio jogo, pelo que não pode ser considerada como integrante de qualquer tipo de
liderança. A essência do trabalho dos jogadores não encontra por isso qualquer justificação
para que exista delegação de poderes, ou seja, os jogadores como operacionais de um jogo
não encontram na sua esfera de acção qualquer tarefa que se relacione com a liderança da
organização quer no sentido organizacional quer no sentido operacional. No entanto,
conforme foi referido, eles contribuem para a composição do todo, emitindo opiniões e
transmitindo ideias que poderão ser aproveitadas, sem que no entanto se possa entender
esta acção como delegação de poderes. Quanto ao primeiro grupo, constituído pela equipa
técnica, aí sim, já podemos afirmar que Mourinho delega poderes, sem, contudo, perder de
vista a globalidade da situação. Esta ideia tem de ser assumida, desde logo, quando
partimos da premissa, defendida ao longo desta dissertação, de que a perspectiva da
complexidade serve de base ao trabalho de Mourinho. Assim, como entender a sua base
complexa de trabalho num contexto de uma liderança centrada numa pessoa, em Vosé
Mourinho? Da seguinte forma: Mourinho tem, globalmente, na sua liderança a dominante
da liderança do seu grupo, sem que isso signifique que, em determinado contexto, um seu
qualquer adjunto não possa assumir funções claras de liderança. Esta ideia está
subentendida nas próprias palavras de Mourinho: ³O Rui [Faria] é o meu complemento.
Aliás, nem o chamo de preparador físico, porque é muito mais que isso e esse conceito não
existe no nosso modelo de trabalho, já que, no fundo, ele executa e coordena uma grande
parte da nossa metodologia de treino´ (Mourinho in Oliveira et al (2006: 45-6). Ao deixar
para Rui Faria uma parte da execução e coordenação do trabalho de comando da equipa,
Mourinho está a delegar poderes, não se assumindo como centralizador de competências
ou de poder. É assim com Rui Faria e é assim com a restante equipa técnica já que não
faria sentido, numa perspectiva complexa, que Mourinho ± com ou sem Rui Faria ± fosse a
parte separada do todo, o elemento diferente e diferenciado ± na sua orgânica e na sua
211
operacionalidade ± de um todo composto por partes que compõem e recompõem
constantemente esse mesmo todo.
Por fim, a característica da estimulação intelectual, a qual tem como objectivo levar a que
os subordinados se questionem a si próprios e ao status quo estabelecido. Pretende também
incentivar-se a inovação e a criatividade para uma resolução conjunta dos problemasda
organização. Neste campo importa salientar que Mourinho, por princípio, quer nas suas
equipas jogadores inteligentes o que, de alguma forma, deixa antever a relevância que
assume a capacidade de reflexão individual. Seria, pois, um contra-senso que Mourinho
desse relevância à inteligência dos seus liderados para depois não a utilizar. Sublinha Rui
Faria (capítulo 8): ³[s]ob o ponto de vista mental, direccionado para o jogo, como aquilo
que se faz é adquirir formação mental e comportamental, os jogadores têm de pensar e ser
inteligentes para observar. Daí o Vosé Mourinho dizer que só quer jogadores inteligentes
nas suas equipas´. No entanto, não é menos certo que não se pode ser apenas inteligente
naquilo que o líder pretende e deixar de se ser inteligente nas situações imprevisíveis que
se encontre. Desta forma a inteligência pretendida por Mourinho só pode ser entendida na
globalidade do trabalho e na globalidade daquilo que ele espera, no jogo e fora do jogo, de
cada um dos seus liderados. É assim que Mourinho introduz os seus liderados na
descoberta guiada, um método que pretende levar o jogador a descobrir por ele próprio o
caminho, sob a orientação e as pistas do líder. O caminho, por isso, e como escreveu
Miguel Unamuno (1864-1931), faz-se caminhando, faz-se sentindo, aprendendo e
apreendendo, com cada um a pensar e a sentir numa perspectiva complexa. Mourinho
aceita, pois, o questionamento e o lançamento de ideias para o terreno por parte dos seus
subordinados sem, no entanto, se desviar, pelo menos de uma forma substancial, do
trajecto já traçado. É por isso que ele necessita da inteligência individual ao serviço do
questionar, do interrogar e do duvidar. É também, através da descoberta guiada que
Mourinho incentiva a inovação e a criatividade individuais, ao serviço da resolução dos
problemas do grupo e da organização como um todo.
<1c'. G 
As diversas teorias sobre liderança anteriormente apresentadas ajudam a enquadrar Vosé
Mourinho enquanto líder. Para a eficácia da sua liderança e para os resultados que tem
212
conseguido, elas ajudaram-nos a entender a relevância de muitos dos seus traços de
personalidade, de muitos dos seus comportamentos, da forma como reage a determinadas
situações, de como se posiciona perante os seus liderados e como estes o vêem. Cremos
que a analise acima apresentada, assente na teoria previamente introduzida, nos oferece
uma ideia com algum detalhe da forma como Mourinho exerce a sua liderança e influencia
os seus seguidores, sejam eles os que directamente consigo trabalham, sejam mesmo
aqueles que Mourinho nem conhece mas que por si são influenciados.
Esta secção final divide-se em duas partes. Primeiro destacaremos as principais ideias
fortes resultantes desta investigação, enfatizando no entanto a sua interdependência bem
como o facto de a sua pertinência plena só poder ser captada no âmbito paradigmático da
complexidade. Concluindo o capítulo, apresentamos uma análise global, integrando sob a
perspectiva da complexidade todas as teorias, noções e conceitos que utilizámos para a
análise da liderança e do trabalho de Vosé Mourinho.
<1 !% 9 
Antes de concluirmos este capítulo, apresentando a nossa análise como um todo, queremos
destacar as ideias fortes que, quanto a nós e no âmbito da investigação levada a cabo, mais
marcam e mais se distinguem, dada a sua originalidade e poder, no trabalho de Vosé
Mourinho, especificamente na sua liderança. Abaixo referimos, necessariamente de uma
forma sintética, as noções de globalidade, treino do todo, dominante, emocionalidade,
descoberta guiada, supremacia do grupo, coerência da liderança, líder carismático,
actuação à líder, e líder sempre presente.
Queremos enfatizar a interdependência dos corolários, resultados, ou ideias fortes
apresentadas, bem como o facto de a sua pertinência plena só poder ser captada no âmbito
paradigmático da complexidade. Não suspeitamos apenas, estamos seguros que quem ler
esta secção isoladamente, consciente ou inconscientemente sob uma perspectiva
paradigmática reducionista, não retirará do que abaixo se apresenta os seus significados
plenos e, possivelmente, aqui ou ali poderá mesmo entender o que se escreve de uma
forma menos correcta.
213
/.7%.!%A aproximação pela globalidade é, por ventura, o principal resultado
conceptual da aplicação da perspectiva da complexidade por Vosé Mourinho ao seu
trabalho de líder e de treinador de uma equipa de futebol. Seja qual for o fenómeno que
foque, Mourinho não o isola, foca-o na sua globalidade. No jogador não separa o físico, do
mental, do psicológico, do emocional, do técnico, do táctico, e é por isso que, no
relacionamento que Mourinho tem com os seus jogadores ele não separa a vida
profissional da vida pessoal e social de cada um deles ± interessa-lhe o homem, o todo.
Mesmo as separações acima referidas não devem ser vistas como dicotomias totalizadoras,
nas quais o todo se esgota.
!O treino é encarado como uma parte do processo de jogo e de treino e de
jogo. É uma projecção/representação do real que é o jogo. Mourinho realiza treinos com a
mesma duração dos jogos (90 minutos), tentando simular da forma mais perfeita possível o
esforço humano global que constitui um jogo. Pretende-se privilegiar a concentração, já
que a resistência física acabará por acontecer naturalmente enquadrada num fenómeno
mental, psicológico, emocional mais vasto. O jogador deve jogar no limite porque treina no
limite. Tal como um grande pianista não corre à volta do piano ou faz flexões com as
pontas dos dedos para ser um grande pianista, também um jogador de futebol para ser
grande não deve correr, fazer flexões ou exercícios físicos em geral, mas sim a jogar
futebol, jogar muito e bom futebol.
!%A noção de dominante é um dos conceitos através dos quais Mourinho
operacionaliza a perspectiva da complexidade no seu trabalho. Mourinho não trabalha
aspectos descontextualizados de um ou de outro movimento ou fase de jogo. Ele foca o
todo na sua globalidade. No entanto, por motivos diversos, ele pode trabalhar mais este ou
aquele aspecto. O seu trabalho focará então um aspecto mas sem esquecer que é o todo que
está em acção e que por isso, devidamente enquadrados, muitos outros factores estão
também a ser trabalhados. A actividade de um profissional é uma acção global e o foco
numa dimensão específica tem sempre implicações noutras dimensões; por exemplo, num
treino de dominante táctica Mourinho pode pretender também atingir outros objectivos
secundários, como a motivação, a força mental, etc.
214
'!%.!%A grande liderança baseia-se nas emoções (Goleman et al 2005). Como
se constatou a relação emocional de Mourinho com os seus seguidores é poderosa e
pudémos comprová-la tanto no que respeita aos seus jogadores como aos seus adeptos. Nos
domínios da inteligência emocional Vosé Mourinho é um líder que se conhece a si próprio,
logo, conhece-se enquanto ser emocional o que lhe facilita o conhecimento dos outros e
das suas emoções. É notória a relação de compromisso entre o projecto de futuro que traça
para si e para os seus seguidores; Mourinho é um líder com elevada autoconfiança,
confiando igualmente nos seus seguidores; ele está em sintonia com os seus liderados,
situação que advém da empatia que consegue criar no seio do seu grupo; Mourinho gere
todas estas relações de uma forma inclusiva e global com e entre os membros do seu
grupo, sendo um líder frontal, honesto, em suma, autêntico. Quanto aos estilos da liderança
emocional poderemos dizer que de uma forma geral o estilo visionário é o que melhor
traduz o estilo de liderança de Vosé Mourinho. Entronca aqui ± e mais uma vez ± a
permanente projecção de Mourinho para o futuro e ao fazê-lo ele é constante fonte de
inspiração para os seus seguidores.
 '7%/!%%Os jogadores têm de pensar e ser inteligentes. Essa inteligência deve
ser entendida na globalidade do trabalho e na globalidade daquilo que ele espera, no jogo e
fora do jogo, de cada um dos seus liderados. É assim que Mourinho introduz os seus
liderados na descoberta guiada, um método que pretende levar o jogador a descobrir por
ele próprio o caminho concreto em cada exercício e em cada situação, sob a orientação e as
pistas do líder. No entanto, o caminho já está previamente traçado, por Mourinho. O que se
pretende é, então, que sejam os jogadores, por eles, a descobrir que caminho é esse, a
sentilo,
e assim com ideias e sugestões, a empenharem-se na realização desse trajecto. É desta
forma que em Mourinho todos participam, todos são responsáveis e todos são
responsabilizados. O jogador aprende por ele mesmo, aprende o que descobriu, o que
sentiu, aquilo por que passou; desta forma Mourinho quer garantir a eficácia da
aprendizagem.
215
0%'!%/0Não se pode falar de complexidade em Mourinho sem se falar de
grupo, enquanto todo complexo composto de partes. Decorre desta ideia que em Mourinho
a ³estrela´ só pode ser o grupo, já que o grupo é mais e é fundamentalmente diferente da
soma das partes. Com esta premissa global Mourinho pretende, no interior do seu grupo,
nas partes, uma homogeneidade global: de valores, de métodos, de princípios, de
pensamento e só nesta uniformidade global se poder construir, desenvolver e manter o
grupo. Como todo complexo que é, o seu grupo é um todo coeso, unido e solidário. Mesmo
fora dos campos de futebol o grupo tem de continuar a ser grupo, assente nos seus valores
que não desaparecem ou fazem um intervalo quando não desempenha a sua actividade
profissional. Também se entende, assim, porque é que em Mourinho a parte pode e deve
ser sacrificada pelo todo: não é concebível a evolução da parte sem ser ao mesmo nível e
ao mesmo ritmo da evolução do todo.
cB'!%%!%%A coerência foi outra noção que destacámos em Mourinho. Essa
coerência, enquanto fenómeno que leva o líder a fazer acreditar os seguidores que podem
atingir os seus objectivos, assenta em Mourinho na própria evidência dos factos, ou seja,
em Mourinho as vitórias são uma constante. Os objectivos ambiciosos são genuinamente
assumidos por Mourinho. A coerência assenta em objectivos atingíveis. Só assim se poderá
fazer os seguidores acreditar que é possível atingi-los. Um líder que não acredite
genuinamente no que propõe não pode esperar que os seus seguidores o façam. A
coerência, por isso, passa por objectivos atingíveis e ambiciosos. É tarefa do líder
desenvolver a ambição para que no futuro se venha a ser melhor do que o que hoje se é, e
que aquilo que hoje se faz esteja ligado, consistente e coerentemente, mas também com
plausibilidade, aquilo que se quer para o futuro. Esta dupla dimensão aplicada à
organização ± o que ela é hoje e o que ela quer ser no futuro ± é algo que se constrói, como
referimos, em processos comunicacionais francos e consistentes. Outra faceta importante
da coerência em Mourinho respeita ao relacionamento intra-grupal. Os seguidores
valorizam, apreciam e no seu subconsciente exigem, coerência por parte de quem lidera. É
determinante para a eficácia da liderança que o líder tenha sempre o mesmo tipo de
resposta para situações idênticas com diferentes pessoas. Comportamentos diferentes do
líder para situações similares levam à emergência de sentimentos negativos entre os
liderados.
216
Ac%! &!'Mourinho é claramente um líder carismático. Sempre presente, é um
líder orientado para a realização. Ele determina metas ambiciosas, mas exequíveis e espera
dos seus subordinados a sua realização ao mais alto nível. Por isso os seguidores
identificam-se com ele e desempenham as suas tarefas empenhadamente. Mourinho
desafia, pressiona e motiva conseguindo desta forma, como os resultados ao longo da sua
carreira o demonstram, atingir resultados excepcionais. Na sua acção, a sensibilidade ao
ambiente e às necessidades dos liderados são também suas características enquanto líder
carismático. O líder carismático é também caracterizado por comportamentos não
convencionais, como acima referimos; Mourinho adopta muitas vezes comportamentos
novos, pouco comuns, que não se adaptam às regras pré-estabelecidas. Por fim Mourinho é
o exemplo no seu grupo. Apresenta aos seus seguidores um novo sistema de valores, que
se traduz na insistente mensagem de que o trabalho de um grupo de futebol não termina
quando se abandona o estágio. Mourinho, o líder, exibe a cada momento o código de
conduta que a todos deve guiar, em todas as facetas da sua vida, quer profissional quer
social.
'%JAO líder para o ser, enquanto tal, entre outros aspectos referidos de
diversas formas e em diversos contextos pela investigação, deve também actuar à líder e a
realização deste tipo de comportamentos será tanto mais eficaz quanto mais genuína.
Actuar à líder por isso não é condição suficiente para se liderar, para se ser líder; mas,
quanto a nós, tende a ser uma condição necessária. Este conceito encontrou fundamento no
paper de Andersen (2006) e no seu conceito de acting. Assim, o acting de Mourinho
traduz-se na forma como ele diz o que diz e faz o que faz. Mourinho dirige, dá ordens,
sugere articulações e visões, usa da palavra com eloquência, impõe a sua posição pela sua
competência e autoridade, questiona os outros e questiona-se a ele, etc. Mourinho é um
líder à líder, com uma actuação e uma representação que fazem dele o elemento de
principal influência nos seus seguidores. O líder não é só o que é mas também e
essencialmente o que mostra e o que ± e como ± transmite (o acting). É esta imagem global
que o líder mostra e apresenta aos seus seguidores, a qual os influencia e faz com que estes
o sigam. O conceito à líder, proposto por nós no capítulo 6, mais que um conceito
217
agregador e teórico, é uma noção que visa indicar a experiência de empenho, de dedicação
efectivamente sentida, de envolvimento dos seguidores naquilo que é determinado pelo
próprio envolvimento do líder.
A0 A palavra líder está associada a poder e, conforme a sua
etimologia, significa aquele que está no local, na situação, ³aquele que vai à frente´. A
liderança é um poder formal ± o poder de dar ordens, de decidir, de exigir, etc. ±, mas é
também de um poder informal, não substantivo, que se traduz na capacidade que alguém
tem de influenciar os outros. A liderança de Mourinho fundamenta-se também e com
ênfase substancial nesta segunda forma de poder. Aliás, e face ao que temos vindo a
apresentar, parece podermos afirmar que o seu poder informal é a base do seu poder
formal. Mourinho é um líder ³sempre presente´. Conforme à etimologia da palavra,
Mourinho é o que está lá, onde as coisas acontecem, à frente. Um líder tem de estar sempre
presente, referiu-nos Mourinho. A liderança sente-se nas mais pequenas coisas, nos mais
pequenos detalhes, com um olhar ou com a presença do líder por si só. Sem a presença
constante do líder arrisca-se a perca de qualidades, de desempenho, de eficácia do grupo. A
liderança é algo que tem que estar sempre presente. O líder só o é enquanto está lá, à
frente, agindo à líder, enquanto influencia, determina, motiva, caso contrário, deixará de o
ser.
<1(  &.! '
A perspectiva de fundo que modela esta investigação, como referimos no seu início e a
detalhámos no capítulo 2, é a da complexidade. Trata-se de uma perspectiva paradigmática
e que, por isso, tudo influencia e modela no decorrer deste trabalho. Dito isto, queremos no
final deste capítulo ± e desta dissertação ± acentuar o que procurámos fazer e tentar levar
algo mais longe o nosso esforço de análise. Relembramos que a perspectiva da
complexidade não só não exclui o paradigma reducionista como só pode inteiramente ser
entendida como um desenvolvimento contemporâneo que surge face aos êxitos e às
impossibilidades do próprio reducionismo, que nos últimos quatro séculos tem dominado o
pensamento científico. Sobre o assunto, escreve Weathley (1999):
218
³Scientists in many different disciplines are questioning whether we can adequately
explain how the world works by using the machine imagery emphasized in the
seventeenth century by such great geniuses as Sir Isaac Newton and René Descartes.
This machine imagery leads to the belief that studying the parts is the key to
understanding the whole. Things are taken apart, dissected literally or figuratively (as
we have done with business functions, academic disciplines, areas of specialization,
human body parts), and then put back together without any significant loss. The
assumption is that the more we know about the workings of each piece, the more we
will learn about the whole. Newtonian science is also materialistic ± it seeks to
comprehend the world by focusing on what can be known through our physical senses.
Anything real has visible and tangible physical form. In the history of physics and
even to this day, many scientists keep searching for the basic building blocks» of
matter, the physical forms from which everything originates. One of the first
differences between new science and Newtonianism is a focus on holism rather than
parts. Systems are understood as whole systems, and attention is given to relations ips
wit in t ose networks. Donella Meadows, an ecologist and author, quotes an ancient
Sufi teaching that captures this shift in focus:  You think because you understand one
you must understand two, because one and one makes two. But you must also
understand and»´ (Wheatley 1999: 10).
Nesta investigação analisámos a liderança de Vosé Mourinho sob a perspectiva
paradigmática da complexidade, que na linha de Morin, de Prigogine e outros, foca o todo
sem esquecer as partes e foca as partes sem esquecer o todo. Deste ponto de vista a análise
que efectuámos apelou a teorias estabelecidas em diversos aspectos do fenómeno que
investigámos, nomeadamente as emoções, a dinâmica de grupo, a liderança. Ao longo da
dissertação procurámos fazer referências e apresentar ilustrações várias da relevância da
perspectiva da complexidade no trabalho de Vosé Mourinho. Por exemplo, quando
abordámos a inteligência emocional referimos a forma global e abrangente como
Mourinho gere as relações no seio do seu grupo de trabalho e dele, enquanto líder, com
esse mesmo grupo. Essa relação é marcada pela globalidade, a qual começa logo na própria
língua. Para que as relações sejam facilitadas, para que todos estejam em pé de igualdade, e
em rigor ± e de um ponto de vista comunicacional ±, para que todos participem no mesmo
mundo, para que as conexões do grupo possam emergir natural e vincadamente, conforme
descrevemos, Mourinho decretou que o inglês era a língua oficial do Chelsea: ³Se vocês
[os jogadores] estiverem na minha mesa ao pequeno-almoço e eu só falar português, vocês
219
viram as costas e dizem-me: Que grande (...)! Desculpa, mas nunca mais me volto a
sentar à tua mesa». A língua tem de ser o inglês. Quem não falar fluentemente quando vier,
tem de estudar´ (Mourinho in Barclay 2005: 152-3). É, portanto, logo na língua que
começam as preocupações de Mourinho relativamente às relações, complexas, interactivas,
interrelacionais, que pretende para o seu grupo.
Noutro domínio, no funcionamento do grupo, foquemos por exemplo a questão das
contratações, em 2006, de Ballack e Schevchenko, duas estrelas do futebol mundial. A
contratação destas duas estrelas, só aconteceu porque, entretanto, depois de duas
conquistas do campeonato inglês, o Chelsea já era, ele mesmo, constituído por estrelas.
Numa perspectiva complexa o que define a realidade não são as partes, separadas mas,
antes as conexões entre elas, as suas relações. Em 2006, ao contrário do Chelsea de 2005 e
de 2004, os jogadores da equipa já tinham adquirido o estatuto de estrelas. Dai que a
integração das partes no todo se faça nessa perspectiva: o Chelsea foi dois anos seguidos
campeão de Inglaterra, chegou às meias-finais da Liga dos Campeões, é um clube de topo
mundial. Como? Numa perspectiva complexa, através dos jogadores, da equipa técnica, do
seu líder, da estrutura do clube, que fazem do Chelsea a equipa que ele é e que fazem dos
jogadores as partes que fazem o todo que os faz a ele serem o que são. Percebe-se, então, a
principal finalidade de Mourinho quando constrói e mantém um grupo: a homogeneidade
das partes, a coerência orgânica, a consistência técnica, cultural, profissional, social,
económica, etc. Ou seja, do nosso ponto de vista, as relações entre os elementos, a maneira
como as coisas se fazem, não apenas no plano profissional, mas também social, de
exigência e de ambição, são o alvo de uma liderança sob a perspectiva da complexidade.
Bem como Weathley (1999) refere, num mundo complexo o que existe são processos,
mudanças e relacionamentos; também como Heidegger (1962) intuiu, as relações que as
coisas têm é o que elas em rigor são.
Quando aplicámos ao trabalho de Vosé Mourinho as teorias sobre liderança que
apresentámos no capítulo 5 ficou claro que Mourinho não separa as várias dinâmicas e
objectivos no trabalho da sua equipa. Trabalha sob um princípio de ³dominantes´ e não de
unicidades, ou seja, tem sempre em vista as-àrvores-e-a-floresta. Desta forma se
compreende, por exemplo, que num exercício de dominante táctica exerça ao mesmo
tempo actos puros de liderança. O exemplo que a seguir referimos já foi apresentado no
início deste capítulo e comprova bem o que acabámos de afirmar: ³Eu sabia que o
220
Camacho ± treinador benfiquista ±, sempre que estava a perder, trocava o Zahovic pelo
Sokota. Ora, quando iniciei os treinos fi-lo exactamente no sentido de preparar a minha
equipa contra as investidas atacantes do Sokota´. São palavras de Mourinho que explicam
como motivou a sua equipa para um jogo contra o Benfica. A motivação é um acto de
liderança, no entanto, Mourinho não a tratou num departamento isolado, indiferente ao
todo do seu trabalho. Foi na relva, com os jogadores à roda da bola, que Mourinho
preparou a técnica, a táctica, o físico e a mente da sua equipa. Esta é em definitivo a
perspectiva da complexidade no trabalho de Vosé Mourinho. Todo o seu trabalho está
interligado de uma forma complexa e consegue, assim, conectar, relacionar sem separar as
partes do todo. No exemplo acima apontado o que faria, então, um treinador que olhasse o
seu todo sob uma perspectiva reducionista? Sob a perspectiva tradicional, sob a perspectiva
que todos nós, por defeito, assumimos? Certamente trabalharia nos treinos no campo os
aspectos físico-tácticos da equipa e num departamento diferente trabalharia os aspectos
mentais, como a motivação. No campo trabalharia com a bola, depois, se calhar num
ginásio enfatizaria a preparação física e numa qualquer sala trabalharia os aspectos
mentais. É importante, no entanto, referirmos que mesmos que esse hipotético treinador
trabalhasse todos aqueles aspectos mentais e físicos no treino, ao mesmo tempo que
preparava os aspectos tácticos, isso, em si mesmo, nada de substancial alteraria.
Simplesmente, essa realização de tudo ao mesmo tempo não seria, nem se aproximaria, de
um trabalho assente na perspectiva da complexidade. Tratar-se-ia apenas de uma questão
de simultaneidade, tudo estaria a ser feito ao mesmo tempo, mas não de uma forma
complexa, isto é, naturalmente integrada. Assim, um treino daquele género, fazendo ao
mesmo tempo o que o paradigma reducionista previamente separou, não resulta num treino
complexo. O ponto decisivo, a verdadeira e profunda diferença entre uma e outra
aproximação, é que os exercícios que se fazem, o que concretamente acontece no grupo e
em cada jogador num e noutro tipo de treinos é radicalmente diferente. Os exercícios
assentes na perspectiva da complexidade visam e treinam o todo; acentuam esta ou aquela
dimensão ± dominante, como Mourinho lhes chama ± mas não esquecem nunca que nada
há de puramente táctico, físico, mental ou psicológico; tudo são aspectos da globalidade
que é o homem, tudo é simultaneamente treinado, na sua globalidade e complexidade.
Obviamente, esta aproximação, como o seu nome indica não é fácil, mas complexa...
Trata-se de uma aproximação à aprendizagem, à acção, ao conhecimento, a um fenómeno
221
concreto da acção humana feita pela sua totalidade, na sua globalidade ± e isto é algo de
profundamente inovador, mas, como cremos mostrar nesta dissertação, é também algo
pleno de potencialidades. Nesta perspectiva pode pois ver-se que colocar no mesmo
momento o que antes foi separado não equivale a reconstituir ± ou mesmo construir ± o
todo complexo, tratando-se apenas de fazer ao mesmo tempo algo que previamente foi
dividido. Assim, desta forma, descontextualizada, as conexões, os padrões de actuação, os
hábitos e as rotinas que daí podem advir são necessariamente diferentes dos que resultarão
de uma actuação sob a perspectiva da complexidade. Queremos no entanto deixar claro que
esta nossa análise não se arroga ± nunca o faríamos, nem a perspectiva paradigmática que
seguimos o sugere ± que o treino ou a aprendizagem de uma forma está correcto e de uma
outra está errado.
Este olhar global e globalizante permite-nos repescar outros exemplos referidos acima
neste capítulo. Mourinho pretende a solidariedade entre os seus jogadores. Numa
perspectiva complexa entende que essa solidariedade tem de ser global, dentro e fora do
campo, no profissional e no social. É assim que Mourinho não aceita, estrategicamente na
sua equipa, que em jogo se façam marcações homem-a-homem. Um jogador seu tem de ter
uma perspectiva global sobre o jogo e sobre a sua equipa e não estar apenas preocupado
com um jogador do adversário. O jogo é assim jogado pelo todo e não pela parte. Neste
princípio de jogo as relações são diferentes obrigatoriamente e as conexões também. É
neste contexto que Mourinho é líder e exerce a sua liderança numa teia de conexões em
que nada está separado e tudo está interligado e se correlaciona.
Nestes exemplos, bem como noutros apresentados atrás neste capítulo ou pontualmente
referidos em capítulos precedentes, procurámos colocar a análise do aspecto em causa sob
a perspectiva da complexidade, embora sem forçar demasiado o relacionamento mais ou
menos indirecto desse mesmo aspecto com outros. Tratou-se, quase sempre, de analisar
uma ou mais partes à luz do todo em que elas se integram. O todo em si mesmo é para nós
evidente: a liderança de Vosé Mourinho, o seu percurso notável de sucesso. O desafio é
pois o de como o compreender sem o fragmentar, sem o dividir, sem o decompor em
características mensuráveis, sem o descontextualizar da globalidade que ele é. Assim, em
termos analíticos, pode dizer-se que a análise apresentada nesta dissertação, por um lado,
aplica a perspectiva da complexidade para descrever e compreender o trabalho,
especificamente a liderança, de Vosé Mourinho, nomeadamente nas práticas, nos
222
comportamentos, e nos processos em que ele mesmo, Mourinho, desenvolve de uma forma
ditada ou influenciada por aquela mesma aproximação paradigmática ± nesse contexto
deve entender-se noções e conceitos utilizados por Vosé Mourinho, como por exemplo,
globalidade, dominante, descoberta guiada, que foram nesta investigação detalhados e
enquadrados teoricamente na perspectiva da complexidade. Por outro lado, no entanto,
também a nossa análise, independentemente do fenómeno sobre a qual recai, assume uma
epistemologia da complexidade ± como pode ser constatado desde o capítulo 2 ± o que
significa que o trabalho que aqui fazemos segue uma aproximação complexa, não
positivista e não reducionista. Quer isto dizer que tem sido também um desafio investigar o
trabalho e a liderança aqui em causa sob esta perspectiva, isto é, não desligando as partes
do todo e não descontextualizando, tentando para esse fim utilizar conceitos, noções e
ideias novas. É neste quadro que fizemos apelo ao projecto do mapeamento do genoma
humano (capítulo 2), e ao qual em seguida recorremos de novo numa tentativa de levar
mais longe a análise complexa e contextualizada do fenómeno que estamos a investigar: a
eficácia da liderança de Vosé Mourinho.
Recuperemos então o projecto do genoma humano. Na procura do que é o ser humano, o
projecto do genoma dividiu o homem no mínimo que a ciência, actualmente, consegue
dividir. Assim, dividindo até onde a tecnologia actual o permite, separaram-se as partes
umas das outras, descontextualizando-as. Inspirados no paradigma reducionista positivista,
o modelo matriz da generalidade das ciências exactas, os cientistas chegaram a conclusões
que nos surpreenderam a todos. Esta surpresa é em boa parte um resultado da nossa
tradição cultural científica. Uma tradição que tem sugerido que o conhecimento das partes
leva ao conhecimento do todo; assim, no projecto do genoma humano, a sugestão implícita
era a de que um conhecimento exaustivo das partes constitutivas do ser humano, dos seus
genes, conduziria ao conhecimento do homem como todo. Ora, sem contestar o imenso
avanço científico e cultural que o projecto do genoma humano e os seus resultados
representam para a nossa civilização, nomeadamente no campo da prevenção e de
tratamento de doenças e de problemas vários de saúde, o mapeamento dos genes, por si só,
não nos habilita a uma descrição cabal do tipo de ser que somos, e isto, porque fora da
identificação e descrição das partes que fazem o todo, está ainda um número inimaginável
de relações e de conexões entre essas mesmas partes. Isto, obviamente, em nada pretende
menorizar ou minimizar o projecto do genoma humano; antes pelo contrário. O ponto que
223
queremos enfatizar coloca-se a um nível paradigmático. Quanto a nós, e conforme ao que
Venter et al (2001) sugerem, o projecto do genoma levou o mais longe possível a estratégia
reducionista das ciências exactas. Esse paradigma, que tantos mundos e horizontes abriu
tem, no entanto, os seus limites. Daí, que os resultados do genoma humano nos possam
beneficiar, e muito possivelmente, em diversas áreas da medicina e da saúde, mas, por
outro lado, esses mesmos resultados não podem endereçar a questão mais fundo do que é
homem; ou seja, do porquê de os mesmos genes gerarem seres humanos tão diferentes e de
praticamente os mesmos genes gerarem um ser humano nuns casos, um macaco noutros, e
ainda um ratinho noutros. Para este tipo de perguntas, a perspectiva de fundo para a
procura de uma resposta, como propõe Venter et al (2001), parece ser a da complexidade.
Nesta perspectiva paradigmática, o todo assenta não só nas suas partes mas também nas
relações entre essas mesmas partes. Na complexidade as funções que cada elemento
desempenha no todo a que pertence depende da posição, das interacções, e da história que
faz esse mesmo todo ser como se encontra em cada momento; ou seja, as interacções são
dependentes do contexto histórico, espacial e temporal específico. O todo comanda as
partes que agem conforme ao que esse todo veio a ser ao longo do seu desenvolvimento
histórico-contextual.
Ao olhar as partes, os nossos genes, ficámos a saber que somos iguais entre nós, humanos,
em 99,9 por cento; isto é, qualquer ser humano é 99,9 por cento idêntico a qualquer outro
ser humano. O que é que isto pode querer dizer num mundo onde o que há demais evidente
para todos nós é que cada homem é único, singular e irrepetível? O que isto significa,
obviamente, é que o que é igual é a sequência genética não a pessoa. A pessoa, cada um de
nós, é algo de muito mais complexo do que a sua mera sequência genética. Aliás, as coisas
são literalmente complexas: a diferença genética do ser humano para o rato é de apenas um
por cento, e para o macaco de dois por cento. Porque é que os mesmos genes dão origem a
ser vivos tão distintos? E se olharmos para o arroz, então, a surpresa é ainda maior: o arroz
tem quase o dobro dos nossos genes. Porque é que a quantidade dos genes surge tão
desligada da complexidade comportamental do ser humano e do... arroz? Em conclusão,
geneticamente, somos praticamente iguais, no entanto, as diferenças são bem visíveis a
olho nu. As mais sofisticadas tecnologias praticamente não nos distinguem, no entanto, um
qualquer bebé de um mês já o faz. Porquê? Porque de alguma forma pode dizer-se que o
projecto genoma tira fotografias ao ser humano, esquecendo-se que cada fotografia é parte
224
de um filme; o projecto genoma olhou-nos as nossas partes e enquanto partes, esquecendose
que somos um todo. O que nos distingue, então, uns dos outros? Um homem de outro
homem? O ser humano do macaco? O homem do arroz?! A resposta, com a devida
modéstia da ciência e dos investigadores, está na perspectiva paradigmática da
complexidade, como aliás o paper de Venter et al (2001) admite explicitamente.
O que conta não são apenas os genes, ou antes, o que é determinante não são só os genes.
O que conta, muito e de uma forma complexa, são as relações entre esses mesmos genes ±
são as ligações, as relações entre um e outro gene e um e outro agregado, são as conexões
entre redes de elementos, são os padrões de comportamento biológico, físico,
comportamental, cultural, que fez de cada ser vivo aquilo que ele hoje é. Assim, os nossos
genes não determinam quem somos. O que nos torna diferentes são as ligações entre os
nossos genes, a forma como se relacionam entre si; e essa sim, bastante diferente da do
rato, do macaco, ou do arroz.
Esta observação é global e aponta para a complexidade do comportamento do ser humano.
O paradigma da complexidade olha as partes e vê o todo ao mesmo tempo que olha o todo
e vê as partes. Teremos, pois, de olhar o fenómeno e ver ³o todo que está na parte que está
no todo´; ou seja, entre genes ou entre homens são determinantes as ligações, as relações,
as conexões, os padrões de comportamento.

Aqui chegados, devemos então questionar: o que é que faz da liderança de Mourinho a
liderança que ela é? Que relações, ligações, padrões são aqueles sobre os quais ela se
funda? Porque é que o conjunto dos 23 jogadores do Chelsea não seriam sempre, e sob a
orientação de outro treinador ou noutras circunstâncias, a equipa que eles hoje são? Como
entender uma equipa de futebol composta por um número determinado de jogadores,
treinadores, médicos, massagistas, dirigentes, etc.? Na nossa perspectiva, olhando o todo e
não perdendo de vista as partes enquanto elementos constitutivos desse mesmo todo. Desta
forma entendemos que uma equipa de futebol não são só os seus jogadores, mas também a
forma como eles estão e são juntos: as suas ligações, comportamentos, relacionamentos,
padrões de actuação, etc. Se olharmos apenas as partes chegamos à conclusão que, hoje,
especialmente se nos enquadrarmos na alta competição, a matéria de que é feita uma equipa
de futebol não é muito diferente de um para outro clube.

Os clubes estão em pé de igualdade a nível económico, estão estruturados basicamente


da mesma forma, têm acesso à mesma informação e os seus profissionais são de topo, no
entanto, elas são muito diferentes entre si. É por isso que, frequentemente, ouvimos ou lemos
análises sobre equipas de futebol, que comparam os seus jogadores entre si e concluem que uns
não são melhores do que outros, logo, que as equipas são basicamente de valor igual. Como
explicar, então, que equipas como o Real Madrid, constituídas por jogadores ³galácticos´
expressão adoptada para referir que são os melhores do mundo, de ³outra galáxia´ ± pouco ou
nada consigam ganhar em termos de competição? Onde está então o valor das partes? A mais-
valia encontra-se no todo que é superior e diferente da soma das partes. Porquê?

Porque como afirmou Wheatley (1999), citando Meadows, ³[y]ou think because you
understand one you must understand two because one and one makes two´ (Meadows cit.
Wheatley 1999: 10), no entanto, sob o prisma da complexidade ³you must also understand and´
(Meadows cit. Wheatley 1999: 10). Assim, as partes, em rigor, são também as conexões que se
constituem, e aqui traduzidas pelo and. Esta perspectiva complexa obriganos a olhar as partes e
o and como as suas relações e conexões, e é através destas que se compreende a mais valia do
grupo relativamente às partes, ou seja, dependendo das conexões entre os seus elementos
poderemos construir vários grupos essencialmente diferentes, mesmo que as partes sejam
exactamente as mesmas.

São, pois, as conexões que fazem o todo ser aquilo que ele é, que lhe dão identidade e
que o distingue dos demais. E onde se vai encontrar o valor do grupo, o que é a equipa?
Vustamente aos processos e aos padrões de trabalho, às ligações, às interacções, ao
relacionamento entre os seus elementos, a todos os níveis. Por exemplo, Mourinho treina da
forma mais aproximada ao jogo possível.

Ele treina o próprio comportamento colectivo dos jogadores como tal ± isto é, os
relacionamentos, as ligações, o padrão global de actuação. Mourinho pretende desta forma
criar automatismos, hábitos, repetições que se traduzam no campo; mas não só, aliás como
já vimos acima com o exemplo da não marcação individual para fortalecer a solidariedade
do grupo. Na nossa análise, numa perspectiva complexa, o que distingue a liderança de
Vosé Mourinho, o que faz hoje da sua equipa aquilo que ela é, tal como num ser vivo o são
as relações entre os seus genes e não apenas os seus genes, também no Chelsea são também
essas mesmas relações entre Vosé Mourinho, a sua equipa técnica, os seus 23 jogadores e as
várias estruturas do Chelsea FC. Essas relações podem ser analisadas a diversos níveis.

Parece-nos difícil e mesmo desapropriado qualquer tentativa de listar essas mesmas


relações, conexões ou ligações como se de partes ou elementos se tratassem. Tal aproximação
não se coaduna de facto com a perspectiva paradigmática que seguimos. Podemos, contudo,
conforme à investigação que apresentámos até aqui, sugerir pelo menos duas vias, que temos
utilizado, para analisar o todo que é a eficácia da liderança de Vosé Mourinho.

Numa perspectiva de análise complexa do trabalho de Vosé Mourinho, ou de qualquer


outro comportamento humano, não se deve separar os seus diversos aspectos, isto é, não se deve
entendê-lo através da sua divisão em partes e do estudo isolado destas. Antes pelo contrário, as
partes, os aspectos, as dominantes devem ser estudadas e investigadas enquanto elementos
ligados, relacionados e conectados com o todo que faz delas aquilo que elas são. Do nosso
ponto de vista, mesmo as separações que acima referimos que Vosé Mourinho não faz ± entre o
individual e o grupal, a vida profissional e a vida social dos jogadores, o físico e o mental, o
emocional e o técnico, o técnico e o táctico, o jogo e o treino, etc. ±, não devem ser vistas como
dicotomias totalizadoras, nas quais o todo se esgota.

Cada uma dessas dicotomias é uma µparte¶ que se relacionam com cada uma e todas as
outras dicotomias também elas como µpartes¶ de um todo complexo. Por exemplo, o que se
passa em campo relaciona-se com a vida social de cada um dos jogadores: a disciplina táctica
fortalece uma disciplina global, por isso, também individual e relativa à vida social de cada um
dos jogadores. No início da época de 2003/04 Mourinho desconfiou das consequências do
sucesso atingido pelo FC Porto com a vitória na final da Taça UEFA.

Na época seguinte, com o mesmo grupo, sentiu a necessidade de incutir uma maior
disciplina social nos seus jogadores, ou se quisermos, sentiu que os tinha de controlar mais fora
do campo profissional (Lourenço 2004). A resolução do problema encontrou-a no campo de
futebol. Conforme já descrevemos, nomeadamente no capítulo 1, Mourinho mudou o seu
sistema de jogo de 4x3x3 para 4x4x2, uma forma de jogar que considera mais desequilibrada,
embora igualmente eficiente, e que como tal necessita de maior concentração: ³[a]cho que quem
sentir necessidade de disciplina na sua equipa, em vez de ir à procura dos aspectos disciplinares
nus e crus (a pontualidade, o rigor, etc.) deve ir antes pelo rigor táctico, pela procura de uma
determinada disciplina táctica. É assim que eu consigo uma disciplina global. Lá está, a partir da
minha ideia de jogo e da sua operacionalização, consigo atingir os outros objectivos todos.
Contextualizando todas as minhas preocupações´ (Mourinho in Oliveira et al 2006: 178).

O que faz do ser humano o tipo de ser que ele é, além da sua base genética estável, é a
sua complexidade, são as relações entre os seus genes, entre os seus componentes. Assim,
também numa equipa de profissionais, conforme à argumentação que vimos a apresentar, o que
a faz a equipa que ela é, é o conjunto de relações, de ligações, de conexões entre os elementos
que a compõem. Face à análise que desenvolvemos e ao material que apresentámos nos
capítulos anteriores podemos identificar esses relacionamentos no plano da actividade grupal, da
constituição, do funcionamento e desenvolvimento do grupo; no domínio das emoções, da
empatia e das relações humanas entre os elementos da equipa; no domínio da cultura, isto é do
tipo de padrões mentais, psicológicos, físicos, comportamentais; no plano da aprendizagem do
jogo propriamente dito, em que se procura estabelecer padrões corporizados, fisico-mentais,
intuitivos e instintivos de actuação; e no domínio da liderança de Mourinho. Outros domínios
poderiam ser referidos. No entanto os que citámos, conforme à investigação desenvolvida sobre
fenómenos do género, constituem as principais dimensões de análise.

Vejamos então para cada uma dessas dimensões exemplos da criação, do estabelecimento e
do acentuar de um relacionamento comportamental, de actuação, que faz das equipas de
Mourinho aquilo que elas são e, consequentemente, de cada um dos seus elementos o
elemento que ele é enquanto parte desse mesmo todo.

Assim, no domínio da actividade grupal, veja-se a lógica de formação dos grupos


liderados por Vosé Mourinho sempre que inicia uma nova temporada. No FC Porto criou um
grupo de raiz com uma determinada filosofia: pretendeu jogadores ambiciosos, µpobres¶ e sem
títulos ganhos. Chegou ao Chelsea e no seu terceiro ano já tinha jogadores ricos, ambiciosos e
com títulos ganhos ± tinha estrelas; então, para essa situação, contratou jogadores do mesmo
plano. Mourinho pretendeu, quer num caso quer noutro, a homogeneidade para o seu grupo, a
igualdade das partes, o equilíbrio do todo não permitindo, desta forma, o surgir de relações
desequilibradas, já que todos estavam no mesmo plano.

No domínio das emoções recorde-se o encontro da Taça UEFA, no estádio das Antas,
quando perdeu com o Panathinaikos, na primeira-mão da eliminatória. No final apelou
emocionalmente aos seu jogadores, afirmando-lhes que a eliminatória ainda não estava perdida.
Depois quis fazer uma demonstração global de confiança e disse-lhes que quem não acreditasse
na vitória não iria jogar o encontro da segunda mão. Logo ali Mourinho criou laços, empatias,
comprometimentos entre todos. Tratou-se de muito mais do que motivação; tratou-se de criar
compromissos comuns, de genuinamente criar uma realidade nova, que eles e só eles, jogadores,
poderiam fazer acontecer.

No domínio da cultura, por isso, da forma como tudo o que se pensa e se faz
naturalmente nos surge, devemos realçar a possível existência de uma µcultura Vosé Mourinho¶,
aliás espelhada de alguma forma nas palavras de Schevchenko, antes de chegar ao Chelsea
(capítulo 7): ³tenho um sistema táctico preferido e uma posição preferida para jogar, mas eu sei
que este treinador [Mourinho] conseguiu tudo o que conseguiu porque a equipa está à frente de
tudo, logo, nesta equipa estou disponível para aquilo que ele quiser´. Desta forma Schevchenko
não só caracterizou a cultura Vosé Mourinho como, com aquelas palavras, ele já estava a
integrar-se no grupo, já estava a criar ligações, comprometimentos e a aceitar as regras e os
entendimentos que existiam e que fazem daquele grupo o grupo que ele é.

No plano da aprendizagem individual e colectiva do jogo, do tipo de jogar que se


projecta, Mourinho pretende igualmente criar laços fortes e conexões complexas. Para
Mourinho, o treino é parte do jogo. No treino tenta-se recriar as condições do jogo real, criando
contextos e situações para a concentração intensa, para o treinar nos limites de cada um e
durante o mesmo tempo de um jogo. O treino não incide sobre aspectos separados do jogo:
corrida, resistência, passe, remate, etc. O treino não treina as partes mas antes treina o todo.
Treinando o jogo jogando, como um pianista treina o piano tocando piano, Mourinho visa
preparar a equipa para o jogo, fazendo surgir condições de treino tão semelhantes quanto
possíveis às condições reais, diminuindo assim a imprevisibilidade do jogo. Tudo é feito de
forma integrada, complexa, porque como afirma Rui Faria (capítulo 8) ³[no treino] nada é
separado. Eu apresent[o] a questão como uma dimensão de complexidade porque na realidade
quando vamos para o terreno tem de lá estar tudo´.

O método da descoberta guiada assenta obviamente numa epistemologia de


complexidade. Não se trata apenas de fazer com que os jogadores façam o que Mourinho quer
que eles façam porque o descobriram por eles próprios, e assim de algum modo se sintam
comprometidos com aquilo em que participam, mas trata-se também, e de uma forma
fundamental, do facto de que para nós, seres humanos, o real é aquilo que criamos, é aquilo que
fazemos acontecer e em que participamos (Weathley 1999).

Finalmente, no domínio da liderança a perspectiva da complexidade, ou se quisermos da


liderança complexa, está bem patente através de noções como globalidade ou dominantes. Por
exemplo, se num exercício a dominante for de concentração, situação que tende a colocar-se
com maior acuidade antes dos jogos com equipas mais fracas, em que os jogadores têm por isso
tendência a ³facilitar´, Mourinho coloca-os então, em treino, perante exercícios de maior
dificuldade e até de impossível resolução. Ao obrigar os jogadores a falhar, obriga-os a maiores
índices de concentração, deixando-os menos confiantes. É assim que num treino tecnico-táctico
Mourinho contextualiza actos de liderança como a motivação, a transmissão de confiança, a
concentração dos seus jogadores.

Neste capítulo final da dissertação analisámos a liderança de Vosé Mourinho, sob a


perspectiva paradigmática da complexidade e à luz das teorias introduzidas nos capítulos
anteriores. Tentando manter a coerência e a ligação constante entre os vários aspectos que aqui
fomos tratando, iniciámos este capítulo com a complexidade; passámos em seguida à
problemática das emoções, da empatia e da liderança; depois analisámos o trabalho e Mourinho
à luz da investigação sobre o funcionamento dos grupos; e, por fim focámos a aplicação das
teorias sobre liderança ao trabalho de Mourinho, para virmos agora a concluir este capítulo com
uma final aplicação da perspectiva da complexidade, fazendo um apelo ao projecto do genoma
humano. Cremos que esta investigação contribui, com a devida modéstia, para uma melhor
compreensão do trabalho e da liderança de Vosé Mourinho. Manuel Sérgio afirmou (Lourenço
2003) que ³Mourinho é um treinador novo para um futebol novo´ (Lourenço 2003: prefácio) e
que ficaria à espera que o tempo lhe desse razão (Lourenço 2003). Nos últimos cinco anos,
Mourinho já conquistou uma Taça UEFA, uma Liga dos Campeões, dois campeonatos
portugueses, e dois campeonatos ingleses, para além de inúmeros prémios pessoais. O tempo
tem vindo a dar razão a Manuel Sérgio.

Por nós, afirmamos agora nesta dissertação que Mourinho é diferente e que essa
diferença, paradigmática e metodológica, se relaciona, em parte pelo menos, com o sucesso que
tem atingido. Pela primeira vez um treinador de futebol operacionaliza a perspectiva da
complexidade na sua actividade profissional. Trata-se de um desenvolvimento que rotulamos de
muito importante porque o que aqui está em causa não diz respeito apenas ao futebol. Respeita à
liderança de equipas de profissionais, como nesta investigação procurámos defender. Mas diz
também respeito a muito mais; diz respeito ao Homem, ao que o homem é e ao que o homem
faz no mundo, na sua vida profissional, na sua vida social.

O trabalho de Vosé Mourinho, demonstrando um equilíbrio notável entre a teorização e a


aplicação prática, focando e desenvolvendo-se sobre um vaivém constante entre a teoria e a
prática, aquilo que o actual treinador do Chelsea chama sistematização, quanto a nós constitui-
se já como um marco do percurso do paradigma da complexidade nas ciências sociais e
humanas. Trata-se da perspectiva paradigmática que modelou esta investigação, e que, para
mais do que entender o futebol, a liderança, ou o funcionamento de uma qualquer empresa ou
organização, deve também servir-nos, a nós homens para, vendo a parte que está no todo que
está na parte, olharmos o Homem que está nos homens que estão no Mundo.

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A investigação que apresentámos sobre a liderança no trabalho de Vosé Mourinho, cuja
análise e conclusões substantivas foram apresentadas no Capítulo 9, foi efectuada sob a
perspectiva da complexidade. Neste âmbito ao longo desta dissertação aplicámos ao nosso
objecto de investigação desenvolvimentos teóricos que nos pareceram relevantes, e que nessa
qualidade foram justificados, para o estudo do caso Vosé Mourinho. Seguindo este princípio
referimos, então, além de noções várias da área da complexidade e de algumas aproximações ou
desenvolvimentos que nos pareceram importantes, como o projecto do genoma humano e
teorias de Heidegger, de Prigogine e de Manuel Sérgio, entre outros, diversas outras teorias
sobre os fenómenos da liderança e da dinâmica de grupos, bem como sobre a inteligência
emocional. Para além disto, e porque esta investigação incide sobre um case study concreto,
entrevistámos Vosé Mourinho e o seu principal adjunto, Rui Faria.
No Capítulo 9 desta dissertação apresentámos a nossa análise, em detalhe, ou seja
avaliámos o caso de estudo em causa à luz do corpus teórico introduzido previamente, e
articulámos as conclusões que resultaram da investigação. A liderança de Vosé Mourinho foi
analisada de dois modos diferentes. Primeiro, e utilizando a terminologia do próprio Vosé
Mourinho, focámos dominantes na sua liderança, ou seja, analisámos e confrontamos o seu
trabalho com cada um dos blocos teóricos apresentados anteriormente: aplicámos a perspectiva
da complexidade à acção de Mourinho; justificámos na prática porque é que Mourinho é um
líder emocionalmente inteligente; fizemos também a ponte entre teorias sobre a dinâmica de
grupos e a importância que estes assumem no trabalho conceptual e prático de Vosé Mourinho;
finalmente relacionámos a liderança de Mourinho com diversas das mais relevantes teorias
apresentadas sobre o fenómeno em causa ao longo das últimas seis décadas.

Concluímos o capítulo com uma análise global da liderança de Mourinho e com uma
indicação das principais ideias fortes que resultam desta investigação. Quanto à análise global
tentámos integrar, através de exemplos práticos, os vários aspectos que anteriormente referimos
± a liderança, os grupos, as emoções ± enfatizando as ligações e relações entre eles. Mais do que
não separar procurámos unir e contextualizar toda a nossa análise.

Quisemos olhar a floresta e ver as árvores e ao mesmo tempo que vimos as árvores e
quisemos olhar a floresta. Desta forma apelámos de novo ao projecto do genoma humano,
enquanto exemplo ilustrativo das insuficiências que podem resultar do pensamento reducionista
e, por esta via, dos caminhos que se podem abrir no âmbito de um pensamento complexo.
Finalizámos o Capítulo 9 apresentando os resultados desta investigação que não só nos parecem
ser mais ilustrativos como nos parecem ser também passíveis de ser apresentados, cada
corolário, sinteticamente em poucas linhas. Trata-se, possivelmente, de ideias que marcam esta
investigação, algumas delas são originais de Vosé Mourinho outras são sugestões nossas, outras
ainda são noções consagradas que se aplicam a este caso com especial pertinência.

A análise do Capítulo 9 assenta em boa parte na aplicação de teoria às entrevistas,


apresentadas nos capítulos 7 e 8, a Vosé Mourinho e a Rui Faria. Quisemos confrontar um
conjunto de tópicos importantes para a investigação com dois pontos de vista diferentes: a
perspectiva do líder (Vosé Mourinho) e a perspectiva do liderado (Rui Faria). Seguimos a mesma
metodologia em ambas as entrevistas. Tratou-se de duas entrevistas semiestruturadas com a
mesma sequência temática e os mesmos ângulos de abordagem.

Confrontámos Rui Faria e Vosé Mourinho com questões sobre as teorias da


complexidade, com a liderança e com o funcionamento dos grupos, com a cultura
organizacional, com as emoções, a auto-consciência, a aprendizagem e a interacção inter e intra-
grupal. Estas duas entrevistas devem ser entendidas como discussões exploratórias, que
resultaram em parte do material apresentado nos capítulos teóricos anteriores, visando
contextualizar a análise apresentada no capítulo 9. Esta análise assenta assim,
fundamentalmente, em material apresentado nas entrevistas acima referidas, bem como na
informação do capítulo 1, onde demos a conhecer, em traços gerais, Vosé Mourinho. Nesse
capítulo apresentamos Mourinho numa perspectiva global, através de exemplos marcantes da
sua vida profissional e que espelham, tanto quanto possível, a sua personalidade e modo de
actuação. Procurámos, igualmente através de exemplos, caracterizar a imagem pública de
Mourinho bem como o seu trajecto profissional que o guindou do quase anonimato até à fama a
nível mundial.

Esta análise apresentada no Capítulo 9, focando essencialmente o material apresentado


nos capítulos 1, 7 e 8, é cientificamente suportada pela teoria apresentada nos capítulos 2, 3, 4, 5
e 6, respectivamente sobre complexidade, inteligência emocional, dinâmica de grupos, e
liderança. No capítulo 6, e revendo a nossa base teórica do mais especifico para o mais geral,
procurámos saber o que de mais relevante estava a ser investigado na actualidade sobre
temáticas directamente relevantes para o nosso objecto de estudo: a complexidade e a liderança,
e a complexidade e a inteligência emocional.

No Capítulo 5 fizemos a revisão das teorias sobre liderança. Na nossa exposição


considerámos a relevância para o nosso objecto de investigação bem como a evolução
cronológica dos estudos sobre liderança. Este capítulo culmina com as teorias neocarismáticas,
precedidas pela apresentação das teorias contingenciais, das teorias comportamentais, e das
teorias sobre os traços de personalidade do líder. Tentámos, desta forma, apresentar uma
panorâmica geral da evolução dos estudos sobre liderança desde a década de 40 até aos nossos
dias, ao mesmo tempo que procurámos também aprofundar noções importantes para o nosso
estudo.

No Capítulo 4 focámos a temática dos grupos. Nunca perdendo de vista a perspectiva da


complexidade e as suas relações com a temática em causa, aprofundámos a noção de grupo, a
sua formação, evolução e manutenção. Estes conceitos, à luz de uma perspectiva complexa,
foram integrados e relacionados com outros conceitos da esfera individual, como o de elemento
de um grupo, o de papel num grupo, o de tarefa, entre outros. Para isto socorremo-nos de
diversas teorias apresentadas nas últimas décadas em diversas áreas do conhecimento como a
sociologia ou a teoria organizacional.

No Capítulo 3 estudámos a inteligência emocional. Através dos estudos de Goleman e


também dos de Damásio, referimos que nós, homens, não decidimos, não optamos, não vivemos
sem emoções. Considerámos que esta constatação é altamente pertinente para o estudo da
liderança. Os líderes têm que ser os primeiros a lidar com as emoções, suas e dos outros.
Introduzimos a noção de liderança primal e o conceito de domínio da inteligência emocional e
de estilos de liderança emocional. Iniciámos o capítulo com um caso prático apresentado por
Damásio, o qual ilustra bem a forma como as emoções são essenciais na nossa vida em
sociedade, não podendo levar uma vida normal sem vivermos emocionalmente. Foi desta forma
que, sem esquecer a perspectiva da complexidade que enquadra toda a investigação, abordámos
e cruzámos a teoria com a prática, ou seja, a teoria da inteligência emocional com a actuação de
Vosé Mourinho enquanto líder.

O Capítulo 2 forneceu-nos a base teórica primeira e fundacional de toda a investigação.


A acção profissional de Vosé Mourinho aponta de uma forma muito vincada para as teorias da
complexidade. Terminámos este capítulo referindo Manuel Sérgio e a sua teoria da motricidade
humana, fazendo a ligação daquela ao trabalho de Vosé Mourinho enquanto líder de uma
organização desportiva. Aqui e ali, quando nos pareceu pertinente e acrescentar valor,
socorremo-nos de Heidegger (1962), cuja obra, quanto a nós, pode ser encarada como uma
semente daquilo que mais tarde viria a ser a perspectiva da complexidade na acção humana.
Focámos o projecto do mapeamento do genoma humano visando compreender melhor não só os
limites do reducionismo positivista como também o alcance da complexidade.

No capítulo citamos sobretudo Edgar Morin, e marginalmente pensadores que ajudaram


à fundamentação directa das ideias de Morin, como por exemplo, Prigogine e a sua teoria sobre
os sistemas dissipativos, e Bertalanffy e o pensamento sistémico, entre outros.

Foi desta maneira, complexa, diríamos nós com a devida modéstia, que de uma forma
global e relacional realizámos a investigação que agora apresentamos. Temos esperança que se
trate de um contributo interessante tanto para a compreensão da liderança, um fenómeno tão
relevante para a sociedade de hoje, como para o entendimento em profundidade de um caso que
se constituiu numa das maiores histórias de sucesso da actualidade mundial, a do português Vosé
Mourinho.


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