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CAPÍTULO 00.

Sem Família

Hector Malot

Título original

SANS FAMILLE

HECTOR-HENRI MALOT

nasceu em La Boullle (França) em 20 de Maio


de 1830, fez os seus Primeiros estudos em Ruão,
indo cursar Direito em Paris onde se empregou
nO cartório dum notário, quando completou
O Curso. Em breve abandonou a carreira política
Para se dedicar Inteiramente à literatura. o seu
Primeiro romance, Les Amants, publicado em
1859, obteve um ruidoso êxito. SEguiram-se-lhe
Les EPOux (1865) e Les Enfants (l866), que,
com aquele, vieram formar a trilogia a que deu
o nome de Víctimes d'amour. A sua carreira de
romancista foi larga e brilhante. Publicou entre
Outros os seguintes romances: Romain Kalb
(1869), Madame obernin (1870), La Belle Madame Dionis (1873),
tendo conquistado a juventude com o romance Sans famille
(1878), a que se seguiu En famille (1893). Foi crítico
literário do Jornal Opinion Nationale e gozou em vida de uma
grande popularidade. Em 1896
publicou o seu último livro, Roman de
romans, este de autobiografia, e retirou-se
da vida literária. Escreveu, porém, para publicação
depois da sua morte, o romance petit
MOusse, destinado à sua neta. Faleceu em
POnllaYssous-BOIB a 17 de Julho de 1907.

HECTOR MALOT

SEM Família

Romance

Adaptação de
M. F.

PORTUGáLIA EDITORA
LISBOA

Índice

I. Na aldeia........................11
II. Um pai adoptivo..................19
III. A companhia do Signor Vitalis....28
IV. Deixando a casa..................39
V. A Caminho.........................48
VI. A minha estreia..................54
VII. Aprendo a ler..................65
VIII. Por montes e vales.......................72
IX. Encontro o gigante das botas de sete léguas75
X. Perante a justiça.................81
XI. Em barco.........................92
XII. O meu primeiro amigo...........110
XIII. Enjeitado.....................121
XIV. Neve e lobos...................129
XV. O Senhor Joli-coeur.............146
XVI. Chegada a Paris................158
XVII. As pedreiras de Gentilly......164
XVIII. Lise.........................170
XIX. Jardineiro.....................182
XX. Dispersão da família............189

Segunda parte

I. Para a frente....................207
II. Uma cidade enfarruscada.........226
III. Aprendiz.......................233
IV. A inundação.....................238
V. Na ladeira.......................250
VI. Libertação......................259
VII. Uma lição de música............271
VIII. A vaca do Príncipe............281
IX. A mãe Barberin..................299
X. A antiga e a nova família........313
XI. Barberin........................319
XII. Investigações..................331
XIII. A Família Driscoll............343
XIV. Honrarás pai e mãe-............355
XV. «Capi» prevertido...............364
XVI. As belas roupinhas enganam.....370
XVII. O tio de Artur................376
XVIII. Vésperas de Natal............381
XIx. Os receios de Mattia...........386
XX. Bob.............................403
XXI. O cisne........................412
XXII. As belas roupinhas falaram
verdade..............422
XXIII. Em família...................432

I
CAPÍTULO 01.

NA ALDEIA.

Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como
as outras crianças, pois,- quando eu chorava, uma
mulher me estreitava nos seus braços, embalando-me
com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr.
Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse
beijar, e, quando o vento de Dezembro arrojava a neve contra
os vidros embaciados, aquecia-me os pés ao calor das suas
mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e letra me
recordo ainda.
Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca
ao longo dos caminhos arrelvados ou nas charnecas,
e que era surpreendido pela chuva, corria ela ao meu
encontro e forçava-me a abrigar sob a saia de lã,
que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os
ombros.
,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira
como me falava, pelas suas carícias e pela
forma como olhava para mim, pela doçura, dos
ralhos, eu imaginava que era minha mãe.
Eis como cheguei a saber a verdade:
A minha aldeia, ou, para melhor dizer, a aldeia
onde fui criado-porque eu não tinha terra natal,
como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde
passei a infância, chama-se Chavanon; é uma das
mais pobres do centro da França.
O solo não é profundo, e, para produzir boas
colheitas, seriam precisos adubos ou substâncias que
faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia
na época de que falo) um diminuto número de campos cultivados,
ao passo que se vêem por toda a parte extensas charnecas onde
só crescem urzes e giestas.

Para encontrarmos belas árvores é preciso descermos até


às margens dos ribeiros onde, em nesgas de prado, se
desenvolvem grandes castanheiros e carvalhos vigorosos.
É numa dessas depressões de terreno, à beira dum
regato que vai misturar as suas águas rápidas num
dos afluentes do Loire, que se ergue a casa onde
passei parte da infância.

Até aos oito anos nunca vi nenhum homem


naquela habitação; contudo minha mãe não era
viúva; mas o marido, que exercia a profissão de pedreiro, como
muitos outros operários da região, trabalhava em Paris e não
voltara à terra depois de eu estar em idade de ver e
compreender o que me
rodeava. Apenas de tempos a tempos ele mandava notícias por
qualquer companheiro que regressava à aldeia.
- Sr.a, Barberin, o seu homem continua de saúde;
encarregou-me de lhe dizer que tudo vai bem, e pediu-me que
lhe entregasse o dinheiro; aqui está, quer contá-lo?
E nada mais. A mãe Barberin contentava-se com
isto: o marido estava de saúde, o trabalho rendia,
ele ia ganhando a vida.
Pelo facto de Barberin se haver demorado tantos
anos em Paris, não se depreenda daí que se desse mal
com a mulher. A ausência nada tinha a ver com a
questão de desacordo. Conservava-se longe da companheira
porque o trabalho assim o exigia.
Num dia de Novembro, ao cair da tarde, um desconhecido
parou em frente da cancela do nosso quintal. Eu estava no
limiar da porta da casa,. ocupado em partir achas de lenha.
olhando-me por cima da
paliçada, o homem perguntou-me se era ali que morava a sr.a
Barberin.
Mandei-o entrar.
Impeliu a cancela e, a passos lentos, aproximou-se.

Nunca eu vira criatura tão enlameada: cobriam-no dos pés


à cabeça manchas de terra, umas ainda húmidas, outras já
secas, e percebia-se por tudo
aquilo que andara durante muito tempo por caminhos
Intransitáveis. Ao som das nossas vozes a mãe Barberin
acorreu
e deu de cara com o desconhecido na altura em que
este chegava à porta.
- Trago notícias de Paris -disse ele.
Eram as singelas palavras que mais de uma vez
tínhamos ouvido, mas o tom com que foram pronunciadas em nada
se parecia com aquele que noutras ocasiões acompanhava as
frases: «O seu homem está de saúde; tudo continua bem».
- Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin
juntando as mãos. - Aconteceu uma desgraça a Jerónimo.
-Pois é verdade. Não se aflija, porque ele não
morreu. Mas talvez fique estropiado. Por enquanto
está no hospital. Fui seu companheiro de enfermaria, e, porque
eu voltava para a terra, pediu-me que lhe contasse o sucedido
quando passasse por cá. Não
posso demorar-me, porque tenho ainda de palmilhar
três léguas e já é quase noite.

A mãe Barberin, que desejava saber pormenores,


pediu ao recém-vindo que ficasse para a ceia. Partiria no dia
seguinte de manhã. o homem sentou-se a um canto da
lareira e, enquanto comia, ia contando como o desastre
acontecera: Barberin ficara meio esmagado num desmoronamento
de andaimes; e, pelo facto de terem provado que ele estava
indevidamente no local onde fora ferido, o empreiteiro
recusava pagar-lhe qualquer
indemnização.
- O pobre Barberin tem pouca sorte - acrescentou ele. -
Há para aí malandros que encontrariam logo naquele caso uma
fonte de dinheiro; mas o seu marido não arranjará nada.
E, secando as calças que se tornavam rígidas sob
a camada de lama endurecida, ia repetindo: «pouca
sorte», com uma compaixão tão sincera que dava a
entender que de bom grado se deixaria aleijar só com
a esperança de arranjar assim bons rendimentos.
- Todavia - disse ele, concluindo a narrativa -
aconselhei-o a processar o empreiteiro.
- Um processo! Isso é muito dispendioso!
- Pois sim, mas quando se ganha...
A mãe Barberin quereria ir a Paris, mas era coisa
terrível essa viagem tão longa e tão cara.
Na manhã seguinte fomos à aldeia consultar o
pároco. Este foi de opinião que ela não devia partir
sem saber se seria útil ao marido. Escreveu ao capelão do
hospital onde Barberin estava, e dias depois recebeu uma
resposta em que o outro dizia que a
mãe Barberin não fosse, mas que enviasse certa soma
ao marido porque ele queria pôr uma demanda ao empreiteiro.
Passaram-se dias e semanas, e de tempos a tempos chegavam
cartas pedindo novas remessas de dinheiro; a última, mais
exigente que as anteriores,
dizia que, se as economias estivessem esgotadas, seria
necessário vender a vaca para arranjar a Importância precisa.

Aqueles que viveram na aldeia COM OS Camponeses sabem


quanta miséria e angústia encerram estas três palavras:
«Vender a vaca».
Para o naturalista, a vaca é um animal ruminante; para o
turista, é um complemento de paisagem, quando ergue acima das
ervas o focinho húmido de orvalho; para a criança citadina, é
a origem do
queijo e do café com leite; mas para o camponês
é tudo quanto há de melhor. Por muito pobre que
seja e embora tenha família numerosa, possui a certeza de não
morrer de fome enquanto houver uma vaca no seu estábulo. Com
uma corda ou mesmo com
um simples esparto em volta dos chifres, é levada
por uma criança ao longo dos caminhos cobertos de
ervas, onde a pastagem não pertence a ninguém. E à
noite a família Inteira tem manteiga na sopa e
leite para tomar: o pai e a mãe, os filhos, tanto OS
grandes como os pequenos, todos enfim se sustentam
da vaca.

Vivíamos tão bem da nossa, a mãe Barberin e eu,


que até então eu quase nunca comera carne. Mas
não só nos alimentava como era também uma camarada, uma amiga
- Porque a vaca não é um animal estúpido; pelo contrário, é
cheio de inteligência. ela é fértil em
qualidades morais que se desenvolvem ainda mais se
a habituarmos ao nosso trato.
Em suma, estimávamo-la e ela estimava-nos.
Contudo foi preciso separarmo-nos, pois somente
pela «venda da vaca» podíamos satisfazer Barberin.
Veio um negociante, e, depois de haver examinado
bem a Ruça, depois de a tactear durante muito
tempo, meneando a cabeça com ar descontente, e de
dizer e repetir mais de cem vezes que não lhe convinha, que
era um animal miserável que lhe não daria ganho na revenda,
que não produzia leite, acabou por declarar que ficava com a
vaca, mas só por caridade, para obsequiar a Sr.a Barberin, que
era boa criatura.

A pobre Ruça, como se compreendesse o que se

passava, não quis sair do estábulo e principiou a


mugir.

- Vai por detrás e põe-na cá para fora - disse-me o


negociante de gado, entregando-me o chicote que trazia
consigo.
- Assim, não - objectou a mãe Barberin.
Segurando a vaca pela correia, falou-lhe docemente:
- Vamos, minha bichinha, vamos.
E a Ruça não resistiu mais; uma vez na estrada,
o homem amarrou-a às traseiras do carro e ela lá
foi, bem ou mal, seguindo o cavalo.

Entrámos em casa. Mas ouvíamos ainda os seus


mugidos.

Nunca mais houve leite nem manteiga. De manhã,

um bocado de pão; à tarde, batatas com um pouco


de sal.

Tempos depois da venda da Ruça, chegou a terça-feira de


Entrudo; no ano precedente a mãe Barberin fizera-me nesse
mesmo dia um banquete de coscorões
e sonhos; eu comera-os e apreciara-os tanto, que ela
ficara toda contente. Mas então tínhamos a Ruça
que produzia o leite e a manteiga para adicionarmos
à farinha.

Já não havia Ruça, nem leite, nem manteiga, nem


terça-feira de Carnaval: era isto que eu dizia, muito
tristemente, com os meus botões.

Contudo, a mãe Barberin fez-me uma surpresa; se


bem que não fosse hábito seu recorrer às vizinhas,
pediu a uma delas uma chávena de leite, a outra um
pouco de manteiga, e, quando ao meio-dia entrei em
casa, encontrei-a a deitar farinha num grande tacho
de barro.
- Olha! Farinha! - disse eu, aproximando-me.
- O que se faz com a farinha? - interrogou a
mãe Barberin, olhando para mim.
- Pão.
- E que mais?
- Caldo.
- E além disso?
- Ora... Não sei.
- Sabes, sim; mas como és bom rapazinho não te
atreves a dizê-lo. E sabes que hoje é o dia em que se
fazem os coscorões e os sonhos. Como não há agora
em casa nem manteiga nem leite, não me queres
falar nisso. Não é verdade?
- Oh! mãezinha!
- Como eu já adivinhava tudo isso, arranjei as
coisas de maneira que a terça-feira de Entrudo não
fizesse má figura. Vê o que está no armário.
Abri-o vivamente e vi a xícara de leite, manteiga, ovos e
três maçãs.
- Dá-me os ovos - disse-Me ela - e, enquanto os quebro,
descasca as maçãs.
Cortei a fruta em fatias, e, entretanto, ela deitou
os ovos na farinha e pôs-se a bater tudo, misturando
de tempos a tempos uma colher de leite.
Depois da massa pronta, a mãe Barberin colocou
o tacho sobre as cinzas quentes, e nada mais fizemos
senão esperar pela tarde, pois era à ceia que devíamos comer
os sonhos e os coscorões. Para falar verdade, devo
confessar. que o dia me
pareceu comprido e mais duma vez fui levantar a
roupa que abafava o tacho.
- Tanto queres fazer que a massa não levedará - dizia-me
a mãe Barberin.
Mas afinal levedou bem, e aqui e ali
viam-se bolhas que vinham rebentar à superfície. Daquela
mistura em fermentação exalava-se o cheiro agradável
de ovos e leite.
- Parte umas cavacas - ordenava ela. - Precisamos de lume
bem ateado e sem fumo.
Enfim a candeia foi acesa.
- Deita lenha no lume! - disse-me a mãe Barberin.
Não foi necessário que ela me repetisse as palavras que
eu tão impacientemente esperava. Bem depressa

uma grande chama se elevou na lareira espalhando na cozinha a


sua luz vacilante.
Então a mãe Barberin desprendeu da parede a
frigideira e pô-la ao fogo.
- Dá-me a manteiga.
Tirou um pedacinho na ponta da faca e deitou-a
na frigideira, onde se derreteu crepitando.
No entanto, por muito atento que eu estivesse
àquele som tão simpático, pareceu-me ouvir passos
no quintal.

Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos
pedir lume. Não me preocupei com isso, porque a mãe
Barberin, que mergulhara a colher no tacho, acabara de deitar
na frigideira um pedaço da massa, e não era
altura própria de haver distracções.
Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir,
se abriu bruscamente.
- Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar.
Um homem entrara, e a claridade das chamas,
incidindo nele, mostrou-me que estava vestido com
uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado.

- Temos banquete? Não se incomodem - disse


ele, rudemente.
- Ah! Meu Deus! - exclamou a mãe Barberin,
descansando a caçarola no chão. - Pois és tu, Jerónimo?
E, segurando-me pelo braço, empurrou-me para o
desconhecido, que se detivera no limiar da porta.
- É o teu pai.

CAPÍTULO 02.

UM PAI ADOPTIVO.

APROXIMEI-ME para o beijar por minha vez, mas,


com a ponta do cajado, ele deteve-me.
- Quem é aquele? Disseste-me...
- Sim... mas não era verdade, porque...
- Ah! não era verdade, não era verdade!
Deu alguns passos para mim com o bordão erguido, e,
instintivamente, recuei. Que fizera eu? Em que era
culpado? Porquê aquele acolhimento quando Ia beijá-lo
Não tive tempo de considerar estas perguntas que
se apresentaram ao meu espírito perturbado.
- Vejo que festejam a terça-feira de Carnaval - disse
ele. - Calha bem, porque tenho uma fome levada da breca. Que
há para a ceia?
- tou a fazer coscorões.
- Isso sei eu; mas não vais dar coscorões a um
homem que calcorreou dez léguas.
- Não há mais nada: não te esperávamos.
- O quê?! Nada para a ceia?
Olhou em redor:

- Temos manteiga - disse ele.


Levantou os olhos para o sítio do tecto onde antigamente
se dependurava o toucinho; mas havia muito tempo que o gancho
estava sem nada; da
trave só pendiam enfiadas de alhos e cebolas.
- E aqui estão cebolas - acrescentou, deitando
abaixo algumas com a ponta do bordão. - Quatro ou
cinco cebolas, um bocado de manteiga e teremos uma
bela sopa. Tira daí os teus coscorões e faz um estrugido.
Tirar os coscorões da caçarola A mãe Barberin
não replicou. Pelo contrário, apressou-se a cumprir
as ordens do marido, enquanto este se sentava no
banco, ao canto da lareira.
Não me atrevia a sair do lugar para onde o cajado
me forçara a ir; apoiado contra a mesa, eu contemplava o
homem. Teria talvez uns cinquenta anos, a cara era dura e
desagradável; em consequência da ferida, via-se
obrigado a conservar a cabeça inclinada sobre o
ombro direito e essa disformidade contribuía para o
seu aspecto pouco tranquilizador.
A mãe Barberin substituíra o tacho que estava ao lume.
- É com essa migalha de manteiga que vais fazer
a sopa? - perguntou ele.
E, agarrando no prato onde se encontrava a manteiga,
deitou-a toda na caçarola. Acabara-se a manteiga, já não
havia coscorões.
Em qualquer outra ocasião, ter-me-ia afligido por
semelhante catástrofe, mas já não pensava em
coscorões nem em sonhos, e a única coisa que me
preocupava era que aquele homem, que parecia tão
mau, fosse meu pai.
«Meu pai, meu pai!» repetia eu, maquinalmente.
Quisera beijá-lo e ele repelira-me com a ponta do
cajado. Porquê? A mãe Barberin nunca me afastava
quando eu a ia beijar; pelo contrário, estreitava-me
nos braços e apertava-me de encontro a si.

- Em vez de ficares aí especado - disse-me ele. -


vai buscar os pratos.
Apressei-me a obedecer. A sopa estava pronta.

A mãe Barberin serviu-a.


Sentia-me tão inquieto, tão perturbado, que não
podia comer, e contemplava-o também, mas furtivamente,
baixando os olhos quando encontrava os seus.
- Não costuma comer mais do que isto? - perguntou de
súbito o homem, apontando-me com a colher.
- Ah! sim, come bem.
- Tanto pior; se ao menos não engolisse nada...
Como é natural, eu não tinha desejo de falar, e a
mãe Barberin parecia tão disposta como eu para conversas:
andava cá e lá em volta da mesa, atenta, a
servir o marido.
- Então não tens fome? - perguntou-me.

- Não.
- Pois bem! Vai-te deitar, e trata de dormir já,
senão zango-me.
A mãe Barberin lançou-me uma olhadela em que
me aconselhava a obedecer sem replicar. Mas esta
recomendação era inútil, pois eu não pensava em revoltar-me.
Como na maioria das casas dos camponeses, a
cozinha servia também de quarto de dormir. Junto
da lareira estava tudo o que era preciso para comer:
a mesa, a arca do pão, o aparador; na outra extremidade, o
necessário para dormir; num ângulo, a cama da mãe Barberin; no
canto oposto, a minha,
que se achava numa espécie de armário rodeado
duma cortina de linho vermelho.
Despi-me rapidamente e deitei-me. Mas dormir,
isso era outra coisa.
Não se dorme para obedecer a uma ordem: dorme-se porque
se tem sono e porque se está tranquilo. Ora, eu não tinha
sono e não estava tranquilo.
Sentia-me terrivelmente atormentado e ainda por
cima muito infeliz.

O quê?! Pois aquele homem era meu pai! Então


porque me tratava tão rudemente?
Com a cara voltada para a parede, esforçava-me
por expulsar estas ideias e adormecer conforme me
fora ordenado; mas era impossível; o sono não vinha;
nunca eu me sentira tão desperto.,
Ao fim de certo tempo, ouvi que se aproximavam
da minha cama. Pelos passos lentos, que se arrastavam,
pesados, reconheci logo que não era a mãe Barberin.
Um hálito quente chegou até mim.
- Dormes? - perguntou uma voz sufocada.
Abstive-me de responder, pois as terríveis palavras:
«senão zango-me» soavam ainda aos meus ouvidos.
- Ele dorme - disse a mãe Barberin. - Logo que
se deita, adormece; é o seu costume; podes falar sem
receio de que o petiz te oiça.
Sem dúvida, eu deveria dizer que não dormia,
porém não me atrevia a isso; haviam-me mandado
dormir; eu não dormia, portanto estava a ser desobediente.
- Em que ficou o teu processo? - perguntou a
mãe Barberin.
- Perdido! Os juizes decidiram que eu me colocara
indevidamente debaixo dos andaimes e que o empreiteiro nada me
tinha a pagar.
Dizendo isto, o homem deu um murro sobre a
mesa e pós-se a vociferar, proferindo palavras Insensatas.
- Perdi o processo, - continuou ele daí a pouco, - perdi
o dinheiro, fiquei aleijado e na miséria. Como se não fosse
bastante, ao entrar em casa encontro
uma criança! Explicar-me-ás porque não fizeste o
que te disse?

- Não se abandona assim uma criança que criámos com o


nosso leite e de quem gostamos.
- Não era teu filho.

- E quando eu quis fazer o que tu pedias, precisamente


nessa altura, ele adoeceu.
- Adoeceu?
- gim, caiu de cama. E não era a ocasião própria
para o levar para o asilo, podia morrer, pois não é
verdade?
-E quando ficou curado?
- É que não se curou logo. A seguir àquela doença
veio outra: o pobre pequeno tossia que metia dó.
- Mas depois?
- O tempo foi passando. Se eu esperara até aí,
nada importava esperar mais.
- Que idade tem o garoto agora?
- Oito anos.
- Pois bem! Irá aos oito anos para onde devia
ter ido antes, embora lhe custe mais!
- Ah! Jerónimo, não farás isso.
- Não farei isso! Quem mo impedirá? Imaginas
que poderemos tê-lo sempre connosco?
Houve um momento de silêncio que aproveitei
para respirar; a comoção apertava-me a garganta a
ponto de me sufocar.
Um instante depois, a mãe Barberin replicou:
- Ah! Como Paris te modificou. Não falarias
assim antes de sair daqui.
- Talvez. Mas o certo é que, se Paris me fez mudar,
também me estropiou. Como ganhar a vida agora, a tua e a
minha? Já não temos dinheiro. Vendemos a vaca. E quando não há
que comer, temos de alimentar uma criança que não é nossa?
- É meu filho.
- É tanto teu como meu. Não é filho de camponeses.
Examinei-o durante a ceia: é franzino, magro, de braços e
pernas delgados.
-É o pequeno mais bonito da região.
- Não digo o contrário. Mas não é forte. Quem
consegue ser trabalhador com uns braços daqueles?
Não passa de um menino da cidade, e disso não precisamos aqui.

- Digo-te que é bom rapazinho, esperto como um


rato e de bom coração. Trabalhará para nós.
- Entretanto, trabalhamos para ele, e eu já não
posso fazer nada.
-Se os pais o reclamam, que dirás?
- Os pais! Tem ele, por acaso, pais? Se os tivesse,
tê-lo-iam procurado, e encontrado com certeza, de há
oito anos para cá. Ah! fiz uma bela tolice em imaginar que o
pequeno tinha pais que o reclamariam e nos pagariam o incómodo
de o haver criado. Não
passei dum estúpido, dum ingénuo. Lá porque estava
embrulhado em belas roupas arrendadas, isto não
significava que os pais o procurassem. E talvez morressem.
- E se estão vivos? Se um dia vêm buscá-lo?
Tenho cá na minha ideia que virão.
- Ora, mandamo-los ao asilo. E basta de conversa.
Amanhã levo-o ao administrador. Agora vou cumprimentar o
Francisco. Dentro duma hora estarei de volta.
A porta abriu-se e tornou a fechar-se.
Ele fora-se embora.
Então, soerguendo-me rapidamente, chamei a
mãe Barberin.
- Oh! mamã!
Acorreu para junto da minha cama.
- Vai deixar-me ir para o asilo?
- Não, meu filho, não.
Beijou-me ternamente e estreitou-me nos braços.

Aquela carícia deu-me coragem e as lágrimas deixaram de


correr.
- Então não dormias? - perguntou-me ela docemente.
- Não tenho culpa.
- Não estou a ralhar; nesse caso, ouviste o que
disse Jerónimo?
- Ouvi: não é minha mamã, mas ao menos ele
não é meu pai.

Pronunciei estas últimas palavras em tom diferente das


primeiras, porque, se estava desolado por ela não ser
realmente minha mãe, sentia-me feliz,
quase orgulhoso, em saber que não era filho dele.
A mãe Barberin não pareceu prestar atenção a isso.
- Deveria, talvez, ter-te dito a verdade; mas
considerava-te tanto meu filho, que não tinha coragem de te
declarar que não era a tua verdadeira mãe.
A tua mãe, pobre pequeno, ninguém a conhece, compreendes?
Estará viva, ou morta? Não o sabemos. Uma manhã, em Paris,
quando Jerónimo ia para o trabalho e passou numa rua a que
chamam a avenida Breteuil - rua larga e cheia de árvores -
ouviu o choro duma criança. Parecia partir do vão duma
porta de jardim. Estávamos no mês de Fevereiro;
amanhecia. Jerónimo aproximou-se e viu uma criancinha deitada
na soleira da porta. Olhou em volta para chamar alguém e
distinguiu um homem que saía detrás duma árvore, fugindo. Sem
dúvida esse homem escondera-se para ver se encontravam o
pequenito que ele próprio ali colocara. Jerónimo sentiu-se
atrapalhado. E enquanto pensava no que havia de fazer,
chegaram outros operários e decidiram levar
ao comissariado a criança, que não parava de gritar.
Naturalmente tinha frio. Então despiram-na em
frente do fogão aceso.
«Era um lindo menino de cinco a seis meses, rosado,
forte, gordo; as faixas e as roupas que o envolviam faziam
crer que seria filho de gente rica. Talvez uma criança
roubada, que depois abandonassem». Foi isto que o comissário
explicou. Que destino lhe Iam dar? O comissário escreveu tudo
o que Jerónimo sabia, e também a descrição da criança
juntamente com a das roupinhas que não estavam
marcadas, e a seguir declarou que ia enviá-la ao
asilo dos enjeitados, se ninguém, entre os que ali
haviam comparecido, quisesse tomar conta dela. Os
pais certamente a iam procurar, recompensariam

generosamente aqueles que a tivessem tomado a seu


cargo. Jerónimo avançou então e disse que ficava
com o petiz; entregaram-lho. Eu tinha justamente
um filho da mesma Idade; não havia complicação
para mim em amamentar dois. Foi assim que me tornei tua mãe.
- Oh! mamã!
- Ao fim de três meses, perdi o meu filho, e ainda
te fiquei com mais amizade. Cheguei a esquecer que
não eras realmente nosso filho. Infelizmente Jerónimo não o
esqueceu, e, vendo ao fim de três anos que ninguém te
procurava, ou, pelo menos, que ninguém te encontrava, quis
pôr-te no asilo. Ouviste há pouco por que razão lhe não
obedeci.
- Oh! não quero ir para o asilo! - exclamei,
agarrando-me a ela. - Mãe Barberin, peço-lhe que
não me mande para o asilo!
- Não, meu filho, não irás. Arranjarei as coisas.
Trabalharemos e trabalharás também.
- Farei tudo o que quiser, mas não quero ir para
o asilo.
- Não irás; mas com uma condição, é que vais
dormir Já. Quando ele entrar não deve encontrar-te
acordado.
Depois de me ter beijado, ela voltou-me a cara
para a parede.
Eu bem queria dormir; mas ficara muito abalado
para que pudesse encontrar facilmente a calma e o
sono.
Assim, a mãe Barberin, tão boa, tão meiga para
mim, não era a minha verdadeira mãe! Que seria:
então uma mãe autêntica? Melhor, mais meiga
ainda? oh! não achava possível!
Porém, o que eu compreendia, o que sentia, era
que um pai teria sido menos severo do que Barberin,
e não me olharia com aqueles olhos duros e de cajado erguido.
Queria ele mandar-me para o asilo; a mãe Barberin poderia
Impedi-lo?

Havia na aldeia dois rapazes a quem chamavam


os «pequenos do asilo»; usavam uma rodela de
chumbo ao pescoço, com um número; andavam mal
vestidos e sujos; troçavam deles; as outras crianças
perseguiam-nos muitas vezes como quem persegue
um cão vadio, para se divertir.

Ah! Eu não queria ser como aqueles pequenos;


não queria ter um número ao pescoço, não queria

que corressem atrás de mim, gritando: «Vai para o

asilo! Vai para o asilo!».


Esta Ideia dava-me calafrios e fazia-me bater os
dentes, E não dormia.
Barberin Ia voltar.
Felizmente, não regressou tão depressa como
dissera, e o sono chegou antes dele.
CAPÍTULO 03.

A COMPANHIA DO SIgnOR VITALI

DURANTE a manhã, Barberin nada me disse, e eu


principiava a acreditar que fora abandonado o
projecto de me mandarem para o asilo.
Mas, quando soou meio-dia, Barberin ordenou-me
que pusesse o barrete e o seguisse.
Assustado, volvi os olhos para a mãe Barberin a
fim de lhe implorar socorro; disfarçadamente fez-me sinal de
que devia obedecer; ao mesmo tempo um gesto da sua mão
tranquilizou-me; não havia
nada a temer. Então, sem replicar, pus-me a caminho atrás de
Barberin.
Da nossa casa à aldeia a distância é longa; é preciso
andar mais de uma hora. Passou-se essa hora sem que ele me
dirigisse uma única palavra.
Aonde me levaria?
Esta pergunta inquietava-me, apesar do gesto
animador da mãe Barberin; e, para escapar a um
perigo que eu pressentia sem o conhecer, pensava
em fugir.

Com este fim, tratei de retardar o passo; quando


estivesse bastante afastado, atirar-me-ia para um
fosso, e o homem não poderia apanhar-me.
De começo, Barberin limitou-se a dizer-me que
andasse mais depressa; mas, depois, adivinhou, sem
dúvida, as minhas intenções e agarrou-me pelo pulso,
Foi assim que entrámos na aldeia.
Quando atravessámos a rua, em frente dum café,
um sujeito que estava à porta chamou Barberin e

convidou-o a entrar.
Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua
frente, e, uma vez dentro do estabelecimento, fechou

a porta.
Senti-me aliviado; o café não me parecia um
lugar perigoso; e, além disso, sempre era uma casa
onde há muito tempo eu tinha desejos de penetrar.
O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que
poderia ser aquilo?
Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta!
Vira gente sair dali, de cara avermelhada e pernas
trémulas; ao passar em frente da porta ouvira, em muitas
ocasiões, gritos e canções que faziam
estremecer os vidros.
Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás
Daquelas co rtinas vermelhas?
Ia sabê-lo.
Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do
café com o dono, que o convidara a entrar, fui sentar-me perto
do fogão e olhei em redor. No canto oposto àquele que
ocupava, achava-se
um velho alto de barba branca, vestido de forma tão
estranha como eu nunca vira.
Sobre os cabelos, que tombavam em compridas
madeixas até aos ombros, tinha um chapéu de feltro
cinzento, de copa alta e guarnecido de penas verdes
e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja
lã estava para o lado de dentro. Esse abafo não tinha

mangas, e, por dois buracos saiam-lhe os braços cobertos de


veludo, outrora azul. Polainas de lã subiam-lhe até aos
joelhos, e eram apertadas com fitas vermelhas que se
entrecruzavam em volta das pernas.
Estava reclinado na cadeira, com o queixo apoiado
na mão direita; o cotovelo descansava sobre o joelho
dobrado.
Junto dele três cães aqueciam-se, imóveis; um
cão de água, branco, outro negro e uma cadelinha
cor de cinza, de ar inteligente e meigo; o cão branco
tinha na cabeça um velho boné de polícia preso sob
o focinho por uma tira de coiro.
Enquanto eu examinava o velho com espanto e
curiosidade, Barberin e o dono do café conversavam
a meia voz e ouvi que falavam de mim.
Barberin contava que viera à aldeia para me
levar ao administrador, a fim de que este pedisse
aos asilos que pagassem uma pensão para ele continuar a ter-me
em casa.
Fora Isto então que a mãe Barberin conseguira
obter do marido; compreendi logo que, se Barberin
achasse vantagem em conservar-me junto de si, eu já
nada tinha a recear.
O velho, disfarçadamente, escutava também o que
os outros diziam; de súbito, apontando-me com a

mão direita e dirigindo-se a Barberin, perguntou com


acento estrangeiro:
- É aquele petiz que o atrapalha?
- Ele próprio.
- E Imagina que a administração dos asilos do
seu departamento lhe vai pagar as mensalidades da
alimentação?
- Ora essa! Visto que ele não tem pais e está a
meu cargo, parece-me ser justo que alguém pague as
despesas.
- Pois bem! Creio que jamais obterá a pensão
que deseja.

- Então, irá para o asilo; não há nenhuma lei


que me obrigue a ficar com ele na minha casa se eu
não quiser.
- Talvez houvesse um meio de se livrar já do
rapaz - disse o velho, depois dum momento de reflexão - e até
de ganhar algum dinheiro.
- Se o senhor me der esse meio, pago-lhe de boa
vontade uma garrafa.
- Encomende a garrafa, e o negócio está feito.
- Palavra?
O velho, deixando a cadeira, veio sentar-se em
frente de Barberin. Coisa esquisita, no momento em
que se levantou, a pele de carneiro ergueu-se com
um movimento incompreensível: era de crer que ele
tivesse um cão sob o braço esquerdo.
- O que você deseja - disse o velhote. - é que
esta criança não se alimente mais tempo à sua custa,
não é verdade? Ou então, que lhe paguem, não é assim?
- Exactamente; porque...
- Oh! o motivo não me Interessa, não preciso
conhecé-lo; basta-me saber que não quer o garoto;
se é isto, dê-mo, tomo conta dele.
- Dá-lo!
- Ora essa! não quer desembaraçar-se do petiz?
- Dar-lhe uma criança como aquela, um pequeno
tão perfeito, pois é uma perfeita criança, repare.
- Já reparei.
- Remi! Vem cá.
Aproximei-me da mesa, trémulo.
- Vamos, não tenhas medo, menino - disse o velho.
- Olhem para ele - continuou Barberin.
- Não digo que seJ a uma criança feia. Se fosse
feia eu não a queria, os monstros não são a minha
Especialidade.
- Ah! se fosse um monstro de duas cabeças, ou
ao menos um anão... Não pensaria em mandá-lo

para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se
pode tirar proveito dele, explorando a própria monstruosidade.
Mas este não é anão nem monstro; tem uma figura como toda a
gente e portanto não serve para nada.
- Serve para trabalhar.
- É muito débil para isso.
- Ele, débil! Ora adeus! Repare, veja as pernas:
já viu algumas mais direitas?
E Barberin arregaçou-me as calças.
- Excessivamente delgadas - replicou o velho.
- E os braços? - continuou Barberin.
- São como as pernas; poderá resistir a uma vida
normal, mas não resistirá à fadiga e à miséria.
- Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o.
O velho passou-me a mão descarnada nas pernas,
tacteando-as, sacudindo a cabeça e fazendo uma
careta.

Eu assistira já a uma cena semelhante quando o


negociante de gado fora comprar a nossa vaca. Examinara-a
também e apalpara-a. Meneara também a cabeça e fizera uma
careta de desdém: no entanto,
comprara-a e levara-a consigo.
O velho iria comprar-me e levar-me? Ah! mãe
Barberin, mãe Barberin!
Desgraçadamente ela não estava ali para me
proteger.
- É uma criança como há muitas - disse o velho-, - eis a
verdade; mas uma criança das cidades: por isso há a certeza de
que nunca servirá para os trabalhos do campo. Ponha-o em
frente da charrua, a conduzir os bois, verá quanto tempo ele
durará.
- Mas repare bem no garoto!
Eu estava na extremidade da mesa entre Barberin e o
velho, que me empurravam ora para um, ora para outro.

- Enfim - disse o estrangeiro -, fico com ele tal


qual é. Porém, bem entendido, não o compro, alugo-o.
Dou-lhe vinte francos por ano.
- Vinte francos!
- É um bom preço, e pago adiantado; recebe
quatro belas moedas de cem soldos e livra-se do
pequeno.
- Mas, se fico com ele, o asilo pagar-me-á mais
de dez francos por mês.
- Sete ou oito, eu conheço os preços, e ainda por
cima terá de o alimentar.
- Ele trabalhará.
- Se o achasse capaz de trabalhar, não quereria
desembaraçar-se do rapaz.
- Em qualquer caso, sempre teria os dez francos.
- E se o asilo, em vez de o deixar consigo, o entregar a
outro, você não terá absolutamente nada; enquanto que comigo
não arrisca coisa nenhuma: o seu único incómodo é estender a
mão.
Vasculhou na algibeira e sacou uma bolsa de coiro,
da qual tirou quatro moedas de prata que pôs sobre
a mesa, fazendo-as tinir.
- Mas imagine - exclamou Barberin, - que os
pais do pequeno aparecem de um dia para outro!
- Que importa?
- Seria proveitoso para aqueles que o tivessem
criado; se eu não contasse com isso, nunca me encarregaria
dele.
Estas palavras de Barberin: «se eu não contasse
com os pais, nunca me encarregaria dele», fizeram-me
detestá-lo mais.
- E é Justamente porque já não conta com isso
- disse o velho - que o quer pôr na rua. E a quem
se dirigirão esses pais, se chegarem a aparecer? A si,
não é verdade, e não a mim, que não conhecem?
- Pode acontecer que o senhor os encontre.
- Nesse caso, convenhamos que, se um dia aparecerem os
pais, dividiremos o lucro, e lhe dou mais trinta francos.

- Ponha quarenta.
- Não, pelos serviços que me prestará, Isso não é
possível.
- E que espécie de serviços quer o senhor que ele
lhe faça?
O Interpelado olhou para Barberin com ar finório,
e, esvaziando o-copo aos golinhos, disse:
- Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às
vezes, depois de um dia de fadiga, quando o tempo
está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz distrair-me-á.
- Lá para esse fim, as pernas serão bastante
sólidas.
- Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar
e caminhar; em suma, fará parte da companhia do
signor Vitalis.
- E onde está essa companhia?
- O signor Vitalis sou eu, como já deve ter calculado; os
actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los.
Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou
num animal estranho que tinha sob o braço esquerdo,
de encontro a si.
Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente
a pele de carneiro; mas não era um eãozinho como
eu pensara.
Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu
via pela primeira vez e para quem olhava com estupefacção.
Estava vestido com uma blusa vermelha debruada
de galão dourado, mas os braços e as pernas mostravam-se nus,
pois pareciam realmente braços e pernas o que ele tinha, e não
patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada. Possuía
uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face
curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas
e lábios amarelos; mas o que mais me impressionou
foram os olhos, muito próximos um do outro, duma
grande mobilidade, brilhantes como espelhos.

- Ah! Que feio macaco! - exclamou Barberin.


Estas palavras dissiparam-me o espanto, pois, se
eu nunca vira macacos, ouvira já falar deles; não
era pois uma criancinha preta que tinha na minha
presença, mas um macaco.
- Eis o primeiro actor da minha companhia - disse Vitalis
- o sr. Joli-Coeur. Joli-Coeur, meu amigo, cumprimenta a
sociedade.
Joli-Coeur levou a mão fechada aos lábios e atirou-nos um
beijo.
- Agora - continuou Vitalis, designando o cão
branco - aqui está outro: o signor Capi vai ter a
honra de apresentar os seus amigos aos estimáveis
presentes.
A esta ordem, o cão, que até aí não fizera o mais
pequeno movimento, levantou-se vivamente e, erguendo-se nas
patas traseiras, cruzou as da frente sobre o peito e
cumprimentou o dono, de tal maneira
que o boné de polícia roçou o solo.
Uma vez cumprido este dever de cortesia, voltou-se para
os companheiros, e, com uma pata, enquanto a outra se
conservava sobre o peito, fez sinal para
que se aproximassem.
Os outros dois cães, que tinham os olhos fitos
naquele, levantaram-se logo, e, com as patas dianteiras
unidas, como se fossem pessoas de mão dada, avançaram
gravemente uns seis passos, depois recuaram e saudaram os
circunstantes.
- Aquele a que chamo Capi - continuou Vitalis
- ou Capitano em italiano, é o chefe dos cães; é ele
que, como mais inteligente, transmite as minhas
ordens. Este jovem elegante de pêlo negro é o signor
Zerbino, o que significa garboso, nome que ele merece em
absoluto. Quanto a esta criaturinha de ar modesto, é a signora
Dolce, uma encantadora inglesa
que não desmerece o seu doce nome. É com estas
personagens, a diversos títulos notáveis, que tenho
a fortuna de percorrer o mundo, ganhando a vida
mais ou menos bem ao sabor da sorte. Capi!

O cão branco cruzou as patas.


- Capi, venha cá, meu amigo, e seja bastante
amável, para dizer que horas são a este rapazinho,
que o observa com olhos tão redondos como bolas.
Capi descruzou as patas, aproximou-se do dono,
afastou a pele de carneiro, vasculhou a algibeira do
colete, tirou dali um grande relógio de prata, olhou
para o mostrador e ladrou duas vezes distintamente.
e, a seguir aos dois latidos muito acentuados, fortes e
nítidos, soltou outros três mais fracos.
- Muito bem - disse Vitalis. - agradeço-lhe, signor
Capi. E, agora, peço-lhe que convide a signora Dolce
a nos dar o prazer de dançar um bocadinho na corda.
Capi procurou outra vez na algibeira do casaco do
dono e sacou dali uma corda. Fez sinal a Zerbino e
este colocou-se rapidamente na sua frente. Então
Capi atirou-lhe uma ponta da corda e os dois puseram-se
gravemente a fazê-la girar.
Quando o movimento se tornou regular, Dolce
precipitou-se no círculo e saltou ligeiramente, conservando os
belos olhos meigos fitos nos do dono.
- Como vêem - disse este. - os meus alunos são
inteligentes; porém, a inteligência só é apreciada em
todo o seu valor pela comparação. Aí está porque
introduzo o garoto na companhia; fará o papel de
estúpido, e a inteligência dos outros actores será mais
apreciada.
- Oh! Para fazer de estúpido... - interrompeu
Barberin.
- É preciso não o ser na realidade - continuou
Vitalis. - E já vamos ver se ele é ou não inteligente.
Se é, compreenderá que acompanhando o signor Vitalis terá a
dita de viajar, de percorrer a França e outros países, de
levar uma vida livre. Se não é inteligente, chorará, gritará,
e, como o signor não gosta de crianças más, não o levará
consigo. Então a criança má irá para o asilo, onde é preciso
trabalhar e comer pouco.

Eu tinha inteligência suficiente para compreender estas


palavras, mas da compreensão à execução havia uma terrível
distância a transpor.
Evidentemente que os alunos do signor Vitalis
eram muito engraçados, e devia ser muito divertido
viajar com eles; mas para isso seria necessário deixar
a mãe Barberin.
É verdade que, se eu recusasse, talvez não ficasse
com ela, talvez me mandassem para o asilo.
Como ficasse perturbado, de lágrimas nos olhos,
Vitalis bateu-me docemente na cara com a ponta dos dedos.
- Vamos - disse ele-, o garoto compreende, visto
que não grita; a razão entrará nesta cabecinha, e
amanhã... Agora - continuou - voltemos ao negócio.
- Não, quarenta.
Entabulou-se uma discussão. Vitalis, porém,
interrompeu-a:
- O pequeno deve estar maçado aqui. Que vá
passear e brincar para o quintal da estalagem.
Ao mesmo tempo fez um sinal a Barberin.
- Sim - disse este-, vai para o quintal, e não
voltes sem que eu te chame, senão zango-me.
Só me restava ir, sem replicar.
Fui então para fora, mas sem desejos de brincar.
Sentei-me numa pedra e pus-me a reflectir.
Era a minha sorte que se decidia nesse instante.
Qual o meu destino? o frio e a angústia faziam-me
tiritar.
A discussão entre Vitalis e Barberin durou muito
tempo, pois decorreu mais de uma hora sem que
nenhum deles aparecesse.
Por fim Barberin surgiu, sózinho. Viria buscar-me
para me entregar a Vitalis?
- Vamos - disse-me ele. - Voltemos para casa.
A casa! Então eu não abandonaria a mãe Barberin?
Quereria interrogá-lo, mas não me atrevia, pois
ele parecia estar de muito mau-humor.

O percurso fez-se silenciosamente.


Mas, uns dez minutos antes de chegarmos, Barberin, que
caminhava à frente, parou.
- Olha - disse-me agarrando-me rudemente
pela orelha-, - se contas uma única palavra do que
ouviste hoje, pagá-lo-ás caro; tem cautela.

CAPÍTULO 04.
DEIXANDO A CASA.

- ENTÃO? - perguntou a mãe Barberin quando entrámos.- Que


disse o administrador?
- Não o vimos.
- O quê?! Não o viste?
- Não, encontrei uns amigos no café Notre-Dame,
e quando saímos era já muito tarde; voltaremos
amanhã.
Assim, Barberin havia renunciado ao seu negócio
com o homem dos cães...
Todavia, apesar das ameaças, falaria das minhas
incertezas à mãe Barberin, se me tivesse podido encontrar
sozinho com ela; mas em toda a noite Barberin não saiu, e eu
deitei-me sem que se me apresentasse a ocasião esperada.
Adormeci dizendo de mim para mim que ficariam
as confidências para o dia seguinte.
Mas, de manhã, quando me levantei, não vi a mãe
Barberin.
Como eu a procurasse em redor da casa, Barberin
perguntou o que é que queria.

- A mamã?
- Foi à aldeia e só regressará depois do meio dia.
Sem saber porquê, aquela ausência inquietou-me.
Ela não me dissera na véspera que ia sair. Por que
razão não esperara para nos acompanhar, visto que
devíamos ir à aldeia de tarde?
O coração oprimiu-se-me com um vago receio.
Barberin contemplava-me com ar pouco tranquilizador;
querendo escapar a esse olhar, fugi para o quintal.
O quintal, que não era grande, tinha para nós um
valor considerável, pois, à excepção do trigo, fornecia-nos
quase todo o alimento: batatas, favas, couves, nabos,
cenouras. Não havia um bocado de terreno
perdido. Mas a mãe Barberin reservara-me um cantinho no qual
eu reunira uma infinidade de plantas, arrancadas, de manhã, na
orla dos bosques, ou ao
longo das sebes, enquanto a vaca pastava, e metidas
depois à terra, no meu jardim.
Estava ajoelhado no chão, quando ouvi uma voz
rude chamar por mim.
Era Barberin.
Apressei-me a entrar em casa.
Qual não foi a minha surpresa ao ver, em frente
da chaminé, Vitalis e os cães!
Instantâneamente compreendi o que queria Barberin de mim:
Vitalis vinha buscar-me, e, para que a mãe Barberin não
pudesse defender-me, Barberin
mandara-a de manhã à aldeia.
Sentindo que não tinha a esperar socorro nem
piedade de Barberin, corri para Vitalis:
- Oh! meu senhor - exclamei eu-, por amor de
Deus não me leve consigo!
Desatei em soluços.
- Vamos, meu rapaz - disse-me ele com brandura. - não
serás infeliz comigo. Não bato em crianças, e além disso,
terás a companhia dos meus actorzinhos que são muito
divertidos. De que podes ter saudades?

- Oh! meu senhor - exclamei eu, - por amor de Deus


não ne leve consigo! Sou filho Da mãe Barberin!
, Em qualquer caso, não ficarás aqui - objectou
Barberin, agarrando-me brutalmente pela orelha. - Ou o asilo
ou aquele senhor; escolhe!
- Não! A mãe Barberin!
- Ah! Já me aborreces - exclamou Barberin, encolerizado.
- Se é preciso pôr-te daqui para fora à pancada, é o que vou
fazer.
- O pequeno tem pena de deixar a sua mãe Barberin - disse
Vitalis. - Não lhe deve bater por Isso; tem sentimentos, é bom
sinal.
- Se o senhor o lastima, ele vai berrar mais alto.
agora, vamos aos negócios.
E Vitalis poisou na mesa oito moedas de cinco
francos que Barberin, num Instante, fez desaparecer
na algibeira.
- Onde está a trouxa? - perguntou Vitalis.
- Ei-la - respondeu Barberin mostrando-lhe un
lenço de algodão azul, sarapintado, amarrado pelas
quatro pontas.
Vitalis desfez os nós e olhou para o conteúdo do
lenço; encontravam-se ali duas das minhas camisas,
e umas calças de linho.
- Não era isto que tínhamos combinado - observou Vitalis.
- Devia dar"me as roupas dele, e eu só vejo trapos.
-O pequeno não tem outras.
- Se eu o interrogasse, estou certo de que diria
que isso é falso. Mas não quero discutir este assunto.
Não tenho tempo. É preciso pormo-nos a caminho.
Vamos, meu rapaz. Como se chama ele?
- Remi.
- Vamos,,,Remi, segura na tua trouxa, e passa
para a frente. Capi marcha!
Estendi as mãos para o velho, depois para Barberin, porém
os dois voltaram a cabeça, e senti que Vitalis me agarrava
pelo pulso.
Foi necessário partir.

Ah! pareceu-me, quando transpus o limiar da


porta, que deixava naquela casa um bocado de mim
próprio.
Olhei em redor; os meus olhos, obscurecidos pelas
lágrimas, não viram ninguém a quem pedir socorro;
ninguém na estrada, ninguém ali perto.
Principiei a chamar.
-Mamã, mãe Barberin!
Nem um único som respondeu à minha voz, e ela
extinguiu-se num soluço.
Tive de seguir Vitalis, que não me largara o pulso.
- Boa viagem! - gritou Barberin.
E entrou em casa.
Ai de mim! tudo acabara.
- Vamos, Remi, caminhemos, meu filho - disse
Vitalis.
Então comecei a andar ao lado dele. Felizmente
não apressou o passo, e creio até que o regulou pelo
meu.
O caminho que seguíamos elevava-se em ziguezagues; a cada
volta, distinguia a casa da mãe Barberin, que ia diminuindo,
diminuindo. Bastantes vezes fizera eu este percurso e sabia
que, no último
desvio, veria ainda a casa.
Por sorte a subida era extensa; contudo, tanto
andámos que chegámos ao alto.
Vitalis não me largara o pulso.
- Não quer descansar um bocadinho? - sugeri eu.
- De boa vontade, meu rapaz.
Pela primeira vez, descerrou a mão.
Mas, ao mesmo tempo, vi o seu olhar dirigir-se
para Capi, e fazer um sinal que este compreendeu.
Imediatamente, como um cão de pastor, Capi
abandonou a chefia dos companheiros e veio colocar-se atrás de
mim. Esta manobra acabou de me dar a perceber o que
o sinal já me havia indicado: Capi era o meu guarda;
se eu fizesse um movimento para fugir, ele deveria
saltar-me às pernas.

Fui sentar-me no parapeito arrelvado e Capi seguiu-me de


perto. Uma vez ali instalado, procurei, com os olhos
enevoados de lágrimas, a casa da mãe Barberin. Abaixo de
nós, ficava a encosta que acabáramos
de subir, dividida por prados e bosques, e, no fundo,
erguia-se, isolada, a casa, onde eu fora criado.
Apesar da distância e da altura a que nos achávamos, as
coisas conservavam as formas nítidas e distintas, apenas
diminuídas. Tudo estava no lugar do costume: o meu
carrinho
de mão, a minha charrua feita dum ramo torneado,
a gaiola onde eu criava coelhos, quando possuíamos
coelhos, e o meu jardim, o meu querido jardim!
Quem veria florir as minhas pobres flores? Quem
comeria os meus topinambos? Sem dúvida Barberin,
o cruel Barberin.
Mais um passo na estrada e tudo desapareceria
para sempre.
De súbito, no caminho que da aldeia vai ter a
casa, distingui ao longe uma touca branca. Desapareceu por
trás dum renque de árvores, depois tornou a aparecer.
Era tal a distância que eu só via a alvura da
touca, semelhante a uma borboleta primaveril de
cores desmaiadas, adejando entre os ramos.
Mas há momentos em que o coração vê melhor e
mais longe do que olhos perscrutadores: reconheci a
mãe Barberin. Era ela, tinha a certeza; sentia que
era ela.
- Então? - Perguntou Vitalis. - Vamos pôr-nos
a caminho?
Não respondi, continuava a olhar.
Era a mãe Barberin, a sua touca, o seu saiote
azul; era ela.
Caminhava a passos largos, como se tivesse pressa
de entrar em casa.
Ao chegar à cancela, empurrou-a e entrou no
quintal, que atravessou rapidamente.

No mesmo instante, pus-me de pé sobre o parapeito, sem


pensar em Capi, que saltou para junto de mim.
A mãe Barberin não se demorou muito tempo em
casa. Saiu e principiou a correr dum lado para
outro, no quintal, de braços abertos.
Procurava-me.
Curvei-me para a frente e gritei com todas as
forças.
- Mamã! Mamã!
Mas a voz não podia descer, nem dominar o murmúrio do
regato: perdeu-se no ar.
- Que tens? - perguntou Vitalis. - Endoideceste?
Sem responder, continuei com os olhos fixos na
mãe Barberin; ela, porém,. sem saber-me tão perto de
si, não pensava em erguer a cabeça.
Atravessara o quintal, voltara para o caminho e
olhava para todos os lados.
Gritei mais alto, mas, como na primeira vez,
inutilmente.
Então, Vitalis, suspeitando a verdade, subiu
também para cima do parapeito.
Não lhe foi preciso muito tempo para que visse a touca
branca.
- Pobre pequeno - disse a meia voz.
- Oh! por favor - exclamei eu, animado por
aquelas palavras de compaixão - deixe-me voltar
para trás.
Mas Vitalis agarrou-me pelo pulso e fez-me
descer para a estrada.
- Visto que Já descansaste - disse ele - marcha
agora, meu rapaz!
Quis desprender-me; o velho segurava-me fortemente.
- Capi! - gritou ele. - Zerbino!
Os dois cães cercaram-me: Capi atrás, Zerbino à frente.

Ao fim de alguns passos, virei a cabeça.


Havíamos já ultrapassado o cume do monte, e
já não vi o vale nem a nossa casa; apenas ao longe
colinas azuladas pareciam subir até ao céu. Os meus
olhos perderam-se no infinito.
CAPÍTULO 05.

A CAMINHO.

VITALIS, por uma rara excepção nos mercadores de


crianças, não era mau homem.
Bem depressa tive a prova disso.
Fora no alto do monte que separa o Loire do
estuário do Dordogne que ele me retomara a mão, e,
quase a seguir, havíamos começado a descer a vertente exposta
ao sul. Depois de termos andado cerca de um quarto de
hora, Vitalis largou-me o braço.
- Agora - disse ele-caminha devagar ao meu
lado. Mas não te esqueças que, se quisesses fugir, Capi
e Zerbino apanhavam-te; têm os dentes aguçados.
Fugir! Eu sentia que era impossível, e, por consequência,
inútil tentá-lo. Suspirei.
- Estás triste - continuou Vitalis. - Compreendo
e não te quero mal por isso. Podes chorar livremente,
se tens esse desejo. Mas lembra-te que não é para tua
infelicidade que te levo comigo. Qual seria o teu destino?
Muito provavelmente, irias para o asilo. As

pessoas que te criaram não são teus pais. A tua


mamã, conforme dizes, foi boa para ti e tu sentes-te
desgostoso por deixá-la, tudo isso é natural; mas
reflecte que ela não poderia ficar contigo contra
a vontade do marido. Aliás esse homem talvez não seja
tão cruel como imaginas. Não tem de que viver, está
aleijado; já não pode trabalhar, e não vai deixar-se
morrer de fome para te alimentar. Compreendes, meu
rapaz, que a vida é a maior parte das vezes uma batalha onde
não realizamos o que queremos.
Sem dúvida, o que ele dissera eram palavras de
sabedoria, ou pelo menos de experiência. Contudo,
havia um facto que, neste momento, gritava mais
alto do que todos: a separação.
Não veria mais aquela que me criara, me acarinhara,
aquela que- eu amava tanto. E esta ideia apertava-me a
garganta, sufocava-me.
- Vê - disse-me Vitalis, apontando-me para a
charneca - como seria inútil tentares fugir. Capi e
Zerbino apanhar-te-iam logo.
Fugir! Já não pensava nisso. E para onde? Para
casa de quem?
E talvez aquele velho alto, de barba branca, não
fosse tão terrível como eu imaginara de começo; se
era meu patrão, possivelmente não seria um patrão
cruel.
Caminhámos durante muito tempo no meio de
tristes ermos e não vendo em redor senão algumas
colinas distantes, de cumes estéreis.
Era a primeira vez que marchava assim, continuamente, sem
descansar. O patrão avançava com passo regular, levando
Joli-Coeur no ombro ou sobre o saco, e a seu lado os
cães trotavam sem se afastarem.
De tempos a tempos Vitalis dizia-lhes uma palavra amiga,
em francês, ou numa linguagem que eu não conhecia.
Nem ele nem os outros pareciam fatigados. Porém
não acontecia o mesmo comigo. Sentia-me esgotado.

Arrastando os pés, a custo, seguia o meu patrão.


No entanto não me atrevia a pedir que parasse.
- São os tamancos que te fatigam - disse-me ele.
-Em Ussel comprar-te-ei sapatos.
Estas palavras deram-me coragem.
De facto, eu sempre desejara ardentemente uns
sapatos. O filho do administrador e o do estalajadeiro
possuíam sapatos, de maneira que, ao domingo, ao
chegarem à missa, deslizavam nas lajes sonoras,
enquanto nós outros, camponeses, com os nossos tamancos,
fazíamos um barulho ensurdecedor.
- Ussel é ainda muito longe?
- Aí está um grito de alma -observou Vitalis,
rindo. - Tens então muita vontade de ter uns sapatos, pequeno?
Pois bem! Eu tos prometo, com pregos na sola. E prometo-te
também umas calças de veludo,
um casaco e um chapéu. Espero que isto te seque as
lágrimas e te dê força nas pernas para fazermos as
seis léguas que nos faltam.
Sapatos com pregos por baixo! Fiquei deslumbrado. Eram já
uma coisa prodigiosa para mim, aqueles sapatos; mas, quando
ouvi falar de pregos,
esqueci todo o desgosto.
Sapatos, sapatos ferrados! calças de veludo! casaco!
chapéu! Ah! se a mãe Barberin me visse, como ficaria
contente e orgulhosa da minha pessoa!
Apesar dos sapatos e das calças de veludo que
estavam a seis léguas de distância, parecia-me que
não poderia andar até tão longe.
O céu, azul à nossa partida, enchia-se a pouco e
pouco de nuvens cinzentas, e bem depressa caiu uma
chuva fina que não mais parou.
- Constipas-te facilmente? - perguntou o meu
patrão.
- Não sei, que me lembre nunca estive constipado.
- Bem, bem; decididamente há boas coisas em ti.
Mas não quero expor-te inutilmente; hoje não Iremos

mais longe. Ali adiante há uma aldeia, pernoitaremos lá.


Não havia estalagem nessa aldeia, e ninguém quis
receber a espécie de mendigo que levava consigo um
pequeno e três cães, tão enlameados uns como outros.
- Aqui não é albergue - diziam-nos.
E fechavam-nos a porta na cara. Íamos duma
casa para outra sem que nenhuma se abrisse.
Seria preciso, então, palmilhar sem repouso as
quatro léguas que nos separavam de Ussel? A noite
descia, a chuva gelava-nos e eu sentia as pernas tão
rígidas como estacas.
Ah! a casa da mãe Barberin!
Por fim, um camponês, mais caritativo do que os
vizinhos, consentiu em receber-nos num palheiro.
Mas, antes de nos deixar entrar, impôs-nos a condição de não
termos luz.
- Dê-me os seus fósforos - disse ele a Vitalis-
entregar-lhos-ei amanhã quando se for embora.
Ao menos tínhamos um tecto para nos abrigarmos e a chuva
já não nos caía sobre o corpo. Vitalis era um homem
previdente, que não se
punha a caminho sem provisões. Na mochila que
trazia aos ombros encontrava-se um grande naco de
pão, que partiu em quatro bocados.
Vi então pela primeira vez como mantinha a obediência e a
disciplina na companhia que havia constituído. Enquanto
errávamos de porta em porta, procurando onde dormir, Zerbino
entrara numa casa e saíra quase logo trazendo uma bela torta
entre os
dentes. Vitalis apenas dissera:
- Esta noite terás o castigo, Zerbino.
Eu já não pensava naquele roubo, quando vi, no
momento em que o nosso dono cortava o pão, Zerbino com ar
humilde. Estávamos sentados em molhos de fetos, Vitalis e
eu, ao lado um do outro e Joli-Coeur entre os dois; os
três cães alinhavam-se à nossa frente, Capi e Dolce

com os olhos fitos nos do dono, Zerbino de focinho


Inclinado para o chão e de orelhas caídas.
- Que o ladrão saia das fileiras - ordenou Vitalis - e
que vá para um canto; deitar-se-á sem cear.
No mesmo instante Zerbino abandonou o seu lugar, e,
caminhando de rastos, foi esconder-se no sitio que o dedo do
dono lhe apontava; meteu-se debaixo dum monte de feiteira, e
não o vimos mais; ouví-o respirar lastimosamente com pequenos
latidos abafados.
Cumprida a justiça, Vitalis entregou-me o pão que
me competia, e, enquanto comia o dele, ia repartindo
em bocadinhos, entre Joli-Coeur, Capi e Dolce, os
pedaços que lhes eram destinados.
Ali, como a sopa quente que a mãe Barberin nos
fazia todas as noites me teria parecido boa, mesmo
sem manteiga!
Como o canto da lareira me seria agradável; como
eu me teria enfiado por entre os lençóis e puxado os
cobertores até ao nariz!
Alquebrado pela fadiga, com os pés esfolados pelos
tamancos, tremia de frio dentro do fato molhado.
Era noite fechada, mas não pensava em dormir.
- Estás a bater os dentes - disse Vitalis. - Tens frio?
- Um bocadinho.
Percebi que abria o saco.
- o meu guarda-roupa deixa um tanto a desejar
- disse ele - mas aqui tens uma camisa seca e um
colete nos quais te poderás embrulhar depois de despires o
fato molhado; em seguida mete-te debaixo da feiteira, e não
tardarás a aquecer e a dormir.
Contudo, não aqueci tão depressa como Vitalis
imaginara; voltei e tornei a voltar-me na cama de
fetos durante muito tempo, demasiadamente dorido
e infeliz para que pudesse adormecer.
Os dias iriam ser agora todos assim? Caminhar
sem descanso, debaixo de chuva, dormir- num palheiro, tiritar
de frio, não ter para cear mais do que um pedaço de pão

seco, ninguém para me acarinhar, ninguém a quem amar, sem a


mãe Barberin?
Quando reflectia nisto tristemente, com o coração
oprimido e os olhos rasos de lágrimas, senti um hálito morno
bafejar-me a cara. Estendi a mão para a frente e
encontrei o pèlo lanudo de Capi.
Aproximara-se docemente de mim, avançando
com precaução sobre a feiteira, e farejara-me; fungava baixo;
o seu sopro batia-me na cara e nos
cabelos.
Que queria ele?
Deitou-se a meu lado, muito perto de mim, e,
delicadamente, pôs-se a lamber-me a mão. Esqueci a fadiga
e os desgostos; a garganta contraída descerrou-se. Respirei;
não estava sozinho: tinha um amigo.

CAPÍTULO 06.

A MINHA ESTREIA.

No dia seguinte, pusemo-nos cedo a caminho. Já


Não havia chuva mas céu azul, e pouca lama, graças ao vento
seco que soprara durante a noite. Os pássaros chilreavam
alegremente nas moitas da estrada e os cães pulavam à nossa
volta. De tempos a tempos, Capi erguia-se nas patas traseiras
e lançava-me dois ou três latidos de que eu percebia muito bem
a significação.
- Coragem! coragem! - diziam eles.
Era um cão inteligente que compreendia tudo e
se fazia sempre compreender. Jamais foi preciso a
palavra entre mim e Capi; desde o primeiro dia que
nos entendemos.
Nunca tendo saído da minha aldeia, sentia-me
cheio de curiosidade de ver uma cidade.

Devo confessar que Ussel não me deslumbrou. As


velhas casas de torrinhas, que certamente fazem as
delícias dos arqueólogos, deixaram-me absolutamente
indiferente.

Uma Ideia enchia-me o cérebro e enevoava-me os


olhos, ou, pelo menos, não me deixava ver mais do
que uma coisa: uma loja de sapateiro.
os meus sapatos, os sapatos prometidos por VItalis!
Chegara a hora de os calçar. Onde estava a bem-aventurada
sapataria que mos

ia fornecer?
Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões,
ogivas, colunas, não tinha interesse para mim.
Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel
foi a de uma loja sombria e denegrida pelo fumo,
situada ao pé do mercado. Tinha na montra espingardas velhas,
um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas lâmpadas, e,
em cestos, ferros velhos,
principalmente cadeados e chaves enferrujadas.
Foi preciso descer três degraus para entrar, e
então, encontrámo-nos numa quadra vasta, onde seguramente a
luz do sol nunca penetrara desde que o telhado fora posto
sobre a casa.
Como é que uma coisa tão bela como sapatos se
podia vender num recinto tão pavoroso!
Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja,
e bem depressa,tive a felicidade de calçar sapatos
ferrados que pesavam dez vezes mais do que os meus

tamancos.
A generosidade do meu patrão não ficou por ali;
depois dos sapatos, comprou-me um casaquinho de
veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de feltro; enfim,
tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara
senão linho;
sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera
os cabelos a cobrirem-me a cabeça! Decididamente,
era o melhor homem do mundo, o mais generoso
e rico.
É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a
lã estava coçada; é também verdade que seria muito difícil
saber qual a cor primitiva do feltro, de tal maneira apanhara
chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos esplendores,,

tornava-me insensível às imperfeições que se escondiam sob a


sua magnificência.
Tinha pressa de vestir aqueles belos fatos, porém,
antes de mos dar, Vitalis fez-lhes uma transformação que me
lançou em doloroso espanto. Ao entrar na estalagem, tirou
do saco uma tesoura
e cortou as pernas das minhas calças pela altura
dos joelhos.
Como eu o olhasse, pasmado, disse-me:
- Isto só tem o fim de ficares diferente de toda
a gente. Estamos em França, visto-te de italiano;
se formos à Itália, o que é possível, vestir-te-ei de
francês.
Esta explicação não me desfez o espanto, e ele
continuou:
- Que somos nós? Artistas, não é assim? Comediantes que
só pelo seu aspecto devem provocar a curiosidade. Imaginas
que, se fôssemos para a praça
pública vestidos como burgueses ou aldeões, forçaríamos as
pessoas a olhar-nos e a parar à nossa volta?
Eis como, sendo eu francês de manhã, me tornei
italiano antes da noite.

Porque as calças ficavam pelo joelho, Vitalis amarrou-me


as meias com cordões vermelhos cruzados ao longo das pernas;
enleou também fitas no chapéu,
e enfeitou-o com um ramo de flores de lã.

Não sei o que poderiam os outros pensar de mim,


mas para ser sincero devo declarar que me achei
soberbo; e, com certeza, o estava, pois o meu amigo
Capi, depois de me haver contemplado muito tempo,
estendeu-me a pata com ar satisfeito.

A aprovação que Capi deu à minha mudança


foi-me bastante agradável pelo facto de Joli-Cwur,
enquanto eu vestira o fato novo, se ter Instalado à
minha frente a imitar os meus gestos, exagerando-os.
E uma vez terminados os arranjos, pusera ele as
mãos nas ancas e, de cabeça deitada para trás, desatara a rir
com gritinhos de mofa.

- Agora que tens o traje novo - disse-me Vitalis,


depois de eu colocar o chapéu na cabeça - vamos
meter-nos ao trabalho, a fim de dar amanhã, dia de
feira, um grande espectáculo, em que te estrearás.
Perguntei o que queria dizer estrear e Vitalis
explicou-me que era aparecer pela primeira vez ao
público, numa representação,
- Amanhã daremos uma, - disse ele, - e farás
parte dela. É preciso ensaiar o papel que te destino.
.Os meus olhos espantados exprimiram incompreensão.
- Papel, é o que terás de fazer na comédia. Se te
trouxe comigo, não foi precisamente para te proporcionar o
prazer da viagem. Não sou bastante rico para isso. Foi para
trabalhares. E o teu trabalho consistirá em representar a
comédia com os cães e Joli-coeur.
- Mas eu não sei representar! - exclamei assustado.
- É por isso mesmo que tenho de ensinar-te.
Como deves calcular, não é naturalmente que Capi
anda tão bem nas patas traseiras, como não é por
prazer que Dolce dança na corda. Capi aprendeu a
conservar-se de pé nas patas traseiras, e Dolce a dançar na
corda: tiveram de trabalhar muito tempo para adquirir essas
habilidades. Pois bem! tu também deves trabalhar para aprender
os diferentes papéis que representarás com eles. Ponhamos mãos
à obra.
Eu tinha nessa época ideias absolutamente primitivas
quanto ao trabalho. Imaginava que isso consistia em cavar a
terra, ou rachar uma árvore,
ou cortar a pedra, e não concebia outra coisa.
- A peça que vamos representar - continuou Vitalis - tem
por título: o criado do sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos
dois não é aquele que pensamos.
Eis o assunto: O senhor Joli-Cwur possuiu até hoje
um criado que o satisfazia em absoluto: o criado é

Capi. Mas Capi já está velho, e, por outro lado, o


senhor Joli-Coeur deseja novo servo. Capi encarrega-se de o
procurar. Contudo não será um cão que ele terá por sucessor,
será um rapazinho, um camponês chamado Remi.
- Assim como eu?
- Não como tu, mas tu mesmo. Chegas da aldeia
para entrar ao serviço de Joli-Coeur.
- Os macacos não têm criados.
- Nas comédias, têm-nos. Chegas então, e o senhor
Joli-Coeur acha-te com ar de imbecil.
- Não é divertido, isso.
- Que te Importa, visto ser a fingir? Imagina que
entras realmente em casa dum senhor como criado
e te dizem, por exemplo, que ponhas a mesa. Eis
justamente aqui uma que deve servir para a representação.
Aproxima-te e dispõe os talheres. Sobre esta mesa, havia
pratos, um copo, uma faca, um garfo e guardanapos.
,Como se arranjaria tudo aquilo?
Fazendo esta pergunta a mim mesmo, fiquei de
braços pendentes, Inclinado para a frente, com a
boca aberta, sem saber por onde começar; Vitalis
bateu as palmas, rindo às gargalhadas.
- Bravo! - exclamou. - A tua expressão fisionómica é
esplêndida. o rapaz, que tinha antes de ti, tomava um aspecto
astuto e o seu ar dizia claramente: «Verão como eu vou
interpretar bem o papel de palerma»; tu, não dizes nada, ficas
calado com
uma expressão de ingenuidade admirável.
- Não sei o que devo fazer.
- E é por isso mesmo que estás excelente. Amanhã, dentro
de alguns dias, saberás às mil maravilhas o teu papel. Será
então necessário recordares-te do embaraço que experimentas
agora em fingires o que não sentes nessa altura. Quem és tu na
minha comédia? Um moço camponês que nada viu e nada sabe;
chega a casa dum macaco e acha-se mais Ignorante
e desajeitado do que o outro. Mais tolo do que Joli-coeur,

eis o teu papel; para o representar na perfeição, nada mais


terás a fazer do que ficar como estás neste momento. Mas como
isso é Impossível, deverás lembrar-te do que foste e
tornares-te pelo teu esforço naquilo que já não serás
naturalmente.
O criado do sr. Joli-Coeur não era uma comédia
extensa, e a sua representação durava apenas vinte
minutos. Mas o ensaio prolongou-se por mais de
três horas; Vitalis fez-nos recomeçar duas, quatro,
dez vezes a mesma coisa, tanto aos cães como a mim.
Fiquei bastante surpreendido com a paciência e
doçura do nosso mestre. Não seria assim que tratariam os
animais da minha aldeia, onde as pragas e as pancadas eram os
únicos processos de educação
que empregavam para com eles.
Vitalis, durante o longo ensaio, não se zangou
uma só vez; nem uma só vez praguejou.
- Vamos, recomecemos - dizia ele severamente,
quando algum de nós andava mal. - Capi, você está
distraído; Joli-Coeur, será castigado.
E não passava disto; no entanto, era bastante.
- Então?! - perguntou-me ele quando o ensaio
terminou - Achas que te habituarás a ser actor?
- Não sei.
- Isto aborrece-te?
- Não, diverte-me.
- Nesse caso tudo decorrerá bem; és Inteligente,
e, o que é ainda mais precioso, atento; com atenção
e docilidade conseguimos tudo.
Afoitei-me a dizer-lhe que o que me causara mais
admiração no ensaio fora a inalterável paciência de
que ele dera prova, tanto com Joli-Coeur e os cães,
como comigo.
Sorriu meigamente.
- Vê-se bem - respondeu Vitalis. - que só conviveste até
hoje com aldeões cruéis para os animais, e que imaginam
devê-los conduzir de cajado sempre erguido. Ora Isto é um
triste erro: pouca coisa se obtém pela brutalidade, mas quase

tudo conseguimos pela doçura. Não foi impacientando-me com os


meus animais que fiz deles o que são. Se lhes tivesse
batido, ficariam receosos, e o receio paralisa a Inteligência.
Os meus camaradas, os cães e o macaco, possuíam
sobre mim a grande vantagem de estarem habituados
a aparecer em público, de forma que viram chegar
sem receio o dia seguinte. Para eles, tratava-se de
fazer o que já haviam feito cem vezes, mil vezes talvez.
Mas eu não tinha a sua tranquila confiança. Que
diria Vitalis, se representasse mal o meu papel? Que
diriam os espectadores?
Por isso a minha comoção era extrema quando no
dia seguinte deixámos a estalagem a fim de irmos
para a praça, onde se devia realizar a nossa representação.
Vitalis abria a marcha, de cabeça erguida, peito
arqueado, e marcava o passo com os braços e os pés,
tocando uma valsa num pífaro de metal.
Atrás dele ia Capi, levando às costas Joli-Coeur,
que se enfatuava na sua farda de general inglês,
casaco e calças vermelhas agaloadas de ouro, com
chapéu bicórnio guarnecido duma grande pluma.
A seguir, a respeitosa distância, avançavam na
mesma fila Zerbino e Dolce.
Finalmente ia eu na cauda do cortejo que, graças ao
espaço indicado pelo nosso mestre, ocupava certo espaço na
rua.
Mas, mais ainda do que a pompa do nosso desfile,
o que provocava a atenção eram os sons agudos do
pífaro que iam até ao fundo das casas despertar a
curiosidade dos habitantes de Ussel. Corriam às portas para
nos ver passar, as cortinas de todas as janelas erguiam-se com
rapidez. Seguiam-nos algumas crianças, aldeãos
embasbacados juntavam-se a elas, e, quando chegámos à praça,
trazíamos atrás e em volta de nós um verdadeiro
acompanhamento.

A sala de espectáculo edificou-se num instante;


consistia numa corda amarrada a quatro árvores, de
maneira a formar um rectângulo, onde nos colocámos.
A primeira parte da representação foi preenchida
por várias peloticas executadas pelos cães; não sei
dizer quais foram essas habilidades, ocupado como
estava a recordar-me do meu papel e perturbado

pela inquietação.
Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o
pífaro e substituíra-o por um violino com que acompanhava os
exercícios dos cães, ora com músicas de dança, ora com
melodias suaves e doces.
A multidão apinhava-se contra as cordas, e,
quando eu olhava em redor, maquinalmente, via uma
infinidade de pupilas que, fixadas em nós, pareciam

lançar faíscas.
Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os
dentes, uma bandeja e, caminhando nas patas traseiras,
aproximou-se do «respeitável público». Quando as moedas não
caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior do
círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras
no espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e
batia pancadinhas sobre a algibeira que pretendia abrir.
Então na assistência havia exclamações, gracejos
e zombarias:
- Olha a esperteza do cão, como conhece os que
têm a bolsa recheada!
- Vá, mete a mão na algibeira!
- Dá!
E a moeda era finalmente arrancada das profundezas onde
se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas
sem
perder de vista a bandeja, Ia tocando árias alegres

no violino.
Bem depressa Capi voltou para junto do dono,
trazendo orgulhosamente o prato cheio.

Chegara a altura de eu e Joli-Coeur entrarmos


em cena.
- Minhas senhoras e meus senhores - anunciou
Vitalis gesticulando com o arco numa das mãos e o
violino noutra -, vamos continuar o espectáculo com
uma engraçada comédia intitulada: O Criado do
Sr. Joli-Coeur, ou O mais estúpido dos dois não é
aquele que imaginamos. Só lhes digo uma coisa: arregalem os
olhos, apurem os ouvidos e preparem as mãos para aplaudir.
O que ele chamava «uma engraçada comédia» era
na realidade uma pantomima, isto é, uma peça representada com
gestos e não com palavras. E assim devia ser, pela forte razão
de que dois dos principais
actores, Joli-Coeur e Capi, não podiam falar, e de
que o terceiro (que era eu próprio) seria absolutamente
incapaz de dizer fosse o que fosse. Todavia, a fim de
tornar a mímica dos comediantes mais facilmente compreensível,
Vitalis acompanhava-a de algumas palavras que preparavam as
situações da peça e as explicavam.
Foi assim que, tocando em surdina uma marcha
militar, anunciou a entrada do sr. Joli-Coeur, general inglês
que ganhara patentes e riqueza nas guerras das Indias. Até
então, o sr. Joli-Coeur só tivera Capi
como criado, mas desejava ser servido daí em diante
por um homem, visto que os meios lhe permitiam
esse luxo: os bichos haviam sido já bastante tempo
escravos dos homens; era altura de as coisas mudarem.
Enquanto esperava a chegada do criado, o general
Joli-Coeur passeava de cá para lá, fumando um cigarro. Era
digno de ver-se como ele lançava o fumo para a cara do
público!
O general impacientava-se, e principiava a volver
olhos iracundos, como alguém que vai zangar-se, mordia os
lábios e batia com o pé no chão.
À terceira patada eu devia entrar em cena, levado
por Capi.

Se tivesse esquecido o meu papel, o cão far-mo-ia


lembrar. No momento preciso, estendeu-me a pata e
introduziu-me junto do general.
Este, ao ver-me, levantou os braços ao céu com ar
desanimado. Pois quê? Era aquilo o criado que lhe
apresentavam? E veio mirar-me de perto, girando à

minha volta e encolhendo os ombros.


Tinha tanta graça que toda a gente desatou a rir:
percebiam que ele me considerava um perfeito imbecil; era
também esta a opinião dos espectadores. A comédia estava,
já se sabe, organizada de forma
a mostrar aquela Imbecilidade sob todos os aspectos;
em cada cena eu era obrigado a cometer uma nova
tolice, enquanto que Joli-Coeur, pelo contrário, devia
arranjar ocasião para patentear a sua inteligência
e habilidade.
depois de me examinar longamente, o general, desdenhoso,
mandou-me servir o almoço.
- O general imagina que, se o rapaz comer, parecerá menos
idiota - comentava Vitalis. - Vamos
lá ver.
E eu sentei-me em frente duma mesinha sobre a
qual estava um talher e um guardanapo pousado no
meu prato.
Que fazer do guardanapo?
Capi indicava-me que me devia servir dele.
Depois de pensar um bocado, desdobrei-o e

assoei-me.
Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu
de costas, confundido com a minha estupidez.

Percebendo que me enganara, pus-me a contemplar o


guardanapo, perguntando a mim mesmo como
empregá-lo.
Por fim, tive uma ideia; enrolei o guardanapo e

fiz dele uma gravata.


Novas gargalhadas do general, nova queda de Capi.
E assim sucessivamente até o momento em que o
general, exasperado, me arrancou da cadeira, se sentou

no meu lugar e comeu o almoço que me era destinado.


Ah! Aquele sim! Sabia servir-se dum guardanapo,
o general. Com que elegância o meteu na lapela do
uniforme e o depôs sobre os joelhos! Com que graça
partiu o pão e esvaziou o copo!
Mas onde as suas belas maneiras produziram um
efeito irresistível, foi quando, terminado o almoço,
pediu um palito e o passou rapidamente entre os dentes.
Os aplausos explodiram de todos os lados e a
representação acabou num triunfo.
Como o macaco era inteligente! Como o criado
parecia estúpido!

CAPÍTULO 07.

APRENDO A LER

ERAm de facto comediantes de talento os da companhia do


Signor Vitalis - falo dos cães e do macaco-, - mas de talento
pouco variado.
Depois de três ou quatro representações, conheciam-lhes
todo o repertório; nada mais lhes restava senão repetirem-se.
Daí resultava a necessidade de não se demorarem
muito tempo numa mesma região.
Três dias depois de chegarmos a Ussel, foi preciso
pormo-nos a caminho.
"Para onde íamos?"
Eu já tinha bastante confiança com o meu mestre para me
permitir esta pergunta.
- Conheces o país? - disse ele, virando"se para mim.
- Não.
- Então por que perguntas para onde vamos?
- Para saber.
- Se eu te disser - continuou ele - que vamos
para Aurillac a fim de nos dirigirmos em seguida

para Bordéus e de Bordéus para os Pirinéus, o que


ficas sabendo com isto?
- Mas o senhor conhece então o país?
Nunca vim cá.
- E mesmo assim sabe para onde vamos?
Contemplou-me outra vez como se procurasse
qualquer coisa em mim.
- Não sabes ler, não é verdade? - disse-me ele.
- Não.
- Sabes o que é um livro?
- Sim; levam-se os livros à missa para dizer orações,
quando não se reza pelo rosário; já lá tinha visto livros, e
bem bonitos, com estampas dentro e coiro por fora.
- Bem, então compreendes que se possam pôr
orações num livro?
- Sim.
- O que fazem para as orações, fazem com tudo.
Num livro que hei-de mostrar-te quando estivermos
descansados, encontraremos os nomes e a história
das regiões que atravessamos. Homens que habitaram
estas terras puseram no meu livro o que viram ou
aprenderam; de tal forma que não é preciso senão
abrir e ler esse livro para se ficar conhecendo as
ditas regiões; vejo-as como se as contemplasse com
os meus próprios olhos; sei a sua história como se
ma contassem.
Eu havia sido educado como um verdadeiro selvagem.
Aquelas palavras foram para mim uma espécie de revelação,
confusa de começo mas que a pouco e pouco se esclareceu. ,
- É muito difícil ler? - perguntei a Vitalis, depois
de haver pensado um bocado, enquanto ia andando.
- É difícil para aqueles que são obtusos de espirito, e
mais difícil ainda para os que têm má vontade. És obtuso?
- Não sei; mas parece-me que, se me quisesse
ensinar, boa vontade não me faltaria.

- Pois bem! Veremos; temos muito tempo à nossa


frente.
- Tempo à nossa frente? Por que não começar
Imediatamente? Eu não sabia quanto era complicado aprender a
ler e pensava que ia abrir um livro e ficar
logo ciente do que lá havia.
No dia seguinte, quando caminhávamos, vi Vitalis
abaixar-se e apanhar daestrada um pedaço de tábua
meio coberta pela poeira.
- Aqui está o livro onde vais aprender a ler.
Um livro, aquela tábua! Olhei-o para ver se não
brincava comigo. Depois, como me parecesse sério,
examinei atentamente o seu achado.
Era, bem uma tábua, nada mais do que um pedaço
de madeira de faia, do comprimento dum braço, da
largura de dois palmos e muito lisa; não lhe encontrava
nenhuma inscrição, nenhum desenho. Como se poderia ler naquela
tábua, e ler o quê?
- O teu espírito trabalha - disse-me Vitalis,
rindo.
- Está a zombar de mim?
- Não, meu rapaz. Espera que cheguemos àquele
bosquete que está lá adiante; descansaremos lá, e
verás como quero ensinar-te a leitura com este pedaço de
madeira.
Chegámos rapidamente ao dito bosquezinho e,
postos os sacos no chão, sentámo-nos sobre a relva
que principiava a reverdecer e na qual, aqui e ali, se
mostravam malmequeres. Joli-Coeur, desembaraçado
da corrente, precipitou-se para cima duma árvore,
sacudindo os ramos uns após outros como para fazer
cair nozes; os cães, mais tranquilos e sobretudo mais
fatigados, deitaram-se junto de nós.
Então Vitalis, tirando a navalha da algibeira,
experimentou desprender da tábua uma laminazinha
de madeira tão delgada quanto possível. Tendo conseguido,
alisou-a nas duas faces, em todo o comprimento, e, feito Isto,
cortou-a em quadradinhos; arranjou assim umas duas dúzias
deles, todos Iguais.

Eu não o desfitava, mas confesso que, apesar da


minha tensão de espírito, não percebia como era que
daqueles bocados de pau ele queria fazer um livro;
por muito ignorante que fosse, eu sabia que um livro
se compunha de certo número de folhas de papel
sobre os quais se viam desenhados sinais pretos.
Onde estavam as folhas de papel? E os sinais pretos?
- Em cada um destes pedacinhos de madeira - disse-me -
traçarei amanhã, com a ponta da navalha, uma letra do
alfabeto. Aprenderás assim o feitio das letras e, quando as
souberes bem sem te
enganares, de maneira a reconhecê-las à primeira
vista, juntarás umas ao lado das outras para formares
palavras. Quando puderes compor as palavras que eu te disser,
estarás à altura de ler um livro.
Dentro em pouco eu tinha as algibeiras cheias
duma colecção de bocadinhos de madeira, e não tardei a
conhecer as letras do alfabeto, mas as coisas não foram tão
depressa, e chegou até uma ocasião
em que me arrependi de ter querido aprender a ler.

Devo no entanto dizer, para ser justo comigo


mesmo, que não foi a preguiça que me Inspirou esse
arrependimento: foi o amor próprio.

Ao ensinar-me as letras do alfabeto, Vitalis pensara que


poderia ensiná-las também a Capi; pois se o cão decorara os
algarismos, porque razão não reteria na memória as letras?
E tomámos lição em comum; tornei-me camarada
da classe de Capi, ou o cão tornou-se o meu, como
quiserem..

Bem entendido que Capi não devia nomear as


letras, visto que não falava, mas, quando os bocados
de madeira estavam colocados no chão, tinha de
tirar, com a pata, as letras que o nosso mestre dizia.

Ao princípio fiz maiores progressos do que ele;


porém, se eu era de Inteligência mais pronta, Capi
possuía a memória mais segura: uma coisa aprendida, ficava-lhe
sabida para sempre; não esquecia;

e como não tinha distracções, não hesitava e jamais


se enganava.
Então, quando eu cometia algum erro, o nosso
mestre nunca deixava de dizer:
- Capi saberá ler antes de Remi.
E o cão, sem dúvida, compreendendo-o, abanava
a cauda com ar de triunfo.
- Mais estúpido do que um animal, admite-se
numa comédia - dizia ainda Vitalis - mas, na reali
dade, é vergonhoso.
Isto feriu-me tanto que me apliquei de alma e
coração, e enquanto o cão se limitava ao seu nome,
separando as letras que o compunham de todas as
outras do alfabeto, eu conseguia, enfim, ler num livro.
- Agora que já sabes ler palavras - disse-me Vitalis -
queres aprender a ler música?
- E quando eu souber ler música poderei cantar
como o senhor?
- Querias então cantar como eu?
- Oh! Como o senhor, não, bem sei que isso é
impossível, mas, enfin, cantar?
- Tens prazer em ouvir-me?
- O maior prazer que se pode sentir; o rouxinol
canta bem, mas, parece-me que o senhor canta melhor ainda. E
vou dizer-lhe uma coisa que talvez lhe pareça tolice: quando
canta, sinto-me levado para
junto da mãe Barberin, é nela que penso, é ela que
vejo na nossa casa; e, no entanto, não percebo as
palavras que pronuncia, visto que são italianas.
Fitava-o ao falar-lhe e tive a impressão de que os
seus olhos se humedeciam; então detive-me e perguntei-lhe se o
contristava aquilo que eu dizia.
- Não, meu filho-respondeu-me ele com voz
comovida-, não me entristeces, pelo contrário. Sossega,
ensinar-te-ei a cantar, e também serás aplaudido, verás...
Interrompeu-se de súbito, e compreendi que não
desejava aprofundar aquele assunto. Porém as razões

que o retinham não as adivinhei. Foi mais tarde que


as conheci, muito mais tarde, e em circunstâncias
dolorosas, terríveis para mim, que contarei em momento
oportuno, nesta narrativa.
Logo no dia seguinte, o meu mestre fez para a
música o que já fizera para a leitura, isto é, começou
a cortar quadradinhos de madeira, que ele gravou
com a ponta da navalha.
A fim de aliviar-me os bolsos, utilizou as duas
faces dos quadrados, e, depois de riscar qualquer
delas com cinco linhas que representavam a pauta,
desenhou num lado a clave de sol e noutro a de fá.
Depois de tudo preparado, começaram as lições,
e confesso que não foram menos penosas que as de
leitura.

Mais duma vez Vitalis, tão paciente com os cães,


se exasperou comigo.
- Com um animal - exclamava ele - uma pessoa
contém-se porque sabe que é um animal, mas tu
darás cabo de mim.
E, levantando as mãos ao céu num gesto teatral,
deixava-as cair de repente sobre as coxas com uma
palmada valente.
Joli-Coeur, que se comprazia em imitar o que
achava engraçado, copiara aquele movimento, e,
como assistia sempre às minhas lições, eu tinha o
aborrecimento, quando titubeava, de o ver erguer os
braços ao céu e deixar cair as mãos nas coxas,
fazendo-as estalar.
- Até Joli-Coeur troça de ti - exclamava Vitalis.
Finalmente os primeiros passos foram ultrapassados e tive
a satisfação de solfejar uma ária escrita por Vitalis numa
folha de papel.
Nesse dia não ergueu os braços, mas deu-me duas
palmadas amigáveis na cara, declarando-me que se
eu continuasse assim viria a ser certamente um
grande cantor.

Já se sabe que os estudos não se fizeram num só


dia, e durante semanas, durante meses, as minhas

algibeiras estiveram constantemente cheias dos bocadinhos de


madeira. Aliás, o meu trabalho não era regular como o de
qualquer criança que segue as lições duma escola,
e só nos momentos de ócio é que Vitalis me podia
dar lições.
Precisávamos cada dia completar o nosso percurso, mais ou
menos longo, conforme a distância duma a outra aldeia;
precisávamos dar espectáculo
em todos os lugares onde havia probabilidades de
apanhar boa receita; precisávamos de ensaiar os
papéis aos cães e a Joli-Coeur; precisávamos de preparar o
almoço ou o jantar, e só depois, de tudo isto é que se tratava
de leitura e de música.
Esta educação em nada se assemelhava à que recebem tantas
crianças, que só têm de estudar, e que se queixam
continuamente da falta de tempo para
fazerem os exercícios que lhes dão.
Enfim, aprendi alguma coisa, e ao mesmo tempo
fiz grandes jornadas que não me foram menos úteis
do que as lições de Vitalis: eu era uma criança bastante
definhada quando vivia com a mãe Barberin, e a maneira como
falavam de mim provava-o bem: «um menino da cidade», dissera
Barberin, «com pernas e braços excessivamente magros», dissera
Vitalis. Ao lado do meu mestre e acompanhando-o na sua
vida ao ar livre, as pernas e os braços fortificaram-se,
os pulmões desenvolveram-se, a pele enrijou-se e
tornei-me capaz de suportar, sem adoecer, o frio e o
calor, o sol e a chuva, os trabalhos, as privações, as
fadigas.
E para mim foi uma grande felicidade essa aprendizagem,
que me preparou para resistir aos golpes que mais duma vez me
deveriam atingir, duros e esmagadores, durante a minha
juventude.

CAPÍTULO 08.

POR MONTES E VALES.

TíNHAmos percorrido parte do Sul da França.


A nossa forma de viajar era das mais simples; íamos
sempre para a frente, ao acaso, e, quando encontrávamos uma
aldeia que de longe não nos
parecia muito miserável, preparávamo-nos para uma
entrada triunfal. Eu arranjava os cães, penteando
Dolce, vestindo Zerbino, colocando um emplasto no
olho de Capi para que ele pudesse representar o papel
dum velho veterano, e, finalmente, obrigava Joli-Coeur a
vestir o seu fato de general.
Postos os actores em grande aparato, Vitalis
agarrava no pífaro, e, em boa ordem, desfilávamos
pela aldeia.
Se o número de curiosos que nos seguiam era
suficiente, dávamos uma representação; se, pelo contrário, nos
parecia demasiadamente fraco para que pudéssemos esperar boa
receita, continuávamos a
marchar.
Somente nas cidades ficávamos vários dias, e
então, de manhã, eu dispunha da liberdade de Ir
passear para onde queria. Levava Capi comigo-Capi,
um simples cão, bem entendido, sem o seu fato de
teatro-, e espairecíamos pelas ruas.
Vitalis, que habitualmente me tinha sob a sua
vista, para aquele fim deixava-me à rédea solta.
- Já que o acaso - dizia-me ele - te faz percorrer a
França numa idade em que as crianças estão geralmente na
escola ou no colégio, abre os olhos,
repara e aprende. Quando te vires embaraçado com
algum facto que não compreendas, pergunta-mo sem receio.
,Depois de abandonarmos Auvergne, chegámos aos
causses de Qucy. Dá-se este nome a extensas planícies de
ondulações irregulares, onde só se encontram terrenos incultos
e algumas árvores enfezadas. Nenhuma região é mais triste,
mais pobre. E o que
acentua ainda esta impressão que o viajante recebe
ao atravessá-la, é que quase em parte alguma se vê
água. Nem ribeiras, nem regatos, nem poços. Aqui
e ali, leitos pedregosos mas vazios.

No meio dessa planície, esbraseada pela canícula


no momento em que a atravessámos, acha-se uma
aldeia que se chama Bastide-Murat; passámos aí a
noite na granja duma estalagem.
- Foi aqui-disse-me Vitalis em conversa antes
de nos deitarmos-foi aqui, nesta terra, e provávelmente neste
albergue, que nasceu um homem causador da morte de tantos
soldados; começou a vida como moço de estrebaria, e tornou-se
príncipe e rei:
Chamava-se Murat; consideram-no herói e deram o
seu nome a esta aldeia. Conheci-o, e muitas vezes
conversei com ele.
Mau grado meu, escapou-se-me uma interrogação:
- Quando era moço de estrebaria?
- Não - respondeu Vitalis rindo -, quando era
rei. Esta é a primeira vez que venho a Bastide, e foi
em Nápoles que o conheci, rodeado da sua corte.
- O senhor conheceu um rei!

É de crer que o tom da minha exclamação fosse


muito engraçado, pois o riso de Vitalis explodiu de
novo e prolongou-se muito tempo.
Estávamos sentados num banco defronte da cavalariça, com
as costas apoiadas no muro que conservava o calor do dia. Num
grande sicômoro, cuja folhagem nos cobria, as cigarras
cantavam a sua
canção monótona. À nossa frente, por cima dos telhados das
casas, a lua cheia acabava de nascer e subia lentamente no
céu. A noite era para nós tão
doce quanto o dia fora ardente,
- Queres dormir? - perguntou-me Vitalis - Ou
preferes que te conte a história do rei Murat?
- Oh! conte-me a história do rei!
Então o meu mestre narrou-me a história, e durante várias
horas ficámos no nosso banco, ele, falando, eu, de olhos fitos
naquele rosto que a Lua
Iluminava com a sua claridade pálida.
Pois quê?! Tudo aquilo era possível, não só possível mas
verdadeiro?! O meu mestre vira um rei; esse rei falara-lhe.
Que fora então Vitalis, na sua Juventude?
E como se tornara naquilo que eu via, na velhice?
Havia ali com que fazer trabalhar uma imaginação Infantil,
viva, ávida e curiosa de tudo o que fosse maravilhoso.

CAPÍTULO 09.

ENCONTRO O GIGANTE DAS BOTAS


DE SETE LÉGUAS.

Ao deixar o solo árido das causses e todos aqueles


terrenos incultos, vejo-me, em pensamento, num vale sempre
fresco, e verde, o vale de Dordogne, que descemos a. pouco e
pouco, em pequenas jornadas, pois a riqueza da região
contribui para a dos habitantes, e as nossas representações
são numerosas: as moedas tombam com relativa facilidade na
bandeja de Capi.
Uma ponte, leve, como se por meio de filandras
estivesse suspensa do nevoeiro, eleva-se acima dum
rio largo onde deslizam águas preguiçosas.
Uma cidade em ruínas, com fossos, grutas, torres,
e, nas paredes fendidas dum claustro, cigarras que
entoam canções em arbustos que despontam aqui e ali.
Mas tudo isto se me confunde na memória; só
dum espectáculo que a impressionou fortemente é
que ela guarda a visão nitida.
Pernoitáramos numa aldeia bastante miserável e
partíramos de manhã, ao romper do dia.

Percorríamos há muito tempo uma estrada poeirenta quando,


de súbito, os nossos olhares, até aí confinados no caminho
orlado de vinhas, se espraiaram livremente por um espaço
imenso como se uma cortina se tivesse afastado à nossa frente.
Um rio largo descia, numa curva suave, em volta
da colina onde acabávamos de chegar; mais além, os
telhados e campanários duma grande cidade espalhavam-se até à
linha enevoada do horizonte. Tantas casas! Tantas chaminés! A
meio do rio e ao longo
do cais, viam-se numerosos navios que, como árvores
duma floresta, enredavam uns nos outros a mastreação, os
cordames, as velas e as bandeiras que flutuavam ao vento.
Ouvia-se um fragor surdo, ruídos
de ferros e de caldeiraria, pancadas de martelos, e,
sobressaindo a tudo, o barulho produzido pelo rodar
de inúmeros carros que circulavam nos cais.
- Eis Bordéus - anunciou Vitalis.
Para um garoto, educado como eu, que nunca
vira até ali senão as pobres aldeias de Creuse, ou as
cidadezinhas que encontrávamos no nosso percurso,
era realmente maravilhoso.
Sem querer, detive-me; e fiquei imóvel, a olhar
para a frente, para longe, para perto, para toda a
volta.
Mas logo os olhos se fixaram num ponto: no rio
e nos navios que o cobriam.
De facto, havia ali um movimento confuso que me
interessava vivamente, tanto mais que eu não o compreendia.
- É a hora da maré - disse Vitalis, respondendo
ao meu espanto, sem que o tivesse interrogado. - Há
navios que chegam do mar alto, regressando de longas viagens;
são aqueles cuja pintura está suja e que parecem enferrujados;
outros deixam o porto; os
que vês voltear, a meio do rio, rodam sobre as âncoras
de forma a apresentarem a proa à maré que enche.
Aqueles que vão envolvidos em nuvens de fumo são rebocadores.
Que palavras tão estranhas para mim! Quantas
coisas desconhecidas!
Até então não fizéramos grandes paragens nas
cidades que encontrávamos à nossa passagem, pois
os espectáculos obrigavam-nos a mudar de local
a fim de termos novo público. Com actores tais como
os que compunham a «companhia do ilustre signor
Vitalis», o repertório não podia, efectivamente, ser
muito variado; e depois de representar o Criado do
sr. Joli-Coeur, a Morte do general, o Triunfo do justo,
o Doente purgado e mais três ou quatro peças, esgotava-se a
série; os comediantes haviam feito tudo o que podiam; era
preciso recomeçar o Doente purgado
ou o Triunfo do justo perante espectadores que não
os tivessem visto ainda.

Bordéus, porém, é uma grande cidade, onde o


público se renova facilmente, e, mudando de bairro,
podíamos dar três e quatro representações por dia,
sem que nos gritassem, como acontecera em Cahors:
- Então isso é sempre a mesma coisa?
De Bordéus, devíamos ir a Pau. O nosso Itinerário
fez-nos atravessar aquele - grande deserto que, das
portas de Bordéus, se estende até aos Pirenéus.
- Eis-nos nas Landas - disse Vitalis. - Temos de
palmilhar vinte ou vinte e cinco léguas neste deserto.
Põe a tua coragem nas pernas.
Os nossos olhos iam até ao horizonte inundado
dos nevoeiros de Outono, sem nada distinguir além
da planície cor de cinza que se desenrolava lisa e
monótona.
Caminhávamos. E, ao olharmos maquinalmente
em redor, dir-se-ia que continuávamos no mesmo
sítio sem avançar, pois o espectáculo era sempre
igual:,urzes, giestas, musgo e fetos, cujas folhas leves
ondulavam sob a pressão do vento, abaixando-se e
erguendo-se como vagas.
Vitalis dissera-me que chegaríamos à noite a uma
aldeia onde poderíamos descansar. Porém, a noite
aproximava-se e nada víamos que assinalasse a presença

da aldeia: nem campos cultivados, nem animais pastando na


charneca, nem mesmo ao longe uma coluna de fumo que nos
anunciasse uma casa.
A esperança de chegar fizera-nos apressar o
passo, e o próprio Vitalis, apesar de acostumado a
compridas jornadas, sentia-se cansado. Parou a repousar um i
nstante à beira do caminho. Mas, em vez de me sentar a
seu lado, quis subir
um montículo plantado de giestas que se achava a
curta distância, a fim de ver se daí apercebia alguma
luz na planície.
Entretanto a noite descera, sem lua, mas com
estrelas cintilantes que iluminavam o céu e derramavam a sua
claridade na atmosfera carregada de uma névoa transparente,
que o olhar atravessava.
Não vendo nada que me anunciasse a vizinhança
de uma casa, escutei.
Depois de apurar o ouvido durante um momento
sem respirar, a fim de escutar melhor, o silêncio
aterrorizou-me e senti um calafrio: tinha medo. De
quê? Nem mesmo sabia. Provavelmente da solidão,
da noite, daquele sossego. Fosse de que fosse, imaginava-me
ameaçado. Nesse mesmo instante, ao olhar em volta cheio
de
angústia, vi ao longe uma sombra alta mover-se
rapidamente acima das giestas, e ouvi como que um
sussurro de ramos.
Alguém?
Mas não, não podia ser um homem aquele corpo
alto e negro que vinha na minha direcção; seria antes
um animal desconhecido para mim, ou um pássaro
nocturno gigantesco, ou uma grande aranha de
quatro patas cujos membros delgados se recortavam
por cima das moitas e dos fetos, na palidez do céu.
Este pensamento encheu-me de pavor e, voltando-me,
precipitei-me no declive para reunir-me a Vitalis.
Desembaraçando-me de um silvado, deitei uma
olhadela para trás: o bicho aproximava-se; vinha
sobre mim.

Felizmente não havia mais silvas enredadas, e


pude correr à vontade através das ervas. No entanto,
por muito depressa que o fizesse, o animal avançava
mais do que eu; sem necessitar voltar-me, sentia-o

atrás de mim.
Já nem respirava, sufocado pela angústia e pela
doida correria; então fiz um derradeiro esforço e vim
cair aos pés do meu mestre, enquanto os três cães,
que se haviam erguido bruscamente, ladravam com
todas as forças.
Só pude dizer estas duas palavras, que repeti
maquinalmente:
- O animal! O animal!
No meio da vozearia dos cães, ouvi de repente
uma estrondosa gargalhada. Ao mesmo tempo, Vitalis,
pousando-me a mão no ombro, obrigou-me a virar.
- Animal és tu - dizia-me ele rindo. - Repara
nele, se é que tens ânimo para Isso.
o riso, mais do que as palavras, chamaram-me à
razão; afoitei-me a abrir os olhos e a seguir a direc
ção da mão de Vitalis.
A aparição que tanto me aterrorizara detivera-se
e conservava-se imóvel a meio da estrada.
Seria um bicho?
Seria um homem?
De homem, tinha o corpo, a cabeça, os braços.
De bicho, uma pele felpuda que o cobria inteiramente, e
duas patas compridas e magras que o sus tinham.
Se bem que houvesse Já anoitecido, eu percebia
estes pormenores, pois a sua sombra alta desenhava-se a preto,
contornando-se no céu onde numerosas estrelas derramavam uma
claridade pálida.
Eu ficaria provavelmente muito tempo Indeciso a
cogitar nas minhas dúvidas, se Vitalis não tivesse
dirigido a palavra à aparição.
- Poderá dizer-me se estamos muito longe de
uma aldeia? -perguntou.
Mas Por única resposta só ouvi um riso
áspero, semelhante a um grito de ave.
Era então um animal?
Entretanto o meu mestre continuou as mil
perguntas, o que me pareceu absolutamente despropositado.
Qual não foi o meu espanto quando o bicho disse
que não havia casas nos arredores, mas apenas um
curral, aonde ele nos propunha
conduzir-nos. Se ele falava, como é que tinha
patas?
Se me atrevesse, aproximar-me-ia dele,
para-ver como eram feitas aquelas patas, mas,
se bem que me não parecesse um ente mau, não
tive coragem; agarrando no meu saco, segui
Vitalis sem nada dizer.
- Vês agora o que te causou tão grande medo? -
perguntou-me ele pelo caminho.
- Vejo, mas não sei o que é; então há gigantes
nesta terra?
- Há, sim, quando estão em cima de andas.
E explicou-me como os habitantes das Landas,
para atravessarem os terrenos areentos ou pantanosos sem
enterrarem as pernas até às coxas, se servem de
dois paus compridos guarnecidos de um estribo que amarram aos
pés
- E aqui está como se tornam no gigante das botas de sete
léguas para crianças medrosas.
CAPÍTULO 10.

PERANTE A JUSTIÇA.

DE Pau ficou-me uma lembrança agradável: nunca


há vento.
Todavia não foi esta razão que, contrariamente
aos nossos hábitos, determinou a longa demora no
mesmo local, mas outra bastante poderosa para o
meu mestre - refiro-me à abundância de receitas.
Efectivamente, em todo o Inverno, tivémos um
público infantil que não se cansava do nosso repertório e que
jamais nos gritou: «Isso então é sempre a mesma coisa!».
Eram, na sua maioria, crianças inglesas, rapazinhos
gordos e rosados e lindas rapariguinhas de grandes olhos
meigos, quase tão bonitos como os de
Dolce. Foi nessa altura que aprendi a discernir todas
as qualidades de bolos secos com que eles, antes de
sair de casa, tinham o cuidado de encher as algibeiras para
depois os repartir generosamente entre Joli-Coeur, os cães e
eu.
Quando os dias quentes anunciaram a Primavera,
o nosso público principiou a ser menos numeroso, e,

por mais de uma vez depois do espectáculo, vieram


crianças dar apertos de mão a Joli-Coeur e a Capi.
Faziam as suas despedidas, no outro dia já não as
víamos.
Não tardou que ficássemos sozinhos nas praças
públicas, e foi preciso pensarmos também em partir.
Uma manhã pusemo-nos a caminho e retomámos
a nossa vida errante pelas estradas mais largas.
Depois, uma tarde, chegámos a uma grande cidade, situada
à beira de um rio. Vitalis disse-me que estávamos em
Toulouse e
que ficaríamos aí muito tempo.
Como de costume, o nosso primeiro cuidado, no
dia seguinte, foi procurar os locais propícios para os
espectáculos.
Encontrámo-los em grande quantidade, sobretudo
nas proximidades do Jardim Botânico; há lá um
pedaço de terreno arrelvado sombreado por grandes
árvores, onde vêm desembocar várias alamedas. Aí
nos instalámos, e nas primeiras representações tivemos um
públic o numeroso. Por infelicidade, o polícia que estava
de guarda
na alameda viu aquela instalação com descontentamento, e,
porque não gostasse de cães ou porque lhe atrapalhássemos o
serviço ou por qualquer outra
razão, quis que saíssemos dali.
Na nossa situação, teria sido talvez prudente
abandonar a contenda, pois a luta entre a polícia e
pobres saltimbancos tais como nós, não era com
armas iguais; porém Vitalis não pensou assim.
Quando o meu mestre não queria encolerizar-se,
ou quando lhe dava na fantasia divertir-se à custa
dos outros - o que acontecia frequentemente - tinha
por hábito exagerar a sua polidez Italiana: dir-se-ia,
ao ouvi-lo exprimir-se, que se dirigia a importantes
personagens.
- O ilustríssimo representante da autoridade - disse,
respondendo de chapéu na mão ao agente da polícia - pode
mostrar-me um regulamento emanado da dita autoridade,

pelo qual seja proibido a ínfimos truões como nós, exercer a


sua mesquinha indústria nesta praça pública?
o guarda respondeu que ele só deviaobedecer e
não discutir.
- Certamente - replicou Vitalis. - É essa a minha
opinião; por isso prometo sujeitar-me ás suas ordens, logo que
me faça saber em virtude de que regulamentos mas dá.
Naquele dia, o agente de polícia virou-nos as
costas enquanto o meu mestre ria silenciosamente.
Mas voltou no dia seguinte, e, transpondo as cordas que
formavam o recinto no nosso teatro, precipitou-se a meio do
espectáculo.
- Tem de açaimar os cães - disse rispidamente
a Vitalis.
- Açaimar os cães!
- Há um regulamento; deve conhecê-lo.
Representávamos o Doente purgado, e como era a
primeira vez que esta comédia ia à cena em Toulouse o público
mostrava-se cheio de atenção. A intervenção do guarda
provocou murmúrios e reclamações:
- Não interrompa!
- Deixe acabar o espectáculo!
Mas, com um gesto, Vitalis impôs silêncio.
Então, tirando humildemente o chapéu, de tal
forma que as penas varreram a areia, aproximou-se
do polícia, fazendo três profundas reverências.
- O ilustríssimo representante da autoridade
disse que eu devia açaimar os meus actores? - perguntou.
- Sim - disse - açaimar os cães e o mais depressa
possível.
- Açaimar Capi, Zerbino, Dolce! - exclamou Vitalis,
dirigindo-se mais ao público do que ao polícia. - Vossa
senhoria não pense nisso! Como poderá o sábio médico Capi,
conhecido do mundo Inteiro, receitar os seus remédios
purgativos para expulsar a bílis do infortunado

sr. Joli-Coeur, se o referido Capi puser na ponta do nariz um


açaimo? Ainda se fosse outro instrumento mais adequado à sua
profissão de médico... Não é costume pôr aquilo no nariz
das pessoas.
Houve uma explosão de gargalhadas em que se
misturavam as vozes cristalinas das crianças com as
vozes guturais dos adultos.
Vitalis, animado pelos aplausos, continuou:
- E como poderá a encantadora Dolce, a enfermeira, usar
da sua eloquência e beleza para decidir o doente a deixar
limpar as entranhas, se, na ponta
do nariz, usar o que o ilustre representante da autoridade lhe
quer impor? Pergunto-o ao respeitável público e peço-lhe
respeitosamente que julgue a causa.

O público, convocado assim a pronunciar-se, não


respondeu directamente, mas as suas gargalhadas
falavam por ele: apoiavam Vitalis, troçavam do
guarda, e, principalmente, divertiam-se com Joli-Coeur que,
atrás do «ilustríssimo representante da autoridade», fazia
caretas nas costas deste, cruzando
os braços como ele, colocando as mãos nas ancas e
inclinando a cabeça com trejeitos e contorsões absolutamente
hilariantes. Espicaçado pelo discurso de Vitalis,
exasperado
pelo riso dos espectadores, o guarda, que não parecia
homem paciente, rodou bruscamente nos calcanhares.

Viu então Joli-Coeur, que estava nessa altura de


mão na ilharga, na atitude de um toureiro; durante
alguns segundos o homem e o macaco ficaram defronte um do
outro, fitando-se como se se tratasse de saber qual dos dois
baixaria os olhos primeiro.

As gargalhadas que explodiram, irresistíveis e


atroadoras, puseram fim a esta cena.
- Se amanhã os seus cães não estiverem açaimados -
exclamou
o agente da polícia ameaçando-nos com o punho-, - você será
autuado; só lhe digo isto.

- Até amanhã, signor - disse Vitalis! até amanhã.


E enquanto o guarda se afastava rapidamente,
Vitalis ficou curvado até ao chão, em postura respeitosa.
Depois, a representação continuou.
Imaginava que o meu mestre ia comprar açaimos
para os cães; mas não o fez e a noite chegou sem
que ele sequer aludisse à discussão com o polícia.
Então afoitei-me a falar no assunto.
- Se não quer que Capi quebre o açaimo durante
o espectáculo - disse-lhe eu. - parece-me que seria
bom colocar-lho um pouco antes. Vigiando-o, talvez
possamos habituá-lo a isso.
- Pois acreditas que lhe vou pôr uma caraça de
ferro?
- Ora essa! Creio que o guarda está disposto a
autuá-lo.
- Não passas de um camponês e, como todos os
camponeses, perdes a cabeça com medo da polícia.
Mas sossega, cá me arranjarei amanhã. Além disso,
disporei as coisas para o público se divertir um bocadinho. É
preciso que aquele polícia nos proporcione mais de uma boa
receita e represente um papel cómico na cena que lhe preparo;
isso variará o nosso repertório e divertir-nos-á também. Para
este fim, irás amanhã para o lado do costume, só acompa nhado
de Joli-Coeur; esticarás as cordas, tocarás alguns trechos na
harpa; e quando tiveres à volta público suficiente, e depois
do guarda chegar, farei a minha entrada com os cães. Nessa
altura começará a comédia.
Não me agradava nada ir assim sozinho preparar
a representação, mas começava a conhecer Vitalis
e a saber quando lhe podia resistir. Decidi-me pois a
obedecer.
No dia seguinte fui para o sítio habitual e armei
o recinto. Logo que toquei alguns compassos de música,
acorreram pessoas de todos os lados, comprimindo-se

junto às cordas que eu acabara de esticar.


Nos últimos tempos, sobretudo durante a nossa
estada em Pau, o meu mestre fizera-me estudar
harpa, e eu já tocava menos mal alguns trechos que
ele me ensinara. Havia entre outras uma canzonetta
napolitana que eu cantava acompanhando-me à
harpa e que me valia sempre aplausos.
No entanto, naquele dia, tive o bom senso de compreender
que não era para ouvir a minha canzonetta que se acotovelavam
daquela maneira junto às cordas.
Os que haviam assistido na véspera à cena com o
guarda, tinham voltado e trazido amigos consigo. Se
bem que Vitalis só houvesse pronunciado as palavras: «Até
amanhã, signor», toda a gente percebera que aquela entrevista
proposta e aceita era o anúncio de um grande espectáculo onde
encontraria ocasiões para rir e se divertir à custa do
polícia.
Por isso, ao verem-me só com Joli-Coeur, mais
de um espectador inquieto me interrompeu a fim de
me perguntar se «o italiano» não viria.
- Não tarda aí.
E continuei a minha canzonetta.

Não foi Vitalis que chegou, mas o agente da polícia.


Joli-Coeur viu-o primeiro do que ninguém, e imediatamente,
pondo uma das mãos na anca e deitando a cabeça para trás,
principiou a passear de cá para lá, teso, imponente, com uma
gravidade
ridícula.

Do público partiu uma gargalhada geral e


aplausos.

O guarda, desconcertado, lançou-me olhares furiosos.

Claro que isto redobrou a hilaridade dos espectadores.


Eu próprio tinha vontade de rir, mas por outro
lado não me sentia tranquilo. Como iria acabar tudo
aquilo?

A cara do guarda não aparentava nada que me


sossegasse: mostrava-se realmente furiosa, exasperada pela
cólera. Passeava em frente das cordas e, quando passava a
meu lado, olhava para mim de tal maneira que
me fazia temer qualquer coisa má.
Joli-Coeur, que não compreendia a gravidade da
situação, divertia-se com a atitude do polícia. Passeava
também dentro do recinto, enquanto o outro andava por fora e,
ao cruzar-se comigo olhava-me
por cima do ombro com um ar tão cómico, que os
risos do público redobravam.
Para não exasperar mais o guarda, chamei Joli-Coeur, mas
este não estava disposto à obediência; sentia-se divertido e
recusou fazer o que eu pedia,
continuando o seu passeio, correndo e fugindo-me
quando eu o queria agarrar.
Nem sei como foi aquilo, mas o polícia, certamente cego
de cólera, imaginou que eu estimulava o macaco, e, num
instante, saltou por cima da corda.
Em duas pernadas chegou a meu lado, e deu-me
uma bofetada que quase me derrubou.
Quando me endireitei e abri os olhos, Vitalis, que
surgira não sei de onde, estava entre mim e o polícia,
a quem segurava pelo pulso.
- Proíbo-o de bater na criança - disse ele. - O que fez é
uma cobardia.
E durante alguns segundos, os dois homens olharam-se,
frente a frente.
O guarda parecia louco de cólera.
O meu mestre mostrava-se magnífico de nobreza:
conservava erguida a sua bela cabeça emoldurada
de cabelos brancos e o rosto exprimia indignação e
autoridade.
Tive a impressão de que, perante aquela atitude,
o guarda se ia sumir debaixo da terra; porém, Isso
não aconteceu: num movimento enérgico, desprendeu
a mão, agarrou Vitalis pela gola e empurrou-o com
brutalidade.

Vitalis quase caiu, de tal forma o empurrão fora


rude; mas susteve-se, e, levantando o braço direito,
bateu fortemente com ele no punho do polícia.
O meu mestre era um velho, vigoroso é certo, mas
enfim, um velho; e sendo o guarda um homem ainda
novo e cheio de força, a luta entre os dois não poderia ser
longa. Mas não houve luta.
- Que deseja? - perguntou Vitalis.
- Está preso. Acompanhe-me à esquadra.
- Porque razão bateu na criança?
- Nada de conversas, acompanhe-me.
Vitalis não replicou, mas disse, voltando-se para mim:
- Volta para a estalagem, leva os cães e espera
notícias minhas.
Não conseguiu acrescentar mais nada; o polícia
arrastava-o consigo,
Assim terminou tristemente aquele espectáculo
que o meu mestre quisera tornar divertido.
O primeiro movimento dos cães foi o de seguir o
dono, mas ordenei-lhes que ficassem junto de mim, e,
habituados a obedecer, voltaram para trás. Vi então
que estavam açaimados, mas, em vez de um açaimo a
valer, traziam simplesmente uma fita de seda amarrada com
laços em volta do focinho. Pareciam açaimos de teatro, e o meu
mestre sem dúvida mascarara assim os cães para a partida que
queria pregar ao
polícia.
O público dispersara-se rapidamente: apenas
algumas pessoas se conservavam nos mesmos lugares,
comentando o que se passara.
Regressei à estalagem, bastante aflito e inquieto.
Já não estava no tempo em que Vitalis me inspirava
terror. A bem dizer, esse tempo durara apenas umas horas.
Depressa me prendi a ele com sincera
afeição, afeição que aumentava de dia para dia. Um
pai não é mais carinhoso para com o filho do que ele
o era para comigo. Ensinara-me a ler, escrever, a

contar. aprendera música com ele; nos nossos longos


percursos dava-me lições, ora sobre uma coisa, ora
sobre outra.
Estimava-o e ele estimava-me.
Aquela separação atingiu-me, pois, dolorosamente.
Quando nos tornaríamos a ver?
Haviam falado de prisão. Quantos dias poderia
ela durar? Que ia eu fazer nesse meio tempo? Como
viver? De quê? O meu mestre tinha o costume de
trazer nas algibeiras todo o dinheiro que possuía,
e, antes de ser levado pelo polícia, não houvera tempo
de mo dar.
Eu só tinha alguns cobres no bolso; seriam suficientes
para nos alimentar a todos, Joli-Coeur, aos cães e a mim?
Passei assim dois dias cheios de angústia, sem me
atrever a sair do pátio da estalagem, ocupando-me
de Joli-Cccur e dos cães, que se mostravam também
inquietos e desgostosos.
Finalmente, ao terceiro dia, um homem trouxe-me uma carta
de Vitalis. Nessa carta, dizia o meu mestre que o
retinham
na prisão para, no sábado seguinte, comparecer na
polícia correccional, sob a acusação de resistência a
um agente da autoridade, e de vias de facto na
pessoa do referido-agente.
«Deixando-me levar pela cólera, acrescentava ele,
cometi um grande erro que me poderá custar caro.
Mas é tarde demais para o reconhecer. Vem à audiência; será
para ti uma lição». Em seguida ajuntava alguns conselhos
quanto à forma como eu me devia portar e terminava mandando-me
um abraço e recomendando que fizesse por ele uma carícia a
Capi, a Joli-Coeur, a Dolce e Zerbino.
Informei-me e disseram-me que a audiência da
polícia correccional começava às dez horas. No sábado, às
nove, encostei-me à porta e fui o primeiro a entrar. A pouco e
pouco a sala encheu-se e vi Então, vários dos

então vários dos espectadores que haviam assistido


à cena com o guarda.
Eu não sabia o que eram os tribunais, a justiça,
mas, Instintivamente, sentia por tudo aquilo um medo
horrível: embora se tratasse de Vitalis e não de mim,
parecia-me que eu ali corria perigo; acaçapei-me
atrás de um enorme fogão e, encolhendo-me de encontro à
parede, fiz-me o mais pequenino possível. Não foi o meu
mestre quem primeiro Julgaram
mas sim gatunos e outros que se haviam espancado.
Todos afirmavam estar inocentes e todos, sem excepção, foram
condenados. Por fim, Vitalis veio sentar-se entre dois
guardas,
no banco onde aquela gente o havia precedido.
O que disseram ao princípio, de nada me lembro;
estava demasiadamente comovido para que pudesse
ouvir ou, pelo menos, compreender. Aliás, eu não
pensava em escutar, olhava apenas.
Contemplava o meu mestre que se levantara, com
os seus compridos cabelos brancos penteados para
trás, numa atitude de homem envergonhado e desgostoso;
contemplava o juiz que o interrogava. -Então - disse
este-, reconhece haver dado
murros no agente da polícia que lhe tinha dado voz
de prisão?
-Não dei murros, mas apenas um murro; ao
chegar ao local aonde devíamos representar, vi o
guarda dar uma bofetada na criança que me acompanhava.
- É seu filho, essa criança?
-Não, senhor doutor juiz, mas estimo-o como se
fosse meu filho. Quando o vi levantar a mão para o
garoto, deixei-me arrebatar pela cólera, agarrei
bruscamente na mão do guarda e impedi-o de esbofetear outra
vez o pequeno. -Chegou a bater no agente da polícia?
-Isto é, quando o guarda me segurou pela gola,
esqueci quem era o homem que me ameaçava, e, cheio
de furor, fiz um movimento instintivo, involuntário.

- Na sua idade, ninguém se deixa dominar pelo furor.


- Assim devia ser; desgraçadamente, nem sempre
cumprimos o que devemos.
- Vamos ouvir o depoimento do agente da polícia.
Este narrou os factos tais como se tinham passado, mas
insistindo mais na forma como haviam troçado da sua pessoa, da
voz e dos gestos, do que
na pancada que recebera.
Durante o depoimento, Vitalis, em lugar de o escutar
atentamente, olhava para todos os lados da sala. Percebi que
me procurava. Então decidi deixar
o meu esconderijo, e, furando por entre os curiosos,
cheguei à primeira fila.
Avistou-me e a sua cara entristecida alegrou-se;
senti que ficara feliz por ver-me e, mau grado meu,
os olhos encheram-se-me de lágrimas.
-É tudo o que tem a dizer em sua defesa? perguntou por
fim o juiz. -Quanto a mim, nada tenho a acrescentar; mas
pela criança a quem amo ternamente e que ficará
sozinha, reclamo a indulgência do tribunal e peço-lhe que nos
tenha separados o menor tempo possível.
Imaginava que iam pôr Vitalis em liberdade. Mas,
não aconteceu assim.
Outro magistrado falou durante alguns minutos;
em seguida o juiz, com voz grave, disse que o referido
Vitalis, acusado de injúrias e sevícias na pessoa de
um agente de segurança pública, era condenado a
dois meses de prisão e a cem francos de multa.
Dois meses de prisão!
Através das lágrimas, vi a porta, por onde Vitalis
entrara, tornar a abrir-se; o meu velho mestre seguiu um
polícia, depois a porta fechou-se atrás dele. Dois meses
de separação! Para onde Ir?

CAPÍTULO 11.
EM BARCO.

Ao regressar à estalagem, com o coração oprimido


e os olhos vermelhos, encontrei à porta do pátio o hospedeiro,
que me examinou demoradamente.
Ia eu a passar a fim de reunir-me aos cães,
quando ele me deteve, dizendo-me:
- Então!? O teu patrão?
- Foi condenado.
- A quanto tempo?
- Dois meses de prisão.
- E de quanto foi a multa?
- De cem francos.
- Dois meses, cem francos - murmurou ele três
ou quatro vezes.
Quis continuar o meu caminho; de novo me fez parar.
- E que vais fazer durante estes dois meses?
- Não sei.
- Ah! Não sabes. Tens dinheiro para viver e para
alimentar os teus bichos, calculo eu.
- Não, senhor.

- Pois bem! Meu rapaz - continuou o estalajadeiro - o teu


patrão já me deve muito dinheiro, não te posso abrir crédito
durante dois meses, sem saber, no fim de contas, se serei
pago. tens de ir-te embora.
- Ir-me embora! Mas para onde quer que eu vá?
- Isso não é comigo: não sou teu pai, nem teu
protector. Porque te hei-de dar alojamento?
Fiquei uns momentos aturdido. Que poderia dizer?
- Vamos, meu rapaz, agarra nos cães e no macaco e põe-te
a andar. Deixas-me, já se sabe, o saco do teu patrão. Quando
ele sair da cadeia virá buscá-lo e então liquidaremos as
nossas contas.
- Mas onde quer que o meu mestre me procure
ao sair da prisão? É aqui que ele me virá buscar.
- Nada mais tens a fazer do que voltar nesse
dia; daqui até lá, vai dar um passeio pelos arredores, pelas
termas. Em Bagnéres, Cauterets, Luz, podes ganhar dinheiro.
- E se o senhor Vitalis me escrever?
- Guardar-te-ei a carta.
- Mas se lhe não respondo?
- Ah! Já me estás a aborrecer. Disse-te que te
fosses embora. Tens de sair daqui, e já. Dou-te cinco
minutos para partir; se te encontro, quando voltar
ao pátio, ajustaremos contas.
Percebi perfeitamente que qualquer insistência
seria inútil. Como dizia o estalajadeiro, «tinha de
sair dali».
Entrei na estrebaria, e, depois de desamarrar os
cães e Joli-Coeur, de haver afivelado o saco e enfiado
no ombro a correia da harpa, saí da estalagem.
O hospedeiro postara-se à porta a fim de me vigiar.
- Se vier uma carta - gritou -, cá ta guardarei!
Sentia pressa em sair da cidade, pois os cães não
estavam açaimados. Que responder, se por acaso,)
encontrasse um polícia? «Que não possuía dinheiro
para lhes comprar açaimos? Era a pura verdade, pois.
feitas as contas, só tinha onze soldos na algibeira,

isso não chegava para semelhante aquisição. Não


me prenderia ele, também? Vitalis e eu na prisão,
que seria dos cães e de Joli-Coeur? Tornara-me empresário da
companhia, chefe de família, eu, a criança sem família, e
sentia a minha responsabilidade.
No rápido percurso, os cães levantavam o focinho
para mim e olhavam-me com um ar que não precisava de palavras
para ser compreendido: tinham fome.
Joli-Coeur, empoleirado no meu saco, puxava-me
de tempos a tempos a orelha para me obrigar a voltar a cabeça
para si: então coçava na barriga com um gesto que não era
menos expressivo do que o olhar dos cães.
- Eu bem poderia, como eles, falar da minha fome,
porque também não almoçara; mas para quê?
Os onze soldos não chegariam para almoço e jantar;
devíamo-nos contentar com uma só refeição que, a meio do dia,
substituiria as outras duas.
Como a estalagem onde estivéramos e de onde
fôramos expulsos ficava situada no arrabalde de
Saint-Michel, na estrada de Montpellier, eu seguira
naturalmente por essa estrada.
Tanto me fazia ir para uma terra como para
outra; em toda a parte me pediriam dinheiro para
comer e me alojar. A questão do alojamento ainda era
a menos Importante; estávamos no Verão e podíamos
dormir ao ar livre, abrigados por qualquer sebe ou
muro. Mas o comer?
Creio que andámos perto de duas horas sem que
eu ousasse parar.
Por fim imaginei-me bastante longe de Toulouse
para Já nada recear, ou pelo menos para prometer
que açaimaria os cães no dia seguinte se mo pedissem,
e entrei na primeira padaria que encontrei.
Requisitei libra e meia de pão.

- Será melhor levar um pão de duas libras -


disse-me a padeira. - para essa bicharada, não é demais.
Sem dúvida não era demasiado um pão de duas
libras para todos, pois, sem contar Joli-Coeur que
pouco comia, cabia uma meia libra a cada um de
nós, mas era muito para a minha bolsa.
Fiz rapidamente os cálculos e disse à padeira,
com ar que tentei tornar convicto, que libra e meia
de pão era o bastante e pedi-lhe que não me cortasse mais.
- Está bem, está bem - respondeu.
E, de um belo pão de seis libras que certamente
comeríamos todo inteiro, cortou-me a quantidade que
eu lhe dissera e colocou-a na balança, na qual deu
uma pancadinha.
- Tem peso a mais - disse - ficará pelos dois cêntimos.
E deixou cair na gaveta os meus oito soldos.
Os cães, regozijados, pulavam em minha volta, e
Joli-Coeur puxava-me pelos cabelos, dando gritinhos.
Não fomos para muito longe.
Encostei a harpa ao tronco da primeira árvore
que encontrei no caminho, e sentei-me no chão; os
cães Instalaram-se defronte de mim, Capi ao meio,
Dolce de um lado, Zerbino do outro; quanto a Joli-coeur, que
não estava cansado, ficou de pé, pronto a roubar os
bocados que lhe conviessem.
A divisão da «micha» era um caso complicado;
cortei-a em cinco partes tão iguais quanto possível,
e, para que não houvesse pão desperdiçado, distribuí-a em
fatias pequenas; cada um por sua vez tinha o pedaço que lhe
competia, como se comêssemos do rancho.
Joli-coeur, que não precisava de comer tanto como
nós, achou que fora o mais contemplado, e ficou repleto quando
estávamos ainda esfomeados. Da parte dele tirei três bocados
que meti no saco para dar mais tarde aos cães; depois, como

restassem quatro, cada um de nós teve mais um quinhão; foi ao


mesmo tempo prato suplementar e sobremesa.
Depois de alguns momentos de descanso, dei o
sinal de partida: era preciso ganhar para nos alojarmos essa
noite, ou, pelo menos para almoçarmos no dia seguinte, se,
como era provável, fizéssemos a
economia de dormir ao ar livre.
Ao fim de uma hora de marcha, pouco mais ou
menos, avistámos uma aldeia que me pareceu apropriada para a
realização dos meus desejos. A distância, dava a
impressão de ser bastante
miserável, e, por consequência, a receita só poderia
resultar muito diminuta, mas isso não era coisa que
me descoroçoasse; não tinha exigências, quanto à
soma do lucro, e dizia de mim para mim que quanto
mais pequena fosse a aldeia menos probabilidades
haveria de encontrar polícias.
Arranjei aparatosamente os meus comediantes, e,
na melhor ordem possível, entrámos na aldeia; infelizmente
faltava-nos o pífaro de Vitalis e a sua imponência.
Durante o percurso, olhava para a direita e para
a esquerda a ver o efeito que produzíamos; pareceu-me
medíocre, pois levantavam a cabeça, tornavam-na a abaixar e
ninguém nos seguia. Chegados a uma praçazinha no meio da
qual se
achava uma fonte sombreada de plátanos, agarrei
na harpa e principiei a tocar uma valsa. A música
era alegre e os meus dedos ágeis, mas sentia o coração
oprimido e tinha a impressão de que trazia aos ombros um fardo
excessivamente pesado.
Ordenei a Zerbino e a Dolce que dançassem; obedeceram-me
e puseram-se a voltear. Mas ninguém se incomodou em vir
ver-nos; no
entanto, no limiar das portas, estavam mulheres que
faziam meia ou conversavam.
Era de desesperar.
Talvez aquela gente não gostasse de dança. No
fim de contas, era possível.

Mandei Zerbino e Dolce sentarem-se e comecei a


cantar a minha Canzonetta; e, seguramente, jamais
a Interpretara com tamanho zelo:

Fenesta vascia e patrona crudele


Quanta sospire mate fatto lettare.

Principiava a segunda estrofe quando vi um homem, vestido


com uma jaleca e com um chapéu de feltro na cabeça, dirigir-se
para nós.
Enfim!
Continuei a cantar com mais entusiasmo.
- Olá! - exclamou ele - que fazes aqui, tratante?
Interrompi-me, espantado por aquela interpelação, e
fiquei de boca aberta, a vê-lo avançar.
- Então?! Não respondes? - disse o homem.
- O senhor bem vê, estou a cantar.
- Tens licença para cantar na praça da nossa comuna?
- Não, senhor.
- Então raspa-te, se não queres que te processe.
- Mas, senhor...
- Trata-me por senhor guarda rural, e gira daqui,
mendigo.
Um guarda rural! Eu bem sabia pelo exemplo do
meu mestre quanto custava querer revoltar-se contra
a gente da polícia.
Não esperei nova ordem; girei nos calcanhares,
conforme me haviam recomendado, e tomei rápidamente o caminho
por onde viera. Mendigo! Aquilo não fora, no entanto,
justo. Eu
não mendigara, cantara, o que era minha maneira
de trabalhar.
Em cinco minutos saí daquela comuna pouco hospitaleira
mas bem policiada. Os cães seguiam-me de cabeça baixa e
aspecto contristado, certamente percebendo que nos acabara de
acontecer uma má aventura.

O tempo estava quente; dormir ao ar livre naquela


estação não seria coisa grave; mas devíamos Instalar-nos de
maneira que escapássemos aos lobos, se os houvesse na região,
e, o que me parecia ainda mais
perigoso, aos guardas rurais; os homens eram-nos
mais temíveis do que os animais ferozes.
Tínhamos de andar sempre para a frente na estrada
poeirenta, até encontrar um abrigo. Foi o que
fizemos.
O caminho parecia não ter fim; os quilómetros
sucediam-se; os últimos clarões róseos do sol poente
haviam desaparecido do céu e ainda não encontráramos esse
abrigo. Devia, bem ou mal, tomar uma decisão.
Quando resolvi parar, a fim de nos deitarmos,
estávamos num bosque entremeado de clareiras onde
se erguiam aqui e ali blocos de granito. O local era
realmente triste e deserto, mas não tínhamos por
onde escolher, e pensei que no meio daquelas pedras
encontraríamos um refúgio contra a frescura da noite.
Deixámos a estrada e metemo-nos pelo meio das
pedras; não tardei a ver um enorme bloco de gra nito meio
inclinado, que formava como que uma cavidade na base, e, no
cimo, um tecto. Nessa cavidade o vento amontoara uma espessa
camada de caruma
de pinheiro. Não podia encontrar coisa melhor: um
colchão para nos deitarmos, um tecto para nos abrigarmos; só
nos faltava um pedaço de pão; mas nem devíamos pensar nisso;
de resto, lá diz o ditado, «quem dorme, janta».
Antes de dormir, expliquei a Capi que contava
com ele para nos guardar, e o bom animal, em vez
de vir deitar-se connosco nas agulhas de pinheiro,
ficou fora, armado em sentinela. Eu podia estar tranquilo;
sabia que seria prevenido da aproximação de qualquer pessoa.
Todavia, embora sossegado sobre este ponto, não
adormeci logo que me deitei na caruma, com Joli-Coeur

junto de mim, embrulhado no meu casaco, e Zerbino e Dolce


enroscados a meus pés: a Inquietação era maior do que a
fadiga. O dia, aquele primeiro dia de viagem, correra-nos
mal; como seria o outro que se Ia seguir? Tinha fome
e sede, e só me restavam três soldos.
Como alimentar os companheiros, como alimentar-me a mim
próprio, se não encontrasse meio de dar representações?
Deveríamos então morrer de fome ao canto de um bosque, debaixo
de qualquer moita?
Senti os olhos encherem-se-me de lágrimas e, de
repente, desatei a chorar: pobre mãe Barberin! Pobre
Vitalis!

Deitara-me de ventre para baixo e chorava com a


cara metida nas mãos sem me poder conter, quando
um bafo morno me passou pelos cabelos; voltei-me
vivamente e uma língua macia e quente colou-se-me
ao rosto. Era Capi, que, ao ouvir os soluços, me viera
consolar, como o fizera noutro tempo, na minha primeira noite
de viagem.
,Enlacei-o pelo pescoço e beijei-lhe o focinho húmido; -
então deu dois ou três gemidos sufocados e pareceu-me que
chorava comigo.

Já era dia quando acordei; Capi sentado em minha frente,


contemplava-me; nos ramos das árvores os pássaros chilreavam;
ao longe, muito ao longe,
um sino tocava o Angelus; o sol, que já ia alto, lançava raios
quentes e reconfortantes, tanto para o coração como para o
corpo.

Os preparativos matinais fizeram-se rapidamente


e pusémo-nos a caminho; dirigindo-nos para o lado
donde vinham as badaladas do sino, encontraríamos
uma aldeia e, com toda a certeza, uma padaria;
quando alguém se deita sem jantar e sem ceia, a
fome faz-se sentir muito cedo.

A minha resolução estava tomada; gastaria os


três soldos, e depois veríamos.

Ao chegar à aldeia, não tive precisão de perguntar


onde era a padaria; o nariz guiou-nos justamente
para lá; o meu olfato tornara-se quase tão apurado
como o dos cães para sentir de longe o agradável
cheiro do pão quente.
Três soldos de pão, quando ele custa cinco soldos
a libra, só deu a cada um de nós um bocado muito
pequenino, e o nosso almoço depressa terminou.
,Chegara a altura de ver, ou antes, de arranjar os
meios para nesse dia conseguir algum dinheiro.,Com
este fim percorri a aldeia procurando o sítio mais
favorável para um espectáculo; ia examinando ao
mesmo tempo a fisionomia dos habitantes dali, tentando
adivinhar se nos seriam amigos ou inimigos. A minha ideia
não era a de dar imediatamente a
representação, pois a hora não me parecia conveniente, mas a
de estudar a região, de escolher o melhor local, e de voltar
aí a meio do dia a fim de tentar a sorte.
Caminhava absorvido por estes pensamentos,
quando de súbito ouvi gritar atrás de mim; voltei-me
bruscamente e vi chegar Zerbino perseguido por uma
velha. Não me foi preciso muitos segundos para compreender o
que provocava aquela perseguição e gritos; aproveitando-se da
minha distracção, Zerbino abandonara-me e entrara numa casa
onde roubara
um pedaço de carne que trazia nos dentes.
- Agarrem o ladrão! - gritava a velha. - Prendam-no,
- prendam-nos todos!
Ao ouvir estas últimas palavras, sentindo-me culpado, ou
pelo menos responsável do delito do cão, desatei a correr
também. Que responder, se a mulher me reclamasse o dinheiro da
carne roubada? Como poderia pagar? E, uma vez agarrados, não
nos meteriam na prisão? Vendo-me fugir, Capi e Dolce não
ficaram para trás, e percebi-os na minha peugada, enquanto
Joli-Coeur, encarrapitado no meu ombro, se me segurava ao
pescoço para não cair.

Não receava que me alcançassem, mas podiam-nos prender à


passagem, e pareceu-me justamente que era essa a intenção de
duas ou três pessoas que
impediam o caminho. Por felicidade, uma ruazinha
transversal ia desembocar na estrada, antes daquele
grupo de adversários. Meti-me por ali dentro, acompanhado dos
cães; e, correndo com quanta força tinha, depressa nos achámos
em pleno campo. Todavia não parei senão quando a respiração me
começou a faltar, isto é, depois de ter percorrido perto de
dois quilómetros. Então voltei-me, atrevendo-me a
olhar para trás; ninguém nos seguia; Capi e Dolce
vinham sempre na minha retaguarda, e Zerbino,
ainda longe, aproximava-se, certamente depois de se
haver detido a comer o bocado de carne.
Chamei-o; porém, o animal, sabendo que merecia
um castigo severo, parou e, em vez de vir para mim,
fugiu.
Zerbino roubara a carne impelido pela fome. Mas
eu não podia aceitar essa razão como desculpa.
O caso é que houvera um roubo. Era preciso que o
culpado fosse punido, ou então deixaria de haver
disciplina na companhia: na aldeia próxima, Dolce
imitaria o camarada, e o próprio Capi acabaria por
sucumbir à tentação.
Eu devia, pois, administrar uma correcção pública
a Zerbino. Mas seria preciso que ele quisesse comparecer à
minha presença, e isso não era coisa fácil. Tive de
recorrer a Capi.
- Vai buscar-me Zerbino.
E logo ele partiu a fim de cumprir a missão que
lhe confiara. No entanto pareceu-me que aceitava o
encargo com menos zelo do que de costume, e, no
olhar que me lançou antes de se Ir embora, vi que
gostaria mais de ser advogado de Zerbino do que
meu polícia.
Só tinha de esperar o regresso de Capi e do prisioneiro,
o que poderia demorar, pois Zerbino não se deixaria trazer
logo. Contudo a espera não me era nada desagradável.

Já não receava que me perseguissem, visto que estava bastante


afastado da aldeia. E, além disso, sentia-me tão fatigado da
corrida que bem desejava descansar um poucochinho. Aliás, para
que apressar-me se não sabia para aonde Ir nem tinha nada a
fazer?
Justamente o local onde me detivera prestava-se
às mil maravilhas para o repouso. Na minha doida
correria sem destino, chegara às margens do canal
do ffidi, e achava-me numa região verde, cheia de
frescura: água, árvores, erva, uma fonte a escorrer
pelas fendas dum rochedo atapetado de plantas que
tombavam em cascatas floridas seguindo o curso da
água; era lindo, e não havia sítio melhor para esperar o
regresso dos cães. ]Passou-se uma hora sem que visse nem
um nem
outro voltar, e principiava a sentir-me inquieto
quando Capi reapareceu sózinho, de cabeça baixa.
- Onde está Zerbino?
Capi deitou-se numa atitude receosa, e reparei
então que ele tinha uma das orelhas ensanguentada.
Não precisei de explicação para compreender o
que acontecera: Zerbino revoltara-se contra o polícia
e resistira; e Capi, que possivelmente obedecia pesaroso a uma
ordem que ele considerava muito severa, deixara-se vencer.
Deveria zangar-me e castigá-lo também? Não tive
coragem; não me sentia com disposição para penalizar os
outros; já me bastava o meu próprio desgosto. Como a
expedição de Capi não dera resultado, só
me restava o recurso de esperar que Zerbino voltasse
livremente; conhecia-o bem; depois dum primeiro movimento de
revolta, resignar-se-ia a sofrer o castigo e eu vê-lo-ia
aparecer cheio de arrependimento.
O tempo foi correndo, Zerbino não apareceu,
insensivelmente o sono Invadiu-me e adormeci.

Quando acordei, o sol estava por cima da minha


cabeça; a manhã já havia passado.
E Zerbino sempre sem aparecer.
Chamei-o, assobiei, mas tudo foi inútil; tendo
almoçado bem, decerto digeria tranquilamente, acaçapado
debaixo de qualquer moita. A minha situação tornava-se
crítica: se eu me
fosse dali, ele poderia perder-se e nunca mais nos
encontrar; se eu ficasse, não teria maneira de ganhar
alguns soldos.
E, precisamente, a necessidade de alimento impunha-se
cada vez com mais força. Os olhos dos cães fixavam-se nos meus
desesperadamente e Joli-Coeur coçava o ventre, dando gritinhos
de cólera.
Como o tempo passasse e Zerbino não viesse, mandei
novamente Capi à procura do companheiro, mas ao fim de meia
hora voltou sózinho e compreendi
que o não encontrara.
Que fazer?
Embora Zerbino fosse culpado e por sua causa
nos tivesse metido numa terrível situação, eu não me
confortava com a ideia de o abandonar. Que diria
vitalis se eu não lhe levasse os três cães? E, apesar
de tudo, eu estimava aquele patife do Zerbino.
Resolvi então esperar até à tarde, mas era impossível
ficar naquela inacção a ouvir a barriga a dar horas, pois a
sua voz parecia ainda mais suplicante
por ser a única a fazer-se sentir, sem distracção
nem alívio.
Se conseguíssemos,esquecer de que estávamos es-fomeados,
teríamos seguramente menos fome, durante essas horas de
esquecimento. Ocupar-nos em quê?
Ao considerar esta pergunta, lembrei-me de que
Vitalis me dissera que, na guerra, quando um regimento se
mostrava cansado por uma longa caminhada, mandavam tocar
música, e assim, ao ouvir as marchas alegres e entusiásticas,
os soldados esqueciam a fadiga.

Se eu tocasse uma música alegre, talvez não nos


recordássemos mais da fome; em qualquer caso,
ocupado eu a tocar e os cães e Joli-Coeur a dançar
o tempo passaria mais depressa.
Agarrei na harpa que estava encostada a uma
árvore, e, voltando as costas para o canal, pus os
actores em posição e comecei a tocar uma polca e
em seguida uma valsa.
Os meus camaradas não pareciam muito dispostos
para danças; era evidente que um bocado de pão os
satisfaria mais; porém, a pouco e pouco animaram-se,
a música produziu o efeito esperado, esquecemos
todos o pão que não possuíamos e só pensámos, eu
em tocar e eles em dançar.

De súbito uma voz argentina, uma voz de criança


exclamou: «Bravo!» A voz -partia de trás de mim.
Voltei-me vivamente.
Um barco parara no canal, com a proa virada
para a margem onde me encontrava; os dois cavalos
que o puxavam haviam-se detido na orla oposta.

Era um barco singular, como eu nunca vira;


muito mais curto do que as chalupas que servem
ordinariamente para a navegação nos canais. tinha,
sobre a ponte pouco elevada acima do nível da água,
uma espécie de galeria envidraçada; em frente dessa
galeria achava-se uma varanda sombreada por plantas
trepadeiras, cuja folhagem, presa aqui e ali nos recortes do
toldo, caía em cascatas verdes: na varanda vi duas pessoas:
uma senhora alta, ainda nova, de ar nobre e melancólico, e um
rapazinho mais ou
menos da minha Idade, que me pareceu estar deitado.
Fora este certamente quem gritara: «Bravo».
Refeito da surpresa, pois aquela aparição nada
tinha de assustadora, tirei o chapéu para agradecer o aplauso.
- É para divertir-se que toca? - perguntou-me a
.senhora, com acento estrangeiro.

- É com o fim de ensaiar os meus comediantes


e também... para me distrair.
o rapazinho fez um sinal e a dama inclinou-se
para ele.
Se queria tocar! Tocar para um público que chegara tão a
propósito! Não me fiz rogado. Segurei outra vez na harpa
e comecei a tocar uma
valsa; Capi enlaçou logo a cintura de Dolce com as
duas patas e os dois puseram-se a voltear a compasso. Depois
Joli-Coeur dançou sozinho. Passámos, sucessivamente, revista
ao nosso repertório. Não sentíamos fadiga. Quanto aos
bailarinos, haviam certamente compreendido que um jantar seria
o prémio do seu trabalho, e, como eu, não se poupavam.
Subitamente, a meio dos exercícios, vi Zerbino
sair de um arbusto, e, quando os outros passaram
perto dele, meteu-se descaradamente entre os camaradas e tomou
o papel que lhe competia. Tocando e vigiando os actores,
eu olhava de tempos a tempos para o rapazinho, e, coisa
estranha, embora parecesse entusiasmar-se com as peloticas,
não se mexia: continuava deitado, numa Imobilidade
completa, só agitando as mãos para nos aplaudir.
Seria paralítico? Dir-se-ia estar amarrado a uma
tábua.

Insensivelmente o vento Impelira o barco para a


margem onde me encontrava e eu via agora o menino como se
estivesse no barco a seu lado: era loiro, de rosto pálido, tão
pálido que se lhe viam as veias
azuis da testa sob a pele transparente; tinha uma
expressão doce e triste, com qualquer coisa de doentio.
- Como costumam pagar os lugares no seu espectáculo? -
perguntou-me a senhora.
- É conforme o prazer que sentirem durante o
espectáculo.
- Então, mamã, temos de pagar muito - disse o
menino.

E acrescentou algumas palavras numa língua que


eu não compreendia.
- Artur queria ver os actores mais de perto
disse-me a dama. Fiz sinal a Capi, que, num pulo, se
arremessou para o barco.
- E os outros? - exclamou Artur.
Zerbino e Dolce seguiram o companheiro.
- E o macaco!
Joli-Coeur teria facilmente saltado, mas eu não
confiava nele; uma vez a bordo, podia abandonar as
brincadeiras o que talvez não fosse do gosto da senhora.
- Ele é mau?
- Não, minha senhora; mas nem sempre obedece
e receio que não proceda convenientemente.
- Pois bem! Venha com ele.
Dizendo isto, fez um gesto a um homem que
estava atrás, junto do leme, e logo a seguir esse homem deitou
uma tábua para a margem. Era uma ponte que me permitiu
embarcar sem
arriscar o perigoso salto; entrei gravemente no barco,
com a harpa ao ombro e Joli-Coeur na mão.
- O macaco! o macaco! - gritou Artur.
Aproximei-me do rapazinho, e, enquanto ele afagava
Joli-Coeur, pude examiná-lo à vontade. Coisa
surpreendente, estava realmente preso a
uma tábua, como me parecera a princípio.
- Tem pai, não é verdade? - perguntou-me a
senhora.
- Neste momento, estou só.
- Por muito tempo?
- Por dois meses.
- Dois meses! Oh! pobre pequeno! Como se pode
viver assim tanto tempo sozinho, na sua Idade?
- Tem de ser, minha senhora.
- O seu empresário obriga-o decerto a entregar-lhe todo o
dinheiro no fim desses dois meses?

- Não, minha senhora, não me obriga a nada.


Basta que eu arranje com que vivermos.
- E conseguiu-o até hoje?
Hesitei antes de responder: jamais vira uma senhora que
me inspirasse tanto respeito como aquela que me interrogava.
Mas falava-me com tamanha bondade, a voz era tão doce, o olhar
tão afável, tão animador, que me decidi a dizer-lhe a verdade.
E por que razão me havia de calar?
Contei-lhe então como tivera de me separar de
Vitalis, condenado à prisão por me haver defendido,
e como desde que deixara Toulouse não pudera ganhar um único
soldo. Enquanto eu falava, Artur brincava com os cães,
mas entretanto escutava o que eu dizia.
- Como devem ter fome! - exclamou ele.
A esta palavra, muito conhecida dos meus comediantes, os
cães ladraram e Joli-Coeur esfregou o ventre com frenesim.
- Oh! mamã! - disse Artur.
A dama compreendeu aquele apelo; disse qualquer coisa em
língua estrangeira a uma mulher que espreitava por uma porta
entreaberta e que, quase
no mesmo instante, trouxe uma mesinha cheia de acepipes.
- Sente-se, meu filho - disse a senhora.
Não me fiz rogado, descansei a harpa e instalei-me
rapidamente defronte da mesa; os cães rodearam-me e Joli-Coeur
saltou-me para os joelhos.
- Os seus cães comem pão? - perguntou-me
Artur.
Se comiam pão! Dei a cada um deles um bocado
que devoraram.
- E o macaco? - disse Artur.
Mas não havia necessidade de nos ocuparmos de
Joli-Coeur, pois, enquanto eu servira os cães, apoderara-se
dum pedaço de pastel folhado com o qual
quase se engasgava debaixo da mesa.

Por minha vez, agarrei numa fatia de pastelão


e, se não me engasguei como Joli-Coeur, pelo menos
comi-a com tanta voracidade e gula como ele.
- Pobre criança! - murmurava a senhora, enchendo-me o
copo.
- E onde iam jantar esta tarde se não nos houvéssemos
encontrado? - perguntou Artur.
- Parece-me bem que não- jantaríamos.
- E amanhã, onde vão Jantar?
- Talvez amanhã tenhamos a sorte dum bom encontro como o de
hoje.
Sem continuar a falar comigo, Artur voltou-se
para a mãe, e uma longa conversa se travou entre
eles na língua estrangeira que eu já ouvira; o rapazinho
parecia pedir qualquer coisa que ela não estava disposta a
conceder ou, pelo menos, contra a qual
objectava.
De repente Artur voltou a cabeça para mim pois o corpo
não se movia.
- Quer ficar connosco? - perguntou.
Olhei-o sem responder, de tal forma a proposta
me colheu de improviso.
- o meu filho pergunta se quer ficar connosco.
- Neste barco?
- Sim, no barco: meu filho é doente; os médicos
mandaram que se mantivesse num tabuleiro, assim
como vê. Para que ele se não aborreça, passeio-o de
barco. Vocês morarão connosco. Os cães e o macaco
darão representações e Artur será o seu público.
E você se quiser, tocará harpa. Dessa maneira prestam-nos
serviço e, por nosso lado, talvez lhes sejamos úteis. Não
terão de procurar espectadores todos os
dias, o que, para um rapaz da sua Idade, nem sempre
é fácil.
Num barco! Nunca eu andara de barco, e esse
fora, desde pequenino, o meu maior desejo. Ia viver
num barco, sobre a água, que felicidade!
Foi este o primeiro pensamento que me impressionou e me
deslumbrou o espírito. Que sonho!

Agarrei na mão da senhora e beijei-a.


Pareceu sensibilizada com esta prova de reconhecimento
e-afectuosamente, quase com ternura, passou-me várias vezes a
mão pela cabeça.
- Pobre pequeno! - murmurou.
Visto que me pediam que tocasse harpa, achei que
devia satisfazer imediatamente esse desejo: a solicitude
seria, até certo ponto, uma forma de testemunhar a minha boa
vontade e gratidão. Peguei no instrumento, fui para a
proa do barco
e comecei a dedilhar.
Ao mesmo tempo a dama aproximou dos lábios
um apitozinho de prata, o qual deu um som agudo.
Deixei de tocar, perguntando a mim próprio por
que razão apitava ela assim: seria para me dizer que
eu tocava mal ou para me mandar calar?
Artur, que via tudo o que se passava em sua volta,
percebeu a minha inquietação.
- A mamã apitou para que os cavalos comecem
a andar.
De facto, a embarcação, que se afastara da margem, corria
agora sobre as tranquilas águas do canal,
arrastada pelos cavalos.
- Quer tocar? - perguntou Artur.
E, com um sinal de cabeça, chamou a mãe para
junto de si; segurou-lhe na mão e conservou-a entre
as suas durante todo o tempo em que toquei diversos
trechos de música que o mestre me ensinara.

CAPÍTULO 12.

O MEU PRIMEIRO AmIGO.

A mãe de Artur, de origem inglesa, tinha o apelido


De Milligan; ficara viúva e Artur era o único
filho - pelo menos o único vivo, - pois tivera outro
mais velho, que desaparecera em circunstâncias mis teriosas.
Na idade de seis meses, este último fora perdido
ou roubado, e jamais haviam podido encontrá-lo.
É verdade que, na altura em que isto acontecera, a
senhora Milligan não pudera fazer as buscas necessárias. O
marido estava moribundo e ela própria caíra de cama gravemente
doente, delirante, sem
saber o que se passava à sua volta. Quando se restabeleceu, o
marido falecera e o filho tinha desaparecido. As investigações
haviam sido feitas por James Milligan, cunhado dela. Porém, o
que havia de particular nessa escolha, é que James Milligan
tinha Interesses opostos aos da cunhada. De facto, morrendo o
irmão sem deixar filhos, tornava-se o seu herdeiro.
As buscas foram infrutíferas: em Inglaterra, em
França, na Bélgica, na Alemanha, na Itália, foi

impossível descobrir o paradeiro da criança desaparecida.


Todavia, James Milligan não herdou nada do
irmão, pois, sete meses depois da morte do marido,
a senhora Milligan teve um filho, que era o Artur.
Mas a criança, débil e enfermiça, não podia viver,
diziam os médicos, morreria dum momento para
o outro; e, nesse dia, James Milligan tornava-se
enfim o herdeiro do título e dos bens do Irmão mais
velho - porque as leis da sucessão não são iguais em
todos os países, e na Inglaterra permitem, em certas
circunstâncias, que seja um tio a herdar em detrimento da mãe.
As esperanças de James Milligan acharam-se pois
retardadas pelo nascimento do sobrinho, embora não
destruidas; apenas tinha de esperar.
,E esperou.
Mas as predições dos médicos não se realizaram.
Artur continuou de compleição doentia; no entanto
não morreu, como fora vaticinado. Os cuidados da
mãe fizeram-no viver. É um milagre que, graças a
Deus, se repete com frequência.
Vinte vezes o imaginaram perdido, vinte vezes se
salvou; sucessivamente, e até algumas vezes ao
mesmo tempo, tivera todas as doenças a que estão
sujeitas as crianças.
Nos últimos tempos, declarara-se um mal terrível
a que chamam coxalgia, e que se localiza no fémur.
Para essa doença haviam receitado águas sulfurosas,
e a senhora Milligan viera para os Pirinéus. Porém,
depois de haver inutilmente experimentado as águas,
tinham aconselhado outro tratamento, que consistia
em conservar o enfermo estirado, sem pôr os pés
no chão.
Foi então que a senhora Milligan mandara construir em
Bordéus o barco onde me encontrava.
Ela não se conformava com a Ideia de deixar o
filho fechado num quarto; o pequeno morreria de
aborrecimento ou de falta de ar: como Artur já não
podia andar, a casa em que habitasse devia andar
por ele.
Havia transformado um barco em moradia flutuante, com
quartos, cozinha, salão e varanda. Era no salão e na varanda,
conforme o tempo, que Artur
estava de manhã à noite, com a mãe a seu lado.
E as paisagens desfilavam ante o rapazinho, sem que
ele tivesse outro trabalho senão o de abrir os olhos.
Partidos de Bordéus havia um mês, depois de
subir o Garonne, tinham entrado no canal do Midi,
de onde deviam alcançar os lagos e canais mais próximos do
Mediterrâneo; em seguida subiriam o Ródano, depois o Sone,
passariam deste rio para o Loire até ao Briare, tomariam o
canal que tem este nome,
e assim chegariam ao Sena para seguirem o curso
do rio até Ruão, onde embarcariam num grande
navio a fim de voltarem à Inglaterra.
Claro está que não foi logo no dia da minha chegada que
soube estes pormenores sobre a vida da Senhora Milligan e de
Artur; conheci-os sucessivamente, a pouco e pouco, e, se os
reuni aqui, foi para a compreensão da minha narrativa.
No dia em que ali entrei só vi o quarto que ia
ocupar no barco. Embora esse quarto fosse muito
pequenino-dois metros de comprimento por um de
largura, pouco mais ou menos -era o camarote mais
lindo, mais maravilhoso com que pode sonhar uma
imaginação infantil.
O mobiliário que o guarnecia consistia numa
única cómoda, mas essa cómoda parecia a inesgotável garrafa
dos alquimistas, que tanta coisa contêm. Em vez de ser fixa, a
prateleira superior era móvel, e, quando se erguia,
encontrava-se debaixo um
leito completo, colchão, travesseiro e tudo mais. Bem
entendido, não era muito larga a cama, mas tinha a
largura suficiente para se estar bem deitado. Sob o
leito estava uma gaveta recheada de todos os objectos
necessários para uma pessoa se vestir. E por baixo dessa
gaveta havia outra dividida em vários compartimentos,

onde se podia arrumar a roupa branca e os fatos. Nem mesas,


nem cadeiras, pelo menos do formato habitual; mas encostado ao
tabique, do lado da cabeceira da cama, via-se uma tabuinha
que, descendo, servia de mesa, e, no canto oposto, outra que
formava uma cadeira.
Uma vigia pequena aberta no costado, e que se
podia fechar com um vidro redondo, Iluminava e
arejava o quarto.
Nunca eu vira nada tão bonito e asseado; era
tudo de pinho envernizado e o soalho estava coberto
com um oleado de quadrados pretos e brancos.
Mas nem só os olhos se deleitaram.
Quando, depois de me despir, me deitei na cama,
experimentei um sentimento de bem-estar absolutamente novo
para mim; era a primeira vez que lençóis me acariciavam a pele
em vez de a arranharem; em casa da mãe Barberin eu dormia em
lençóis de estopa tesos e rugosos; com Vitalis, muitas vezes
deitávamo-nos sem lençóis, sobre palha ou feno, e,
quando nas estalagens os havia, mais valera que nos
dessem um bom molho de restolho. Como eram finos
aqueles em que me envolvia! Como eram macios,
como cheiravam bem! E o colchão, quanto era mais
fofo do que a caruma onde eu dormira na véspera!
Por muito bem deitado que estivesse naquela confortável
cama, levantei-me ao romper do dia, deseJoso de saber como os
meus actores haviam passado a noite.
Encontrei-os todos no mesmo lugar onde os deixara na
véspera e dormindo como se o barco fosse a sua habitação de há
muitos meses. Quando me aproximei, os cães acordaram e vieram
alegremente reclamar-me a carícia da manhã. Somente Joli-Coeur
não se mexeu, embora tivesse um olho meio aberto.
Não havia necessidade de grande esforço de espírito para
compreender o que aquilo significava: o senhor Joli-Coeur, que
era a susceptibilidade em pessoa,zangava-se

com extrema facilidade, e, uma vez zangado, ficava amuado


durante muito tempo. Nas circunstâncias presentes, estava
arreliado por eu não o ter levado comigo para o quarto, e
testemunhava-me o seu aborrecimento com aquele sono simulado.
Ao princípio,
persistiu no amuo, mas, depois, com
a sua mobilidade de humor, pensou noutra coisa, e,
por trejeitos, explicou-me que se eu quisesse ir a
terra passear com ele talvez me perdoasse.
Já de pé, o marinheiro que eu vira ao leme na
véspera ocupava-se agora em limpar a coberta: consentiu em
deitar a ponte para terra, e pude assim descer para a margem
com toda a minha companhia.
Brincando com os cães e com Joli-Coeur, correndo,
saltando fossos, trepando às árvores, o tempo passa
depressa; quando regressámos, vi os cavalos já atrelados ao
barco e amarrados a um ulmeiro no caminho por onde haviam de
seguir; só esperavam uma chicotada para começarem a andar.
Embarquei. Que prazer, uma viagem de barco!
Os animais iam trotando, e, sem que sentíssemos
um só solavanco, deslizávamos pelo rio; as duas
margens arborizadas fugiam para trás de nós, e só
ouvíamos o marulhar da água de encontro à quilha,
misturado com o som dos guisos que os cavalos levavam ao
pescoço.
Estava absorvido na minha contemplação, quando
ouvi pronunciar o meu nome.
Voltei-me vivamente: era Artur, e a mãe acompanhava-o.
- Dormiu bem? - perguntou-me Artur. - Melhor
do que nos campos?
Aproximei-me e respondi com palavras corteses,
que dirigi tanto à mãe como ao filho.
- E os cães? - disse ele.
Chamei-os, assim como a Joli-Coeur; vieram com
grandes cumprimentos e Joli-Coeur fazendo caretas,
como quando previam que íamos representar.
Mas, nesse dia, não se tratava disso.
A Senhora Milligan instalara o filho ao abrigo
dos raios do sol e sentara-se ao lado dele.
- Leve os cães e o macaco - disse-me ela. - Temos de
trabalhar. -Fiz o que me era pedido, e afastei-me com toda a
minha bicharada. Que trabalho poderia ter aquele pobre
doentinho?
Observei que a mãe lhe fazia recitar uma lição de
que ela seguia, o texto num livro aberto.
Estendido no tabuleiro, Artur ia dizendo de cor o
conteúdo da página, sem fazer um só movimento.
Ou, para falar mais justamente, tentava decorar,
pois hesitava duma forma terrível e não dizia três
palavras seguidas; ainda por cima enganava-se
muitas vezes.
A mãe repreendia-o docemente, mas ao mesmo
tempo com firmeza.
- Você não sabe a sua fábula - disse ela.
Pareceu-me estranho ouvi-la tratar o filho por
você, pois eu não sabia que os ingleses não usam o
tratamento de tu.
- Oh! mamã - respondeu ele com voz desolada.
- Hoje ainda sabe menos do que ontem.
- Diligenciei aprender.
- E não aprendeu.
- Não pude.
- Porquê?
- Não sei... porque não pude... Estou doente.
- Não está doente do cérebro; nunca consentirei
que nada aprenda, e que, com o pretexto da doença,
cresça- na ignorância.
Achei a Senhora Milligan muito severa; no entanto, ela
dizia aquelas coisas sem cólera e com voz terna.
- Por que me aflige, não aprendendo as suas lições?
- Não posso, mamã, afirmo-lhe que não posso.
E Artur pós-se a chorar.
Mas a Senhora Milligan não transigiu, embora
parecesse comovida e até aflita como dissera.

- Queria deixá-lo brincar esta manhã com Remi


e os cães - continuou ela. - mas não o fará senão quando me
disser de cor, sem um erro, toda a fábula.
Dizendo isto, entregou o livro a Artur e deu alguns
passos como para entrar no interior do barco, deixando o filho
ali. Ele soluçava, e do meu lugar eu ouvia-lhe a voz
entrecortada.
Como podia a Senhora Milligan mostrar-se tão severa para
com o pobre pequeno, a quem parecia amar ternamente? Se ele
não conseguia aprender a lição, a
culpa não era sua, mas da doença, sem dúvida. A mãe
Ia então desaparecer sem lhe dizer uma palavra de
conforto?
Mas não desapareceu; em vez de entrar no camarote, voltou
para o lado do filho.
- Quer que experimentemos aprendê-la juntos?
- perguntou-lhe.
Então sentou-se perto de Artur, e, retomando o
livro, começou a recitar lentamente a fábula que se
chamava: O Lobo e o Cordeirinho. O doente ia repetindo as
palavras e as frases. Depois de ler três vezes a fábula,
deu o livro a
Artur, dizendo-lhe que a aprendesse agora sozinho,
e foi-se embora.
Artur ficou a decorar a lição, e do sítio onde eu
estava via-lhe os lábios a mexer.
Era evidente que se aplicava a estudar.
Mas aquela aplicação não durou muito tempo;
não tardou a levantar os olhos do livro, os lábios
buliram mais devagar e, de súbito, ficaram imóveis.
Já não lia nem decorava.
Os olhos, divagando, encontraram os meus.
Com a mão fiz-lhe sinal que voltasse a estudar.
Sorriu-me docemente como para me dizer que me
agradecia a advertência, e fitou de novo o livro.
Infelizmente, dois minutos depois, um pica-peixe, rápido
como uma flecha, atravessou o canal, à proa do barco, deixando
atrás de si um raio azul.

Artur levantou a cabeça para o ver.


Quando a visão desapareceu, olhou então para
mim e disse-me.
- Não posso decorar, e no entanto bem o desejaria.
Aproximei-me.
- Mas essa fábula não é muito difícil - repliquei.
- oh! pelo contrário, é muito difícil.
- Pareceu-me bastante fácil: tenho a impressão
de que a aprendi, ao ouvir a sua mamã lê-la.
Sorriu com ar de dúvida.
- Quer que eu lha diga?
- Para quê, se é impossível?
- Não, não é impossível; quer que eu experimente? Segure
no livro.
Ele assim fez e eu comecei a recitar; só teve de
me corrigir três ou quatro vezes.
- o quê?! Realmente sabe-a! - exclamou ele.
- Não muito bem, mas agora creio que a direi
sem me enganar.
- Como conseguiu aprendê-la?
- Escutei quando a sua mamã a leu, mas escutei-a com
atenção, sem ver o que se passava à minha volta.
Corou e desviou os olhos; em seguida a um curto
momento de vergonha, disse:
- Bem percebo como escutou, e tentarei fazer o
mesmo; mas como foi que reteve todas essas palavras que se me
confundem na memória?
E pós-se a estudar a lição.
Em menos de um quarto de hora soube-a perfeitamente, e
principiava a repeti-la sem erros quando a mãe surgiu atrás de
nós.
Primeiramente zangou-se por nos ver reunidos,
pois imaginou que estávamos juntos para brincar,
mas Artur não a deixou dizer duas palavras:
- Já a sei! - gritou.
A Senhora Milligan olhou-me surpreendida e ia
certamente interrogar-me, quando Artur, sem que ela o pedisse,

se pôs a dizer de cor O Lobo e o Cordeirinho. Fê-lo com um ar


de triunfo e de alegria, sem hesitação e sem errar.
Entretanto, eu examinava a Senhora Milligan,
vi-lhe o belo rosto iluminar-se com um sorriso e
pareceu-me que os olhos se lhe humedeciam; porém,
como nesse momento ela se inclinou para o filho a
fim de o abraçar e beijar, não tenho a certeza de
que estivesse a chorar.
- As palavras não significam nada, - dizia Artur - mas as
coisas vemo-las, e Remi fez-me ver o pastor com a sua flauta;
quando levantei os olhos do livro já não pensava no que me
rodeava, via a flauta do pastor e escutava a ária que ele ia
tocando. Quer que eu cante a ária, mamã?
E cantou em inglês uma canção melancólica.

Desta vez a Senhora Milligan chorava realmente


e, quando se ergueu, vi as lágrimas dela nas faces
do filho. Então aproximou-se de mim, e, agarrando-me na mão,
apertou-ma com tanta ternura que me senti comovido.

Devo dizer já, o que não soube senão mais tarde,


que a Senhora Milligan se sentia desgostosa por ver
que o filho não aprendia, ou antes, nada podia aprender.
Embora doente, ela queria que Artur estudasse, e, precisamente
porque a doença seria longa, desejava dar-lhe ao espírito
hábitos que lhe permitissem reparar o tempo perdido, no dia em
que estivesse curado.
Até aí, pouco conseguira: se Artur não era rebelde
ao trabalho, era muito pouco atento e aplicado.

Daí a razão da sua alegria quando o ouviu dizer


de cor uma fábula aprendida comigo em meia hora,
fábula que ela própria não pudera, em vários dias,
meter-lhe na memória.

Quando penso agora nos dias passados naquele


barco, junto da Senhora Milligan e de Artur, acho
que foram os melhores dias da minha infância.

Artur tomou-se de ardente amizade por mim, e eu,


sem pensar e sob a influência da simpatia, considerava-o como
irmão: não havia uma disputa entre nós; nele, nem o menor
vestígio da superioridade que lhe dava a sua posição social;
em mim, nem o mais leve embaraço; eu não tinha mesmo a
consciência de que a minha situação poderia ser embaraçosa.
Aquela viagem em barco era para mim um deslumbramento;
não havia ali uma hora de tédio ou de fadiga; de manhã à noite
tínhamos o dia preenchido.
Quando a região tinha interesse, poucas milhas
se faziam num dia; se, pelo contrário, nos parecia
monótona, íamos mais depressa.
A hora fixa, as refeições eram-nos servidas na
varanda; e, enquanto comíamos, seguíamos o panorama movediço
das duas margens.
Quando o sol se escondia, parávamos onde a sombra nos
surpreendera; e aí nos demorávamos até que a luz reaparecesse.
Parado o barco, se o tempo estava frio, fechávamo-nos no
salão, e, depois de acenderem um lume brando, com o fim de
banir a humidade que era
nefasta ao doente, traziam então as luzes; instalavam Artur
defronte da mesa; sentava-me a seu lado, e a Senhora Milligan
mostrava-nos livros de estampas ou vistas fotográficas. Ou
então fechava os álbuns e contava-nos as lendas e os factos
históricos
das regiões por onde havíamos passado. Falava com
o olhar fixo no filho, e era tocante ver o esforço que
fazia para só exprimir ideias e empregar termos que
pudessem ser facilmente compreendidos.

Que vida doce e feliz para uma criança que, ao


deixar a cabana da mãe Barberin, caminhara pelas
estradas com o signor Vitalis!

Para ser justo comigo mesmo, devo dizer que eu


era mais sensível à felicidade moral que encontrava

naquela vida nova, do que aos prazeres materiais que


ela me oferecia.

Duas vezes eu vira partirem-se ou desfazerem-se


os laços que me prendiam àqueles que amava: a primeira, quando
havia sido levado para longe da mãe Barberin; a segunda,
quando fora separado de Vitalis; e assim me encontrara só no
mundo, sem apoio, sem protecção, sem outros amigos além dos
meus
bichos.

E, de repente, no isolamento e na miséria, encontrara


alguém que me testemunhara ternura, e a quem podia amar: uma
mulher, uma linda senhora,
meiga, afável e terna, e uma criança da minha Idade
que me tratava como se eu fosse seu camarada.
Todavia, por muito belos que me parecessem
aqueles novos hábitos, depressa me foi necessário
interrompê-los para voltar aos antigos.

CAPÍTULO 13.
ENJEITADO.

O tempo passara rápido durante a viagem, e aproximava-se


o momento em que o meu mestre ia sair da prisão. À medida que
nos afastávamos de Toulouse, este pensamento atormentava-me
cada vez mais.
Era encantador ir assim de barco, sem trabalhos
nem cuidados; mas eu precisaria de voltar, e fazer
por terra, e a pé, o trajecto percorrido sobre a água.

Seria muito menos agradável: deixaria de ter uma


boa cama, e findariam para mim as belas refeições,
os bolos, os serões em redor da mesa.

E o que mais me afligia era a Ideia de me afastar


de Artur e da Senhora Milligan; tinha de renunciar
à sua afeição, perdê-los como perdera a mãe Barberin. Seria
então sorte minha jamais amar e ser amado sem ser separado
brutalmente dos entes junto
dos quais desejaria passar a vida inteira?!

Posso dizer que esta preocupação foi a única


nuvem daqueles dias radiosos.

Certa ocasião, decidi aflorar o assunto, e perguntei


então à Senhora Milligan quanto tempo ela achava que seria
necessário para voltar a Toulouse,
pois queria estar à porta da prisão justamente na
altura em que o meu mestre a transpusesse.

Ao ouvir falar de partida, Artur soltou altos gritos:


- Não quero que Remi se vá embora! - exclamou ele.
Respondi não ser livre; pertencia a Vitalis, a quem
meus pais me haviam alugado, e devia retomar o serviço junto
dele no dia em que precisasse de mim. Mencionei meus
pais, sem dizer que eles não o
eram realmente, pois seria necessário confessar que
não passava dum enjeitado, e Isso para mim seria
uma vergonha.
- Mamã, é preciso não deixar Remi ir-se embora
- continuou Artur, que, fora das lições obtinha da
mãe tudo quanto queria.
- Sentir-me-ia muito contente se Remi ficasse
connosco. - respondeu a Senhora Milligan. - Sei que
lhe tomou amizade e eu própria tenho-lhe muita afeição; mas,
para o reter cá, são necessárias duas condições que nenhum de
nós pode resolver. A primeira é que Remi queira continuar a
viver connosco.
- Ah! Remi há-de querer - interrompeu Artur;
não é verdade, Remi, que não deseja voltar para Toulouse?
- A segunda - acrescentou a Senhora Milligan
sem esperar a minha resposta - é que o seu empresário consinta
em renunciar aos direitos que tem sobre ele.
- Remi, Remi, primeiro que tudo... - replicou
Artur, prosseguindo na sua ideia.
- Antes de responder - continuou a Senhora
Milligan - Remi deverá reflectir que não é soment
uma vida de prazer e de viagens que lhe proponho,
mas uma vida de trabalho; terá de estudar, estar
horas seguidas inclinado sobre os livros, acompanhar
Artur nos seus estudos! Confronte tudo isto com a
liberdade das vastas estradas.
- Não há confronto possível - disse eu - e afIrmo-lhe,
minha senhora, que compreendo perfeitamente o valor da sua
proposta.
- Vê, mamã! - exclamou Artur - Remi aceita.
E pôs-se a dar palmas. A oferta da Senhora Milligan
tornava-me muito feliz, e eu era absolutamente sincero ao
agradecer-lhe a generosidade. Assim, não
abandonaria o barco; não renunciaria àquela vida
tão doce, não me separaria de Artur e da mãe.
- Agora - prosseguiu a senhora Milligan - resta-nos obter
o consentimento do seu patrão; com esse fim, vou escrever-lhe
para que venha encontrar-se connosco em Cette, pois não
podemos voltar a Toulouse; mandar-lhe-ei dinheiro para a
viagem e, depois de lhe explicar as razões que nos impedem de
tomar o caminho de ferro, espero que ele compareça
no local que lhe indico. Se aceitar as minhas propostas, só me
faltará entender-me com os pais de Remi; porque eles também
devem ser consultados.
Consultar meus pais!

Mas com certeza eles diriam o que eu pretendia


ocultar. A verdade surgiria. Enjeitado!
Fiquei aterrado.

A Senhora Milligan olhou-me com surpresa e quis


que eu falasse, mas não me atrevi a responder às
suas perguntas: Imaginando sem dúvida que era a
Ideia da próxima chegada de Vitalis que me perturbava daquela
forma, não Insistiu mais.
Felizmente Isto passava-se à noite, pouco tempo
antes da hora de Irmos para a cama; consegui escapar-me
depressa aos olhares curiosos de Artur e meti-me no beliche
com os meus receios e reflexões.
Foi a primeira má noite que eu tive a bordo do
barco, mas foi terrível, longa e febril.
Que fazer? Que dizer?
Não encontrava solução.
Talvez Vitalis não quisesse renunciar a mím, e
então não seria necessário conhecer a verdade.
Sem dúvida, tinha de afastar-me de Artur e da
mãe, e provavelmente jamais tornaria a vê-los; mas,
ao menos, não guardariam da minha pessoa uma má
recordação.
Três dias depois de escrever ao meu mestre, a
Senhora Milligan recebeu a resposta. Nalgumas linhas, Vitalis
dizia que tinha a honra de aceitar o convite da Senhora
Milligan e que chegaria a Cette
no sábado seguinte, no comboio das duas horas.
Pedi licença para ir à estação, e, levando os cães e
Joli-Coeur comigo, fui esperar Vitalis.

Os cães mostravam-se inquietos, como se suspeitassem de


alguma coisa; Joli-Coeur estava indiferente; quanto a mim,
sentia-me terrivelmente comovido. Ia decidir-se a minha vida.
Ah! se ousasse, como pediria a Vitalis para não dizer que eu
era
enjeitado!

Mas não me atrevia a isso, e sentia que a palavra


«enjeitado» jamais me poderia sair da garganta.

Colocara-me a um canto da estação, com os cães


pela trela e Joli-Coeur debaixo do casaco, e esperava,
quase sem ver o que se passava em minha volta.

Foram os cães que, farejando o dono, me advertiram da


chegada do comboio. De repente, senti-me arrastado para a
frente, e, como o movimento fosse
imprevisto, os cães escaparam-se-me. Correram, ladrando
alegremente, e quase no mesmo instante vi-os saltar em volta
de Vitalis, que, com o seu fato
habitual, acabava de aparecer. Mais rápido, se bem
que menos ágil do que os camaradas, Capi pulara
para os braços do dono, enquanto Zerbino e Dolce se
lhe agarravam às pernas.

Avancei por meu turno, e Vitalis, pousando Capi


no chão, apertou-me nos seus braços: pela primeira
vez me beijou, dizendo e repetindo:
- Buon di, povero caro!

o meu mestre nunca fora ríspido para mim, mas


também nunca fora carinhoso, e eu não estava
acostumado àquelas efusões; o seu gesto enterneceu-me e fez-me
vir lágrimas aos olhos, pois sentia-me nessas disposições em
que o coração se oprime com facilidade.
Olhei para ele e achei que envelhecera bastante
na prisão; o corpo curvara-se-lhe, o rosto empalidecera, os
lábios haviam perdido a cor.
- Então! Achas-me mudado, não é verdade, meu
rapaz? A prisão é uma péssima residência, e o aborrecimento
uma doença muito má; mas Isto agora Irá melhor. - Depois,
mudando de assunto: - E essa senhora que me escreveu, onde a
conheceste?
Então, contei-lhe como encontrara o barco, e como desde
esse momento vivera junto da Senhora Milligan e do filho;
narrei-lhe tudo o que tínhamos visto, o que fizéramos.
A minha narrativa foi longa, tanto mais que receava
chegar ao fim e entrar noutro assunto que me assustava; porque
eu agora não poderia dizer a Vitalis que o queria deixar para
ficar com a Senhora Milligan e Artur.
Mas não tive de lhe fazer essa confissão, pois
chegámos ao hotel em que a Senhora Milligan estava
hospedada, antes de eu acabar de falar.
- E essa senhora espera-me? - disse ele, quando
entrámos no hotel.
- Sim, vou conduzi-lo aos seus aposentos.
- É Inútil, dá-me o número, e espera-me aqui,
com os cães e Joli-Coeur.
Quando o mestre falava, eu não tinha o hábito de
discutir ou de replicar. Obedeci-lhe, ficando à porta
do hotel, sentado num banco, com os cães em volta
de mim. Eles também tinham querido segui-lo, mas
não haviam resistido à ordem de não entrar, como
eu próprio não resistira: Vitalis sabia mandar.
Por que razão não quisera ele que eu assistisse à
sua entrevista com a Senhora Milligan? Foi o que
perguntei a mim mesmo. Não tinha ainda encontrado
resposta, quando o vi regressar.
- Vai despedir-te da senhora - disse-me. - Partimos
dentro de dez minutos.
Fiquei estupefacto.
- Então?! - exclamou ele depois de alguns minutos de
expectativa. - Não me compreendeste? Estás aí pasmado:
despacha-te!
Não era seu costume falar-me rispidamente, e,
desde que estava com ele, nunca me dissera uma
coisa assim.
Levantei-me para obedecer, sem perceber.
Porém, depois de dar uns passos a fim de subir
aos aposentos da Senhora Milligan, perguntei:
- Disse-lhe então...
- Disse-lhe que me eras útil e que eu próprio te
era útil; por conseguinte, que não estava disposto a
ceder os direitos que tinha sobre ti; anda, vai e vem
depressa.
Aquilo animou-me um tanto, porque eu, completamente sob a
Influência da minha ideia fixa de enjeitado, imaginava que, se
devíamos partir antes de dez minutos, era porque Vitalis
dissera o que sabia
acerca do meu nascimento.
Ao entrar no quarto da Senhora Milligan, encontrei Artur
lavado em lágrimas e a mãe inclinada para ele a consolá-lo.
- Não se vai embora, não é verdade, Remi? - gritou-me
Artur.
Foi a Senhora Milligan que respondeu por mim,
explicando que eu devia obedecer.
- Pedi ao seu mestre, Remi, que o deixasse ficar
connosco - disse-me ela com uma voz que me fez vir
lágrimas aos olhos. - Mas não quis aceder a Isso, e
nada o pôde convencer.
- É um homem muito mau! - exclamou Artur.
- Não, não é mau - prosseguiu a Senhora Milligan. - Remi
é-lhe útil, e, além disso, creio que lhe dedica verdadeira
amizade. Eis o que me respondeu, justificando

a recusa: "Estimo essa criança, e ela também me estima; a dura


aprendizagem da vida que levará a meu lado ser-lhe-á mais
benéfica do que a servidão disfarçada na qual a senhora o
faria viver, apesar de tudo. É certo que lhe daria instrução,
que o educaria; formar-lhe-ia o espírito, de facto, mas não o
carácter. Eu também lhe darei instrução."
- Mas se ele não é o pai de Remi! - exclamou Artur.
- Não é seu pai, efectivamente mas é como se
fosse, e Remi pertence-lhe, visto que os pais lho
entregaram. Agora, Remi tem o dever de obedecer-lhe.
- Não quero que Remi se vá embora.
- É preciso, todavia, que ele acompanhe o seu
patrão; mas espero que não será por muito tempo.
Escreverei aos pais, e entender-me-ei com eles.
- Oh! não! - exclamei eu.
- Não, porquê?
- Oh! não, peço-lhe!
- Não há, porém, outro meio, meu filho.
- Por favor, não faça isso!
É provável que, se a Senhora Milligan me não
tivesse falado de meus pais, as nossas despedidas se
prolongassem além dos dez minutos concedidos por Vitalis.
- É em Chavanon, não é verdade? - continuou
a Senhora Milligan.
Sem lhe responder, aproximei-me de Artur, enlaçando-o com
os braços, beijei-o várias vezes, pondo nesses beijos toda a
amizade que sentia por ele.
Depois, arrancando-me ao seu frouxo abraço, voltei
para a Senhora Milligan, e, ajoelhando, beijei-lhe
a mão.
- Pobre criança! - disse ela, Inclinando-se para mim.
E beijou-me na testa.
Então levantei-me bruscamente e, correndo para
a porta, exclamei com a voz entrecortada de soluços:
- Artur, estimá-lo-ei sempre! E de si, minha senhora,
nunca me esquecerei, nunca!
- Remi! Remi! - gritou Artur.
E não ouvi mais nada; saíra e fechara a porta.
Um minuto depois, estava junto de Vitalis.
- A caminho! - disse-me ele.
Abandonámos Cette pela estrada de Prontignan.
Foi assim que me separei do meu primeiro amigo
e me lancei em aventuras que me seriam poupadas,
se, vítima dum odioso preconceito, eu não me tivesse
deixado invadir por estúpido terror.

CAPÍTULO 14.

NEVE E LOBOS.

DE novo me foi preciso seguir Vitalis, e com a


correia da harpa esticada no ombro dorido,, caminhar ao longo
das estradas, à chuva e ao sol, sobre pó e lama.
Tive de fazer de tolo nas praças públicas e rir ou
chorar para divertir o «respeitável público».
A transição foi dura, pois habituamo-nos depressa
ao conforto e à felicidade.
Ah! Que saudades daquele bom tempo! E quando,
ao pernoitar numa suja estalagem de aldeia eu me
lembrava do meu beliche do barco, como os lençóis
da cama onde me deitava agora me pareciam ásperos!
«Nunca -mais brincarei com Artur, nunca mais
ouvirei a voz carinhosa da Senhora Milligan!»
Felizmente, no meio do meu desgosto, que era
vivo e persistente, eu tinha uma consolação: Vitalis
mostrava-se muito mais meigo, muito mais terno se é que esta
palavra se pode aplicar justamente a Vitalis -como jamais o
fora!

Depois de partirmos de Cette, ficámos alguns dias


sem falar da Senhora Milligan e da minha estada no
barco, mas a pouco e pouco esse assunto apresentou-se nas
nossas conversas, e daí em diante não se passou um dia sem que
o nome da Senhora Milligan
fosse pronunciado.
- Gostavas dessa senhora? - dizia-me Vitalis. - Sim,
compreendo; ela foi bondosa, muito bondosa para ti; só te
deves recordar dela com gratidão.
E muitas vezes acrescentava:
- Foi necessário!
Ao princípio não o percebi muito bem; mas depois,
lentamente, cheguei à conclusão de que se tratava da
recusa à proposta da Senhora Milligan para eu ficar
com ela.
Era nisso certamente que Vitalis pensava quando
dizia: «Foi necessário»; eu tinha a impressão de que
naquelas palavras havia uma espécie de remorso,
Vitalis desejaria deixar-me junto de Artur, poréin
não fora possível.
E, no fundo do coração, sabia-o pesaroso, embora
não adivinhasse por que razão não pudera aceitar
as propostas da Senhora Milligan; as explicações que
esta me repetira não me pareciam muito compreensíveis.
Talvez as aceitasse agora!
E esta ideia incutia-me uma grande esperança.
E por que não encontraríamos o barco?
Ele devia subir o Ródano, e nós caminhávamos
à beira do rio.
Por isso, no nosso percurso, os olhos voltavam-se-me mais
para a água do que para as colinas e planícies férteis que a
marginam.
Algumas vezes, afoitava-me a interrogar os marinheiros, e
descrevia-lhes o barco que eu desejava encontrar; nenhum o
vira passar.
Agora que Vitalis resolvera ceder-me à Senhora
Milligan (pelo menos eu assim o imaginava) já não
tinha receio de que aludissem ao meu nascimento

nem que escrevessem à mãe Barberin; o assunto seria


tratado entre Vitalis e a Senhora Milligan; no meu
sonho infantil, dispunha assim as coisas: a Senhora
Milligan queria ficar comigo, o meu mestre consentia
em renunciar aos direitos que tinha sobre mim, e
tudo se arranjava num instante.
Mas em vão procurei; não encontrei o barco.
Depois de deixarmos Dijon, atravessámos as colinas da
Côte-dOr, e aí, ao sermos Invadidos por um frio húmido que nos
gelava, Joli-Coeur tornou-se mais
triste e aborrecido do que eu.
A ideia do meu mestre era chegar depressa a
Paris, pois só aí teríamos probabilidades de dar
algumas representações durante o Inverno; mas, ou
porque o estado da sua bolsa lhe não permitisse
tomar o comboio, ou por qualquer outra razão, haveríamos de
percorrer a pé a estrada que separa Dijon de Paris.
Até Châtillon, as coisas decorreram menos mal,
embora tivéssemos de suportar continuamente frio e
humidade; porém, depois de deixarmos esta cidade,
a chuva parou e o vento voltou para o norte.
Ao princípio não nos queixámos,se bem que seja
pouco agradável receber em cheio na cara o vento
do Norte; no fim de contas valia mais isso do que a
humidade em que apodrecíamos havia várias semanas.
Depois, o céu encheu-se de nuvens pesadas e negras, o sol
desapareceu e tudo nos fez crer que não tardaríamos a ter
neve.
Pudemos no entanto chegar a uma aldeia sem que
fôssemos apanhados pela tempestade, mas a intenção de Vitalis
era de chegar a Troyes o mais depressa possível, porque Troyes
é uma grande cidade onde
daríamos algumas representações se o mau tempo
nos obrigasse a demorar lá.
- Deita-te já - disse-me ele, quando nos instalámos no
albergue. - Partiremos amanhã muito cedo, pois receio ser
surpreendido pela neve.

Quanto a Vitalís, não se deitou logo; ficou ao


canto da lareira a aquecer Joli-Coeur, que sofrera
bastante durante o dia com o frio e não cessara de
gemer, apesar de termos tido o cuidado de o abafar.
No dia seguinte, ergui-me de madrugada, conforme me fora
recomendado; a manhã não rompera ainda, o céu estava sombrio e
baixo, sem uma estrela.
- Eu, no seu lugar - disse o estalajadeiro a Vitalis -
não partiria; não tarda a cair neve.
- Tenho pressa - respondeu este - e espero chegar a
Troyes antes da neve.
- Trinta quilómetros não se fazem numa hora.
Apesar de tudo, partimos.
Vitalis levava Joli-Coeur debaixo do casaco para
lhe comunicar um pouco do seu próprio calor, e os
cães, felizes com a ausência da chuva, corriam à
nossa frente; o meu mestre comprara-me em Dijon
uma pele de carneiro, e, com a lã para dentro, envolvia-me
nela; o vento colava-ma no corpo. Se bem que já fossem
horas da manhã romper, não se via nenhuma claridade no céu.
Por fim, do lado do Oriente, uma faixa pálida
entreabriu as trevas; contudo, o sol não apareceu.

A região que atravessávamos era de uma tristeza


lúgubre que o silêncio aumentava; tão longe quanto
a vista podia alcançar naquele dia sombrio, só se
viam campos nus de vegetação, colinas áridas, bosques já
amarelados.
O vento continuava a soprar do Norte com leve
tendência a virar para Oeste; deste lado do horizonte
chegavam nuvens acobreadas, carregadas e baixas,
que pareciam pesar no cimo das árvores.

Daí a pouco alguns flocos de neve, grandes como


borboletas, correram em frente dos nossos olhos; subiam,
desciam, rodopiavam sem tocar no chão.
Não havíamos ainda andado muito, e achava impossível
chegar a Troyes antes da neve; aliás isso pouco me inquietava,
e até eu dizia com os meus botões que a neve
caindo faria parar o vento do Norte e apaziguaria o frio.
Mas... não sabia o que era uma tempestade de
neve.
Não tardei a sabê-lo, e de maneira a jamais esquecer a
lição. As nuvens, que vinham do Noroeste, haviam-se
aproximado e uma espécie de luár iluminava o céu
do lado delas; tinham-se entreaberto, era a neve.
Já não foram borboletas a voltear em nossa
frente, foi uma chuva de neve que nos envolveu.
- Estava escrito que não chegaríamos a Troyes - disse
Vitalis. - Temos de nos abrigar na primeira casa que
encontrarmos.
Aí estava uma ideia que só me podia ser muito
agradável;. porém, onde acharíamos essa casa hospitaleira?
Antes da neve nos cercar com a sua branca nebulosidade, eu
examinara a terra até onde a vista
alcançava e não distinguira nenhuma casa, nem nada
que me anunciasse uma aldeia. Pelo contrário, estávamos quase
a entrar numa floresta cujas profundezas se confundiam com o
infinito, em nossa frente, como de cada lado sobre as colinas
que nos rodeavam.
Os cães já não iam à frente, seguiam-nos de perto,
como para pedir um abrigo que lhes não podíamos
dar.
Avançávamos lentamente e a custo, às cegas, encharcados,
cheios de frio, e, se bem que estivéssemos há muito tempo já
em plena floresta, não encontrávamos nenhum refúgio, porque o
caminho,era exposto ao Norte.
Felizmente o vento que soprava tempestuoso diminuiu a
pouco e pouco, mas a neve aumentou, e, em vez de cair fininha,
tombou compacta e mais
abundante.
Nalguns minutos a estrada ficou coberta de espessa camada
de neve sobre a qual caminhávamos sem ruído.

De súbito, Vitalis apontou para a esquerda, como


para chamar-me a atenção. Olhei e pareceu-me ver
confusamente na clareira uma cabana de ramos.
Era difícil encontrar o caminho que ia ter à cabana
porque a neve tornara-se tão espessa que apagara qualquer
vestígio de estrada ou de atalho; no entanto, na extremidade
da clareira, no sítio onde
recomeçavam as árvores seculares, pareceu-me que a
valeta do caminho estava atulhada; certamente aí
desembocava a vereda que conduzia à cabana.
Havia raciocinado bem; descemos a valeta e não
tardámos em chegar à choçazinha.
Era feita de paus e de galhos de árvores, e por
cima tinham colocado ramos a formar o tecto, bastante juntos
para que a neve os não pudesse atravessar. Aquele
abrigo valia uma casa.
- Eu calculava - disse Vitalis - que perto das
árvores cortadas deveria haver uma cabana de lenhador; agora a
neve pode cair.
- Sim, pode cair à vontade! - respondi eu com
ar de desafio.
E fui até à porta, ou antes, à abertura da choça,
pois não tinha portas nem janelas, a fim de sacudir
o casaco e o chapéu, sem molhar o interior da
cabana.

Era muito primitiva a choçazinha mas o que, nas


circunstâncias em que nos encontrávamos, tinha
mais valor para nós, eram cinco ou seis tijolos colocados ao
alto num canto, formando a lareira. Lume! Podíamos
acender lume!

É verdade que uma lareira não basta para termos


fogo, é preciso haver lenha.

Numa casa como aquela, a lenha não era difícil


de encontrar; só precisávamos de arrancá-la das
paredes e do tecto, isto é, de puxar ramos e galhos
cautelosamente aqui e ali, de maneira a não comprometer a
solidez da nossa casa.

Fizemos esse trabalho rapidamente, e uma chama


clara não tardou a brilhar crepitando, alegre.
É certo que não ardia sem fumo, e que este se
espalhava na choça; mas Isso pouco nos Importava;
o que desejávamos era a chama, o calor.
Enquanto eu, apoiado nas mãos, soprava o lume,
os cães sentaram-se em volta da lareira, e, grave mente, de
pescoço estirado, apresentavam o ventre molhado e frio à
irradiação da chama.
Joli-Coeur não se demorou a afastar o abafo do
dono, e, deitando prudentemente a ponta do nariz de
fora, olhou em redor; tranquilizado pelo seu exame,
saltou lesto para o chão, e, Instalando-se no melhor
lugar em frente do lume, estendeu para o fogo as
mãozinhas trémulas.
Vitalis era homem de precaução e experiência.
de manhã, antes de eu me levantar, arranjara as
provisões para a jornada: um naco de pão e um pedacinho de
queijo; não era altura de nos mostrarmos exigentes ou
difíceis; por isso, quando, vimos aparecer o pão, houve em nós
todos um gesto de regozijo.
Infelizmente os quinhões não foram grandes, e,
quanto a mim, fiquei desiludido; em vez do pão inteiro,
Vitalis só nos deu metade.
- Não conheço o caminho - disse ele, respondendo à
interrogação do meu olhar - e não sei se daqui a Troyes
encontraremos um albergue onde comer. Talvez tenhamos de ficar
bloqueados muito tempo nesta cabana?! Devemos guardar
provisões para o jantar.
Todavia, por muito frugal que fosse, aquela leve
refeição havia-nos reconfortado; estávamos abrigados, o lume
penetrava-nos com um calor suave; podíamos esperar que a
nevada cessasse.
Pela abertura da choça, víamos os flocos descer
rápidos e Juntos.
Os cães, aproveitando aquela paragem forçada,
haviam-se instalado em frente do lume, e, um enroscado,
outro deitado de lado, Capi com o focinho nas cinzas, dormiam.
Veio-me à ideia imitá-los; levantara-me cedo, e
seria mais agradável viajar no país dos sonhos, do
que contemplar a neve.
Não sei quanto tempo dormi; quando acordei, a
neve parara de cair; olhei para fora; a camada que
se amontoara em frente da cabana havia aumentado
consideravelmente: se tivéssemos de nos pôr a caminho,
ultrapassar-me-ia os joelhos.
Que horas seriam?
Não podia perguntá-lo a Vitalis, porque nos últimos meses
as receitas medíocres não haviam substituído o dinheiro que a
prisão e o processo lhe tinham custado, e em Dijon, para
comprar a pele de carneiro e vários objectos, fora obrigado a
vender o relógio, o seu grande relógio de prata.
Competia ao dia dizer-me o que eu já não podia
perguntar ao nosso belo relógio.
Mas, no exterior, nada me respondia; em baixo,
no solo, uma linha deslumbrante; no ar um nevoeiro
sombrio; no céu uma vaga claridade, com manchas
dum amarelo sujo de espaço a espaço. Nada daquilo
me indicava que horas eram.

Em volta de nós reinava completa imobilidade;


a neve fizera parar qualquer movimento, petrificara
tudo; só de tempos a tempos, depois dum leve ruído
apagado, quase imperceptível, se via um ramo de
pinheiro balançar-se lentamente; sob o peso que o
carregava, inclinava-se a pouco e pouco para a terra,
e, quando a inclinação era excessiva, a neve deslizava até
baixo; então, o ramo endireitava-se bruscamente e a sua cor
verde negra destacava-se na brancura que envolvia as outras
árvores.

Estava eu no vão da porta, maravilhado com esse


espectáculo, quando ouvi Vitalis interpelar-me:
- Tens então desejos de te pôr a caminho? - perguntou-me.
- Não sei; não tenho desejo nenhum; farei o que
achar bem que se faça.
- Pois a minha opinião é que fiquemos aqui, onde,
ao menos, temos um tecto e lume.
Pensei que não havia pão, mas guardei a observação para
mim. Posta de lado a questão do alimento, aquela Ideia
não me desagradava.
Seria preciso contentar a barriga com o que ali
havia, e pronto!
Foi o que aconteceu quando Vitalis dividiu, para
jantarmos, o naco de pão em seis pedaços.
A neve havia recomeçado a cair com a mesma
persistência. A noite não suspendeu a nevada, que,
do céu muito negro, continuou a cair em grandes
flocos sobre a terra luminosa.

Visto que devíamos pernoitar ali, o melhor era


dormir já. Depois de me embrulhar na pele de carneiro que,
exposta ao calor da chama, secara durante o dia, estirei-me
perto do lume, com a cabeça em cima duma pedra lisa, a
servir-me de almofada.
- Dorme - disse-me Vitalis-, - acordar-te-ei
quando eu quiser dormir por minha vez, pois, se
nada temos a recear dos animais ou de gente nesta
cabana, em todo o caso é preciso que um de nós fique de vigia
para não deixar apagar o lume; devemos tomar todas as
precauções contra o frio, que se pode tornar agreste, se a
neve deixar de cair.
Não foi necessário que ele repetisse o convite;
adormeci.
Quando o mestre me acordou, a noite já Ia alta;
pelo menos assim o Imaginei; a neve parara de tombar; o lume
continuava a arder.
Vendo-me acordado e pronto para a vigília, Vitalis
deitou-se por seu turno em frente do lume, com Joli-Coeur ao
lado, embrulhado num cobertor; dentro em pouco a respiração
mais alta e regular indicou-me que ele adormecera.
Então, levantei-me e, docemente, nas pontas dos
pés, fui até à porta para observar o que se passava
no exterior.

A neve sepultara tudo, ervas, sebes, troncos e ramos; tão


longe quanto a vista podia alcançar, estendia-se uma
superfície irregular, mas uniformemente branca; o céu estava
semeado de estrelas cintilantes,
todavia, por muito brilhante que fosse a sua luz, era
da neve que subia a claridade pálida que iluminava
a paisagem. O frio voltara e tudo lá fora devia gelar
porque o ar que entrava na cabana era glacial. No
silêncio lúgubre da noite, ouviam-se por vezes estalidos que
me confirmavam que a neve congelava. Tinha sido realmente
uma felicidade encontrar
aquele abrigo; que seria de nós em plena floresta,
debaixo da neve e com o frio que estava?
Por muito pouco barulho que eu tivesse feito ao
andar, despertara os cães, e Zerbino erguera-se para
vir ter comigo à porta. Como não visse com olhos
iguais aos meus os esplendores dessa noite, aborreceu-se
depressa e quis sair. Com a mão ordenei-lhe que entrasse
em casa; que
ideia ir para fora com um frio daqueles! Não era
melhor ficar junto do lume do que ir vadiar? Obedeceu-me,
porém continuou a olhar para a porta, como cão teimoso que não
abandona o seu plano.
Demorei-me ainda alguns instantes a contemplar
a neve.

Enfim voltei para junto do lume, e, tendo-lhe


posto mais três ou quatro pedaços de lenha cruzados
uns por cima dos outros, imaginei que me podia sentar, sem
receio, na pedra que me servira de almofada. Vitalis
dormia tranquilamente; os cães e Joli-Coeur dormiam também, e
do lume avivado elevavam-se chamas claras que subiam em
turbilhão até ao tecto, lançando faíscas crepitantes que
perturbavam o silêncio.
Durante muito tempo entretive-me a olhar para
o fogo, mas, a pouco e pouco, a imobilidade entorpeceu-me
sem que tivesse consciência disso. Deixei-me invadir pela
sonolência e adormeci sem dar por isso.
De repente acordei sobressaltado por latidos furiosos.
Estava escuro; eu dormira decerto muito tempo,
e o lume apagara-se ou, pelo menos, já não dava
chamas que iluminassem a cabana.
Os latidos continuavam; era a voz de Capi; mas,
coisa estranha, nem Zerbino nem Dolce respondiam
ao companheiro.
- Que é Isso? - gritou Vitalis despertando também. - Que
se passa?
- Não sei.
- Adormeceste e o lume apagou-se.
Capi precipitara-se para a porta, mas não saíra, e
era da porta que ladrava.
Apergunta que Vitalis me dirigira, fazia-a eu a
mim próprio: que se passava?
A Capi responderam dois ou três uivos lamentosos, nos
quais reconheci a voz de Dolce. Esses uivos partiam de trás da
cabana, e não de muito longe.
Quis sair; o mestre deteve-me, pousando-me a
mão no ombro.
- Primeiro, põe lenha no lume - ordenou-me.
Enquanto eu lhe obedecia, tirou do lar um tição
que assoprou a fim de avivar a ponta carbonizada.

Depois, em vez de tornar a colocá-lo donde o


tirara quando ficou em brasa, conservou-o na mão.
- Vamos ver - disse ele - e segue-me. Avante, Capi!
No momento em que íamos a sair, um uivo formidável rasgou
o silêncio, e Capi arrojou-se para as nossas pernas,
assustado.
- Lobos! Onde estão Zerbino e Dolce?
A isto eu não podia responder. Sem dúvida os dois
cães haviam saído durante o meu sono; Zerbino
realizara o capricho que manifestara e que eu tinha
contrariado, e Dolce seguira o companheiro.

Os lobos tê-los-iam devorado? Parecia-me que a


voz do mestre mostrara esse receio ao perguntar onde
estariam.
- Agarra num tição - disse-me Vitalis - e vamos
em seu socorro.
Eu ouvira contar na minha aldeia histórias arrepiantes de
lobos; no entanto não hesitei: peguei numa acha acesa e segui
o mestre.
Mas, quando chegámos à clareira, não distinguimos nem
cães nem lobos. Via-se apenas na neve as pegadas dos dois
cães.
Fomos atrás desses rastros; circundavam a cabana; depois,
a certa distância, mostrava-se na obscuridade um espaço onde a
neve fora revolvida, como se animais houvessem rolado nela.
- Busca, busca, Capi - dizia Vitalis.
E, ao mesmo tempo, assobiava para chamar Zerbino e Dolce.
Mas nenhum latido lhe respondia, nenhum som
perturbava o silêncio lúgubre da floresta, e Capi, em
vez de procurar como lhe ordenavam, ficava junto
de nós, dando sinais manifestos de inquietação e
terror, ele que habitualmente era tão obediente e
destemido.
De novo, Vitalis assobiou, e com voz forte chamou
Zerbino e Dolce.
Escutámos; o silêncio continuou; senti o coração
apertar-se-me.
-Pobre Zerbino! Pobre Dolce!
Vitalis definiu os meus receios:
- Os lobos levaram-nos - disse ele. - Por que os
deixaste sair?
Ah! sim, porquê? Eu não tinha resposta alguma a dar.
- É preciso procurá-los - declarei.
E adiantei-me, mas Vitalis deteve-me.
- E onde vais procurá-los?
- Não sei; por toda a parte.
- Como queres que nos guiemos no meio da escuridão e da neve?
Efectivamente, a neve subia-nos até metade da
perna, e não eram os dois tições que podiam iluminar as
trevas.
- Se não responderam ao meu chamamento, é porque estão...
muito longe - disse. - além disso, não nos devemos arriscar a
que os lobos nos ataquem; nada temos para nos defender.
Era horrível abandonar assim os dois pobres cães,
aqueles dois camaradas, aqueles dois amigos, horrível
principalmente para mim que me sentia responsável
por tudo aquilo; se eu não adormecesse, os cães não

teriam saído.
Vitalis dirigira-se para a cabana e eu seguia-o,
olhando para trás de mim a cada passo e parando
para escutar; mas nada via além da neve, nada ouvia

senão os estalidos dela.


Na choça, uma nova surpresa nos esperava; na
nossa ausência, o lume havia-se reavivado e as chamas
iluminavam os cantos mais sombrios. Não vi Joli-Coeur.
O cobertor ficara defronte da lareira, mas estava
liso, rente ao chão; o macaco não se achava debaixo.
Chamei-o. Vitalis chamou-o por sua vez; não
apareceu.
Vitalis disse-me que, ao acordar, o sentira junto
de si; fora então depois de sairmos que ele se escondera?
Agarrámos um punhado de ramos em labareda, e
partimos, dobrados para a frente, procurando o rasto
de Joli-Coeur.
Não encontrámos nada; é verdade que a passagem
dos cães e os nossos pés haviam baralhado as pegadas, mas não
tanto que se não pudesse reconhecer vestígios do macaco.
Dez vezes procurámos no mesmo lugar, nos mesmos cantos;
subi acima dos ombros de Vitalis para explorar
os ramos que formavam o tecto; tudo foi inútil.
De tempos a tempos parávamos para o chamar;
nada, sempre nada. Vitalis parecia exasperado, e eu,
eu sentia-me compungido.
Quando lhe perguntei se ele pensava que os lobos
o haviam também levado, respondeu-me:
- Não, os lobos não se atreveriam a entrar na
cabana; acredito que eles tenham saltado sobre Zerbino e Dolce
que estavam fora, mas não penetraram aqui; é provável que
Joli-Coeur, assustado, se tenha
metido em qualquer parte enquanto nos demorámos
lá fora; é isso que me inquieta, pois, com este tempo
abominável, vai apanhar frio e para Joli-Coeur o frio
pode ser-lhe mortal.
- Então, vamos procurá-lo.
Novamente começámos as nossas buscas, mas
foram tão infrutíferas como da primeira vez.
- Temos de esperar que amanheça - disse VI talis.
- Mas quantas horas será preciso esperar?
- Duas ou três, calculo eu.
E sentou-se em frente do lume, com a cabeça
apoiada nas mãos.
Três horas decorreram com exasperante lentidão;
dir-se-ia que a noite jamais findava.
Entretanto as estrelas empalideceram e o céu
clareou; dentro em pouco seria dia.

Mas com a aurora, o frio aumentou; o ar que


entrava pela porta era glacial. Se encontrássemos Joli-Coeur,
estaria ainda vivo? E que esperança razoável podíamos ter?

E se nevasse outra vez?


Mas não; o céu, em lugar de cobrir-se como na
véspera, encheu-se de uma claridade rosada que
pressagiava bom tempo.
Logo que a luz pálida da manhã deu às árvores e
às moitas as formas reais, saímos de casa. Vitalis

armara-se de um pau enorme e eu arranjara outro


igual.
Capi já não parecia estar sob a impressão de
terror que o havia paralisado durante a noite; com
os olhos fitos nos do dono, só esperava um sinal para
avançar.
Quando procurávamos no chão as pegadas de
Joli-Coeur, Capi ergueu a cabeça e pôs-se a ladrar
alegremente;. isto significava que era no ar que
devíamos encontrar o que buscávamos e não no solo.
Efectivamente, vimos que a neve que tapava a
cabana fora calcada até à altura de um grande ramo
pendente sobre o tecto.
Seguimos com os olhos esse ramo, que pertencia a
um carvalho, e, no cimo da árvore, agachado num
galho bifurcado, distinguimos uma formazinha de
cor escura.
Era Joli-Coeur: assustado pelos uivos dos cães e
dos lobos, precipitara-se para o tecto da choça,
quando havíamos saído, e de lá trepara para o carvalho, onde,
achando-se em segurança, ficara escondido sem responder aos
nossos apelos. O pobre animal, tão friorento, devia estar
gelado.

Vitalis chamou-o docemente, mas ele não se moveria menos


se estivesse morto. Durante alguns minutos, repetiu
Vitalis os chamamentos; Joli-Coeur não dava sinal de vida.
Eu tinha de resgatar a minha negligência da noite:
- Se quiser - disse - vou buscá-lo.
- Podes cair.
- Não há perigo.
Havia muito tempo que eu aprendera a trepar às
árvores e adquirira nessa habilidade notável vigor.
Alguns ramos pequenos nascidos ao longo do tronco
serviram-me de degraus e, se bem que subisse quase
às cegas pela neve que as mãos me faziam tombar
nos olhos, depressa atingi o primeiro galho bifurcado.
Chegado aí, a ascensão tornava-se fácil; só precisava
de tomar cuidado em não deslizar pela neve.
Enquanto trepava, ia falando docemente a Joli-Coeur, que
não se movia, mas que me observava com os seus olhos
brilhantes.
Já era muito haver encontrado Joli-Coeur, mas
precisávamos agora de procurar os cães.
Em poucos passos chegámos ao local onde estivéramos de
madrugada. Como a manhã se tornara clara, foi-nos fácil
perceber o que se passara: a neve guardava os vestígios da
morte dos cães.
Ao saírem atrás um do outro, haviam ido ao longo
da cabana, e seguimos distintamente o rasto durante
uns vinte minutos; depois desapareceram para dar
lugar a outras pegadas: de um lado as que mostravam por onde
os lobos, em grandes pulos, tinham saltado sobre os cães; e do
outro, aquelas em que se
via perfeitamente por onde haviam sido eles levados
depois de sucumbirem. Vestígios de cães, já não existiam lá, à
excepção de manchas de sangue que, aqui e ali, tingiam a neve.
Assim, só nos devíamos ocupar agora de reanimar
Joli-Coeur, e o mais depressa possível.
Voltámos para a cabana; e, enquanto Vitalis lhe
punha as mãos e os pés em frente do lume, como se
faz às criancinhas, eu aquecia muito bem o cobertor,
onde o embrulhámos depois.
Mas não lhe era só necessário um cobertor: precisava
também duma boa cama com botijas e, principalmente, duma
bebida quente, e nada disso possuíamos; andava com muita sorte
em termos lume.
Estávamos sentados junto da lareira, sem nada
dizer, e ali ficámos, imóveis, a contemplar as chamas.
-Pobre Zerbino, pobre Dolce, pobres amigos!
Eram estas as palavras que murmurávamos, cada
um de seu lado, ou pelo menos que nos enchiam o coração.
Eu não podia desculpar-me: se estivesse de guarda
como devia, se não me deixasse adormecer, eles não
teriam saído, e os lobos não viriam atacar-nos dentro da
cabana, ficariam detidos a distância, assustados pelo lume.
Quisera que Vitalis me ralhasse, me batesse.
Porém, ele nada dizia, nem mesmo olhava para
mim; continuava de cabeça curvada para a lareira,
pensava certamente no que ia ser de nós sem os cães.

CAPÍTULO 15.
O SENHOR JOLI-CoeUR.

Os prognósticos da manhã haviam-se realizado;


o sol brilhava num céu sem nuvens, e os seus
raios pálidos eram reflectidos pela neve imaculada;
a floresta, triste e lívida na véspera, deslumbrava-nos agora
com um brilho que nos cegava. De tempos a tempos, Vitalis
metia a mão debaixo
do cobertor a fim de apalpar Joli-Coeur; mas este
não aquecia, e quando me inclinava sobre ele via-o
tiritar.
- Precisamos de alcançar uma aldeia - observou
Vitalis, levantando-se - senão, Joli-Coeur vai morrer aqui.
Depois de ter o cobertor bem aquecido, envolvemos nele
Joli-Coeur e o meu mestre meteu-o debaixo do casaco, de
encontro ao peito.
Estávamos prontos.
- Eis um albergue - murmurou Vitalis - que nos
fez pagar caro a hospedagem.
Dizendo isto, a voz tremia-lhe.
Saiu à frente, e eu segui-o.

Tivemos de chamar Capi, que ficara no limiar da


choça, com o focinho voltado para o lado onde os
companheiros haviam sido surpreendidos.
Dez minutos depois de chegarmos à estrada, cruzámos com
um carro cujo condutor nos disse que antes de uma hora
encontraríamos uma aldeia.
Finalmente, na falda duma colina, apareceram os
telhados brancos duma aldeia bastante grande: mais
um esforço e chegaríamos lá.
Não tínhamos por hábito alojarmo-nos nas melhores
estalagens, escolhíamos qualquer casa modesta aonde não nos
repelissem nem nos depenassem. Porém, desta vez, não foi
assim: em vez de parar
à entrada da aldeia, Vitalis continuou a andar até
uma estalagem onde se balançava na fachada uma
bela tabuleta dourada; pela porta da cozinha, inteiramente
aberta, via-se uma mesa carregada de carne, e, num vasto
fogão, várias caçarolas de cobre
chiavam alegremente, lançando ao tecto nuvenzinhas
de vapor; na rua, respirava-se um cheiro agradável
de sopa bem temperada, que nos excitava os estômagos
esfomeados. Vitalis, tomando os seus ares de «senhor»,
entrou
na cozinha e, com o chapéu na cabeça altivamente
erguida, pediu ao estalajadeiro um bom quarto com fogão.
Ao princípio, o homem, que tinha um aspecto de
personagem importante, nem se dignou olhar-nos,
mas os grandes ares do meu mestre impuseram-se-lhe, e uma
criada recebeu ordem de nos conduzir.
- Depressa, deita-te - disse-me Vitalis, enquanto
a rapariga acendia o lume.
Fiquei pasmado; para quê deitar-me? Antes
queria sentar-me à mesa do que ir para a cama.
- Vamos, depressa - repetiu Vitalis.
Tive de obedecer.

Havia um edredão na cama; Vitalis tapou-me


com ele até ao queixo.

- Vê se consegues ficar quente - disse-me ele.


- Quanto mais calor tiveres, melhor será.
Parecia-me que Joli-Coeur precisava muito mais
de calor do que eu, que não tinha frio algum.
Enquanto eu continuava imóvel sob o edredão,
Vitalis, com grande espanto da criada, voltava o
pobre Joli-Coeur de todos os lados, como se o quisesse
assar.
- Tens calor? - perguntou-me Vitalis daí a alguns
instantes.
- Sufoco.
- É isso que é preciso.
E aproximando-se vivamente, deitou Joli-Coeur no
meu leito, recomendando-me que o conservasse bem
junto a mim.
O infeliz animalzinho, de ordinário tão rebelde,,
quando lhe impunham qualquer coisa que lhe desagradava,
parecia resignado a tudo.
arfou encostado ao meu peito, sem fazer um
único movimento; já não tinha frio - o corpo estava
ardente.
Vitalis descera à cozinha; daí a pouco subiu, trazendo
uma tijela de vinho quente e açucarado. Quis dar algumas
colheres da beberagem a Joli-Coeur, porém este não pôde
descerrar os dentes. -Contemplava-nos tristemente com os
olhinhos
brilhantes, como a pedir que o não atormentássemos.
Ao mesmo tempo estendia-nos um dos braços que
tirara debaixo da roupa.
Perguntava a mim próprio o que significaria
aquele gesto que ele repetia a cada instante, quando
Vitalis mo explicou.
Antes de eu fazer parte da companhia, Joli-Coeur
tivera uma congestão pulmonar e haviam-no sangrado no braço;
sentindo-se agora outra vez doente, estendia-nos o braço para
que o sangrassem novamente e o curassem como outrora.
- Bebe tu o vinho - disse-me Vitalis - e deixa-te
ficar na cama; vou procurar um médico.
Devo confessar que eu também gostava muito de
vinho com açúcar, e ainda por cima tinha uma fome
terrível; não fiz repetir a ordem, e, depois de esva
ziar a tijela, meti-me debaixo do edredão, onde, com
a ajuda do calor do vinho, quase sufoquei.
Vitalis não se demorou muito tempo fora de
casa; daí a pouco voltou acompanhado de um senhor de
óculos com aro de ouro: o médico.
Receando que o importante personagem se não
quisesse incomodar por causa dum macaco, Vitalis
não dissera para que espécie de doente o chamava;
por isso, ao ver-me deitado, vermelho como um pi
mentão, o médico aproximou-se da cama e, depois de
colocar a mão na minha testa, disse:
- Congestão.
E abanou a cabeça com um ar que não pressagiava nada de
bom.
Pareceu-me ser altura de o desiludir, ou então
era muito capaz de me sangrar.
- Não sou eu o doente.
- O quê?!, não é?!... Esta criança delira.
Sem responder, levantei o cobertor e mostrei Jolí-Coeur
que me rodeava o pescoço com o bracinho.
- É ele que está doente - disse eu.
o médico recuara dois passos, voltando-se para Vitalis:
- Um macaco! - exclamou ele. - Por causa dum
macaco é que me Incomodou a vir cá, e com um
tempo destes!
Era homem hábil, o meu mestre, e não perdia
facilmente a cabeça. Cortèsmente, e com os seus
grandes ares, deteve o doutor. Depois explicou-lhe a
situação: como havíamos sido surpreendidos pela
neve, e como, pelo medo dos lobos, Joli-Coeur fugira para
cima dum carvalho onde apanhara um resfriamento.
- Sem dúvida que o doente não passa dum macaco, mas um
macaco de gênio! E, além disso, é um camarada,

um amigo para nós! Como poderia confiar um actor tão notável


aos cuidados dum simples veterinário! Toda a gente
sabe que os veterinários de aldeia são uns burros. E toda a
gente sabe também que os médicos são todos, sob vários
aspectos, homens de ciência; assim, na aldeia mais
Insignificante, indo bater à porta dum médico, temos a certeza
de encontrar o saber e a generosidade.
São finos na lisonja, os italianos; o médico não
tardou a afastar-se da porta e a aproximar-se do leito.
Enquanto o dono falava, Joli-Coeur, que certamente
percebera que aquele personagem de óculos era um doutor,
estendera mais de dez vezes o bracinho para o apresentar à
sangria.
- VeJa como este macaco é inteligente; sabe que o senhor
é médico, e estende-lhe o braço para que
lhe tome o pulso.
Isto acabou de decidir o homem.
- De facto - disse ele - talvez o caso seja
interessante.
E era, ai de nós! O pobre Joli-Coeur estava ameaçado de
pneumonia.
O bracinho que tantas vezes se estendera, foi seguro pelo
doutor, e a lanceta enterrou-se-lhe na veia, sem que o doente
soltasse o mais leve gemido.
Sabia que aquilo o devia curar.
Depois da sangria vieram os sinapismos, as cataplasmas,
as poções e as tisanas. Claro está que não fiquei na
cama; tornei-me enfermeiro debaixo da direcção de Vitalis.
Joli-Coeur estimava os meus cuidados e recompensava-me
com um sorriso meigo e um olhar verdadeiramente humano.
Outrora tão vivo e petulante, tão rebelde, sempre
pronto a pregar-nos partidas, era agora duma tranquilidade e
doçura exemplares.

A doença seguia a evolução de todas as pneumonias, isto


é, a tosse surgira,, fatigando-o pelo esforço a que era
obrigado o pobre corpinho.
Vitalis nunca me fizera confidências acerca dos
seus negócios, e fora duma forma Indirecta que eu
soubera que para me comprar a pele de carneiro
tivera de vender o relógio; mas, nas circunstâncias
difíceis que atravessámos, achou dever afastar-se
dessa regra.
Uma manhã, depois de almoçar, enquanto eu
estava junto de Joli-Coeur, que nunca mais deixáramos sózínho
- disse-me que o estalajadeiro lhe reclamara o pagamento do
que devíamos, e que depois de saldar a conta só lhe restavam
cinquenta soldos.
Só via um meio de sair da atrapalhação; dar uma
representação nessa mesma tarde.
Representarmos sem Zerbino, sem Dolce, sem Joli-Coeur!
Aquilo parecia-me impossível. Não estávamos em situação
de desanimarmos perante uma Impossibilidade; era preciso a
todo o custo tratar de Joli-Coeur e salvá-lo; o médico, os
remédios,
a lenha, o quarto, tudo isto nos obrigava a arranjar
dinheiro imediatamente, nem que fosse só quarenta
francos para pagar ao estalajadeiro que nos abriria
novo crédito.
Quarenta francos numa aldeia, com aquele frio, e
com os nossos recursos, devia ser muito difícil-de
conseguir!
Enquanto fiquei de guarda ao doente, Vitalis encontrou
uma sala de espectáculos no mercado, pois uma representação ao
ar livre seria Impossível com aquele frio; compôs e colou os
anúncios: arranjou um teatro com algumas tábuas, e,
destemidamente, gastou os cinquenta soldos em velas que cortou
ao meio para duplicar a iluminação. Pela janela do
quarto, eu via-o ir e vir sobre a neve, passar cá e
lá defronte da estalagem, e não era sem angústia
que perguntava a mim mesmo qual seria o programa
da representação.
Não tardei a ficar elucidado, pois o tambor da
aldeia, de képi vermelho na cabeça, parou em frente
da estalagem, e, depois de rufar magnificamente,
apregoou a leitura do programa.
Vitalis prodigalizara as mais extravagantes promessas:
tratava-se «dum artista célebre no mundo inteiro» Caffie «dum
jovem cantor que era um prodígio» - o prodígio devia ser eu.
Mas a parte mais interessante do pomposo anúncio era
aquela em que dizia que não fixavam o preço dos lugares e que
confiavam na generosidade dos
espectadores, que só pagariam depois de ter visto,
ouvido e aplaudido.
Isto pareceu-me uma temeridade, pois sabíamos
lá se nos iriam aplaudir? Capi merecia realmente
ser célebre. Mas eu, não tinha nenhuma convicção
de ser um prodígio.

Ao ouvir o tambor, Capi ladrara alegremente, e


Joli-Coeur sentara-se na cama, embora estivesse bastante mal
nessa altura: tenho quase a certeza que qualquer deles
percebera que se tratava da nossa
representação.

Esta ideia, que me viera ao espírito, foi pouco


depois confirmada pela pantomima de Joli-Coeur:
quis levantar-se e tive de o reter à força; então
pediu-me o fato de general inglês: o casaco e as
calças encarnadas agaloados de ouro e o chapéu
bicórnio com a respectiva pluma.

Chegara a hora de irmos para o mercado: arranjei um bom


lume no fogão, com grandes achas que deviam durar muito tempo;
embrulhei bem no cobertor o pobre Joli-Coeur, e depois
partimos, deixando-o ali sozinho.

Caminhando sobre a neve, Vitalis explicou-me o


que esperava de mim.
Não podíamos representar as comédias habituais,
visto que nos faltavam os principais actores, mas
devíamos, eu e Capi, dar tudo que possuíamos. de

zelo e de talento. Tínhamos de fazer uma receita


de quarenta francos.
Quarenta francos! Ali estava o busílis!
Tudo fora preparado por Vitalis, só faltava acender as
velas; mas era um luxo que não nos devíamos permitir senão
quandoa sala estivesse mais ou menos
cheia, pois a iluminação tinha de durar até ao fin
do espectáculo.
Enquanto tomávamos posse do nosso teatro, o
tambor percorria pela última vez as ruas da aldeia,
e ouvíamo-lo rufar perto ou longe, conforme a direcção das
ruas. Depois de fazer os meus preparativos e os de Capi,
postei-me atrás duma coluna para ver chegar os
espectadores.
Fui eu o primeiro a aparecer em cena, e, acompanhando-me
à harpa, cantei duas cançonetas. Para ser sincero devo
declarar que os aplausos que recolhi
foram muito frouxos.

Nunca tive um grande amor próprio de actor, mas,


naquelas circunstâncias, a frieza do público desconsolou-me.
Capi foi mais feliz; aplaudiram-no por várias
vezes e entusiasticamente.

A representação continuou: graças a Capi, terminou no


meio de bravos, e não só davam palmas como batiam com os pés
no chão. Chegara o momento decisivo. Enquanto que no palco, -
acompanhado por Vitalis, eu dançava um passo espanhol, Capi,
de bandeja nos dentes, percorria todas as filas de
espectadores. Receberia quarenta francos? Era a pergunta que
me oprimia o coração, enquanto sorria ao público com o meu
ar mais agradável.
Sentia-me já sem fôlego e dançava sempre, pois
não devia parar sem Capi voltar para junto de nós:
ele não se apressava e, quando não lhe davam nada,
batia com a pata na algibeira que lhe não queriam abrir.

Finalmente vi-o aparecer, e ia suspender a dança,


quando Vitalis me fez sinal de continuar. Assim fiz
e, aproximando-me de Capi, reparei que ainda faltava muito
para a bandeja ficar cheia. Nesse momento, Vitalis, que
também avaliara a receita, manifestou-se:
- Creio poder dizer, sem nos gabarmos, que executámos o
nosso programa; no entanto, como as velas ainda existem, vou,
se o público assim o deseja, cantar-lhe algumas árias: Capi
fará novo peditório, e as pessoas que não encontraram, da
primeira vez, a abertura da algibeira, serão talvez mais
hábeis e destras à segunda passagem de Capi.
Embora Vitalis tivesse sido meu professor, jamais
eu o ouvira cantar realmente, ou pelo menos como
cantou nessa noite.
,Escolheu duas árias que toda a gente conhece,
mas que eu não conhecia então, a romanza de José
«Logo saído da infância» e o de Ricardo Coração-de-Leão:
«Oh, Ricardo, oh, meu rei!»
Eu não tinha naquela época competência para
julgar se cantavam bem ou mal, com arte ou sem
arte, mas o que posso dizer é o sentimento que a sua
forma de cantar provocou em mim: no escuro do
palco, para onde me retirara, desfiz-me em lágrimas.
Através da névoa que me obscurecia os olhos, vi
uma senhora, que ocupava o primeiro banco, aplaudir
com todo o entusiasmo. Já eu a havia notado, pois
não era uma camponesa como as que compunham
o público: era uma verdadeira senhora, nova, bonita,
e que pelo casaco de peles me parecera ser a mais
rica da aldeia; tinha a seu lado uma criança que
também aplaudira muito Capi; certamente seu filho,
porque tinha grandes semelhanças com ela.
Depois da primeira romanza, Capi recomeçara o
peditório, e reparei, surpreendido, que a bela dama
nada deitara na bandeja.
Quando o meu mestre acabou a ária de Ricardo,
ela fez-me sinal com a mão, e eu aproximei-me.
- Queria falar ao seu director - disse-me.
Fiquei um tanto admirado com aquele desejo.
Seria bem melhor, segundo a minha opinião, que ela
pusesse qualquer moeda na bandeja; todavia fui
transmitir o recado a Vitalis e durante esse tempo
Capi voltou para junto de nós.
O segundo peditório fora ainda menos produtivo
do que o primeiro.
- Que me quer essa senhora? - perguntou Vitalis.
- Falar consigo.
- Não tenho nada a dizer-lhe.
- Ela não deu nada a Capi; talvez queira dar agora.
-Então é Capi que deve ir e não eu.
Contudo decidiu-se e foi, levando Capi consigo.
Segui-os.
Entretanto um criado, trazendo abafos e uma
lanterna, viera colocar-se perto da senhora e do menino.
Vitalis aproximara-se e cumprimentara friamente.
- Desculpe-me havê-lo incomodado - disse a dama - mas
queria felicitá-lo.
Vitalis inclinou-se, sem replicar uma única palavra.
- Dedico-me à música, - continuou ela - e isto
explica quanto sou sensível a um grande talento como o seu.
Um grande talento no meu mestre, em Vitalis, o
cantor das ruas, o adestrador de animais! Fiquei
estupefacto.
- Não pode haver talento num pobre velho como
eu - disse Vitalis.
- Não imagine que sou impelida por indiscreta
curiosidade...
- Mas estou pronto a satisfazer essa curiosidade;
ficou surpreendida de ouvir cantar menos mal um
músico ambulante, não é verdade?
- Maravilhada.
- Todavia, é muito simples; nem sempre fui o
que sou agora; outrora, na minha juventude, há
muito tempo já, fui... sim, fui criado dum grande
cantor, e por espírito de imitação, como um papagaio, decorei
algumas árias que o meu patrão estudava na minha presença; eis
tudo.
A senhora não respondeu, e examinou durante
muito tempo Vitalis, que se conservava defronte dela
numa atitude embaraçada.
- Adeus, senhor - disse por fim a dama acentuando a
palavra «senhor», que pronunciou com estranha entoação- Adeus,
e permita-me que lhe agradeça mais uma vez a comoção que senti
ao ouvi-lo.
Depois, abaixando-se para Capi, colocou na bandeja uma
moeda de ouro. Imaginava que Vitalis ia reconduzir a
senhora,
porém não se moveu, e, quando ela se afastara já
alguns passos, ouvi-o murmurar em italiano duas ou
três pragas.
- A senhora deu um luís a Capi - disse-lhe eu.
Imaginei que ele me ia dar um sopapo; mas a
mão, que se erguera, abaixou-se.
- Um luís - respondeu ele como se saísse dum
sonho. - Ah! Sim, é verdade, pobre Joli-Coeur, esquecia-o,
vamos para casa.
Guardámos tudo depressa e não tardámos em regressar à
estalagem. Fui o primeiro a subir a escada e entrei no
quarto a correr; o lume não se apagara, mas as chamas
haviam-se extinguido.
Acendi rapidamente uma vela e procurei Joli-Coeur,
admirado de o não ouvir.
Deitado ao comprido sobre o cobertor, tinha vestido o
uniforme de general, e parecia dormir. Debrucei-me para
ele a fim de lhe segurar na mão sem o despertar.
Aquela mão estava fria.
Nesse instante, Vitalis entrava no quarto.
Voltei-me para ele.
- Joli-Coeur está frio!
Vitalis Inclinou-se Junto de mim:
- Pobrezinho! - disse eu.
- Morreu! Isto tinha de acontecer. Vês, Remi, andei mal
em roubar-te à Senhora Milligan. Sou castigado. Zerbino, Dolce
e, hoje, Joli-Coeur... E não fica por aqui...

CAPÍTULO 16.
CHEGADA A PARIS.

ESTáVaMOs ainda muito longe de Paris.


Tivemos de caminhar pelas estradas cobertas de neve, de
manhã à noite, contra o vento do norte que nos fustigava o
rosto.

Como foram tristes aquelas jornadas! Vitalis Ia


à frente, e eu seguia-o com Capi.
Avançávamos assim sem trocarmos uma única
palavra durante horas, de faces azuladas pelo frio,
de pés molhados e estômago vazio; e as pessoas que
nos encontravam detinham-se para nos ver desfilar.

Evidentemente passavam-lhes pela cabeça ideias


esquisitas; para onde levaria aquele velho o pequeno
e o cão?

O silêncio era-me muito doloroso: tinha necessidade de


falar, de me aturdir; mas Vitalis só me respondia
laconicamente quando eu lhe dirigia a palavra, e sem mesmo se
voltar.
Por toda a parte, no campo, se estendia o alvo
lençol da neve.
Os quilómetros sucederam-se aos quilómetros, as
jornadas continuaram e aproxinámo-nos de Paris.
Que íamos fazer a Paris no estado de miséria em
que nos achávamos?

Era esta a pergunta que eu fazia a mim próprio


com ansiedade e que bastantes vezes me preocupava
o espírito nas longas jornadas.
Desejaria Interrogar Vitalis, mas não me atrevia,
de tal forma ele se mostrava taciturno e lacónico nas
suas comunicações.
Finalmente, uma manhã, dignou-se vir para meu
lado, e, pela maneira como me olhou, senti que ia
saber o que tanto quisera conhecer.
Havíamos pernoitado numa herdade, a pouca distância
duma vasta aldeia. Partíramos de madrugada, e, depois de
havermos costeado os muros de um parque, e atravessado em todo
o comprimento a aldeia, tínhamos, do alto de uma colina, visto
à nossa frente
uma grande nuvem de fumo escuro que pairava por
cima de uma enorme cidade, de que só se distinguiam
alguns monumentos elevados.
Arregalava os olhos para tentar orientar-me no
meio daquela confusão de telhados, de campanários,
de torres que se perdiam nas brumas e na fumarada,
quando Vitalis, diminuindo o passo, veio colocar-se
a meu lado.
- Eis então mudada a nossa vida - disse-me ele
Como se continuasse uma conversa entabulada há muito tempo já.
- Dentro de quatro horas estaremos em Paris.
- Ah! É Paris, tudo aquilo que se estende ao longe?
- Pois claro.
No mesmo Instante em que Vítalis me dizia que
era Paris que tínhamos em nossa frente, um raio de
luz desprendeu-se do céu, e vi, rápido como um relâmpago, um
reflexo dourado. Decididamente, eu não me enganara; Ia
encontrar árvores de ouro.

Vitalis prosseguiu:
- Em Paris, separar-nos-emos.
Instantâneamente fez-se noite, e deixei de ver as
árvores de ouro.
Voltei os olhos para Vitalis. Ele também me
olhava, e a palidez do meu rosto, a tremura dos lábios,
disseram-lhe o que se passava em mim.
- Estás inquieto e desgostoso, parece. Pobre pequeno!
Estas palavras, e sobretudo o tom com que foram
pronunciadas, fizeram-me vir lágrimas aos olhos:
havia tanto tempo que eu não ouvia uma frase carinhosa!
Ah! Como o senhor é bom! - exclamei.
Tu és bom, um bom rapaz, um coraçãozinho
às direitas. Quando tudo corre bem, seguimos na vida
sem pensar muito em quem nos acompanha, mas
quando surge a Infelicidade, quando nos sentimos
tristes, sobretudo se somos velhos, isto é, sem termos
fé no dia de amanhã, há a necessidade de nos
apoiarmos naqueles que nos rodeiam e achamo-nos
contentes de os ter junto de nós. Que eu me apoie
em ti, parece-te espantoso, não é verdade? E, no
entanto, é assim mesmo. E sinto"me consolado por
teres lágrimas nos olhos ao ouvires-me, só por isso.
Porque eu também, meu filho, estou cheio de tristeza.
Mais tarde, quando amei alguém, é que compreendi bem a
exactidão daquelas palavras.
- A pior desgraça - continuou Vitalis. - é que é
sempre preciso separarmo-nos justamente na ocasião
em que desejaríamos aproximar-nos mais.
- Mas - disse eu timidamente - não quer abandonar-me em
Paris, pois não?
- claro que não te quero abandonar. Que farias
sozinho em Paris, pobre criança? E além disso, não
tenho o direito de te abandonar, reflecte nisto. No
dia em que não quis entregar-te àquela boa senhora
que desejava encarregar-se de ti e educar-te como

se fosses seu filho, contraí a obrigação de te educar


o melhor que pudesse. Por Infelicidade, as circunstâncias
são-me adversas. Nada posso fazer por ti nesta altura, e eis a
razão porque acho melhor que
nos separemos, não para sempre, mas por alguns
meses, a fim de que vivamos um pouco melhor durante o Inverno.
Dentro de algumas horas, chegaremos a Paris. Que queres tu que
façamos lá com a companhia reduzida a Capi?
,Ao ouvir o seu nome, o cão veio postar-se em
nossa frente.
Vitalis deteve-se um instante para lhe passar a
mão na cabeça.
- Que podemos fazer apenas com Capi? Compreendes bem, meu
filho, que não há possibilidade de darmos representações, não
é verdade?
- Mas a minha harpa?
- Se eu tivesse dois pequenos como tu, talvez
conseguíssemos viver, mas um velho da minha laia com uma
criança da tua idade é mau negócio. Se eu fosse
aleijado, ou cego... Mas, por infelicidade, sou o que
sou, isto é, não chego a inspirar piedade, e, em Paris,
para mover a compaixão das pessoas apressadas que
vão para os seus negócios, é preciso aparecer num
estado lamentável. E é necessário não ter vergonha
de estender a mão à caridade pública, e isso eu
jamais o poderia fazer; eis então o que pensei e
resolvi: entregar-te-ei até ao fim do Inverno a um
padrone que te reunirá a outras crianças para tocar harpa.
Quando eu aludira à harpa, não imaginara semelhante
conclusão. Aquela combinação era talvez a que nos
convinha
melhor nas presentes circunstâncias.
Nessa altura, só vi dois factos:
A separação e o padrone.
Nos nossos percursos através das aldeias e das
cidades, eu encontrara vários desses padrones que
conduzem à força de pancada crianças contratadas

aqui e ali. Não se assemelhavam em nada a Vitalis,


cruéis, injustos, exigentes,bêbados, sempre com Injúrias e
grosserias na boca, e de mão leve. Eu podia cair nas
unhas dum daqueles terríveis padrone.
Além disso, mesmo que o acaso me desse um melhor, era
mais uma mudança. Depois da mãe Barberin, Vitalis.
Depois de Vitalis, outro homem.
Iria ser eternamente assim?
Jamais encontraria alguém a quem amasse para
sempre?
Pouco a pouco, viera a estimar Vitalis como a
um pai.
Eu nunca teria então pai. Nem família. Seria
sempre só no mundo.
Teria muitas coisas a dizer, e as palavras subiam-me do
coração aos lábios, mas fi-las retroceder, para não aumentar o
desgosto de Vitalis.
Não tardámos a chegar a um rio que atravessámos sobre uma
ponte tão lamacenta como eu nunca vira; a neve, negra como
carvão, cobria a calçada
duma camada movediça, na qual se enterravam os
pés até ao tornozelo.
Na extremidade da ponte encontrava-se uma
aldeia de ruas estreitas, em seguida, depois da aldeia,
o campo reaparecia, mas o campo cheio de casas de
aspecto miserável.
Na estrada os carros seguiam agora atrás uns dos
outros e cruzavam-se sem interrupção.
Dentro em pouco o campo desapareceu e achámo-nos numa rua
de que não se via o fim; de cada lado, a distância,
descobriam-se casas, mas pobres, sujas, e muito menos belas do
que as de Bordéus, de Toulouse e de Lyon. A neve
amontoava-se de espaço a espaço, e nesses montes negros e
duros haviam deitado cinzas, legumes apodrecidos, lixo de toda
a espécie; o ar estava carregado de cheiros fétidos; a cada
instante passavam grandes carros que os transeuntes evitavam
com muita habilidade e sem parecerem preocupar-se com isso.
- Onde estamos? - perguntei eu a Vitalis.
- Em Paris, meu rapaz.
- Em Paris!
Onde existiam então os meus palácios de mármore? E os
transeuntes vestidos com fatos de seda? Como a realidade
era feia e miserável!
Era ali que eu Ia passar o Inverno, separado de
Vitalis... e de Capi.

CAPÍTULO 17.

AS PEDREIRAS DE GENTILLY.
ENQuANTo percorremos a rua, onde havia gente, VItalis
caminhou sem nada dizer, mas depressa nos encontrámos numa
travessa deserta; então sentou-se num marco e passou várias
vezes a mão pela testa, o que nele era sinal de atrapalhação.
- será talvez muito bonito escutar a voz da generosidade -
disse ele como se falasse consigo próprio. - mas por causa
disso eis-nos no meio de Paris.. sem um soldo na algibeira,
sem um bocado de pão no estômago. Tens fome?
- Não comi mais nada depois do pedacinho de pão que me
deu esta manhã.
- Pobre pequeno! Estás arriscado a deitar-te esta
noite sem Jantar; ao menos, se soubéssemos onde
passar a noite! Enfim, é preciso ir. Avante, meus filhos!
Era a sua frase de bom-humor dirigida aos cães
e a mim; mas nessa tarde disse-a tristemente.
Nessa noite pusemo-nos a caminho, pelas ruas de
Paris. A noite estava escura e o gás, cuja chama vacilava

nos candeeiros agitada pelo vento, mal iluminava a


calçada; escorregávamos a cada passo na água gelada ou na
neve que invadira os passeios. Vitalis segurava-me pela mão e
Capi seguia-nos.
Depois das ruas largas, vielas, mais outras ruas
largas surgiam. Caminhávamos sempre, e os raros
transeuntes que encontrávamos pareciam olhar-nos
com espanto: era o nosso traje, o nosso andar fatigado que
chamava a atenção? Os polícias com quem cruzávamos voltavam-se
e paravam, seguindo-nos com atenção.
Entretanto, sem pronunciar uma só palavra, VItalis
avançava dobrado em dois. Apesar do frio, a sua mão queimava;
tinha a Impressão de que ele
tremia.
De ordinário, não ousava interrogá-lo, mas nessa
ocasião faltei à minha regra.
- Está doente, senhor! - disse eu num instante
em que nos detivémos.
- Assim o receio. Precisava duma boa cama, duma
ceia num quarto fechado, com fogão aceso. Mas tudo
isto é um sonho: para a frente, filhos, para a frente!
Havíamos saído da cidade, onde já não existiam tantas
casas, e caminhávamos ora entre uma dupla fileira de muros,
ora em pleno campo. Já não se viam transeuntes nem polícias,
nem candeeiros, nem bicos de gás. O vento, que soprava mais
agreste e frio, colava-nos os fatos ao corpo: felizmente
batia-nos nas costas, mas, como a manga do meu casaco estava
descosida, entrava por esse buraco e deslizava-me ao longo do
braço, o que não me aquecia nada.
Se bem que estivesse escuro e que os caminhos se
cruzassem a cada passo, Vitalis Ia andando como
alguém que sabe para onde vai e que está certo do
rumo que deve tomar.
Mas, de súbito, Vitalis parou.
- Vês algum bosquezinho? - perguntou.
- Não vejo nada.
- Não vês uma massa negra?
Olhei para todos os lados antes de responder;
devíamos estar no meio duma planície, pois a vista
perdia-se em sombrias profundezas que nada Interrompia, nem
árvores, nem casas.
- Ah! se eu tivesse os teus olhos! - disse Vitalis. - Mas
vejo pouco; repara bem para longe.
Apontou na sua frente, e, como eu não respondesse, pois
não tinha ânimo de lhe dizer que nada via, recomeçou a andar.
Decorreram alguns minutos em silêncio; Vitalis
parou de novo e perguntou-me outra vez se eu não
avistava o bosque. Eu já não tinha a mesma confiança de antes,
e um vago terror fez-me tremer a voz quando respondi que nada
distinguia.
- Andemos mais um bocado. Se não avistarmos
árvores voltaremos para trás; talvez me tivesse enganado na
estrada.
Agora, ao compreender que possivelmente estaríamos
perdidos, sentia-me sem forças. Vitalis puxou-me pelo braço.
- Então?!
- Já não posso andar.
- E pensas que posso levar-te ao colo? Se ainda
me sustenho de pé é com a Ideia de que se nos sentamos não nos
levantaremos mais e morreremos de frio. Vamos!
E lá fomos andando, andando...
- Vês algum bosque? - Inquiriu ele passado algum tempo.
- Não vejo nenhum.
- É preciso voltar para trás.
O vento que nos batia nas costas, fustigou-nos a
cara e tão rudemente que me sufocou: tive a sensação duma
queimadura.
Não avançáramos muito ao vir, mas ao voltar
caminhávamos mais lentamente ainda.
- Para onde nos encaminhamos? - perguntei.

- Voltamos para Paris; quando encontrarmos


polícias faremos com que nos levem à esquadra.
Queria evitar isto, mas não posso deixar-te morrer
de frio. Vamos, Remi, vamos, meu filho, coragem!
Que horas seriam? Não fazia nenhuma ideia. Tínhanos
andado durante muito, muito tempo, e lentamente. Meia-noite,
uma hora da manhã, talvez. O céu continuava azul-escuro, sem
lua, com raras
estrelas que pareciam mais pequenas do que de
costume. O vento, longe de abrandar, redobrava de
violência; levantava em turbilhões a poeira nevosa e
fustigava-nos com ela o rosto.
Andando depressa poderíamos reagir contra o
frio, mas Vitalis avançava a grande custo e ofegante;
a sua respiração era curta como se houvesse corrido.
Quando o interrogava, não me respondia, e, com a
mão, num gesto lento, fazia-me sinal de que não
conseguia falar.
Do campo, voltáramos para a cidade, isto é, caminhávamos
entre muros no cimo dos quais, aqui e ali, se balançava um
lampião com um som de ferragens.
Vitalis parou: percebi que estava esgotado.
- Quer que eu bata a uma destas portas? - perguntei-lhe.
- Não, não as abririam; são jardineiros, hortelãos que
moram aqui; não se levantam a esta hora. Continuemos a andar.
Mas ele possuía mais vontade do que forças.
Depois de alguns passos, deteve-se novamente.
- Tenho de descansar um bocadinho, jà não posso mais.
Havia uma porta numa paliçada, e por cima
dessa vedação erguia-se um grande monte de estrume, como é
costume ver-se nos jardins dos hortelãos; o vento secara a
primeira camada de palha e espalhara-a em grande quantidade
pela rua, mesmo ao pé da paliçada.
- Vou-me sentar ali - disse Vitalis.
Fez-me sinal para que juntasse a palha de encontro à
porta e deixou-se cair nessa cama Improvisada.

os dentes entrechocavam-se-lhe e todo o corpo lhe


tremia.
- Traz mais palha - disse-me ele-, - o monte de
adubo preserva-nos do vento.
Abrigava-nos de facto do vento, mas não do frio.
Depois de reunir a palha que pude apanhar, fui sentar-me ao
lado de Vitalis.
- Tudo de encontro a mim - murmurou ele. - e
coloca Capi sobre ti. Transmitir-te-á um pouco de
calor..
Vitalis era homem de experiência, e sabia que o
frio, nas condições em que estávamos, podia ser mortal. Para
se arriscar a semelhante perigo, devia sentir-se absolutamente
esgotado. E estava-o realmente. Havia quinze dias que se
deitava todas as noites cansado em excesso, e esta
última fadiga, juntando-se a todas as outras, encontrava-o
muito fraco para que a pudesse suportar, esmagado por uma
longa série de esforços, pelas privações e pela idade.
Teria noção do seu estado? Nunca o pude saber.
Mas no momento em que, depois de puxar a palha
para mim, me uni a ele, senti que se Inclinava para
o meu rosto e me beijava. Era a segunda vez; foi,
desgraçadamente, a última.

O simples frio impede o sono das pessoas que


estão na cama a tremer; o frio excessivo e prolongado
imobiliza e entorpece aqueles que se deitam ao relento. Foi o
nosso caso.

Logo que me cheguei para Vitalis fiquei como que


prostrado e os olhos fecharam-se-me. Fiz um esforço
para abri-los, mas não consegui, e então belisquei
fortemente o braço; porém, a pele estava insensível,
e, apesar do vigor com que fiz isso, quase nem me
doeu. No entanto deu-me até certo ponto consciência
da vida. Vitalis, encostado à porta, arquejava penosamente, em
haustos curtos e rápidos. Com a cabeça apoiada ao meu peito,
Capi dormia já. Por cima de
nós, o vento continuava desabrido, cobrindo-nos de
pedacinhos de palha que tombavam como folhas
secas desprendidas duma árvore. Na rua, ninguém;
perto de nós, ao longe, por toda a parte, um silêncio
de morte.
Aquela quietude fez-me medo. Medo de quê? nem
mesmo o sabia, mas era um vago terror, misturado
duma tristeza que me encheu os olhos de lágrimas.
Parecia-me que ia morrer ali.
Depois os olhos fecharam-se-me de novo, o coração
entorpeceu, e pareceu-me que desmaiava.

CAPÍTULO 18.

LISE.

QUANDO despertei estava numa cama; a chama dum


lume forte Iluminava o quarto, desconhecido para mim.
Também me eram desconhecidas as caras que me
rodeavam: um homem de jaleca cinzenta e de tamancos amarelos;
três ou quatro crianças, entre as quais uma garota que fixava
em mim olhos admirados; eram uns olhos estranhos, aqueles, que
pareciam falar. Soergui-me.
- Vitalis? - perguntei eu a essa gente, solícita
em minha volta.
- Ele pergunta pelo pai - disse uma rapariguita
que parecia a mais velha das crianças.
- Não é meu pai, é o meu patrão; onde está ele?
Onde está Capi?
Se Vitalis fosse meu pai, teriam tido certa prudência ao
responderem-me; mas, como o não era, acharam que me deviam
dizer simplesmente a verdade, e eis então o que eu soube:

A porta em cujo vão nos havíamos abrigado pertencia a um


jardineiro. Pelas duas horas da manhã ia ele a sair de casa
para o mercado quando topou
connosco sobre a palha onde nos deitáramos. Começou por dizer
que nos erguêssemos a fim de deixar passar a carroça; depois,
como nenhum de nós se
movesse, e só Capi respondesse ladrando furiosamente para
defender-nos, agarrou-nos nos braços para nos sacudir.
Continuámos sem dar sinal de vida.
Pensou ele por isso que se passava qualquer coisa de
grave. Trouxeram uma lanterna: o resultado do
exame fora que Vitalis estava morto, morto de frio,
e que eu pouco mais valia do que ele. Todavia, como,
graças a Capi, deitado sobre o meu peito, eu conservava um
resto de calor no coração, tinha resistido e respirava ainda.
Levaram-me então para a casa do jardineiro e deitaram-me na
cama dum dos
filhos a quem haviam mandado levantar. Fiquei ali
seis horas, mais ou menos morto; depois a circulação
do sangue restabeleceu-se, a respiração tornou-se
mais forte, e eu acabei por despertar.
Por muito entorpecido e paralisado que estivesse
de corpo e inteligência, achava-me no entanto suficientemente
lúcido para compreender em toda a sua extensão as palavras que
eu acabara de ouvir. Vitalis morto!
Era o homem de jaleca cinzenta, isto é, o jardineiro quem
me fazia esta narrativa, e enquanto ele falava, a menina de
olhar admirado não me perdia de vista. Quando o pai disse que
Vitalis morrera, ela compreendeu, sem dúvida, a dor que aquela
notícia me causava, porque, deixando vivamente o canto
onde estivera, avançou para o pai, pousou-lhe uma das
mãos no braço e apontou-me com a outra, fazendo
ouvir um som estranho que não era a fala humana,
mas qualquer coisa como um suspiro brando e compadecido.
- Está bem, minha Lise - disse o jardineiro,
ínclinando-se para a filha -, bem sei que isto o entristece,

mas é preciso dizer-lhe a verdade, porque, se não formos nós,


será a gente da polícia.
E continuou a contar-me como haviam prevenido
as autoridades e como Vitalis fora levado por polícias
enquanto me instalavam na cama de Aleixo, o filho mais velho.
- E Capi? - perguntei eu, quando ele acabou de falar.
- Capi!
- Sim, o cão?
- Não sei, desapareceu.
- Foi atrás da maca - disse um dos pequenos.
- Viste-o, Benjamim?
- Pois claro que o vi: ia atrás dos homens, e de
tempos a tempos saltava para a padiola; depois,
quando o enxotavam dali, dava um uivo que parecia
um gemido.
Pobre Capi, que tantas vezes seguira, como bom
comediante, a farsa do enterro de Zerbino, com ar de
choro, dando suspiros que arrancavam gargalhadas
às crianças mais taciturnas!
O jardineiro e os filhos deixaram-me só, e, sem
saber bem o que fazia, e sobretudo o que ia fazer,
levantei-me.
A harpa estava junto do leito; passei a bandoleira
em volta do ombro e penetrei no quarto onde o jardineiro
entrara com os filhos. Tinha de partir, mas para onde?... Não
fazia a mínima ideia, mas sabia
que devia partir... e partia,
Ao erguer-me da cama, não me sentira muito
bem, cheio de lassidão e de calor insuportável na
cabeça; mas, quando me pus de pé, tive a impressão
de que ia cair e fui obrigado a agarrar-me a uma
cadeira. Todavia, depois dum momento de descanso,
empurrei a porta e achei-me em presença do jardineiro e dos
filhos. Estavam sentados em frente duma mesa, perto do
lume que flamejava numa grande lareira, e preparavam-se para
comer uma sopa de couve.

o cheiro da sopa fez-me lembrar brutalmente que não


jantara na véspera; tive uma espécie de desfalecimento e
cambaleei. O mal-estar traduziu-se-me no rosto.
- Sentes-te mal, rapaz? - perguntou o jardineiro com
voz compadecida.
Respondi que efectivamente não estava muito
bom, e que, se me dessem licença, me sentaria um

instante junto do lume.


Porém, não era de calor que eu precisava, mas sim de
alimento; o lume não me reanimou e o odor da sopa, o tinir
das colheres no prato, os estalidos da língua dos que
comiam, aumentaram-me ainda mais

a fraqueza.
Se me atrevesse, pediria um prato de sopa. Mas Vitalis
não me ensinara a esmolar e a natureza não
me fizera mendigo.
A rapariguinha de olhar estranho, aquela que não falava
e a quem o pai chamara Lise, estava na minha frente, e, em vez
de comer, contemplava-me sem baixar ou desviar os olhos. De
súbito, ergueu-se da mesa, e, agarrando no seu prato cheio de
sopa, trouxe-mo e colocou-mo sobre os joelhos.
Fiz um gesto lento com a mão para lho agradecer, pois eu
não tinha forças para falar, mas o pai
interrompeu-me:
- Aceita, meu rapaz - disse ele. - O que Lise dá
é bem dado: e, se o estômago te pedir, depois desse, mais
outro.
Se o estômago me pedia! Engoli tudo em poucos segundos.
Quando pousei a colher, Lise, que se pos tara defronte de mim,
olhando-me fixamente, deu um gritinho que desta vez não era um
suspiro mas uma exclamação de regozijo. Em seguida tirou-me
o prato e apresentou-o ao pai para que o enchesse de novo, e
depois veio-me trazê-lo com um sorriso tão doce, tão animador,
que, apesar da fome, fiquei um momento sem pensar em segurar o
prato. Como antes, a sopa desapareceu num instante; já não era

um sorriso que franzia os lábios das crianças que

me olhavam, mas um riso aberto que lhes saía da boca.


- Oh! rapaz - comentou o jardineiro. - não há
dúvida que comes bem.
Senti-me corar até à raiz dos cabelos; mas, depois
duma pausa, achei melhor confessar a verdade do
que me deixar acusar de comilão e respondi que não
jantara na véspera.
- E almoçaste?
- Também não.
- E o outro, o velhote?
- Não comeu mais do que eu.
- Então, não só morreu de frio como de fome.
A sopa fizera-me recuperar as forças; levantei-me
para partir.
- Para onde vais? - perguntou o pai.
- Vou-me embora.
- Para onde?
- Não sei.
- Tens amigos em Paris?
- Não.
- Onde é que habitas?
- Não tínhamos alojamento; chegámos ontem.
- Que Pensas fazer?
- Tocar harpa, cantar e ganhar a minha vida.
- Mas aonde?
- Em Paris.
- Farias melhor se voltasses para a terra, para
casa de teus pais. Onde moram eles?
- Não tenho pais.
- Disseste que o velho de barba branca não era
teu pai?
- Não tenho pai.
- E tua mãe?
- Não tenho mãe.
- Mas tens com certeza um tio, uma tia, primos,
primas, alguém de família?
- Não, ninguém.

- Donde vens tu?


- O meu mestre alugara-me ao marido da minha
ama... Foram muito bons para mim, agradeço-lhes
de todo o coração; e, se quiserem dançar no domingo,
voltarei para tocar harpa, se isso os diverte.
Enquanto falava, dirigira-me para a porta; mas
poucos passos tinha eu dado quando Lise, que ma
seguia, me segurou na mão e apontou a harpa, toda
sorridente.
Compreendi o que ela desejava.
- Quer que eu toque?
Fez um sinal de cabeça afirmativo e bateu alegremente as
palmas.
- Pois bem! - disse o pai. - Toca-lhe qualquer coisa.
Agarrei na harpa, e, se bem que não tivesse ânimo
para dançar nem para alegria, pus-me a tocar uma
valsa, a minha predilecta, aquela que eu tinha nas
pontas dos dedos. Ah! Desejaria tocar tão bem como
Vitalis e comprazer aquela rapariguinha que me perturbava tão
docemente o coração, com aqueles seus olhos!
De começo escutou-me sem me desfitar, depois
marcou o compasso com os pés, e a seguir, como se
fosse levada pela música, principiou a voltear na
cozinha, enquanto os dois irmãos e a irmã mais
velha se deixavam ficar tranquilamente sentados;
claro que não valsava nem fazia os passos habituais
da dança, mas volteava graciosamente, de cara radiante.
Instalado junto da lareira, o pai não a perdia de
vista; parecia comovido e batia as palmas. Quando
acabei de tocar, veio ela postar-se defronte de mim
e fez-me uma bela reverência. Em seguida bateu na
harpa com um dedo, e esboçou um sinal que exprimia: «mais».
Teria prazer em tocar todo o dia em sua honra,
mas o pai ordenou-me que ficasse por ali, pois não
queria que a filha se fatigasse a rodopiar.

Então, em vez de tocar uma valsa ou -uma música


de dança, cantei a canção napolitana que Vitalis me
ensinara:

Fenesta vascia e patrona crudele


Quanta sospire mate fatto lettare

Marde stocore comma na cannela


Bella quando te sento ando menarre.
Aos primeiros compassos, Lise veio pôr-se em minha
frente, com os olhos fixos nos meus, movendo os lábios como
se, mentalmente, repetisse as minhas
palavras; depois, quando o tom da canção se tornou
mais triste, recuou lentamente alguns passos, e à
última estrofe precipitou-se chorando nos Joelhos do pai.
- Basta! - disse este.
- É tola - obJectou um dos irmãos, o que se chamava
Benjamim. -Dança e depois chora.
- Não é tão tola como tu! Ela sente a música, é
o que é - disse a irmã mais velha, inclinando-se
para lise e beijando-a.
Enquanto tudo isto se passava, eu pusera a harpa
ao ombro e dirigira-me para o lado da porta.
- Onde vais? - perguntou o jardineiro.
- Vou-me embora.
- Gostas então muito da profissão de músico?
- Não tenho outra.
- Os caminhos isolados não te fazem medo?
- Não tenho casa.
- No entanto, devias pensar no que te aconteceu
esta noite.
- Sem dúvida que preferia uma boa cama e um
cantinho à lareira.
- Queres a boa cama e canto à lareira, em troca
de trabalho, claro está? Se quiseres ficar, trabalharás e
viverás connosco. Compreendes que não é a riqueza que te
ofereço, nem a mandriice. Se aceitas,
terás de aceitar também os cuidados e fadigas;
deverás erguer-te cedo, cavar todo o dia, ganhar o
pão com o suor do teu rosto. Mas o teu pão ficará
assegurado, e não precisarás de dormir mais ao relento, como a
noite passada, arriscando-te a morrer à esquina duma rua ou no
fundo dum fosso; à noite,
acharás a cama pronta, e, ao comer a sopa, sentirás
a satisfação de a haver ganhado, o que a torna boa,
afirmo-te. E enfim, se és bom rapaz, e tenho cá na
ideia de que o és, encontrarás em nós uma família.
Lise virara-se para mim, e, através das lágrimas,
olhava-me sorrindo.
Surpreendido por aquela proposta, fiquei um momento
indeciso, sem perceber muito bem o que ouvia.
Então, Lise, deixando o pai, aproximou-se de mim
e, agarrando-me na mão, levou-me para defronte duma gravura
colorida que estava dependurada na parede: essa gravura
representava São João em menino, vestido com uma pele de
carneiro.
Com um gesto fez sinal ao pai e aos irmãos que
olhassem o quadro, e, ao mesmo tempo, alisou a pele
de carneiro que eu trazia e mostrou os meus cabelos,
que, como os de São João, tinham a risca ao meio e
caíam, frisados, sobre os ombros.
Compreendi que ela me achava parecido com
São João e, sem saber porquê, aquilo deu-me prazer
e enterneceu-me.
- É verdade - disse o pai - que se assemelha a
São João.
Lise riu e bateu as palmas.
- Então? - perguntou o pai, voltando à sua proposta. -
Agrada-te a ideia, meu rapaz? Uma família!
Eu teria família! Ah! Quantas vezes esse sonho
tão acarinhado se dissipara! A mãe Barberin, a Senhora
Milligan, Vitalis, todos, uns após outros, me tinham faltado.
Já não ficaria sozinho.
A minha posição era terrível. Vira pouco antes
morrer um homem com quem vivia há anos e que fora
para mim quase um pai: perdera na mesma ocasião o meu
companheiro, o meu camarada, ofiel e querido Capi que eu tanto
estimava e que me retribuía a amizade; e, no entanto, quando o
jardineiro me propôs ficar em casa dele, um sentimento de
confiança fortaleceu-me o coração. Não estava então tudo
acabado para mim: a vida podia recomeçar. E o que me seduzia,
muito mais do que o pão que me asseguravam, era aquele lar que
eu via tão unido, aquela vida de família que me prometiam.
Os rapazes seriam meus Irmãos. A linda Lise seria minha
irmã. Vivamente, desenfiei do braço a correia da harpa.
- Cá está a resposta - disse o pai rindo - e uma
bela resposta. Pendura o teu instrumento naquele
prego, meu rapaz, e no dia em que não te achares
bem cá em casa, reclamá-la-ás para bateres as asas;
mas terás cautela em fazer como as andorinhas e os
rouxinóis, hás-de escolher a estação para te pores a
caminho.
A casa, em cuja porta viéramos cair, pertencia à
Glacière; e o jardineiro que a ocupava chamava-se
Acquin. Na altura em que me recebeu naquela casa,
a família compunha-se de cinco pessoas: o pai,
conhecido nas redondezas por tio Pedro; dois rapazes, Aleixo e
Benjamim, e duas pequenas, Estefânia, a mais velha, e Lise, a
mais nova das crianças.
Lise era muda, mas não de nascença; Isto é, o
mutismo nela não fora a consequência de surdez.
Falara durante dois anos, mas, de repente, um pouco
antes de ela completar quatro anos de idade, perdera o uso da
palavra. Este acidente, surgido em virtude de convulsões, não
havia felizmente atingido
a inteligência, que, pelo contrário, se desenvolvera
com extraordinária precocidade; não só compreendia tudo, mas
exprimia o que desejava.
Outrora o direito de primogenitura era uma vantagem nas
famílias nobres; hoje, entre o povo, aquele que nasce

primeiro herda quase sempre uma pesada responsabilidade. A


senhora Acquin morrera um ano depois do nascimento de Lise, e
desde esse dia, Estefânia, que só tinha dois anos mais que o
irmão Aleixo, tornara-se a mãe da família. Em lugar de Ir
à escola, tivera de ficar em casa, a preparar a comida,
coser um botão ou um remendo na roupa do pai ou
dos irmãos, a andar com Lise ao colo. Haviam-se
esquecido de que ela era filha, de que ela era Irmã;
depressa se habituaram a considerá-la como uma
criada, uma criada com quem se não constrangiam,
pois sabiam que ela não deixaria a casa e jamais se
zangaria.
A trazer Lise nos braços, a segurar Benjamim
pela mão, a trabalhar todo o dia, levantando-se cedo
para fazer a sopa ao pai antes da partida para o
mercado, deitando-se tarde para pôr tudo em ordem
depois da ceia, a lavar a roupa dos Irmãos no lavadoiro, a
regar no Verão quando havia um momento de descanso, deixando
de noite a cama para estender
as esteiras durante o Inverno se o granizo caía
Inopinadamente, Estefânia não tivera tempo de ser criança, não
tivera tempo de brincar e rir. Aos
catorze anos, o rosto era triste e melancólico como
o duma solteirona de trinta e cinco, mas com qualquer coisa de
doce e resignado. Não havia cinco minutos que eu
dependurara a
harpa no prego que me fora designado, e principiava
a contar como tínhamos sido surpreendidos pelo frio
e fadiga ao voltarmos de Gentilly, onde esperávamos
pernoitar numa pedreira, quando ouvi raspar na
porta que dava para o jardim, e, ao mesmo tempo,
um latido lamentoso.
- É Capi! -exclamei, levantando-me precipitadamente.
Mas Lise antecedeu-me; correu para a porta e
abriu-a.
O pobre Capi lançou-se dum pulo sobre mim, e,
depois de eu o tomar nos braços, pós-se-me a lamber

a cara, ladrando de contentamento; todo o seu corpo


tremia.
- E Capi? - disse eu.
A pergunta foi compreendida.
- Pois bem! Capi ficará contigo.

Os homens da polícia que haviam levado Vitalis


tinham dito que precisariam interrogar-me e que
viriam pelo dia, depois de eu estar reanimado. Esperá-los, era
muito incerto e muito demorado. Sentia-me ansioso por saber
notícias de Vitalis. Talvez não
estivesse morto como o haviam imaginado. Eu não
morrera; podia ser que ele também voltasse a si.
Ao ver a minha inquietação e adivinhando a
causa, Acquin levou-me à esquadra, onde me fizeram
mil e uma perguntas, às quais não respondi senão
quando me afirmaram que Vitalis falecera de facto.
O que eu sabia era muito simples, e contei tudo. Mas
o comissário queria mais pormenores e interrogou-me
longamente acerca de Vitalis e da minha pessoa.
Disse-lhe que não tinha pais e que Vitalis me
alugara, mediante uma soma de dinheiro que pagara
adiantado ao marido da minha ama.
- E agora? - disse-me o comissário.
A estas palavras, o jardineiro interveio.
- Tomaremos conta dele, se no-lo quiser confiar.
Não só o comissário acedeu a isso, como também
o felicitou pela sua boa acção.
Faltava responder a respeito de Vitalis, mas era-me
bastante difícil, pois eu pouco ou nada sabia.
- É muito simples. O verdadeiro nome dele não
era Vitalis; chamava-se Carlo Balzani, e há trinta
e cinco anos ou quarenta, na Itália, esse nome bastava para
dizer quem era. Soube-o pela polícia. Carlo Balzani foi nessa
época o cantor mais famoso da ITtália. Mas chegou um dia em
que perdeu a voz, e então, já não podendo ser o rei dos
artistas, não
quis diminuir a sua glória, amesquinhando-a em
teatros indignos da reputação que tinha. Abdicou do
nome de Carlo Balzani e tornou-se Vitalis, escondendo-se

de todos aqueles que o haviam conhecido nos seus bons tempos.


Entretanto era preciso viver;
experimentou várias profissões e em nenhuma venceu. De tal
forma foi decaindo que acabou por exibir nas ruas cães sábios.
Mas, no meio da miséria, conservava o seu orgulho e teria
morrido de vergonha se o público soubesse que o famoso Carlo
Balzani se tornara no pobre Vitalis. Um acaso fez-nos senhores
-desse segredo.
Estava ali a explicação do mistério que tanto me
Intrigara.
Desgraçado Carlo Balzani! Querido Vitalis!

CAPÍTULO 19.

JARDINEIRO.

DEVIAM sepultar o meu mestre no dia seguinte, e


Acquin prometera levar-me ao enterro.
Mas não me pude levantar nessa manhã porque
me atacou de noite uma febre alta, que principiou
por arrepios de frio seguidos de grande calor; parecia-me que
tinha lume no peito e que estava doente como Jolí-Coeur,
depois daquelas horas que passara
encarrapitado na árvore, no meio da neve.
Na realidade, tinha uma pneumonia, ou coisa
parecida, causada pelo resfriamento apanhado na
noite em que eu e o pobre Vitalis caíramos esgotados em frente
daquela porta.
Foi esta doença que me provou a bondade da
família Acquin, e sobretudo as qualidades de dedicação de
Estefânia.
Se bem que em casa de gente pobre haja pouca
disposição para chamar médicos, fui atacado de
forma tão violenta e assustadora que fizeram, para
mim, excepção a essa regra, que tanto vem da natureza como do
hábito. O médico não precisou de longo exame nem duma
narrativa pormenorizada para ver qual era a minha doença;
declarou logo que me deviam levar para o hospital.
Era realmente o mais simples e fácil. Todavia
esse conselho não foi aceite por Acquin.
- Visto que o pequeno veio cair à nossa porta e
não à do hospital, é porque deve ficar connosco.
O médico combateu com toda a espécie de argumentos aquela
lógica fatalista, mas sem conseguir abalá-la. Era para eles um
dever conservarem-me
consigo, e conservaram-me.

A todas as suas ocupações, Estefânia acrescentou


a de enfermeira, tratando-me carinhosamente, como
se fosse uma Irmã de S. Francisco de Paula, sem
jamais ter Impaciências ou esquecimentos. Quando
se via obrigada a abandonar-me para os trabalhos
domésticos, Lise substituía-a, e, muitas vezes, no
meio da febre, descobria-a aos pés da cama, fixando
em mim os seus grandes olhos inquietos. Com o espírito
perturbado pelo delírio, Imaginava que ela era o meu anjo da
guarda, e dirigia-lhe a palavra como
se falasse a um anjo, confessando-lhe os meus desejos e
esperanças. Foi desde então que me habituei a considerá-la um
ser ideal, rodeada de uma espécie
de auréola, que me surpreendia ver andar como nós
neste mundo, quando eu esperava que voasse com
grandes asas brancas.
A doença foi longa e dolorosa, com várias recaídas
que talvez desanimassem um pai ou uma mãe, mas
que não cansaram a paciência nem a dedicação de
Estefânia. Durante noites consecutivas ficou de vigília, pois
eu tinha o peito de tal forma tomado que parecia asfixiar, e
foram Aleixo e Benjamim que,
alternadamente se renderam junto do meu leito. Por
fim, a convalescença chegou; mas, como a doença
tinha sido comprida e caprichosa, tive de esperar
que a Primavera recomeçasse a reverdecer os prados
da Glacière para poder sair de casa.

Então Lise, que não trabalhava, substituiu Estefânia, e


foi ela quem me acompanhou nos passeios pelas margens do
Bièvre. Aí pelo meio dia, em plena
força do sol, partíamos, e, de mãos dadas, íamos lentamente
seguidos por Capi. A Primavera foi doce e bela nesse ano, ou,
pelo menos, ficou-me dela uma
doce e bela recordação, o que vem a dar no mesmo.
Ao passearmos os dois, claro está que Lise não
falava, mas, coisa espantosa, não precisávamos de
palavras, olhávamos um para outro e compreendiamo-nos tão bem
dessa maneira que, por fim, eu próprio nada lhe dizia.
A pouco e pouco voltaram-me as forças e pude
ocupar-me da lida do jardim: esperava esse momento
com impaciência, cheio de pressa em fazer pelos
outros o que haviam feito por mim, de laborar para
eles e de lhes restituir, na medida das minhas possibilidades,
o que me tinham dado. Nunca eu trabalhara, pois, por muito
penosas que sejam as longas caminhadas, não é uma faina
contínua que exija
vontade e aplicação; mas parecia-me que trabalharia bem, pelo
menos corajosamente, consoante o exemplo daqueles que eu via a
meu lado.
Estávamos na estação em que os goivos começam
a aparecer nos mercados de Paris, e era essa a cultura do pai
Acquin naquela ocasião. O jardim apresentava-se cheio deles;
havia-os brancos, vermelhos, roxos, dispostos conforme as
cores, separados pelos
caixilhos envidraçados, de forma que se viam linhas
todas brancas ao pé de outras todas vermelhas, o
que fazia lindo efeito. À noite, antes de cobri-los
com os vidros, o ar estava embalsamado pelo perfume dos
goivos. A tarefa de que me encarregaram, proporcionando-a às
minhas poucas forças de então, consistiu em levantar de
manhã as ditas vidraças, depois da
geada passar, e em fechá-las à noite antes que ela
viesse; pelo dia, devia eu estender as esteiras sobre
as plantas, a fim de preservá-las do sol ardente.

isto não era muito difícil, nem fatigante, mas demandava


muito tempo, pois tinha de remover diariamente, duas vezes,
algumas centenas de vidros e estar
atento para pôr as flores à sombra ou destapá-las
segundo o calor do sol.

Entretanto, Lise ficava junto da nora que servia


para tirar a água necessária às regas, e quando o
velho burrinho, cansado de girar, de olhos encapuzados nos
seus antolhos de coiro, diminuía o passo, ela estimulava-o,
fazendo estalar um chicotinho. Um
dos irmãos despejava os baldes que aquele engenho
fazia subir, e o outro ajudava o pai. Desta forma cada
um ocupava o seu posto e ninguém perdia tempo.

Não me ocupei sempre dos caixilhos. Quando recuperei as


forças, tive a satisfação de plantar qualquer coisa, e a
satisfação ainda maior de vê-la crescer: era uma criação
minha, o fruto do meu labor, e isso deu-me certo orgulho. Eu
não era um Inútil,
provara-o, e, o que me tornava ainda mais contente,
sentia-o: asseguro-lhes que isto paga bem muitos
trabalhos.

Para ser franco, devo dizer que nem tudo era trabalho e
fadiga; tínhamos também as nossas horas de repouso e prazer,
curtas, já se sabe, mas precisamente por isso mais apreciadas.
Ao domingo de tarde, reuníamo-nos sob uma latada que
ficava junto da casa; eu desprendia a harpa do prego onde ela
ficara dependurada toda a semana,
e executava músicas para os dois Irmãos e irmãs
dançarem. Quando se cansavam de dançar, pediam-me que cantasse
todo o meu repertório, e a canção napolitana produziu sempre o
seu Irresistível efeito em Lise:

Fenesta vascia e patrona crudele.


Nunca cantei a última estrofe sem que lhe visse
os olhos marejados de lágrimas.

Então, a fim de a distrair, representava uma peça


burlesca com Capi. Para ele também esses domingos
eram dias de festa; lembravam-lhe o passado, e, ao
findar o papel, recomeçá-lo-ia de bom grado.

Dois anos decorreram assim, e, como o pai me


levava muitas vezes com ele ao mercado, ao cais das
Flores, à Madeleine, ao Chateau-dEau, ou então a
casa dos floristas a quem entregávamos as nossas
plantas, a pouco e pouco fui conhecendo Paris e compreendi
que, se não era aquela cidade de mármore e ouro que eu
imaginara, não era também uma cidade
de lama como a minha entrada por Charenton me fizera crer um
tanto precipitadamente.
Felizmente a minha educação não se fez sómente
pelos olhos e conforme o acaso dos passeios ou dos
percursos a ravés de Paris. Antes de se estabelecer
por sua conta, o pai Acquin trabalhara nos viveiros
do Jardim Botânico, e lá se encontrara com pessoas
de ciência cuja convivência lhe tinha suscitado a
curiosidade de ler e de aprender. Durante vários anos
empregara as suas economias em comprar livros e an
suas horas de ócio em ler esses livros. Mas depois
casou, os filhos nasceram e rarearam os momentos
de lazer; era preciso antes de tudo ganhar o pão de
cada dia; os livros haviam sido abandonados, mas
não se perderam nem foram vendidos; estavam guardados num
armário. o primeiro Inverno que passei com a família Acquin
foi muito demorado, e os trabalhos de Jardinagem acharam-se,
senão suspensos, pelo menos diminuídos. Então, para ocupar os
serões
que passávamos ao canto da lareira, os velhos livros
foram tirados do armário e distribuídos entre nós.
Eram, na maior parte, obras sobre botânica e a história das
plantas com algumas narrativas de viagens. Aleixo e Benjamim
não tinham herdado do pai o
gosto pelo estudo, e, invariavelmente, todas as noites,
depois de abrirem o volume respectivo, adormeciam
à terceira ou quarta página. Quanto a mim, menos

disposto ao sono ou mais curioso, lia até à altura


de nos irmos deitar.
O meu desejo de aprender recordou ao pai Acquin
o tempo em que ele tirava dois soldos do dinheiro
destinado ao almoço para comprar livros, e aos que
estavam no armário ajuntou outros que me trouxe de
Paris. A escolha, fazia-a ao acaso ou pelas promessas
do título, mas, enfim, sempre eram livros; se lançaram um
pouco de desordem no meu espírito sem direcção, essa desordem
apagou-se mais tarde, e
ficou o que havia de bom neles.
Lise não sabia ler, mas, ao ver-me absorto nos
livros, logo que eu tinha uma hora de liberdade, ficou
curiosa de tomar conhecimento com aquilo que tanto
me Interessava. A princípio quis tirar-me os volumes
que me Impediam de brincar com ela; porém, como,
apesar disso, eu insistia em lê-los, pediu-me que o
fizesse em voz alta. Foi um novo vínculo entre nós.
Quantas horas passámos assim: Lise sentada à
minha frente, sem me desfitar, e eu lendo. Ensinei-a
também a desenhar, isto é, o que eu chamava desenhar. Isso foi
demorado, difícil, mas sempre chegámos mais ou menos ao fim.
Sem dúvida que eu era um fraco mestre. Mas entendíamo-nos e o
bom
acordo entre o professor e o aluno vale muitas vezes
mais do que o talento. Que alegria quando ela desenhou uns
traços onde se reconhecia o que desejara fazer! O pai Acquin
beijou-me:
- Vamos lá - disse ele rindo, - eu podia ter
cometido uma asneira ainda maior do que ficar contigo. Lise te
pagará Isso mais tarde.
«Mais tarde» queria dizer quando ela falasse, pois
não renunciavam a restituir-lhe a palavra; somente
os médicos tinham declarado que nada havia a fazer
senão esperar uma crise.
«mais tarde» era também o seu gesto triste quando
eu lhe cantava qualquer coisa. Quis que eu lhe ensinasse a
tocar harpa, e bem depressa os dedos se lhe habituaram a
imitar os meus.

Naturalmente não pôde aprender a cantar, e Isso


despeitava-a. Vi-lhe com frequência lágrimas nos
olhos que me exprimiam o seu desgosto; mas, com
a boa e doce natureza de Lise, o desgosto não persistia;
enxugava os olhos e o sorriso resignado dizia-me: «Mais
tarde».
Adoptado pelo pai e tratado como irmão pelos
filhos, eu ficaria provavelmente toda a vida na Glacière se
uma catástrofe não viesse de repente modificár-me mais uma vez
a existência.

CAPÍTULO 20.
DISPERSãO DA FAMíLIA.

CONFORME já disse, o pai cultivava goivos: é uma


cultura relativamente fácil que os jardineiros
dos arredores de Paris conseguem às mil maravilhas,
e assim o provam as grandes plantas carnudas guarnecidas de
flores de alto a baixo que eles levam aos mercados nos meses
de Abril e de Maio. A única habilidade necessária ao
jardineiro que cultiva goivos é aquela que consiste em
escolher plantas de flores dobradas, pois a moda não aceita as
singelas. Mas, como as sementes dão uma proporção mais ou
menos igual de plantas singelas e dobradas, há o maior
Interesse em só conservar as últimas; se assim não
fosse, arriscar-se-iam a cuidar cinquenta por cento
de plantas que teriam de deitar fora no momento
de as ver florir, isto é, depois de um ano de cultivo.
Essa escolha faz-se pelo exame de certos caracteres
que se apresentam nas folhas e no aspecto da planta.
Poucos jardineiros sabem praticar essa operação, que
é mesmo um segredo que passa de geração para geração nalgumas
famílias. Quando os cultivadores de goivos

precisam de fazer a escolha das flores dobradas, dirigem-se


aos colegas conhecedores desse tal segredo, e estes lá vão dar
a sua consulta, tal qual como médicos ou peritos.

Pedro Acquin era um dos mais hábeis jardineiros


que sabiam fazer Isso em Paris; na época em que se
deve praticar a referida operação, todos os seus dias
estavam tomados. Vinha então para nós, e principalmente para
Estefânia, o tempo aborrecido, pois esses colegas não se
visitam sem beber um litro, algumas
vezes dois, outras vezes três, e, depois de ele ir a casa
de três ou quatro jardineiros, regressava com a cara
afogueada, cambaleando, e de mãos trémulas.
Nunca Estefânia se deitava sem que o pai entrasse,
mesmo quando voltava tarde, muito tarde.
Se eu por acaso estava acordado, ou despertava
com o ruído que ele fazia, ouvia no quarto a sua
conversa.
- Por que não te deitaste? - dizia o pai.
- Porque quis ver se não precisava de nada.
- O que tu queres é ver se ando direito; pois
bem, olha para mim, aposto que vou até ao quarto
dos pequenos sem me desviar desta fila de ladrilhos.
Passos desiguais ressoavam na cozinha, depois
havia um silêncio.
- Lise vai bem? - perguntava ele.
- Sim, está a dormir; se o pai não fizesse barulho, era
tão bom!
- Eu não faço barulho, ando direito, é preciso
que eu ande direito visto que as filhas me acusam.
Que foi que ela disse quando não me viu à ceia?
- Olhou para o lugar do pai.
- Ah, olhou para o meu lugar...
- Sim, senhor.
- Ouve cá, ela adormeceu há muito?
- Não, senhor, apenas há um quarto de hora;
queria esperar por si.
-E tu, o que é que querias?
- Queria que ela não o visse entrar.
Seguia-se uma pausa:
- Faninha, és uma boa filha - volvia ele depois.
- Ouve, amanhã vou a casa de Luisot, e juro-te, ouve
bem, juro-te voltar antes da ceia; não quero que me
esperes, e não quero que Lise adormeça atormentada.
Mas as promessas, as juras de nada serviam e ele
regressava sempre tarde uma vez que aceitasse um
copo de vinho.
Em casa, Lise era toda-poderosa; logo que o pai
saía, esquecia-se da filha.
- Sabes - dizia ele -, a gente bebe um copo sem
pensar nisso, porque não o pode recusar aos amigos;
bebe-se segundo porque se bebeu o primeiro, e fica-se
muito decidido a não beber terceiro; mas a bebida
faz sede...
Devemos dizer que aquilo não acontecia com frequência.
Aliás a época da escolha dos goivos não é grande, e, ela
passada, já sem motivos para sair, o
pai ficava sempre em casa. Não era homem que fosse
à taberna sozinho, nem que perdesse o tempo por
mandriice.
Uma vez terminada a estação dos goivos, preparávamos
outras plantas, pois é de regra que um jardineiro não tenha um
único recanto vazio de jardim: logo que as plantas são
vendidas, outras devem-nas
substituir.
A arte para um jardineiro que trabalha com ideias
de negócio, é levar as suas flores para o mercado
na altura em que tem probabilidades de tirar delas
o maior lucro.
O pai, depois de findarem os goivos, trabalhava
com mira nas grandes festas dos meses de Julho e de
Agosto, sobretudo nas do mês de Agosto, em que há
as de Santa-Maria e S. Luís, e por isso preparávamos
milhares de sécias, de fúcsias, de rododendros, tantas
quanto os canteiros e as estufas podiam conter: era
preciso que todas essas plantas florissem no devido
dia; nem muito cedo, porque estariam murchas na
altura da venda, nem muito tarde, porque no momento

oportuno não teriam ainda flores. Compreende-se que Isto exija


certo talento, pois não podemos mandar no sol, nem no
tempo,que é mais ou menos
quente. O pai tornara-se exímio nessa arte, e jamais
as suas plantas floriam com grande antecedência ou
muito atraso. Mas quantos cuidados, quanto trabalho!
Na altura em que estou da minha narrativa, a
estação anunciava-se como excelente. No dia 5 de
Agosto todas as nossas plantas se apresentavam conforme
exigíamos. No jardim, ao ar livre, as sécias mostravam as
corolas prestes a desabrochar, e nas
estufas, de vidros cuidadosamente foscados com cal
para não deixar passar a luz do sol, começavam a
florir fúcsias e rododendros: formavam tufos e pirâmides
guarnecidos de botões de alto a baixo, e o efeito era soberbo.
De tempos a tempos eu via o pai
esfregar as mãos com regozijo.
- A estação será boa - dizia ele aos filhos.
E, rindo baixinho, fazia a conta do que a venda
de todas aquelas flores lhe traria de lucro.

Tínhamos trabalhado a valer para conseguir


aquilo, sem uma hora de descanso, nem mesmo ao
domingo; no entanto, como estivesse tudo consoante
se desejava e em ordem, ficou decidido que para
nossa recompensa iríamos todos jantar nesse domingo, 5 de
Agosto, em Arcueil, a casa dum dos amigos do pai, jardineiro
como ele; o próprio Capí
Iria também. Devíamos chegar a Arcueil aí pelas
cinco ou seis horas, e, logo a seguir ao jantar,
regressaríamos a casa para não nos deitarmos muito tarde e
podermo-nos levantar cedo na segunda-feira,
frescos e dispostos para a faina do jardim.

Conforme havia sido resolvido, alguns minutos


antes das quatro o pai dava a volta à chave na fechadura do
portão.
- A caminho toda a gente! - disse ele, satisfeito.
- Avante, Capi!
E, agarrando Lise pela mão, desatei a correr com
ela, acompanhado pelos latidos alegres do cão que
pulava junto de nós.
Estávamos soberbos com os nossos fatos domingueiros.
Havia gente que se voltava para nos ver passar. Não sei qual
seria o meu aspecto, mas Lise, de chapéu de palha, vestido
azul e botinas de lona
cinzenta, era com certeza a mais linda e a mais
alegre rapariguinha do mundo.
O tempo decorreu tão depressa que nem tive consciência
disso; o que sei dizer é que, ao chegarmos ao fim do jantar,
um de nós notou que o céu se enchia
de nuvens negras do lado do poente, e, como a mesa
estava posta ao ar livre debaixo dum grande sabugueiro,
foi-nos fácil verificar que se preparava uma tempestade.
- Filhos, temos de regressar à Glacière.
A estas palavras houve uma exclamação geral:
- já!
Lise não disse nada, mas fez gestos de recusa e de
protesto.
- Se o vento se levanta - insistiu o pai - pode
dar cabo dos vidros: a caminho!
Não havia nada a replicar: todos nós sabemos que
os canteiros envidraçados são a riqueza dos jardineiros, e que
se o vento os quebra é a ruína para eles.
- Vou à frente - disse o pai. - Vem comigo Benjamim, e tu
também, Aleixo. Iremos o mais depressa possível. Remi virá
atrás com Estefânia e Lise.
E, sem acrescentar mais coisa alguma, partiram a
passos largos, enquanto nós os seguíamos não tão
rapidamente, regulando a marcha, Estefânia e eu,
pela de Lise.
O céu tornava-se cada vez mais negro e a tempestade
aproximava-se, precedida por nuvens de poeira que o vento, que
se levantara, arrastava em
grandes turbilhões. Quando éramos apanhados no
remoinho tínhamos de parar, voltar as costas ao
vento, e tapar os olhos com as mãos, pois ficávamos

cegos pelo pó; se se respirava, sentia-se a boca a


saber a terra.
Ouviam-se trovões ao longe e o seu fragor aproximava-se
rapidamente misturado com ruídos estridentes. Os ribombos
dos trovões repetiam-se cada vez
mais, e as nuvens haviam-se tornado de tal forma
espessas que parecia ser já noite...
Coisa estranha, no meio da trovoada, ouvíamos
um grande fragor que se aproximava e que era inexplicável:
dir-se-ia um regimento de cavaleiros precipitando-se para
fugir à tempestade. De repente começou a cair granizo, de
que algumas
pedras nos fustigaram o rosto; depois, quase instantâneamente,
foi um verdadeiro alude; tivemos de correr para o vão duma
porta.
E então vimos a tempestade de granizo, a maior
que se pode Imaginar; num instante a rua cobriu-se
duma camada como em pleno Inverno. As pedras
eram tão grandes como ovos de pomba e ao tombar
produziam um barulho de ensurdecer no meio do qual
se ouvia de tempos a tempos o estrépito de vidros
quebrados. Dos telhados para a rua caíam todas as
espécies de coisas: telhas, caliça, ardósias despedaçadas,
principalmente ardósias, que se amontoavam negras no meio da
brancura do caminho.
- Ai! Os nossos vidros! - exclamou Estefânia.
Fora também a Ideia que me viera ao espírito.
Talvez o pai tenha chegado a tempo...
Mesmo que chegassem antes do granizo, não
teriam tido possibilidade de cobrir todos os vidros
com as esteiras; vai ficar tudo estragado.
Sem conhecer muito a fundo o preço das coisas,
compreendi logo o desastre que podia ser para nós se
a chuva de pedra tivesse quebrado os quinhentos ou
seiscentos vidros, sem falar das estufas nem das
plantas.
A terrível bátega não durou muito tempo, cinco
ou seis minutos talvez, e cessou de repente como
havia principiado: a nuvem foi-se para o lado de
Paris e pudémos sair do portão que nos abrigara. Na
rua, as pedras, duras e redondas, rolavam sob os pés
como calhaus duma praia, e numa tal espessura que
nos enterrávamos até aos tornozelos.
Como não fosse possível Lise caminhar naquele
gelo com as suas botinhas de lona, pu-la nas minhas
costas; o rosto dela, antes tão alegre, estava agora
compungido: corriam-lhe lágrimas dos olhos.
Não tardámos a chegar a casa, cuja porta ficara
aberta; entrámos precipitadamente no jardim.
Que espectáculo! Tudo se mostrava despedaçado,
revolvido: flores, vidros, granizo em confusão, numa
mistura sem forma. Do jardim tão belo, tão florido
dessa manhã, nada mais restava do que aqueles destroços.
Onde estaria o pai?
Como não o víssemos, procurámo-lo, e chegámos
à grande estufa de que nem um único vidro ficara
Intacto: Acquin estava sentado, ou antes prostrado,
num banco no meio das ruínas que cobriam o chão,
Aleixo e Benjamim imóveis junto dele.
- Oh! meus pobres filhos! - exclamou ele levantando a
cabeça ao pressentir-nos, pelo ruído dos vidros que estalavam
sob os nossos pés. - Meus pobres filhos!
E, tomando Lise nos braços, desatou a chorar, sem
acrescentar uma palavra.
Que poderia ele dizer?
Fora um verdadeiro desastre o que nos acontecera; mas,
embora a nossos olhos se apresentasse terrível, as
consequências seriam ainda piores.
Não tardei a saber por Estefánia e pelos rapazes
quanto era justificado o desespero do pai. Havia dez
anos que ele comprara o jardim e construíra por suas
mãos aquela casa. O homem que lhe vendera o terreno
emprestara-lhe também dinheiro para a aquisição de material
necessário à profissão de florista. A totalidade era pagável
ou reembolsável, em quinze anos, por anuidades.

Os pagamentos tinham de ser regulares, tanto mais que o credor


só esperava uma ocasião, isto é, um atraso, para recuperar o
terreno, casa, material, guardando, é claro, as dez anuidades
já recebidas: parece que era esta a sua especulação,
e, por calcular que, em quinze anos, chegaria um dia
em que o pai não pudesse pagar, é que arriscara
aquele negócio, )para ele sem perigo, mas não para
o devedor.
Esse dia chegara finalmente, graças à tempestade
de granizo.
Que iria suceder agora?
Não ficámos muito tempo na incerteza; no dia
seguinte àquele em que o pai Acquin devia pagar a
sua anuidade com o produto da venda das plantas,
vimos entrar em casa um senhor de preto, de aspecto
pouco cortês, que nos entregou um papel selado onde
escreveu algumas palavras numa linha que estava em
branco.
Era um oficial de diligências.
O pai já não ficava em casa, corria para a cidade.
Onde ia, não o sei dizer, pois, outrora tão comunicativo,
agora nem pronunciava uma palavra. Naturalmente, dirigia-se a
casa dos advogados, talvez aos tribunais.
E só esta ideia me assustava; Vitalis também
comparecera no tribunal e eu bem sabia o que resultara daí.
Para o pai, o resultado fez-se esperar mais e
assim se passou uma parte do Inverno. Como não
podíamos, está claro, reparar as estufas e pôr vidros
nos caixilhos, íamos cultivando legumes e flores que
não necessitassem de abrigo; não dariam grande
lucro, mas, enfim, sempre era alguma coisa, e além
disso representava trabalho.
Uma tarde, o pai voltou ainda mais acabrunhado
do que de costume.
- Filhos - disse ele-, - tenho de os deixar.
Só houve uma exclamação, um grito de dor.
Lise saltou-lhe para os braços e beijou-o, chorando.
- Bem devem perceber que não é voluntariamente que se
abandona filhos tão bons como vocês, uma filha tão querida
como Lise.
E apertou-a de encontro ao coração.
- Fui condenado a pagar, e, como não tenho
dinheiro, vou vender tudo o que temos. Mas não será
suficiente e meter-me-ão na cadeia, onde ficarei
cinco anos; não podendo pagar com dinheiro, pagarei com a
liberdade, com o meu corpo.
Desatámos todos a chorar.
- Sim, é muito triste - disse ele - mas é a lei, e
nada se pode contra a lei. Que será de vocês, durante
esse tempo? É isto o pior.
Fez-se silêncio; não sei o que os outros sentiam,
mas, para mim, foi horrível.
- Devem calcular que não deixei de reflectir
nisso; e eis o que decidi para não ficarem sozinhos
quando eu for para a prisão.
Voltou-me um pouco de esperança.
- Remi vai escrever a minha irmã Catarina Suriot, para
Dreuzy, Nièvre; explicar-lhe-á a situação e pedirá que ela
venha. Com Catarina, que não se
desnorteia facilmente e que sabe de negócios, resolveremos
tudo pelo melhor.
Era a primeira vez que eu escrevia uma carta;
cruel e penosa estreia!
Todavia Catarina não chegou tão depressa como
havíamos imaginado, e, antes dela, vieram os beleguins para
levar o pai. Sabíamos muito bem que a captura se ia fazer
mais dia menos dia, mas imaginávamos que Catarina
estaria então presente, e Catarina era a defesa.
Mas Catarina não estava ali, quando o levaram.
Chegou, uma hora talvez depois da partida do pai
Acquin, e encontrou-nos na cozinha, sem que tivéssemos trocado
uma só palavra. Aquela que até esse momento nos sustivera
mostrava-se por sua vez esmagada, Estefânia, tão
animosa, tão forte para a luta, estava agora fraca como nós.
Era uma mulher inteligente a tia Catarina, uma
mulher de iniciativa e de vontade; fora ama em
Paris durante dez anos, por cinco vezes; conhecia
as dificuldades deste mundo, e, conforme dizia ela
própria, sabia livrar-se delas.
Foi um alívio para nós ouvi-la ordenar e obedecer-lhe;
havíamos encontrado uma direcção, sentiamo-nos reanimados.
Para uma camponesa sem educação e com pouco
dinheiro, era uma pesada responsabilidade que lhe
caía nos braços, e que faria inquietar os mais destemidos: uma
família de órfãos de que o primogénito não tinha ainda
dezasseis anos e de que a mais nova
era muda. Que destino dar a essas crianças? Como
encarregar-se delas, quando se vive com dificuldades?
O pai de um dos nenés que ela amamentara era
advogado; e foi de acordo com ele, através dos seus
conselhos profissionais, que a nossa sorte se decidiu.
Em seguida Catarina entendeu-se com o pai Acquin
na prisão, e, oito dias depois da chegada a Paris,
sem que nos tivesse falado uma só vez das suas diligências e
intenções, deu-nos parte das resoluções que tomara.
Como éramos demasiadamente novos para continuarmos a
trabalhar sozinhos, cada um dos filhos iria para casa de tios
e tias que os receberiam de boa
vontade.
Lise ficaria com a tia Catarina em Morvan.
Aleixo viveria em casa de um tio que era mineiro
em Varses.
Benjamim, em casa de outro tio, jardineiro em
Saint-Quentin.
E Estefânia iria para a tia que estava casada
em Charente, à beira-mar, em Esnandes.
Eu escutava aquelas disposições, esperando a minha vez.
Mas, como a tia Catarina se calara, adiantei-me:

- E eu?
- Tu, não és da família.
- Trabalharei para si.
- Não és da família.
- Pergunte a Aleixo, a Benjamim, se não tenho
coragem para trabalhar.
- E para comer também, não é verdade?
- Sim, sim, é da família - disseram eles todos.
Lise avançou e juntou as mãos em frente da tia
com um gesto mais eloquente do que grandes discursos.
- Minha pobre filha - disse a tia Catarina -,
compreendo-te, queres que ele venha contigo, mas,
na vida, não se faz tudo o que se quer. Tu, és minha
sobrinha, e quando chegarmos a casa, se o marido me
disser qualquer coisa, ou mostrar má cara ao Ir para
a mesa, posso bem responder: «É da nossa família,
quem terá piedade dela se não formos nós?» A gente
aceita os parentes, mas não recebe estranhos; o pão
é pouco para a família, quanto mais para os outros!
Percebi perfeitamente que nada tinha a fazer,
nada a ajuntar. «Eu não era da família».
A tia Catarina jamais adiava a execução -das suas
resoluções: preveniu-nos que a nossa separação teria
lugar no dia seguinte, e, com Isto, mandou-nos deitar.

Logo que entrámos no quarto todos me rodearam,


e Lise precipitou-se-me nos braços, chorando. Compreendi que
apesar do desgosto de se separarem, era em mim que pensavam e
senti ser de facto um irmão para eles. Então uma ideia
iluminou-me o espírito perturbado, ou antes (pois devemos
dizer tanto o bem como o mal), o coração inspirou-me.
- Oiçam - exclamei eu-, - vejo perfeitamente
que, se os seus parentes não querem saber de mim,
vocês consideram-me da família.
- Sim, sim - disseram todos os três -, serás
sempre nosso irmão.

Lise, que não podia falar, confirmou aquelas palavras


apertando-me a mão e fitando-me tão profundamente que me
vieram lágrimas aos olhos.
- Pois bem, sê-lo-ei, e provarei isso.
- Onde vais empregar-te? - disse Benj amim.
- Vou tornar a embrulhar-me na pele de carneiro,
tirar a harpa do prego onde o pai adependurou, e
irei de Saint-Quentin a Varses, de Varses a Esnandes, de
Esnandes a Dreuzy; vê-los-ei a todos, uns após outros, e
assim, para mim, é como se estivessem reunidos. Não esqueci as
canções nem as músicas de dança; ganharei a minha vida.
Pela satisfação que se traduziu em todas as caras,
vi que a minha ideia ia ao encontro dos seus desejos,
e, no meio do desgosto em que estava, senti-me feliz.
No dia seguinte, logo de manhãzinha, Lise levou-me para o
jardim, e compreendi que desejava dizer-me qualquer coisa.
- Queres falar-me?
Fez um sinal afirmativo.
- Daqui a quinze dias, estarei em Dreuzy.
Lise abanou a cabeça.
- Não queres que eu vá a Dreuzy?
Para nos entendermos, era geralmente por interrogações
que eu fazia e ela então respondia em sinais negativos ou
afirmativos.
Explicou que desejava ver-me em Dreuzy; mas,
estendendo a mão para três direcções diferentes,
deu-me a perceber que eu devia, antes, ir visitar os
Irmãos e a irmã.
- Queres que eu vá, primeiramente, a Varses, a
Esnandes e a Saint-Quentin?
Sorriu, contente por ter sido compreendida.
- Por quê?
Com o auxílio das mãos, dos lábios e, sobretudo,
com os seus olhos expressivos, fez-me entender a
razão daquele pedido. Interpretei-o assim:
Para dar notícias de Estefânia, de Aleixo e de
Benjamim, é necessário que comeces por vê-los:

então virás a Dreuzy e contar-me-ás o que viste e o


que eles te disseram.
Deviam partir às oito da manhã, e a tia Catarina
mandara buscar um trem muito grande para levá-los
todos, primeiro à prisão a fim de beijarem o pai, e,
depois, cada um com a sua bagagem, onde deviam embarcar.
Às sete horas, Estefânia, por seu turno, levou-me
para o jardim.
- Vamo-nos separar - disse ela. - Queria oferecer-te uma
lembrança, toma isto; é uma caixa de costura. Encontrarás
dentro, linhas, agulhas e também a tesoura que meu padrinho me
deu. Pelo caminho vais precisar de tudo isto, e eu não estarei
junto de ti para deitar um remendo ou coser um botão.
Quando te servires da tesoura, pensarás em nós.
Enquanto Estefânia me falava, Aleixo andava por
ali a rondar-nos; logo que a irmã entrou em casa,
e eu ficava todo comovido no quintal, aproximou-se de mim:
- Tenho duas moedas de cem soldos - disse-me.
- Se quiseres aceitar uma, dás-me muito prazer.
De nós cinco, Aleixo era o único que tinha a
paixão do dinheiro, e troçávamos sempre da sua
avareza; amealhava soldo a soldo e sentia uma verdadeira
felicidade em possuir moedas novas de dez e vinte soldos, que
contava incessantemente, fazendo-as brilhar ao sol e
ouvindo-as tinir. Aquela oferta enterneceu-me; quis
recusar,. mas
ele insistiu e meteu-me na mão uma bela moeda
reluzente. Por ali, vi que a amizade que me dedicava
devia ser muito grande, visto ultrapassar o amor pelo
seu tesoiro.
Benjamim também não me esqueceu, e quis, por
sua vez, fazer-me um presente; deu-me o canivete
que lhe pertencia e em troca exigiu um soldo, «porque as
navalhas cortam a amizade».

o tempo passava rápido; ainda um quarto de


hora, ainda cinco minutos e íamos ser separados. Lise
não pensaria em mim?
No momento em que ouvimos o rodar da carruagem, saiu ela
do quarto da tia Catarina e fez-me sinal que a seguisse para o
jardim.
- Lise! - chamou a tia.
Mas ela, sem responder, continuou, apressada, o
seu caminho.
Nos jardins dos floristas e dos hortelãos, tudo é
sacrificado à utilidade e ali não existem plantas decorativas
ou para agrado dos donos. Porém, no nosso jardim, havia uma
grande roseira de Bengala que
não fora arrancada por estar num ponto afastado.
lise dirigiu-se a essa roseira, donde cortou um
ramo, depois, voltando-se para mim, dividiu em dois
o raminho, que tinha dois botões prestes a desabrochar, e
deu-me um deles. Ah! Como a linguagem dos lábios é coisa
pouca
comparada com a dos olhos! Como as palavras são
inexpressivas e vazias comparadas aos olhares!
- Lise! Lise! - gritou a tia.
Já as trouxas e pacotes estavam no trem.
Agarrei na harpa e chamei Capi. Ao ver o instrumento e o
meu antigo traje, que nada tinha de assustador para ele, Capi
pulou de alegria, compreendendo sem dúvida que íamos partir e
que ele poderia saltar, correr em liberdade, o que lhe seria
mais
divertido do que ficar fechado em casa.
Chegara o momento das despedidas. A tia Catarina
abreviou-o; mandou Estefânia, Aleixo e Benjamim subirem para o
carro e pediu-me que lhe pusesse Lise sobre os joelhos. Em
seguida, como eu,
consternado, continuasse ali, afastou-me brandamente e fechou
a portinhola.
- A caminho! - disse ela.
E o trem partiu. Distingui, através das lágrimas, a
cabeça de Lise inclinando-se para a vidraça corrida e a mão
dela a enviar-me um beijo. Depois a carruagem voltou
rapidamente na esquina da rua, e nada mais vi do que um
turbilhão de pó.
Apoiado na harpa, com Capi a meus pés, fiquei
muito tempo a contemplar a poeira que recaía lentamente para
aterra. Um vizinho fora encarregado de fechar a casa e já
guardava as chaves para as entregar ao proprietário.
Enfiei no ombro a correia da harpa; este gesto,
que tantas vezes eu fizera outrora, provocou a atenção de
Capi; ergueu-se, fitando-me com as pupilas brilhantes.
- Vamos, Capi?
Ele compreendera; pulou em minha frente, ladrando.
Desviei o olhar da casa onde vivera dois anos,
onde imaginara viver sempre, e dirigi a vista para longe.
O Sol Já Ia alto, o céu estava puro, e o tempo
quente; em nada se assemelhava àquela noite em
que eu caíra de fadiga e Inanição junto desse mesmo muro.
Aqueles dois anos não haviam sido mais do que
uma paragem; era-me preciso recomeçar a minha
peregrinação.
Contudo, essa paragem fora-me benéfica.
Dera-me forças.
E, o que valia ainda mais do que o vigor que
sentia nos membros, era a amizade que sentia no
coração.
Já não estava sozinho no mundo.
Tinha uma finalidade na vida: ser útil e dar prazer
àqueles que eu estimava e que me estimavam. Uma nova
existência se abria ante mim.
Para a frente!

CAPÍTULO 21.

SEGUNDA PARTE

PARA A FRENTE.

- PARA a frente!
Antes de me lançar na estrada que se abria
perante mim, quis ver aquele que, nos últimos anos,
fora para mim um pai; se a tia Catarina não me
levara com os filhos para lhe dizer adeus, eu devia
ir sozinho abraçá-lo.
Sem nunca haver estado na prisão por dividas,
ouvira falar tanto dela naqueles derradeiros dias que
tinha a certeza de a encontrar. Seguiria o caminho
da Madeleine que conhecia bem, e aí pediria qualquer
indicação. Visto que a tia Catarina e os pequenos
haviam podido ver o pai, consentiriam certamente
que eu também o visitasse: era, ou antes, fora seu
filho, e ele estimara-me.
Não me atrevia a atravessar Paris com Capi atrás
de mim. Que responderia aos polícias, se por acaso
me interpelassem? De todos os receios que a experiência me
inspirara, o da esquadra era o maior: não esquecera Toulouse.
Amarrei Capi com uma corda, o
que pareceu ferir vivamente o seu amor próprio de
cão instruído e bem educado; depois, levando-o pela
trela, pusemo-nos a caminho da prisão de Clichy.
Parei um instante antes de me atrever a entrar,
como se receasse que me retivessem lá dentro; parecia-me que
aquela porta, aquela horrível porta, uma vez fechada atrás de
mim, jamais se tornaria a abrir.
Achava difícil sair da cadeia, mas não sabia que
também era difícil entrar nela. Soube-o à minha custa.
Finalmente, não consentindo que me repelissem
nem me expulsassem, consegui chegar junto daquele
que eu vinha ver.
Fizeram-me entrar num parlatório, onde não
havia grades como eu imaginara, e, pouco depois,
chegou Acquin, que não vinha algemado.
- Esperava-te, meu Remi - disse-me ele. - Ralhei com
Catarina por não te haver trazido com os pequenos.
Desde manhã que eu me sentia triste e acabrunhado;
aquelas palavras reanimaram-me.
- A sr.a, Catarina não quis levar-me consigo.
- Isso não era possível, meu pobre rapaz; neste
mundo não se faz o que se quer. Tenho a certeza que
trabalharias bastante para ganhar a tua vida, mas
Suriot, o meu cunhado, não poderia dar-te trabalho;
ele é vigia das represas do canal de Nivernais, e,
sabes tu, um homem com essa profissão não precisa
de contratar jardineiros. Os pequenos disseram-me
que desejavas voltar a ser cantor ambulante. Esqueceste então
que quase morrias de frio e de fome à nossa porta?
- Não, não o esqueci.
- E, nessa altura, não estavas só, tinhas alguém
para te guiar. É muito grave, meu rapaz, isso que
queres empreender, na tua idade, sózinho, pelas estradas...
Escuta, meu rapaz, se fosses prudente, empregavas-te. Já és um
bom trabalhador; valia
mais do que andar pelos caminhos, o que é um ofício
de preguiçoso.

- Não sou preguiçoso, sabe-o muito bem, e nunca


me ouviu queixar de que tivesse muito trabalho. Na
sua casa, trabalharia o mais que pudesse e ficaria
sempre junto de si; mas não quero empregar-me em
casa dos outros.
Pronunciei certamente estas últimas palavras
duma forma particular, pois Acquin contemplou-me
um momento sem retorquir.
- Contaste-me um dia - replicou ele por fim. - que, sem
saberes quem era Vitalis, este te espantava muitas vezes pela
maneira como olhava as pessoas e pelos seus ares de grande
senhor que pareciam significar que ele era alguém; também tu
tens essas maneiras e esses ares que parecem dizer não seres
um pobre diabo. Não queres servir em casa dos outros?
Enfim, meu rapaz, talvez tenhas razão, e o que eu
te aconselhava era só para teu benefício, não por
outra coisa, podes crer.
O discurso do velho jardineiro perturbara-me
terrivelmente, tanto mais que eu já o fizera a mim
próprio, com frases mais ou menos semelhantes.
Sim, era um caso grave viajar sozinho pelas estradas, bem
o sentia, compreendia Isso. Contudo, se eu renunciasse a
essa espécie de vida,
apenas tinha um recurso, o que o pai acabara de me
indicar: arranjar uma colocação. E eu não queria empregar-me.
Seria talvez orgulho, disparatado na situação em que eu
estava. Porém tivera um patrão a quem fora vendido, e, embora
houvesse ele sido bom
para mim, não desejava outro; esta ideia obcecava-me.
E além disso (o que era também decisivo para a
minha resolução) não podia renunciar àquela existência de
liberdade e de viagem sem faltar à promessa que fizera a
Estefânia, a Aleixo, a Benjamim e a Lise, isto é, sem os
abandonar. Na realidade, Estefânia, Aleixo e Benjamim podiam
passar sem a minha pessoa, visto que se corresponderiam por
cartas; mas Lise! Lise não sabia escrever, nem tão-pouco a

tia Catarina. Lise ficaria assim perdida se eu a abandonasse.


Que pensaria ela de mim? Uma só coisa: que eu já não estimava
aquela que me testemunhara
tanta ternura, aquela por quem eu fora tão feliz.
Ora isto não era possível.
- Não quer então que eu lhe dê noticias dos seus
filhos? - perguntei.
- Eles falaram-me disso; mas não penso em nós
quando te aconselho a renunciar à vida de músico
ambulante. Nunca devemos pensar em nós antes de
pensar nos outros.
- Exactamente, pai. Como vê, é o senhor mesmo
quem me indica o que devo fazer: se eu renunciasse
ao compromisso que tomei, com receio dos perigos de
que me fala, pensaria em mim, não pensaria em si,
nem em Lise.
Fixou-me outra vez com um olhar mais demorado;
depois, de súbito, agarrou-me nas mãos:
- Olha, meu rapaz, devo abraçar-te por essas palavras. És
bom e corajoso e é bem certo que isso não vem com a idade.
Estávamos sozinhos no parlatório, sentados num
banco ao lado um do outro.

Abracei-o comovido, orgulhoso por ouvir dizer que


era pessoa corajosa e boa.
- Acrescentarei apenas duas palavras - continuou o pai. -
Vai com Deus, meu rapaz.
Ficámos ambos silenciosos, durante alguns instantes;
porém o tempo havia passado e chegara o momento de nos
separarmos.

De repente, o pai levou a mão ao bolso do colete


e tirou um relógio de prata, volumoso, que estava
preso à lapela por uma tira de couro.
- Que ninguém diga que nos separámos sem levares uma
recordação minha. Aqui tens o meu relógio. Ofereço-to. Não tem
grande valor, pois bem vês que, se o tivesse, já o haveria
vendido. Também não
regula na perfeição e precisa de tempos a tempos

que se lhe dê uma pancadinha. Mas, enfim, é tudo o


que possuo presentemente e é por isso que to dou.
Dizendo isto, colocou-mo na mão; depois, como eu
pretendia recusar tão bela oferta, ajuntou com voz
triste:
- Bem vês que não tenho aqui necessidade de
saber que horas são. O tempo é longo em demasia;
havia de morrer se o quisesse contar. Adeus, meu
Remi. Beija-me mais uma vez. És um excelente rapaz,
nunca deixes de o ser.
Creio que me pegou na mão para me conduzir até
à porta, mas, do que então se passou, do que dissemos, não
conservo recordação alguma; estava por demais perturbado,
excessivamente comovido.
Julgo que fiquei muito tempo diante do portão da
cadeia sem me poder decidir a Ir para a esquerda
ou para a direita, e lá me conservaria até à noite se
de súbito não encontrasse na algibeira um objecto
duro e redondo.
Maquinalmente e sem saber o que fazia, ia-o apalpando: o
meu relógio! Desgostos, inquietações, tudo esqueci: não
pensava
senão naquela prenda. Tinha um relógio, um relógio meu ali no
bolso e no qual poderia ver as horas. Tirei-o para o
consultar: meio-dia. Pouca importância tinha para mim o ser
meio-dia, ou dez horas, ou duas, mas fiquei contente por saber
que era meiodia. Ah! Meio-dia, já meio-dia. Sabia eu que era
meio-dia. O relógio mo havia dito. Que grande coisa!
O meu relógio! Eis três palavras agradáveis de
pronunciar. Eu tivera tão grande desejo de possuir
um relógio e convencera-me que jamais o poderia
ter! E, no entanto, no meu bolso havia um que fazia
tique-taque. Não andava muito bem, segundo dissera
o pai, mas Isso não tinha importância. Precisava de
uma pancadinha. Pois eu lhas daria e valentes, sem
o poupar.
Deixara-me de tal forma Invadir pela alegria que
nem dava fé de que Capi se mostrava quase tão content

como eu; puxava-me pelas calças e latia de tempos a tempos.


Por fim os seus latidos, cada vez mais fortes, arrancaram-me
ao sonho.
- Que queres tu, Capi?
Olhou-me, e, como eu estivesse demasiadamente
perturbado para o compreender, depois de alguns segundos de
espera, ergueu-se e colocou a pata contra a minha algibeira,
aquela onde estava o relógio.
Queria ele saber que horas eram «para dizê-las ao
respeitável público», como na época em que trabalhava com
Vitalis. Mostrei-lhe o relógio; Capi olhou-o durante
bastante tempo, como querendo recordar-se, depois, abanando a
cauda, ladrou doze vezes; não se esquecera. Ah! como íamos
ganhar dinheiro com o nosso relógio! Era mais uma habilidade
com que eu não contara. Relanceei um último olhar, um
último adeus à
prisão, em cujas quatro paredes o pobre pai ficava
encerrado, enquanto que eu Iria livremente para
onde quisesse, e partimos então.
O objecto mais útil seria um mapa de França.
Sabia que os vendiam no cais e decidi comprar um:
dirigi-me então para o cais.
Foi-me preciso muito tempo para encontrar um
mapa como eu desejava, isto é, colado sobre tela,
que pudesse dobrar e não custasse mais de vinte
soldos, o que para mim já representava muito dinheiro; por fim
vi um já tão amarelo que o vendedor só me fez pagar setenta e
cinco cêntimos.
Agora podia eu sair de Paris -o que me decidi a
fazer o mais depressa possível.
Havia dois caminhos a tomar: o de Fontainebleau
pela barreira da Itália, ou então o de Orléans por
Montrouge. Em resumo, tanto me fazia um como
outro, e por acaso escolhi o de Fontainebleau.
Quando subia a rua Mouffetard, cujo nome acabado de ler
numa placa azul me trouxe à ideia um mundo de recordações. Ao
chegar à igreja Saint-Médard, vi um garoto

encostado à parede da igreja. Tinha a cabeça grande, os olhos


húmidos, os lábios expressivos, o ar doce e resignado, uma
estatura singular; coisa estranha, não crescera.
Aproximei-me a fim de o examinar melhor.
Eu não era rico, mas era-o bastante para não
deixar aquele pobre pequeno morrer de fome, como parecia.
- Espera aí - disse-lhe.
Corri à esquina da rua, onde ficava uma padaria,
e quase a seguir voltei com um pedaço de pão que
lhe ofereci. Agarrou-o precipitadamente e devorou-o.
- Agora - disse-lhe eu - que vais fazer?
- Não sei.
- É preciso tentar qualquer coisa.
- Pensava em vender o violino, e já o teria vendido se
não me custasse separar dele. o violino é a minha alegria e a
minha consolação; quando estou muito triste, busco um sítio
isolado e toco para min.
- Então por que não tocas violino nas ruas?
- Toquei, mas ninguém me deu nada.
Eu sabia o que era tocar sem que houvesse alguém
que desse qualquer coisa.
- E tu? - perguntou. - Que fazes?
Não sei que sentimento de vaidade me Inspirou.
- Sou director duma companhia - respondi.
Na realidade isto era certo, visto que tinha uma
companhia composta de Capi, mas esta verdade roçava de perto a
falsidade.
- Oh! Se quisesses... - principiou o garoto.
- O quê?
- Alistar-me na tua companhia...
Então a sinceridade voltou.
- Mas a minha companhia resume-se a este... - e
apontei Capi.
- E então? Que Importa? Seremos dois. Ah!
Peço-te, não me abandones; que será de mim? Só
me resta morrer de fome.

Morrer de fome! Todos aqueles que ouvem este


grito não o compreendem da mesma maneira, não o
concebem da mesma forma. Foi no coração que ele
me ressoou: eu bem sabia o que era morrer de fome.
- Posso trabalhar - continuou. - Em primeiro
lugar, toco violino, e, além disso, sou contorsionista,
danço na corda, atravesso arcos e também canto.
Verás, farei o que desejares, serei teu criado,
obedecer-te-ei, só te peço alimento e nada mais. Se eu andar
mal, podes bater-me, fica assim combinado;
tudo o que peço é que não me batas na cabeça, e
isto também fica combinado; porque eu tenho a cabeça muito
sensível desde que o meu «padrone» deu tanta pancada nela.
Ao ouvir o pobre falar desta forma, senti vontade de
chorar. Como confessar-lhe que não podia admiti-lo na minha
companhia? Morrer de fome!
Indo comigo não tinha ele tantas probabilidades de
morrer de fome como se estivesse sozinho? Foiisto
que lhe expliquei, mas ele não me quis ouvir.
- Não, duas pessoas não morrem de fome, protegem-se,
ajudam-se uma à outra, e aquele que tem dá ao que não tem.
Estas palavras cortaram as minhas hesitações;
visto que eu possuía qualquer coisa, devia-o ajudar.
- Então, está combinado! - disse-lhe eu.
No mesmo instante, o rapaz agarrou-me nas mãos
e beijou-mas - o que me enterneceu tanto que me
vieram lágrimas aos olhos.
- Anda comigo - exclamei - não como criado
mas como companheiro!
E, enfiando a correia da harpa no ombro, continuei:
- A caminho!
Ao fim dum quarto de hora saíamos de Paris.
O vento de Março havia secado a estrada, e sobre
a terra endurecida marchava-se facilmente.
O ar estava tépido, o sol de Abril brilhava num
céu sem nuvens.
Nos jardins, nas moitas da estrada, nas árvores,
por toda a parte se ouviam os pássaros cantar alegremente; à
nossa frente as andorinhas roçavam a terra em perseguição de
invisíveis mosquitos.
A viagem começava bem, e cheio de confiança
eu avançava na estrada sonora, Capi, livre da trela,
corria em volta de nós, ladrando às carruagens que
passavam, às pedras amontoadas, ladrando por tudo
e por nada, só pelo prazer de ladrar.
Perto de mim, Mattia caminhava sem dizer palavra, e eu
também não falava, não só para o não incomodar mas também
porque precisava reflectir.
Para onde íamos naquele passo deliberado?
Prometera a Lise ir ver os irmãos e Estefánia,
antes de falar com ela, mas não me comprometera
sobre qual devia visitar primeiramente: Benjamim,
Aleixo ou Estefânia? Podia começar por qualquer
deles, conforme me apetecesse, Isto é, por Céverines,
Charente ou Picardia.
Visto que eu saíra pelo sul de Paris, não seria
Benjamim quem teria a minha primeira visita, mas
precisava de escolher entre Aleixo e Estefánia.
Tivera eu uma razão que me decidira a dirigir-me
assim para o sul e não para o norte: era o desejo de
ver a mãe Barberin.
Se há muito tempo não falava dela, não devemos
concluir daí que a tivesse esquecido, como um ingrato.
E também não me devem chamar Ingrato pelo
facto de lhe não haver escrito desde que nos separámos.
Quantas vezes me veio à ideia escrever-lhe para
lhe dizer: «Penso em si e estimo-a sempre de todo o
meu coração», mas o medo de Barberin, um medo
horrível, havia-me retido. Se Barberin soubesse do
meu paradeiro, por meio da carta, poderia vir buscar-me; e,
uma vez em seu poder, quem me diria a mim que ele não me
Vendia a um outro Vitalis, que não seria Vitalis?
Mas, se não me atrevera a escrever à mãe Barberin,
parecia-me que, livre como eu era, podia tentar vê-la. E
então, depois de incluir Mattia no meu grupo, eu dizia, de mim
para mim, que aquilo devia
ser muito fácil. Mandava Mattia à frente, enquanto
eu ficava prudentemente atrás; ele entrava em casa
da mãe Barberin e fazia-a conversar sob qualquer
pretexto. Se ela estivesse sozinha, Mattia contava-lhe a
verdade, vinha-me avisar, e eu penetrava na casa onde passara
a infância e lançava-me nos braços da minha mãe adoptiva; se,
pelo contrário, Barberin estivesse em casa, ele pediria à mãe
Barberin que fosse a determinado lugar, e eu iria beijá-la aí.
Era este plano que eu edificava enquanto ia andando, e
isso tornava-me silencioso, pois todo o interesse e aplicação
eram poucos para examinar uma questão de tal importância.

Com efeito, não só tinha de pensar se poderia ver


e beijar a mãe Barberin, como necessitava de procurar se,
durante o nosso percurso, encontraríamos cidades ou aldeias
onde houvesse probabilidades de
fazer algum dinheiro.
Para isto o melhor era consultar o mapa.

Estávamos justamente nessa ocasião em pleno


campo e podíamos muito bem descansar um pouco
num amontoado de pedras sem receio de sermos
incomodados.

Sentámo-nos, e do saco tirei o mapa que estendi


no chão. Demorei-me muito tempo a orientar-me;
mas, por fim, tracei o meu itinerário: Corbeil, Fontainebleau,
Montorgis, Gien, Bourges, Saint-Amand, Montluçon. Assim, seria
possível ir a Chavanon, e,
se tivéssemos um pouco de sorte, era também possível não
morrer de fome pelo caminho.
- O que é isso? - perguntou Mattia, apontando
para o mapa.
Expliquei-lhe o que era um mapa e para que
servia, empregando mais ou menos os mesmos termos que
Vitalis usara ao dar-me a primeira lição de geografia.
Mattia escutava-me atentamente, fitando-me os
olhos.
- Mas então - objectou ele - é preciso saber ler?
- Decerto: e tu, não sabes ler?
- Não.
- Queres aprender?
- Oh! sim, queria.
- Pois bem! Ensinar-te-ei.
- No mapa pode-se achar a estrada de Gisors a Paris?
- Claro! É muito fácil.
Mostrei-lha.
Mas de começo não quis acreditar no que eu lhe
dissera quando, com um movimento do dedo, vim de
Gisors a Paris.
- o caminho a pé - replicou ele. - é muito mais distante
do que isso.
Então expliquei-lhe o melhor que pude, o que não
quer dizer muito claramente, como se marcam as
distâncias nos mapas; Mattia escutava-me, mas não
parecia convencido da minha ciência.

Como eu desafivelara o saco, veio-me à Ideia Inspeccionar


o seu conteúdo, tanto mais que desejava mostrar as minhas
riquezas a Mattia; estendi pois
tudo no chão.
Possuía três camisas de linho, três pares de meias,
cinco lenços, tudo em muito bom estado, e um par
de sapatos já um tanto usados.
Mattia ficou deslumbrado.
- E tu, que tens? - perguntei-lhe.
- Tenho o violino e a roupa que trago comigo.
- Pois bem! - disse-lhe eu. - Vamos dividir isto,
como convém a camaradas: terás duas camisas, dois
pares de meias,e três lenços. Mas, como é justo que
partilhemos tudo, levarás o meu saco durante uma
hora e eu durante outra.
Mattia quis recusar a oferta, porém eu já adquirira o
hábito de comandar, o que, digamos de passagem, me parecia
muito agradável, e proibi-o de fazer objecções.
Colocara sobre as camisas o estojo de costura de
Estefânia e uma caixa onde eu guardara a rosa de Lise; Mattia
quis abrir a caixa, mas eu não consenti e meti-a no saco sem
lhe mostrar o conteúdo.
- Se me quiseres ser agradável - disse-lhe eu. - É nunca
tocares nesta caixa; é uma lembrança.
- Está bem - replicou ele, - prometo nunca lhe
tocar.
Depois que eu retomara a harpa e a pele de carneiro,
havia uma coisa que me Incomodava bastante: as minhas calças.
Parecia-me que um artista não
devia usar calças compridas: para aparecer em público era
preciso ter calção e meias sobre as quais se entrecruzassem
fitas de cor. Calças compridas era
bom para um jardineiro, mas agora eu voltava a ser
artista!

Quando se é senhor da nossa vontade e se nos


mete uma ideia na cabeça, essa ideia não tarda a ser
posta em execução. Abri a caixa de costura de Estefânia e
tirei a tesoura.
- Enquanto arranjo as minhas calças - disse eu
a Mattia - podias mostrar-me como tocas violino.
- Oh! Com todo o prazer.
E, agarrando no violino, começou a tocar.
Neste meio tempo, meti heroicamente a ponta da
tesoura nas calças, um pouco acima do joelho, e principiei a
cortar a fazenda.
No entanto eram umas belas calças de pano cinzento, igual
ao colete e ao casaco, e que tanta alegria me deram quando o
pai mas oferecera. Mas eu estava
convencido de que, cortando-as daquela maneira, não
as estragava, antes as embelezava.

De começo escutei Mattia enquanto continuava no


meu trabalho, depois deixei de manobrar a tesoura e
fui todo ouvidos: Mattia tocava quase tão bem como Vitalis.
- Quem te ensinou violino? - perguntei eu aplaudindo-o.
- Ninguém em especial, um pouco toda a gente
e, sobretudo, eu próprio estudando sozinho.
- E quem te ensinou música?
- Não a sei; toco de ouvido.
- Ensinar-te-ei eu.
- Então sabes tudo?
- E assim deve ser, visto ser director duma companhia.
Ninguém é artista sem possuir um pouco de amor-próprio; quis
mostrar a Mattia que eu também era músico.
Agarrei na harpa e, imediatamente, para produzir
sensação, cantei a famosa canção napolitana:

Feneste vascia e patrona crudele

Então, como convém entre artistas, Mattia retribuiu-me


com aplausos os cumprimentos que eu lhe dirigira; ele tinha um
talento enorme, eu tinha um
enorme talento, éramos dignos um do outro.
Contudo, não podíamos ficar Indefinidamente a
nos felicitarmos um ao outro; depois de tocarmos
para nosso bel-prazer, precisávamos fazer o mesmo
para adquirirmos a ceia e uma cama onde dormirmos.
Afivelei o saco e Mattia pô-lo por sua vez ao ombro.
Continuámos sempre a andar para a frente, na estrada
poeirenta. Tínhamos agora de parar na aldeia com que
topássemos e dar um espectáculo: «Estreia
da Companhia Remi».
- Ensina-me a tua canção - disse-me Mattia. - Cantaremos
juntos e tenho impressão de que poderei dentro de pouco tempo
acompanhar-te ao violino, há-de ser uma coisa linda.

De facto seria lindo, e realmente o «respeitável


público» deveria ter um coração de pedra se não nos
cumulasse de moedas.
Esta infelicidade foi-nos poupada. Ao chegarmos
a uma aldeia que fica perto de Villegrif, preparávamo-nos para
procurar um local conveniente à representação, quando passámos
em frente da porta de uma herdade cujo pátio estava cheio de
gente
endomingada. Toda essa gente tinha raminhos de
flores amarrados com fitas e presos na lapela, se era
homem, ou no corpete, se era mulher: não precisávamos ser
muito espertos para perceber que se tratava de uma boda.
Veio-me à ideia que os noivos talvez ficassem satisfeitos com
o facto de lhes aparecerem uns músicos que lhes
proporcionassem um pouco de dança. Entrei
no pátio seguido de Mattia e de Capi; depois, de
chapéu na mão, e com uma grande reverência (a nobre saudação
de Vitalis) fiz a minha proposta à primeira pessoa que
encontrei.
Era um rapaz gordo cujo rosto vermelho como
camarão estava metido num alto e rígido colarinho
que lhe roçava as orelhas; tinha um ar simplório e
plácido.
Não me respondeu, mas, voltando-se constrangidamente para
as pessoas que ali estavam - pois a sua sobrecasaca de belo
pano lustroso evidentemente o atrapalhava -; meteu dois dedos
na boca e soltou um assobio de tal forma agudo que Capi ficou
assustado.
- Ei! Ei lá! - gritou ele. - Que dizem vocês a um
pouco de música? Estão aqui artistas acabados de chegar.
- Sim, sim, música! música! - exclamaram vozes
de homem e de mulher.
- Aprontem-se para a quadrilha!
E, nalguns minutos, os grupos de dançarinos formaram-se
no meio do pátio, o que fez fugir as galinhas e os patos,
espavoridos.

- Sabes tocar quadrilhas? - perguntei eu em


italiano a Mattia, pois sentia-me bastante inquieto.
- Sei.
E esboçou uma dessas danças no violino; o acaso
permitiu que eu a conhecesse. Estávamos salvos.
De dentro de um telheiro haviam trazido uma
carroça; puseram-na direita e mandaram-nos subir

para cima dela.


Se bem que nunca tivéssemos tocado juntos,
Mattia e eu, não nos saímos muito mal da nossa
quadrilha. É verdade que tocávamos para ouvidos,
que, felizmente, não eram delicados nem exigentes.
- Algum de vocês sabe tocar cornetim? - perguntou o gordo
rubicundo.
- Sei eu - respondeu Mattia - mas não tenho o
instrumento.
- Vou buscar um, porque violino é bonito mas é
sensaborão.
- Então também tocas cornetim? - perguntei a
Mattia, falando sempre italiano.
- E corneta e flauta, e tudo com que se pode tocar.
Decididamente, Mattia era precioso.
Dentro em pouco trouxeram-nos o cornetim e recomeçámos a
tocar quadrilhas, polcas, valsas, prin cipalmente quadrilhas.
Tocámos assim até à noite sem que os dançarinos
nos deixassem respirar: ora isto não era muito grave
para mim, mas era-o para Mattia, encarregado da
parte mais penosa e, além disso, fatigado pela viagem
e as privações. Via-o de tempos a tempos empalidecer como se
fosse desmaiar; no entanto ia,tocando sempre, assoprando o
mais que podia no cornetim.

Felizmente não fui o único a dar fé da sua palidez: a


noiva reparou também.
- Basta - disse ela -, o pequeno já está sem forças.
Agora, todos têm de contribuir para o pagamento dos músicos.
- Se quiser - disse eu saltando da carroça-,
- mandarei fazer o peditório pelo nosso tesoureiro.
E atirei o chapéu a Capi, que o agarrou com os
dentes.
Aplaudiram muito a graça com que ele cumprimentava quando
lhe davam dinheiro, e, o que era ainda muito melhor para nós,
deram-lhe bastante.
Eu-seguia-o e via moedas de prata cair no chapéu;
foi a noiva quem deitou a última, uma moeda de
cinco francos.
Que riqueza! Mas não era tudo. Convidaram-nos
para comer e deram-nos uma cama no celeiro. No
dia seguinte, quando deixámos aquela casa hospitaleira,
levávamos um capital de vinte e oito francos.
- É a ti que os devemos, Mattia - disse eu ao
meu camarada. - Sózinho, não poderia formar uma
orquestra.
Com vinte e oito francos na algibeira éramos
grandes senhores, e, quando chegámos a Corbeil,
pude, sem excessiva imprudência, fazer algumas
aquisições que eu Julgava indispensáveis. Em primeiro
lugar um cornethn que me custou três francos num
ferro-velho; por este preço, não era novo nem bonito,
mas, enfim, depois de limpo e brunido, serviria para
o que desejava. Em seguida, fitas vermelhas para as
nossas meias, e finalmente uma velha mochila para
Mattia, porque é menos fatigante ter continuamente
aos ombros um saco leve do que transportar de
tempos a tempos um mais pesado. Dividiríamos Igualmente o que
levávamos connosco, e ficaríamos mais ligeiros.
Esta situação próspera inspirou-me Ideias ambiciosas.

Depois de deixar Corbeil, dirigimo-nos para Montargis, a


caminho da casa da mãe Barberin. Ir a casa da mãe
Barberin para a beijar, era pagar
a minha dívida de gratidão para com ela, mas era
pagar de forma mesquinha e fácil.
Se eu lhe levasse qualquer lembrança...

Agora que eu estava rico, devia oferecer-lhe um

presente.
Havia um que mais do que qualquer outro a tornaria feliz,
não só na hora presente, mas por toda a velhice: uma vaca que
substituísse a pobre Ruça.
Que alegria para a mãe Barberin se eu lhe pudesse dar uma
vaca, e que alegria para mim.
Antes de chegar a Chavanon compraria uma vaca,
e Mattia, levando-a presa por uma corda, fá-la-ia
entrar no pátio da mãe Barberin. O marido, já se
sabe, não estaria lá. «Minha senhora», diria Mattia,
«aqui tem uma vaca que eu lhe trago.» - «Uma vaca!
Estás enganado, rapaz!» (Diria isto, suspirando). «Não
senhora; pois não é a Senhora Barberin, de Chavanon? Pois bem!
É à sua casa que o príncipe (como nos contos de fadas) me
ordenou que trouxesse esta vaca oferecida por ele». - «Qual
príncipe?» Eu então apareceria, lançando-me nos braços da mãe
Barberin, e, depois de nos havermos abraçado fortemente,
faríamos coscorões e sonhos, para nós três comermos, e não
Barberin, como naquela terça-feira de Entrudo em que ele
voltara para esvaziar a frigideira e gastar a manteiga na sua
sopa de cebolas.
Que lindo sonho! o pior é que, para o realizar,
seria preciso que eu pudesse comprar uma vaca.
Quanto custaria um bicho desses? Não fazia a
menor Ideia. Muito caro, sem dúvida. Caríssimo.
E então?
O que eu desejava não era uma vaca muito,
muito grande. Em primeiro lugar porque, quanto
maior fosse a vaca, mais cara seria. Depois, quanto
maiores elas são, de mais alimento necessitam, e eu
não queria que o meu presente fosse motivo de des
pesas para a mãe Barberin.
O essencial, por enquanto, seria conhecer o preço
das vacas, ou antes, de uma vaca tal como eu ambicionava
comprar. Felizmente, Isto para mim não era difícil. Na
nossa
vida errante, nas noites passadas nos albergues,

achávamo-nos em contacto com boieiros e negociantes de gado;


seria fácil perguntar-lhes o preço das vacas.
Mas a primeira vez que dirigi a pergunta a um
vaqueiro, cujo aspecto honesto me atraíra, respondeu
rindo-me na cara.
O homenzinho deitou-se para trás na cadeira,
dando de tempos a tempos grandes murros sobre a
mesa; depois chamou o estalajadeiro.
- Sabe você o que me perguntou este musicozinho? Quanto
custa uma vaca, não muito grande, nem muito gorda, mas enfim,
uma boa vaca. Também é preciso que seja uma vaca sábia?
Recomeçaram as gargalhadas; contudo, não me
deixei atrapalhar:
- É preciso que dê bom leite e que não coma
demasiado.
- E que se deixe levar pela trela, como o cão?
Depois de esgotar todos os gracejos, de usar
suficientemente do seu espírito, quis então responder-me a
sério e até entrar em discussão comigo.
- Tenho justamente uma nas condições, uma
vaca que dá muito leite, um leite que parece manteiga, e quase
não come; se quiseres pôr cinquenta escudos na mesa, a vaca
será tua.
Se me custou fazê-lo, não me custou menos fazê-lo
calar depois de ele estar entusiasmado no negócio.

Por fim consegui deitar-me e reflecti então no que


aquela conversa me elucidara.

Cinquenta escudos equivalia a cento e cinquenta


francos, e longe estava eu de possuir tão grande soma
de dinheiro.

Seria impossível ganhá-la? Parecia-me que não,


e, que, se nos acompanhasse a sorte dos primeiros
dias, poderia a pouco e pouco reunir cento e cinquenta
francos. Mas era necessário tempo.
Então uma nova ideia germinou-me no cérebro:
se em vez de ir Imediatamente a Chavanon, fôssemos

primeiro a Varses, isso preencheria o tempo que nos


faltaria se seguíssemos a estrada directa.
Precisava, pois, ir primeiramente a Varses e só à
volta ver a mãe Barberin: decerto eu teria então os
meus cento e cinquenta francos e poderíamos representar a
mágica: A vaca do Príncipe. De manhã dei parte da
resolução tomada a Mattia,
que não manifestou nenhuma oposição.
- Vamos então para Varses - disse ele. - Gostaria de ver
uma das minas, talvez seja Interessante.

CAPÍTULO 22.

UMA CIDADE ENFARRUSCADA.

extenso o caminho que vai de Montargis a Varses,


cidade que fica no meio das Cévennes, na vertente da montanha
que desce para o Mediterrâneo: cinco ou seis quilómetros em
linha recta, porém mais
de mil para nós outros, em virtude dos rodeios que
nos Impunha o nosso género de vida. Convinha principalmente
procurar as cidades e as povoações mais importantes para
darmos récitas lucrativas.
Gastámos cerca de três meses a percorrer esses
mil quilómetros. Mas, quando chegámos aos arredores de Varses,
tive a alegria, ao verificar o dinheiro, de saber que havíamos
empregado bem o tempo. Na minha bolsa de cabedal estavam cento
e vinte e oito francos de economias: só faltavam vinte e dois
para poder comprar a vaca e oferecê-la à mãe Barberin.
Mattia aparentava tanta satisfação como eu, e
não sentia menos orgulho em ter contribuído, pela
sua parte, para que ganhássemos aquela soma; e é
verdade que essa contribuição fora considerável, pois
sem ele, sobretudo sem o seu cornetim, nunca teríamos

reunido cento e vinte e oito francos - eu e Capi.


De Varses a Chavanon arranjaríamos com certeza
os vinte e dois francos que nos faltavam.
Eram duas ou três horas da tarde quando chegámos aos
subúrbios de Varses. No céu puro o sol brilhava radiante.
Conforme, porém, avançávamos, sentíamos a atmosfera escurecer;
entre o céu e a terra interpunha-se uma nuvem espessa de fumo
que se arrastava pesadamente, esgarçando-se nos bicos
das chaminés.
Sabia eu que o tio de Aleixo era mineiro em
Varses e que trabalhava na mina de La Truyère;
mas nada mais. Moraria na cidade, ou nos arrabaldes? Eis o que
eu ignorava. Ao entrar em Varses, perguntei onde ficava a
dita
mina, e, em resposta, indicaram-me, na margem esquerda do
Divonne, um vale atravessado pelo córrego que deu o nome à
hulheira.

Se o aspecto da cidade era pouco sedutor, o deste


vale parecia perfeitamente lúgubre. Imagine-se um
recinto de colina desnuda, sem árvores, sem qualquer
vegetação, sulcado de pedras cinzentas onde apenas
se descobrem raros pedaços de terra vermelha. Na
entrada deste vale viam-se edifícios próprios para o
serviço da mina, alpendres, cavalariças, armazéns,
escritórios e chaminés da casa da máquina; e, em
volta, montes de ca rvão e de pedregulhos.

Indicaram-nos a morada do tio Gaspard, a uma


pequena distância da mina, numa rua tortuosa e
escarpada que descia da colina à ribeira.
Quando perguntei por ele, uma mulher, que
estava encostada à porta conversando com uma das
vizinhas apoiada a outra porta, respondeu-me que só
entraria às seis horas, depois do trabalho.
- Que deseja? - Inquiriu ela.
- Quero falar ao Aleixo. ,
Então a mulher mirou-me dos pés à cabeça e
olhou para Capi.
- Ah! És o Remi? - disse ela. - Aleixo falou-me
de ti e esperava-te. Quem é este?
Apontou para Mattia.
- É o meu companheiro.
Tratava-se da tia de Aleixo. imaginei que nos Ia
convidar a entrar e a descansar (pois as nossas pernas
poeirentas e as caras queimadas pelo sol patenteavam bem a
fadiga que sentíamos), porém ela nada disso fez e limitou-se a
repetir que, se eu quisesse
voltar às seis horas, encontraria Aleixo de volta da mina.
Não tive coragem de pedir o que não me ofereciam.
Agradeci-lhe a informação e fomos pela cidade à procura de um
padeiro, porque estávamos cheios
de fome: só havíamos comido de manhã uma simples
côdea de pão que nos ficara do jantar da véspera.
Sentia-me envergonhado daquela recepção, tanto
mais que pressentia Mattia perguntar a si próprio
que quereria aquilo dizer. Afinal, de que servira palmilhar
tantas léguas? Tive a impressão de que Mattia ia ter uma
péssima ideia dos meus amigos e que, ao falar-lhe de Lise, ele
já não me escutaria com a mesma simpatia. E eu fazia grande
empenho em que Mattia começasse a simpatizar e a sentir
amizade por Lise. Como aquele acolhimento não fosse nada
convidativo a
voltar a casa do tio Gaspard, fomos um pouco antes
das seis horas esperar Aleixo à saída da mina.
Embora atento, não vi Aleixo sair, e, se ele me não
houvesse saltado ao pescoço, tê-lo-ia deixado passar
sem lhe falar, de tal forma estava irreconhecível
agora, negro dos pés à cabeça.
- É o Remi - disse ele, voltando-se para um
homem de quarenta anos que vinha a seu lado e que
tinha uma fisionomia aberta e simpática como a do
pai Acquin.
Percebi que era o tio Gaspard.
- Já te esperávamos há muito tempo - declarou
com bonomia.

- É comprido o caminho de Paris a Varses.


- E as tuas pernas são curtas - comentou ele a rir.
Capi, satisfeitíssimo por ver Aleixo, testemunhava-lhe a
sua alegria puxando-o pela manga com toda a força.
Entretanto explicava eu ao tio Gaspard que Mattia
era meu companheiro e sócio, um bom rapaz, antigo
conhecimento que eu tornara a encontrar. Tocava
cornetim como ninguém.
- E aqui está o sr. Capi - disse o tio Gaspard. - Amanhã
é domingo, e, depois de descansarem, darão uma representação
para a gente ver. Aleixo diz que este cão é mais sábio do que
um mestre-escola ou um actor.
Tanto me senti acanhado diante da tia Gaspard
quanto me achava agora à vontade com o marido:
era, decididamente, o digno irmão do «pai».
- Conversem, meus filhos, haveis de ter muito
que dizer um ao outro; eu, por mim, vou tagarelar
com este rapaz que toca cornetim com tanta perf eição.

Uma semana não chegaria para contar todas as


nossas aventuras. Aleixo desejava saber como é que
eu viajara, e eu, por meu lado, estava impaciente por conhecer
a maneira como ele aceitara a sua vida nova.
Íamos andando devagar, e os operários, que regressavam às
suas casas, passavam-nos à frente. Seguiam em extensa fila,
enchendo a rua toda,
enfarruscados daquele pó que cobria a terra por
completo.
Quando estávamos quase a chegar, o tio Gaspard
aproximou-se de nós.
- Meu rapaz - disse-me ele-, - vais cear connosco.
Jamais um convite me deu tanto prazer, pois,
pelo caminho, não se me tirava da cabeça a Ideia de
uma vez à porta da casa, ter de me despedir - visto
a recepção da tia não haver sido muito prometedora.

- Cá está Remí, com um amigo - declarou ele ao


entrar.
- Já os tinha visto.
- Melhor assim, está travado o conhecimento.
Vão ambos cear connosco.
Sem dúvida que me alegrava compartilhar da ceia
com Aleixo, isto é, por passar a noite junto dele;
mas, para ser sincero, devo dizer que também me
regozijava com a perspectiva de comer. Com o que
ganhávamos, é certo que possuíamos com que pagar
verdadeiros festins nos albergues mais afamados,
mas convinha fazer economias por causa da vaca do
«príncipe»; Mattia tão bom se mostrava que até se
sentia contente por concorrer para aquela compra.

Não tive, porém, nessa noite, o regalo de um festiin.


Sentei-me numa cadeira, à mesa, mas não vi chegar a sopa. Na
maior parte, as empresas mineiras
costumam estabelecer armazéns fornecedores nos
quais os operários encontram, por baixo preço, tudo
quanto lhes é necessário para os usos da vida. Todavia, como
todas as coisas boas, esta também tem o seu lado desagradável;
em Varses as mulheres dos
mineiros não costumam trabalhar enquanto os maridos labutam no
subsolo, mas ocupam-se de serviços domésticos e visitam-se
umas às outras, bebem café
ou chocolate (levantado do armazém fornecedor),
passeiam, conversam, e, ao entardecer (quando os
homens regressam para cear) já elas não têm tempo
de preparar a refeição. Correm, pois, à loja e trazem
chichas ou coisas semelhantes. Isto, já se sabe,
não é regra geral, mas o caso é que sucede com frequência; por
esta razão é que não tivemos sopa -a tia Gaspard havia estado
de paleio com as vizinhas.
Aliás, era seu costume, e pude verificar mais tarde
que a conta dela no estabelecimento provinha sobretudo destes
produtos: por um lado, café e chocolate; por outro,
salsicharia. o tio era homem condescendente, amigo,
principalmente, da sua tranquilidade.
Comia as salsichas e não se queixava, ou, se fazia
qualquer observação, era sempre com certa timidez.
A ceia não durou muito.
- Meu rapaz - disse-me o tio Gaspard -, vais
dormir com o Aleixo.
Depois, dirigindo-se a Mattia.
- E tu, se não te importas de ficar junto do forno,
arranjamos-te uma cama de palha.
Eu e Aleixo não levámos a noite inteira a dormir.
O tio Gaspárd, na mina, tinha por função despegar
a hulha; o sobrinho empurrava os pedaços, sobre os
carris, desde o ponto da extracção até um sítio onde
estava um vagão. De aí, este partia, lá para cima,
rebocado por uma máquina e preso a um cabo.
Embora não fosse mineiro senão há pouco tempo,
Aleixo tinha já estima e vaidade pela sua mina: era
a mais bonita, a mais curiosa da região; na sua
descrição punha ele a Importância de um viajante
que chega de uma terra desconhecida e encontra
ouvidos atentos para o escutarem.
Seis semanas antes dera-se, pois, uma explosão
de grisu que vitimara uma dezena de homens; a viúva
de um destes operários enlouquecera.
Contra estes acidentes empregavam-se mil precauções:
proíbia-se fumar -e às vezes os engenheiros, quando davam a
sua volta de inspecção, obrigavam os mineiros a abrirem a boca
para pelo hálito se certificarem de que a ordem estava a ser
cumprida. Também para evitar semelhantes desastres utilizavam
lanternas Davy, assim chamadas em
honra do eminente sábio-inglês que as Inventara:
eram rodeadas de uma tela metálica muito fina, de
forma a não deixar que a chama passasse através
das malhas, e assim, uma vez que se encontrassem
numa atmosfera impregnada de gás, este queimar-se-ia no
Interior da lanterna sem que a explosão se produzisse.
A curiosidade despertou-se-me ao ouvir a narrativa de
Aleixo; quando chegara a Varses já era meu desejo
visitar a mina, porém, ao falar nisso ao tio Gaspard, no dia
seguinte, respondeu-me ele que a coisa era Impossível, pois
não deixavam entrar senão os que lá trabalhavam.
- Se te queres fazer mineiro - acrescentou a rir. -é
fácil; e então já poderás satisfazer a tua vontade.
Não tinha eu vindo a Varses para aí permanecer;
impusera-me outra tarefa, outro objectivo, muito
diferente desse de empurrar todo o dia um carrinho
com carvão, no segundo ou terceiro piso da mina de
La Truyère!
Mas, devido a circunstâncias nascidas só do acaso,
encontrei-me em estado de conhecer em todo o seu
horror e de sentir em toda a sua intensidade os perigos a que
os mineiros estão expostos.

CAPÍTULO 23.
APRENDIZ.

NA véspera do dia fixado para a minha partida,


Aleixo entrou em casa com a mão direita magoada por um grande
bloco de carvão sob o qual inadvertidamente colocara o braço:
um dos dedos
estava meio esmagado e a mão toda pisada.
O médico da Companhia veio visitá-lo e tratar-lhe da
contusão: o estado não era grave, a mão ficaria boa e o dedo
também; mas precisava de descanso.
O tio Gaspard tinha por norma encarar a vida tal
qual ela é, sem desgosto, sem cólera e só havia uma
coisa que o podia fazer sair da sua lucidez: um impedimento
para o seu trabalho.
Quando ouviu dizer que Aleixo estava condenado
ao repouso por alguns dias, deu altos berros: quem
lhe empurraria o carrinho durante esse tempo de
descanso? Não havia ninguém que substituísse Aleixo.
Se se tratasse de o substituir de vez não faltaria
quem quisesse o lugar, mas só durante alguns dias
era Impossível arranjar uma pessoa assim do pé para a mão.
havia falta de homens, ou, pelo menos, de rapazes
Perante Isto e compreendendo as razões do seu
aborrecimento, e, por outro lado, sentindo que era
quase um dever, em semelhantes circunstâncias, pagar de
qualquer maneira a hospitalidade que nos fora dada,
perguntei-lhe se a profissão de ajudante de mineiro era
difícil.
- Nada mais fácil; é só empurrar um vagão sobre
os ca rris.
- Pois se o Aleixo o empurrava bem, eu também
o poderei empurrar.
- Tu, rapaz?
Pôs-se a rir às gargalhadas, mas logo a seguir
retomou a seriedade:
- Claro que poderias, se o quisesses.
- E eu assim o desejo, já que isto lhe faz arranjo.
- Combinado. És um bom rapaz: amanhã descerás comigo à
mina.
Que faria Mattia enquanto eu estivesse na mina?
Não podia deixá-lo a cargo do tio Gaspard.
Perguntei-lhe se não queria ir com Capí dar
algumas representações nos arredores, com o que ele
concordou Imediatamente.
- Ficarei bem satisfeito se conseguir sozinho o
dinheiro para a vaca - replicou Mattia a rir.
No fim de três meses, desde que vivíamos juntos ao ar
livre, Mattia já não se parecia com a pobre criança enfermiça
e desgostosa que eu encontrara encostada -à Igreja
Saint-Médard, morrendo de fome, e ainda menos com o
monstrozinho que eu
conhecera, agarrando de tempos a tempos a cabeça
dorida entre as mãos.
Mattia já não sentia dores na cabeça, nem desgostos, nem
mesmo já era doente. fora a casa da rua de Lourcine que o
tornara triste; o sol e o ar livre,
ao darem-lhe saúde, deram-lhe alegria.
Ficou, pois, combinado que eu Iria no dia seguinte
para a mina e que, enquanto lá estivesse, ele faria
representações musicais e dramáticas de forma a
aumentar os nossos haveres.
No outro dia de manhã entregaram-me o fato de
trabalho de Aleixo.
Depois de haver pela última vez recomendado a
Mattia e a Capi que fossem prudentes na sua expedição, segui o
tio Gaspard.
- Atenção! - disse-me ele entregando-me a
lanterna que me competia. - Vem atrás de mim, e, quando
desceres as escadas, nunca deixes um degrau sem ter o pé bem
seguro no outro.
Penetrámos na galeria; ele Ia à frente e eu atrás.
- Se escorregares - continuou ele -, não te
deixes cair; segura-te bem, porque o fundo é longe e duro.
Eu não precisava destas recomendações para estar
alvoroçado, pois não é sem uma certa perturbação
qe se deixa a claridade e se entra no escuro, se
troca a superfície da terra pelas suas profundidades.
Virei-me Instintivamente para trás, porém Já haviamos avançado
bastante na galeria, e a luz do dia na extremidade daquele
longo tubo negro não era mais
do que um disco branco como a lua num céu sombrio
e sem estrelas. Tive vergonha desse movimento maquinal, que
fora rápido como um relâmpago e, sem mais demora, segui o tio
Gaspard.
- Aqui está a escada - disse ele daí a pouco.
Estávamos em frente dum buraco negro, e na sua
fundura, insondável para os meus olhos, eu via luzes
balançarem-se, grandes à entrada, depois a diminuirem até não
serem mais do que pontos luminosos, à medida que se afastavam.
Eram as lanternas dos operários que nos haviam precedido na
mina: o rumor da sua conversa, como um surdo murmúrio, chegava
até nós trazido pelo ar morno que nos batia na cara: este
sopro tinha um cheiro especial que eu respirava pela primeira
vez; qualquer coisa como uma mistura de éter e de gasolina.

Depois dos degraus abertos na rocha, vinham as


escadas de mão e, a seguir, outros degraus de pedra.
- Eis-nos no primeiro nível - informou o tio Gaspard.
Estávamos numa galeria com arcos em semicírculo e paredes
direitas; estas paredes eram de alvenaria. A abóbada parecia
um pouco mais elevada do que a altura de um homem; no entanto
havia sítios
onde necessitávamos abaixar-nos para passar.
- É a pressão do terreno - explicou-me ele. - Como a
montanha foi escavada por toda a parte e há perfurações, as
terras querem descer, e, quando elas pesam muito, esmagam as
galerias.
No chão viam-se calhas de caminho de ferro e ao
lado da galeria deslizava um regatozinho.
- Este regato reúne-se a outros que, como ele,
recebem as águas das infiltrações; vão todos cair
num escoadoiro. São mil ou mil e duzentos metros de
água que a máquina deve deitar diariamente no
Divonne. Se ela parasse, a mina não tardaria a ficar
inundada. Aliás, neste momento, estamos justamente
sob o Divonne.
E, como eu fizesse um movimento involuntário,
desatou a rir às gargalhadas.
- A cinquenta metros de profundidade, não há
perigo que te caia na cabeça.
- E se se abrisse um buraco?
- Ah, sim! Um buraco! As galerias passam e tornam a
passar dez vezes por baixo do rio. Há minas onde as inundações
se tornam perigosas, mas aqui
não é o caso; o que aqui há é grisu com abundância
e desabamentos.
Quando chegámos ao local do nosso trabalho, o
tio Gaspard indicou-me o que eu devia fazer, e,
quando o carrinho se encheu de carvão, ele próprio o
empurrou para me ensinar a conduzir até aos poços
e a desviar-me quando outros carros viessem ao meu
encontro.

Tivera ele razão quando me havia dito que o trabalho não


era difícil; em poucas horas, se me não tornei perito, pelo
menos fiz razoavelmente o serviço.
Como é trabalhoso descer e sair da mina, ficam
os mineiros doze horas inteiras lá metidos e não voltam à
superfície senão para irem cear a suas casas; a outra refeição
é comida mesmo no local.

CAPÍTULO 24.

A INUNDAÇãO.
No dia seguinte voltámos à mina.
Quando eu ia pela terceira vez com o meu
carrinho aos poços de Saint-Alphonsine, ouvi desse
lado um ruído formidável, um rumor pavoroso como
nunca ouvira desde que trabalhava na mina. Seria
o desmoronar de qualquer coisa, um desabamento
geral? Escutei; o barulho continuava, repercutindo-se de todos
os lados. Que queria aquilo significar? O primeiro sentimento
foi de terror, e pensei fugir
pelas escadas.

De súbito passou-me entre as pernas um pelotão


de ratos correndo como um esquadrão de cavalaria
que foge; em seguida pareceu-me ouvir um sussurro
estranho contra o solo e paredes, uma espécie de
marulho. O local onde eu parara era absolutamente
onde aquele som de água tornava-se inexplicável.
Agarrei na lanterna e lncidi-a para o chão.

Era realmente água que vinha da banda dos poços, subindo


a galeria. Aquele rumor pavoroso, aquele sussurro,
produzia-os uma queda de água a precipitar-se na mina.
Abandonando o carro, corri para Junto do tio Gaspard. -
Tio Gaspard, a mina está cheia de água.
- Tolices!
- Abriu-se um buraco debaixo do Divonne; fujamos!
- Deixa-me sossegado!
- Oiça!
A minha voz traduzia tanta comoção que o tio
Gaspard ficou com o picão suspenso para escutar;
o barulho continuava cada vez mais forte, cada vez
mais sinistro. Não havia dúvida, era a água que se
precipitava.
- Corre depressa! - gritou-me ele. - A água está
na mina.
Enquanto gritava, o tio Gaspard agarrara na lanterna -
pois este é sempre o primeiro gesto dum mineiro - e fora pela
galeria adiante. Não dera ainda dez passos quando vi
outro mineiro que descia também a galeria para perceber a
causa do ruído que o impressionara.
- Água na mina! - gritou o tio Gaspard.
- o Divonne abriu um buraco! - exclamei eu.
- És parvo.
- Foge! - gritou o mineiro.
O nível da água elevara-se rapidamente na galeria; já nos
chegava quase aos joelhos, o que nos dificultava a fuga.
O mineiro pôs-se a correr connosco; íamos gritando
durante o percurso:
- Fujam! Há água na mina!
A água subia com rapidez furiosa; felizmente não
estávamos muito longe das escadas, senão jamais
poderíamos atingi-las. O mineiro foi o primeiro a
chegar, mas deteve-se:
- Subam à frente - disse ele. - Eu sou o mais
velho e, além disso, tenho a consciência tranquila.
Não era ocasião para delicadezas; o tio Gaspard
passou primeiramente, eu segui-o e o outro veio
atrás; na nossa peugada, um tanto distanciados,
corriam alguns mineiros. Nunca os quarenta metros
que separam o segundo nível do primeiro foram
transpostos com semelhante velocidade. Mas, antes
de alcançarmos o último degrau, um jacto de água
caiu-nos na cabeça e apagou as lanternas.
- Segurem-se bem! - gritou o tio Gaspard.
Agarrámo-nos fortemente aos degraus da escada
de mão, mas os que vinham atrás de nós foram arrastados;
certamente, se nos faltasse mais duma dúzia de degraus para
subir, teríamos sido precipitados como
eles, pois Instantaneamente a cascata tornou-se mais
hnpetuosa.
Embora no primeiro nível, não estávamos salvos,
pois tínhamos de andar cinquenta metros ainda antes
de sair, e a água também Inundava aquela galeria;
além disso, as lanternas haviam-se apagado e não se
via nada.
- Estamos perdidos - disse o mineiro com a voz
quase calma. - Faz as tuas orações, Remi.
Mas, nesse momento, na galeria apareceram sete
ou oito luzes que vieram ao nosso encontro; a água
chegava-nos já até aos joelhos: sem nos baixarmos,
tocávamos-lhe com a mão. Não era uma água tranquila, mas uma
torrente, um turbilhão que levava tudo à sua passagem e fazia
rodopiar como penas
grandes pedaços de madeira.
Os homens, de que havíamos distinguido as lanternas,
queriam seguir a galeria e alcançar assim as escadas mais
próximas, mas perante tamanha torrente foi-lhes Impossível:
como resistir ao seu impulso e aos toros que ela arrastava?
A frase do mineiro escapou-lhes também.
- Estamos perdidos!
Haviam chegado até nós.
- Por acolá - gritou o mineiro, que parecia ser
o único que guardara algum sangue-frio.

- O nosso derradeiro refúgio está nas antigas obras.


Voltem para trás e dêem-me uma lanterna; eu os conduzirei.
De ordinário, quando este mineiro, a quem chamavam o
mestre-escola, falava, riam-se-lhe na cara ou viravam-lhe as
costas, encolhendo os ombros; porém os mais fortes haviam
perdido a força, que os tornava tão orgulhosos, e à voz
daquele velho, de quem troçavam cinco minutos antes,
obedeceram; Instintivamente, todas as lanternas lhe foram
apresentadas.
Agarrou logo numa delas com uma das mãos, enquanto que
com a outra me puxava, e foi assim à frente do grupo. Como
íamos no mesmo sentido da
corrente, caminhávamos bastante rápidos.
Depois de alguns instantes de marcha, o professor
parou.
- Não teremos tempo - gritou ele. - A água sobe
muito depressa.
Com efeito, dos Joelhos passara-me aos quadris,
dos quadris atingira-me- o peito.
- Temos de refugiar-nos numa ladeira - disse o
professor.
- E depois?
- A ladeira não conduz a parte nenhuma.
Refugiar-se na ladeira era, efectivamente, meter-se num
beco sem saída; nós, porém, não estávamos em situação de
esperar ou de escolher.

Com o professor à frente, embrenhámo-nos na subida. Dois


dos nossos camaradas quiseram meter-se na galeria, e esses não
tornámos a vê-los.

Então, retomando consciência da vida, ouvimos


um ruído que nos zumbia aos ouvidos desde que
havíamos começado a fugir e a que, todavia, não
prestáramos atenção: derrocadas, redemoinhos, quedas de água,
estalar de madeira, explosões de ar comprimido... Era, por
toda a mina, um barulho horroroso, que nos aniquilava!
Desde que estávamos na ladeira, o professor
ainda não falara; a alma dele pairava acima da
Inutilidade dos queixumes.
- Rapazes - exclamou por fim-, - não convém
que nos fatiguemos. Se continuarmos assim agarrados de pés e
de mãos, não tardaremos a sentir o cansaço; é forçoso abrir
pontos de apoio na rocha.
O conselho era ajuizado, mas difícil de executar,
pois ninguém trouxera picaretas. Tínhamos lanternas, todos
nós, mas nenhum possuía ferramentas.
- Com os ganchos das lanternas - ordenou o professor.
Cada qual se pôs a escavar o solo com o gancho
da lanterna. A tarefa era ingrata, visto a ladeira ser
muito inclinada e escorregadia. Mas o facto de sabermos que,
se escorregássemos, encontraríamos a morte, dava-nos forças e
habilidade. Em poucos minutos
cada um escavara um buraco suficiente para adaptar
o pé.
Feito isso, respirámos um pouco e fizemos o
reconhecimento do grupo. Éramos sete: o professor, eu - que
estava perto dele - o tio Gaspard, três mineiros chamados
Pagés, Compeyron e Bergounhoux, e um ajudante, Carrory; os
outros operários haviam
desaparecido na galeria.
Os ruídos na mina continuavam com a mesma
violência.
Desnorteados, doidos de terror, olhávamos uns
para os outros, procurando na expressão alheia as
explicações que o nosso espírito não podia fornecer.
- É o dilúvio! - repetia um.
- Um tremor de terra - sugeria outro.
- É o génio da mina que está zangado e se quer
vingar.
- É uma inundação - declarou o professor.
- E então? De onde vem? - perguntaram várias
vozes ao mesmo tempo.
- Não sei, mas, quanto ao génio da mina, Isso é
asneira. Provocada pelas obras antigas só seria possível
se atingisse apenas o terceiro nível: mas o
segundo e o primeiro também o foram. Vocês sabem
que a água não volta para trás, mas que vai sempre
para baixo.
- E o buraco?
- Não aparece um buraco assim sem mais nem menos.
- Tremor de terra?
- Não sei...
- Então se não sabes, não digas nada.
E, como todos nos sentíamos um pouco mais seguros desde
que ali estávamos, e que a água não subia, já ninguém quis dar
ouvidos ao professor.
- Não faças de sábio, que não sabes mais do que nós.
Para dominar o barulho, falávamos em voz muito
alta e, todavia, as palavras pareciam abafadas.
- Fala um bocadinho - disse-me o professor.
- Que quer que eu lhe diga?
- o que quiseres; diz qualquer coisa, o que te
vier à Ideia.
Pronunciei algumas palavras.
- Bom, agora, mais baixinho. É isso é. Está bem.
- Endoideceste, professor! - disse Pagés.
- O medo tirou-te o juízo?
- Imaginas que morreste?
- Imagino que a água não chegará aqui; se morrermos, ao
menos não morremos afogados.
- Porque dizes isso, professor?
- Repara na tua lanterna.
- E então? Está a arder.
- Como habitualmente?
- Não, a chama é mais viva, mais curta.
- Por acaso haverá grisu?
- Não - disse o professor. - isso também não é
de recear; não há perigo do grisu como não há da
água, que agora não subirá um só pé.
- Não estejas a fazer de bruxo.
- Não faço de bruxo: estamos numa campânula
de ar e é o ar comprimido que impede a água de
subir; a ladeira fechada na extremidade faz o mesmo
que o sino de mergulhador: o ar, trazido pelas águas,
amontoou-se nesta galeria e agora repele e resiste
à água.
Ao ouvir o professor explicar-nos que estávamos
numa espécie de sino de mergulhador onde a água
não nos podia atingir porque o ar a detinha, houve
murmúrios de incredulidade.
- Que disparate! Então a água não é mais forte
do que tudo?
- É, sim, no exterior, livremente; mas, quando
pões um copo de boca para baixo, num vaso cheio de
água, essa água enche completamente o copo? Não,
fica um espaço vazio, não é verdade? Pois bem, o
espaço vazio é mantido pelo ar. Aqui, é a mesma,
coisa, estamos no fundo do copo, a água não nos
alcançará.
- Ah! Compreendo-disse o tio Gaspard.-Tenho
agora a impressão de que vocês andavam mal em
troçar tantas vezes do professor; ele sabe coisas que
nós não sabemos.
- Então estamos salvos! - exclamou Carrory.
- Salvos? Não disse nada disso. Não ficaremos
afogados, eis o que lhes prometo. Mas também estamos presos,
não podemos sair.
Cessara o ruído da água; apenas de tempos a tempos se
ouviam através da terra detonações surdas e sentia-se como que
sacudidelas.
- A mina deve estar cheia - disse o professor. - a água
já não cai.
- E Mário? - exclamou Pagès com desespero.
Mário era o filho, mineiro como ele, que trabalhava no
terceiro nível. Até esse Instante, o sentimento da conservação
pessoal impediram-no de pensar no filho; mas as palavras do
professor: «A mina está cheia» fizeram-no voltar a si.
- Mário! Mário! - gritou ele, com acento lancinante -
Mário!
Ninguém lhe respondeu, nem mesmo o eco; a voz
abafada não saía daquela campânula.
- Talvez conseguisse escapar-se - observou o
professor.
Pareceu-me que não dizia aquilo com voz muito
convicta. Pelo menos cento e cinquenta homens
haviam entrado de manhã na mina; quantos poderiam ter fugido
ou encontrado um refúgio, como nós!? Ninguém ousou acrescentar
mais nada.
Porém, numa situação como a nossa, não é a
patia e a piedade que dominam os corações ou dírigem os
espíritos.
- E agora? - disse Bergounhoux, depois dum momento de
silêncio. - Que vamos fazer?
-Esperar; queres furar os quarenta ou cinquenta
metros que nos separam da superfície da terra com o
gancho da lanterna?
- Mas, assim, vamos morrer de fome.
- O maior perigo não é esse.
- Vamos, professor, fala, metes-nos medo; qual é
o perigo, o grande perigo?
- Pode resistir-se à fome; já li algures que vários
operários, surpreendidos, como nós, pela água numa
mina, ficaram vinte e quatro dias sem comer. Não,
não é a fome que me inspira medo.
- O que é então que te aflige, visto dizeres que
as águas não podem subir?
- Sentem a cabeça pesada, zumbidos? Respiram
facilmente?
- Eu não.
- Tenho dores de cabeça
- E eu tenho náuseas.
- Sinto as fontes a latejar.
- E eu estou estonteado.
- Pois aí reside o perigo. Quanto tempo poderemos viver
neste ar? Não o sei. Estamos a uns quarenta metros da
superfície da terra e, provavelmente, temos trinta e cinco ou
quarenta metros de água por cima de nós:
isto quer dizer que o ar atinge a pressão de quatro ou cinco
atmosferas. Como se vive neste ar comprimido? Eis o que se
deveria saber e o que vamos talvez aprender à nossa custa.
Eu não fazia a menor ideia do que fosse ar comprimido, e,
precisamente por isso, fiquei aterrorizado com as palavras do
professor; os meus companheiros
pareceram-me também assustados pelo mesmo motivo; sabiam tanto
como eu, e a frase desconhecida produziu o seu efeito
inquietante.
O professor não perdia a consciência da nossa situação
desesperada e, embora a visse nitidamente no seu horror, só
pensava nos meios de organizar a defesa.
- Agora - disse ele - temos de ver se nos arranjamos aqui
sem perigo de cair à água.
- Temos os buracos para apoiar os pés.
- Imaginam que se não vão fatigar de estar sempre na
mesma posição?
- Hão-de vir socorrer-nos.
- Certamente, mas é preciso que possam vir.
Quanto tempo decorrerá antes de começarem os trabalhos de
salvamento?
- -Na minha opinião, o melhor será escavar uns patamares,
como numa escada; somos sete, cabemos
todos em dois patamares: quatro no primeiro, três no
segundo.
- E com que escavamos?
- Não temos picaretas.
- Nas partes mais brandas, com os ganchos das
lanternas; nas duras, com as navalhas.
Pelo seu sangue-frio e decisão, o professor adquirira uma
autoridade que, de instante para instante, se tornava mais
poderosa.
Pusémos mãos à obra, pois tornava-se evidente
que a primeira coisa que tínhamos a fazer era a
escavação dos dois patamares; devíamos ficar ali,
senão comodamente, pelo menos de maneira a não
rolar no abismo que estava a nossos pés.

- Escolhamos sítios onde a escavação não seja


muito difícil - observou o professor.
- Escutem - disse o tio Gaspard. - tenho uma
proposta a fazer-vos; se alguém tem presença de
espírito, esse alguém é o professor. Foi mineiro como
nós, mas, sobre muitos assuntos, sabe mais do que
qualquer outro. Proponho que -ele seja o nosso chefe,
que dirija o trabalho.
- O professor! - Interrompeu Carrory, que era
uma espécie de bruto, uma besta de carga, sem mais
inteligência do que a necessária para empurrar um
vagão. - E por que não eu? Se é por ser carregador,
eu também o sou.
- Não é por ser carregador, estúpido; é por ser
um homem; e, de nós todos, é o mais corajoso.
- Mas ontem você não dizia Isso.
- Ontem, eu era tão idiota como tu e troçava do
professor como os outros, por não reconhecer que ele
sabia mais do que nós. Hoje peço-lhe que seja o nosso
chefe. Vamos, professor, que queres que eu faça?
Tenho bons braços, como sabes. E vocês?
- Estamos prontos a obedecer-te, professor.
- Estamos e estaremos.
- Então - disse o professor - visto me pedirdes
que seja vosso chefe, acedo de bom grado; mas é com
a condição de que fareis o que eu mandar.
- Obedeceremos! - exclamaram todas as vozes.
- Obedecer-me-eis se acreditardes no que vos
disser; mas... se não acreditardes?
- Acreditaremos.
Eu não tinha a experiência que adquiri mais
tarde, e sentia-me espantado por ver que aqueles que
algumas oras antes acumulavam de motejos o
professor eram os primeiros em lhe reconhecer agora
grandes qualidades, não sabia como as circunstâncias podem
modificar as opiniões e os sentimentos de certos homens.
Então pusémo-nos ao trabalho: todos tínhamos
navalhas, boas navalhas de cabo sólido e lâmina
resistente.
- Três cortarão a ladeira - disse o professor -, os
três mais fortes; e os mais fracos: Remi, Carrory,
Pagés e eu, disporemos as escoras.
Devíamos improvisar dois patamares, escavando-os no
xisto, e, para não ficarmos expostos a resvalar na descida,
era preciso que esses patamares fossem bastante largos para
que coubessem quatro
num e três noutro.
Com este fim em vista iniciámos os trabalhos.
Nas escavações encontraram-se alguns pedaços
de madeira que foram muito úteis nas obras do
aterro, pois serviram para escorá-lo e impedir que
ruísse.
Depois de três horas de esforço, estabelecemos
uma plataforma onde nos podíamos sentar.
- Basta, por agora - ordenou o professor.
Instalámo-nos, o professor, o tio Gaspard, Carrory
e eu no degrau inferior, e os outros três mineiros no
mais elevado.
- Temos de poupar a luz - observou o professor.
- Deixem só uma acesa.
Iam apagar as lanternas inúteis, quando o professor fez
sinal para que suspendessem.
- Um instante - disse ele. - Uma corrente de ar
pode apagar a lanterna; não é provável; no entanto,
ao regulamento, à pergunta «Quem tem fósforos»?
para tornar a acender?
Se bem que seja proibido acender lume na mina,
quase todos os mineiros têm fósforos nas algibeiras;
por isso, como não havia ali ninguém para notar a
infracção ao regulamento, à pergunta: «Quem tem
fósforos?» quatro vozes responderam: «Eu».
- Eu também tenho - continuou o professor. - mas estão
molhados. O mesmo sucedia aos outros, pois cada um guardara os
fósforos nos bolsos das calças, e havíamos estado
dentro de água até ao peito e até aos ombros. Carrory, que era
de compreensão lenta e de palavra mais lenta ainda, respondeu
por fim:
- Eu também tenho fósforos.
- Molhados?
- Não sei, estão dentro do meu barrete.
- Então dá cá o barrete.
Em vez de passar o que lhe fora pedido - o barrete de
lontra, grande como o de um turco de feira Carrory entregou
uma caixa de fósforos; graças à posição em que haviam estado
durante a imersão,
tinham escapado à água.
- Agora, apaguem as lanternas - ordenou o professor.
Uma só luz ficou acesa, Iluminando a custo o
nosso refúgio.

CAPÍTULO 25.
NA LADEIRA.

FIZERA-SE silêncio na mina; nenhum ruído chegava


agora até nós. Em baixo, a água estava imóvel,
sem uma ruga, sem um murmúrio; a mina enchera-se, como dissera
o professor, e a água, desde o solo ao tecto, emparedava-nos
na prisão mais solidamente,
mais hermeticamente do que um muro de pedra.
Encontrávamo-nos num cúmulo, sepultados vivos, e
trinta ou quarenta metros de água pesavam-nos
sobre os corações.
O trabalho ocupa e distrai: o descanso fez-nos
sentir a nossa situação, e em todos, mesmo no professor, houve
uns instantes de acabrunhamento. De súbito, caíram-me
gotas quentes na mão. Era
Carrory que chorava em silêncio.
Nesse momento ouvi suspiros no patamar superior e uma voz
murmurou várias vezes:
- Mário! Mário!
Pagés pensava no filho...
O ar estava abafado; sentia-me oprimido e tinha
zumbidos nos ouvidos.
Fosse porque o professor se não deixasse invadir
como nós por aquele desânimo, fosse porque quisesse
reagir e Impedir que nos abandonássemos ao desespero, o caso é
que ele rompeu o silêncio, dizendo:
- Agora, é necessário ver o que temos de provisões.
- Julgas então que Iremos ficar muito tempo
encerrados aqui? - interrompeu o tio Gaspard.
- Não julgo isso, mas devemos tomar todas as
precauções. Quem tem pão?
Ninguém respondeu.
- Tenho uma torta na algibeira - disse eu.
- Em que algibeira?
- Na das calças.
- Então a tua torta está numa sopa. Mostra-a,
entretanto.
Vasculhei no bolso onde, de manhã, metera uma
bela torta tostada, mas só encontrei uma espécie de
papas; Ia deitá-la fora quando o professor me deteve.
- Guarda a tua sopa - observou ele - por muito
má que seja, bem depressa a acharás boa.
Este prognóstico não era muito tranquilizador.
- Ninguém tem mais pão? - Insistiu ele.
Todos se calaram.
- É lastimável - continuou o professor.
- Sentes fome? - interrompeu Compeyrou.
- Não falo em meu nome, mas sim no de Remi e
de Carrory: o pão seria para eles. Vou-lhes explicar
por que razão o pão teria sido para Remi e para
Carrory. Não fui eu quem fez esta regra, foi a lei:
a lei diz que, morrendo diversas pessoas num acidente, é a
mais velha (até aos sessenta anos) que se presume ter
sobrevivido, donde resulta que Remi
e Carrory, por serem muito novos, opõem menos
resistência à morte do que Pagés e Compeyrou.
- Mas tu tens mais de sessentaanos, professor.
- Oh! Comigo não conto; aliás, não estou habituado a
comer muito.
- Visto isso - redarguiu Carrory depois de um
momento de reflexão - se houvesse pão, seria para mim?
- Para ti e para Remi.
- E se eu não lho quisesse dar?
- Tirar-to-iam à força. Não prometeste obedecer?
Carrory ficou um grande bocado silencioso, depois,
de repente, sacou um pedaço de pão do seu barrete de peles.
- Tomem, aqui têm.
- É então inesgotável o barrete de Carrory?
- Dá cá o barrete - ordenou o professor.
Como Carrory o não quisesse entregar, tiraram-lho e
passaram-no ao professor. Este pediu a lanterna e pôs-se
a ver o que se encontrava no reverso do barrete. Nessa altura,
embora não estivéssemos numa situação risonha, tivemos um
minuto de distracção.
Havia naquele barrete: um cachimbo, tabaco, uma
chave, um bocado de salame, um apito feito de um
caroço de pêssego, dados de jogar feitos de osso de
carneiro, três nozes verdes e uma cebola; aquele chapéu servia
de dispensa e de arrecadação.
- O pão e o salame serão divididos entre Remi e
a tua pessoa, esta noite.
- Mas eu tenho fome - replicou Carrory com voz
lamentosa. - Já tenho fome.
- À noite ainda terás mais.
- Que pena esse rapaz não haver posto um relógio no seu
barrete! Saberíamos que horas eram; o meu relógio parou.
- E o meu também, por causa da água que lhe
entrou dentro.
A ideia do relógio chamou-nos à realidade. Que
horas seriam? Desde quanto tempo estávamos ali?
Cada um emitiu a sua opinião, mas sem chegar a
acordo. Para uns era meio-dia; para outros, seis
horas da tarde, isto é, aqueles calculavam estarem
presos havia menos de dez horas, e estes menos de
cinco. Foi aí que principiou a diferença de apreciação,
diferença que se renovou várias vezes e chegou a ser
considerável.
Não nos sentíamos dispostos a falar por falar.
Quando esmoreceu a discussão sobre o tempo, todos
se calaram e mergulharam nas suas reflexões. Não
sei de que espécie seriam as dos meus companheiros,
mas, a avaliar pelas minhas, não deviam ser muito
alegres.
De súbito, no meio do silêncio, a voz do tio Gaspard
elevou-se:
- Parece-me que ninguém trabalha para a nossa libertação.
- Porque pensas isso?
- Não se ouve nada.
- Porque dizes isso dos teus camaradas? - Interrompeu o
professor. - Sabem muito bem que, quando há acidentes, os
mineiros não abandonam os colegas; e que vinte homens, cem
homens mais depressa se deixariam matar do que deixar um
companheiro sem socorro. Sabem isto, não é verdade?
- É verdade.
- Então qual a razão porque nos abandonaram?
- Não se ouve nada.
- De facto nada se ouve. Mas pode-se ouvir aqui
alguma coisa? Não afirmo que nos salvaremos, mas
estou certo que trabalham para nos salvar.
O professor disse isto com um tom enérgico que
devia convencer os mais incrédulos e os mais assustados.

Todavia, Bergounhoux replicou:


- E se julgam que estamos todos mortos?
- Trabalham da mesma forma, mas, se receias
isso, provemos-lhes que estamos vivos; batamos com
toda a força na parede; -sabem como o som se transmite através
da terra; se nos ouvirem, apressar-se-ão, e o ruído que
fizermos servirá para os dirigir.
Sem esperar mais, Bergounhoux, que estava calçado com
botas muito fortes, pôs-se a bater com os pés
estrondosamente na parede como para o chamamento dos
mineiros, e aquele estrépito, e sobretudo a ideia que ele
despertava em nós, tirou-nos do entorpecimento em que
estávamos. Ouvir-nos-iam? Iriam responder-nos?
- Diz-me cá, professor - perguntou o tio Gaspard. - se
nos ouvirem, que farão para vir em nosso socorro?
- Só há dois meios, e tenho a certeza que os
engenheiros vão empregar os dois: fazerem aberturas
na direcção em que estamos, e esgotar a água.
- Fazer aberturas!
- Oh! Esgotar a água!
Estas duas interrupções não desconcertaram o
professor.
- Estamos a quarenta metros de profundidade,
pois não é verdade? Escavando seis ou oito metros
por dia, são precisos sete ou oito dias para chegar
até aqui.
Oito dias! O professor aludira a trabalhadores que
haviam estado sepultados vinte e quatro dias. Mas
era uma lenda, e nós éramos a realidade. Quando
aquela ideia me dominou o espírito, já nem uma palavra ouvi da
conversa. Oito dias! Sentia-me desesperado com este
pensamento
quando pararam de discutir.
- Escutem - disse Carrory, que, precisamente por
ser uma espécie de irracional, tinha as faculdades
físicas mais desenvolvidas do que qualquer outro.
- Escutem o quê?
- Ouve-se qualquer coisa na água.
Escutámos.

Eu tinha o ouvido apurado, mas para os sons da


vida e da terra; não ouvi nada. Os meus companheiros,
habituados aos sons da mina, foram mais felizes do que eu.
- É a água a cair.
- Não, o ruído não é contínuo; é por intervalos,
e regular.
- Por intervalos e regular! Estamos salvos, meus
filhos! É o som das caixas de esvaziamento dos poços.
- Esvaziamento dos poços...
Ao mesmo tempo, no mesmo tom, repetimos
aquelas palavras, e, como que Impelidos por uma
mola, levantámo-nos todos.
Já não estávamos quarenta metros abaixo da
terra, o ar já não nos sufocava, as paredes não nos
oprimiam, os ouvidos deixaram de zumbir; respirávamos
livremente, o coração pulsava-nos no peito. Carrory
agarrou-me na mão e, apertando-a fortemente, disse-me:
- És um bom rapaz.
- Tu é que és.
- Estou a dizer que és tu.
- Foste tu quem ouviu primeiro o marulhar da água.
Porém Carrory quis à viva força que eu fosse bom
rapaz: havia nele qualquer coisa como a embriaguez
do bebedor. E, de facto, estávamos ébrios de esperança.
Desgraçadamente essa esperança não se devia
realizar tão depressa, nem para todos nós.

Se as horas são longas para aqueles que trabalham para a


nossa libertação, quanto mais longas são para nós, impotentes
e prisioneiros, que nada
temos a fazer senão esperar, sem sabermos se chegarão a tempo
de nos salvar!
Aos tormentos do espírito juntavam-se agora os
tormentos do corpo. A posição que éramos obrigados
a conservar no patamar Improvisado tornara-se das
mais fatigantes; não podíamos fazer movimentos
para nos desentorpecermos, e as dores de cabeça que
nos afligiram tinham voltado com mais força.
De todos nós, Carrory era o menos afectado.
- Tenho fome, professor - declarava ele de tempos a
tempos. - quero pão.
Por fim, o professor decidiu-se a entregar-nos um
bocado do pão encontrado no barrete de lontra.
Os outros teriam partilhado com prazer da nossa
refeição, porém haviam prometido obedecer e cumpriam a sua
promessa.
- Se nos é proibido comer, é-nos permitido beber
- disse Compeyrou.
- Quanto a isso, tudo o que quiseres; temos água
à farta.
- Vê lá se absorves toda a água da galeria.
Pagès quis descer, mas o professor não consentiu.
-O entulho pode desmoronar; Remi é mais leve
e mais ágil, ele descerá e passar-nos-á a água.
- Em quê?
- Na minha bota.
Deram-me uma bota e preparei-me para me deixar escorregar
até à água.
- Espera um instante - disse o professor. - Dá
cá a mão.
- Não tenha medo; mesmo que eu caísse, não
fazia nada, porque sei nadar.
- Quero agarrar-te na mão.
No momento em que o professor se inclinava, deu
um passo em frente, e, fosse mal calculado o seu
movimento, ou estivesse o corpo entorpecido pela
Inacção, ou a hulha tivesse abatido sob o seu peso,
escorregou na descida e desapareceu na água sombria, de cabeça
para baixo. A lanterna que ele segurava para me iluminar rolou
com ele e desapareceu também. Instantâneamente ficámos às
escuras e ao
mesmo tempo escapou-se-nos um grito como uma
só voz.

Por felicidade, eu já estava em posição de descer,


deslizei de costas, e cheguei à água um minuto depois
do professor.

Nas minhas viagens com Vitalis eu aprendera a


nadar e a mergulhar, de tal forma que me sentia tão
à vontade na água como em terra firme. Mas como
conduzir-me naquele buraco escuro? Onde procurar?
Para onde estender o braço? Como mergulhar?
Era no que eu pensava quando me senti agarrado
no ombro por mão crispada que me arrastou
para debaixo da água. Com um impulso subi à superfície: a mão
não me largara.
- Agarre-se bem, professor, e fique de cabeça
erguida; está salvo.
Salvos! Não o estávamos, nem um nem outro,
pois eu não sabia para que lado nadar: tive então
uma Ideia.
- Eh lá! Falem! - gritei.
- Onde estás, Remi?
Era a voz do tio Gaspard que me indicou assim o
rumo a tomar. Devia dirigir-me para a esquerda.
- Acendam uma lanterna.
Quase no mesmo instante apareceu uma chama;
eu só precisava de estender o braço para tocar na
orla da ladeira; segurei-me a um pedaço de hulha
e puxei o professor.
,Era tempo, pois ele bebera muito e a sufocação
começava já; mantive-lhe a cabeça fora de água, e
depressa voltou a si.
O tio Gaspard e Carrory, pendidos para a frente,
estendiam-nos os braços, enquanto que Pagès, já no
patamar Inferior, levantava a lanterna para nos alumiar. O
professor, ajudado pelo tio Gaspard e por Carrory, foi içado
até ao degrau; eu empurrava-o
pelas costas. Foi então a minha vez de subir.
o professor Já recuperara os sentidos.
- Vem cá - disse-me ele -, deixa-me abraçar-te.
Salvaste-me a vida.
- Já nos tinha salvado a nossa.
Saídos da água tivemos o dissabor, o professor e
eu, de estarmos molhados dos pés à cabeça. Ao princípio não
demos por Isso, mas o frio dos fatos encharcados veio-no-lo
recordar.
- É preciso dar um casaco a Remi - disse o professor.
Mas ninguém respondeu àquele pedido, que., dirigido a
todos, não obrigava nenhum deles particularmente.
- Ninguém fala?
- Tenho frio - replicou Carrory.
- Visto isso - sugeriu o professor - vamos tirar
à sorte quem há-de dar uma parte do seu fato. Não
queria chegar a este extremo. Mas, agora, reclamo
Igualdade.
Beneficiado pela sorte, tive o casaco de Compeyrou; ora,
possuindo Compeyrou umas pernas tão compridas como o meu
corpo Inteiro, o casaco dele
estava seco. Agasalhado assim, não tardei a aquecer.
Depois deste desagradável incidente, que nos despertou
uns momentos, retomou-nos o desânimo o e com ele as Ideias
lúgubres.
Certamente essas Ideias pesavam ainda mais sobre
os meus companheiros do que em mim, pois, enquanto eles
ficavam acordados, num aniquilamento estúpido, eu acabei por
adormecer.
Contudo, o sítio não era favorável e eu expunha-me a
rolar para a água. Então o professor, vendo o perigo que eu
corria, enlaçou-me a cabeça com o braço. Não me apertava
muito, mas o suficiente para impedir que eu caísse, e eu
estava ali como um filho no colo da mãe. Quando eu, sonolento,
abria os olhos, ele acomudava a posição do braço já dormente,
e, a seguir, recaía na Imobilidade, dizendo-me a
meia voz:
- Dorme, meu rapaz, não tenhas medo, eu seguro-te; dorme,
pequeno.
E eu tornava a adormecer sem receio algum, pois bem sabia
que ele me não abandonaria.

CAPÍTULO 26.
LIBERTAÇãO.

A nossa posição tornara-se Suportável naquele


patamar excessivamente estreito; decidiram
alargá-lo e cada um meteu mãos à obra. Com a ajuda
das navalhas recomeçou-se a escavar a hulha e a
colocar os resíduos em baixo.
Como tínhamos agora um ponto de apoio sólido
sob os pés, o trabalho foi mais fácil e conseguíu-se
alargar a nossa prisão.
Foi um alívio enorme quando nos pudemos estender ao
comprido em vez de ficarmos sentados com as pernas pendentes.
Se bem que o pãozinho de Carrory fosse partido
economicamente, depressa ele se acabou. De resto, o
derradeiro bocado foi-nos dado a tempo; quando o
professor o entregou, a mim e a Carrory, era visível,
pelos olhares dos outros, que eles não suportariam
uma nova distribuição sem pedir uma parte para cada, e se lha
não dessem, agarrariam no seu quinhão.
Já nem falávamos, e, tanto quanto havíamos
sido loquazes no começo do nosso cativeiro, ficámos
silenciosos quando ele se prolongou.
Os dois únicos assuntos das nossas conversas baseavam-se
sempre na mesma coisa: quais os meios que empregavam para
chegar até nós, e há quanto
tempo estávamos prisioneiros.
Porém essas conversas já não tinham o ardor dos
primeiros momentos,, se um de nós dizia uma frase
qualquer, muitas vezes ninguém replicava, ou então
faziam-no com uma resposta breve; podia-se mudar
de opinião, Ir de um extremo a outro, sem por isso
suscitar a cólera ou a simples contradição.
Certamente o professor pensara que as suas funções de
chefe não só diziam respeito à defesa contra os acidentes da
catástrofe, mas que também nos
devia proteger contra nós mesmos. Por isso, quando
um de nós parecia desanimar, Intervinha logo com
palavras reconfortantes.
Com excepção do professor, que dissimulava os
seus sentimentos, e de Carrory, que era quase insensível, já
não falávamos de libertação, e eram sempre as palavras morte e
abandono que, vindas do coração,
nos subiam aos lábios.
- Embora dissesses o contrário, professor, eles
pouca água esgotam.
- No entanto já fiz o cálculo mais de vinte vezes;
tenham um pouco de paciência.
Se nem tudo decorreu bem e depressa, não foi por
culpa dos engenheiros e dos operários que trabalhavam para o
nosso salvamento. O carvão, através do qual abriam a
passagem,
pertencia àquela espécie a que os mineiros chamam
tenaz, Isto é, muito duro, e, como só um homem o
podia picar, por causa da estreiteza da galeria, eram
obrigados a revezar frequentemente os que tinham
essas funções, de tal maneira punham ardor na tarefa.
Além disso, a ventilação dessa galeria deixava
muito a desejar; à medida que avançavam, colocavam tubos de
zinco, cujas Juntas eram betumadas a seguir; mas, embora uma
ventoinha enorme enviasse ar para esses tubos,
as lanternas não ardiam senão defronte do orifício do cano.
Aliás, fora preciso a nobre teimosia do engenheiro
para continuar aquele trabalho, pois a opinião unânime é que
era, desgraçadamente, Inútil. Ao sétimo dia, o
trabalhador que estava a demolir
a hulha julgou ouvir um ruído afastado, como pancadas batidas
ao de leve; em vez de abaixar a picareta continuou com ela
erguida e encostou o ouvido ao carvão. Imaginando ter-se
enganado, chamou um
dos companheiros para escutar com ele. Os dois
ficaram silenciosos, e, depois de uma pausa, um som
fraco, repetido com Intervalos regulares, veio até eles.
A nova correu logo de boca em boca, encontrando
mais incredulidade do que esperança, e chegou ao
engenheiro, que se precipitou na galeria.
Enfim, ele tivera razão! Havia ali dentro homens
vivos!
Mandou sair toda a gente, só deixando junto de
si os dois mineiros.
Então bateram fortemente com a picareta, em
sinal de chamada, pancadas certas e espaçadas;
em seguida, retendo a respiração, encostaram os
ouvidos contra a hulha.
Depois de um momento de expectativa, sentiram,
subitamente, violenta comoção: pancadas fracas e
ritmadas haviam respondido às suas.
Não havia dúvida: existiam homens, ali dentro,
e podiam ser salvos.
Os sons ouvidos eram tão fracos que se tornava
Impossível determinar o local de onde partiam. Todavia,a
Indicação bastava para assegurar que os mineiros escapados da
Inundação se encontravam numa das três subidas da galeria das
obras antigas. Já não era uma descida que Iria ao encontro dos
prisioneiros, mas talvez, de maneira a chegarem às três
ladeiras. uma vez adiantados os trabalhos a ponto de os
ouvirem melhor, abandonariam as
escavações para concentrarem todos os esforços no escoamento
da água.
Continuaram as obras com mais ardor do que
nunca, e as empresas das minas vizinhas mandaram
a La Truyère os seus melhores operários.
À esperança das passagens abertas juntava-se a de
chegar pela galeria, pois a água baixava nos poços.
Quando no nosso refúgio ouvimos as pancadas do
sinal de chamada, batidas pelo engenheiro, o efeito
foi semelhante àquele que se produziu quando escutávamos o
aparelho de esgotamento mergulhar nos poços.
- Salvos!
Foi um grito de alegria que se nos escapou da
boca, e, sem reflectir, imaginámos que nos iam estender a mão.
Depois, como acontecera da outra vez, a seguir à
esperança veio o desespero.
O som das picaretas anunciavam que os trabalhos
estavam longe ainda. Vinte metros, trinta metros
talvez. Quanto tempo seria preciso para escavar
aquele maciço?
Se podíamos beber até à saciedade, faltava-nos a
comida, e a fome tornara-se tão imperiosa que tentámos comer
madeira podre desfeita em água. Carrory, que era o mais
esfomeado de todos, cortara a bota que lhe restava, e
mastigava continuamente bocados de coiro. A ausência da
luz aumentava-nos os terrores.
Sucessivamente, o azeite das lâmpadas havia findado.
E quando apenas restava o de duas lanternas, o professor
decidira que só as acenderíamos nas circunstâncias em que a
luz fosse indispensável. Agora, passávamos todo o tempo às
escuras.
Não só era lúgubre como se tornava perigoso; se
fizéssemos qualquer movimento imprudente, podiamos rolar para
a água. Depois da morte de Compeyrou, éramos três em
cada patamar e Isto dava-nos um pouco mais de
espaço: o tio Gaspard estava num canto, o professor
noutro, e eu a meio deles.
De tempos a tempos batíamos na parede para
dizermos aos nossos salvadores que estávamos vivos,
e ouvíamos as picaretas sapar incessantemente no
carvão. Porém era muito devagar que as suas
pancadas aumentavam de força, o que significava
que ainda vinham longe.

Quando se acendeu a lanterna, desci para Ir buscar água


na bota, e pareceu-me que a zona líquida havia abaixado alguns
centímetros.
- A água está a baixar!
- Meu Deus!
E mais uma vez tivemos um rebate de esperança.

Queriam deixar a luz acesa para acompanharem


com a vista a descida da água, mas o professor
opôs-se a isso.

Apagou-se a luz. E durante horas, dias talvez,


ficámos Imóveis, sustentados apenas pelos ruídos das
picaretas que abriam a descida, e dos aparelhos de
esgotamento nos poços.

Insensivelmente, aqueles sons tornavam-se cada


vez mais nítidos; a água baixava; aproximavam-se
de nós. Chegariam a tempo? Se o trabalho dos nossos
salvadores aumentava utilmente de Instante para
instante, a nossa fraqueza tornava-se também cada
vez maior, cada vez mais dolorosa, física e moralmente. Desde
o dia da Inundação que os meus companheiros não haviam comido.
E, o que era pior, respirava-se um ar que se não renovava, e
que de
hora para hora se tornava mais Insalubre.

o som das picaretas e dos monta-cargas era


absolutamente regular, como o do pêndulo de um
relógio; cada interrupção impressionava-nos febrilmente. Iriam
abandonar-nos, ou teriam encontrado dificuldades invencíveis?
No entanto, as águas baixavam sempre e, dentro
em pouco, tivemos a prova de que elas já não atingiam o tecto
das galerias.
Distinguimos um leve ruído no xisto da ladeira e
a água marulhou como se houvessem caído nela bocadinhos de
carvão. Acendeu-se a lanterna e vimos alguns ratos a
correrem na parte inferior da subida. Como nós,
haviam encontrado um refúgio numa campânula de
ar, e, logo que a água baixara, tinham abandonado
o abrigo a fim de procurarem alimento. Se podiam
ter chegado até junto de nós, é porque a água já não
enchia inteiramente as galerias.
Aqueles ratos foram para a nossa prisão o que a
pomba foi para a arca de Noé: o fim do dilúvio.
No entanto a esperança reanimara-me e o espaço
vazio na galeria Inspirou-me uma Ideia:
- Professor, lembrei-me de uma coisa: visto que
os ratos circulam na galeria, é porque se pode passar;
vou nadar até às escadas e chamar: virão buscar-nos e assim
será mais rápido do que pela descida que eles estão a abrir.
- Proíbo-te!
- Mas, professor, eu nado tão bem como um peixe...
- E o ar irrespirável?
- Se os ratos passam, o ar não será pior para
mim do que para eles.
- Vai, Remi - disse Pagès, - dar-te-ei o meu
relógio.
- E se o rapaz se afoga?
- E se ele se salvar em vez de morrer aqui à espera?
O professor reflectiu um momento e depois agarrou-me na
mão e disse-me:
- És corajoso, rapaz. Faz como quiseres;
acho que vais tentar o impossível, mas não será a primeira vez
que alguém o consegue. Despede-te da gente.
Abracei-o, assim como ao tio Gaspard, e, depois
de tirar o fato, meti-me na água.
- Gritem sempre - disse eu antes de começar a
nadar. - Assim, guiar-me-ei pelas vossas vozes.
Com que espaço poderia eu contar, sob o tecto da
galeria? Seria suficiente para me mover à vontade?
Aqui é que a dificuldade residia.
Depois de algumas braçadas, achei que conseguiria nadar,
avançando lentamente com receio de dar uma cabeçada; contudo,
a aventura que eu tentava
era possível. No fim, estaria a libertação? Estaria
a morte?
Voltei-me e distingui a claridade da lanterna a
reflectir-se nas águas escuras; ali, eu tinha um farol.
- Vais bem? - gritou o professor.
- Vou bem.
E avancei com precaução.
Do nosso refúgio às escadas a complicação estava
no trajecto que eu devia seguir; sabia que em
determinado local, não muito afastado, havia uma
bifurcação de galerias. Para me guiar, o tecto e as
paredes da galeria não bastavam mas eu tinha no
chão qualquer coisa mais segura para me identificar
o caminho: eram as calhas. Seguindo-as, estava certo
de encontrar as escadas.
De vez em quando deixava-me mergulhar, e,
depois de tactear as vigas de ferro, erguia-me docemente. Num
destes movimentos, como as não sentisse, mergulhei de novo a
fim de as procurar com as
mãos, mas tudo foi inútil; caminhei de um lado a
outro da galeria, porém nada descobri.
Entrara no caminho errado sem dar por Isso;
era necessário retroceder.
Mas como? Gaspard e os outros já não gritavam,
ou, o que dava na mesma, já os não ouvia.
Fiquei um momento paralisado, cheio de angústia, sem
saber para onde me dirigir. Sentia-me perdido na escuridão da
noite, naquela água gelada. De súbito, o som das vozes
chegou até mim e logo
soube para onde me devia voltar.
Depois de uma dezena de braçadas (no caminho
que eu já percorrera) mergulhei e encontrei as calhas.
Era então ali a bifurcação.
Procurei a chapa e não dei com ela; busquei as
aberturas que deviam ser as galerias: tanto à direita
como à esquerda encontrava as paredes. Onde estavam os carris?
Segui-os até ao fim; Interrompiam-se bruscamente.
Compreendi então que as calhas haviam sido
arrancadas, destruídas pelo turbilhão das águas e
que eu já não tinha nada para me guiar.
Nestas condições, o meu projecto tornava-se Impossível e
só me restava voltar para trás. Já sabia não existir
perigo nesse percurso; guiado
pelas vozes, nadei rápido para atingir o nosso refúgio.
Conforme me aproximava parecia-me notar mais
confiança naqueles gritos, como se os meus companheiros se
houvessem reanimado.
Logo que me abeirei da ladeira, em sinal de chegada,
gritei por meu turno.
- Vem cá, vem cá - disse o professor.
- Não encontrei a passagem.
- Não tem importância. Eles ouvem os nossos
gritos, nós ouvimos os deles; dentro em pouco poderemos falar.
Rapidamente, escalei a ladeira e pus-me à escuta.

Com efeito, os golpes de picareta eram muito mais


fortes; e os gritos dos que trabalhavam para a nossa
libertação chegavam-nos ainda longínquos, mas já
bem nítidos.

Depois do primeiro movimento de alegria dei fé


de que estava gelado, mas, como não havia fatos
quentes para me aquecer, enterraram-me até ao pescoço no cisco
do carvão que conserva sempre um certo calor, e o tio Gaspard
e o professor encostaram-se contra mim. Então narrei-lhes a
minha exploração e como perdera as calhas.
- Atreveste-te a mergulhar?
- Porque não? Infelizmente não encontrei nada.
Mas, conforme dissera o professor, Isso pouco Importava
agora. Se não fôramos salvos pela galeria, íamos sê-lo pela
descida.
Os gritos tornaram-se tão nítidos que era de esperar que
percebêssemos dentro em pouco as palavras. Efectivamente,
ouvimos daí a bocado esta pergunta pronunciada lentamente:
- Quantos são vocês?
O tio Gaspard era, de todos nós quem tinha a voz
mais forte e clara. Encarregaram-no de responder.
- Seis!
Houve um momento de silêncio. Sem dúvida calculavam que
devia existir mais gente.
- Aviem-se! - gritou o tio Gaspard. - Estamos
exaustos.
- Digam os seus nomes!
- Bergounhoux, Pagès, o professor, Carrory, Remi,
Gaspard.
Para os que estavam lá fora, esse instante foi o
mais impressionante. Ao saberem que iam comunicar
connosco, todos os parentes e amigos dos mineiros
sepultados acorreram à entrada da galeria e era a
custo que os soldados os detinham aí. Quando o engenheiro
anunciou que só éramos seis, houve uma desilusão pungente, mas
ainda com uma esperança para cada um, pois no meio desses seis
podia encontrar-se
aquele que esperavam.
Repetiram então os nossos nomes.
Desgraçadamente, das cento e vinte mães ou esposas, só
quatro viram as suas esperanças realizadas. Quantas dores,
quantas lágrimas!
Por nosso lado, pensávamos também nos que se
haviam salvado.
- Quantos escaparam? - perguntou o tio Gaspard.
Ninguém respondeu.
- Pergunta onde está Mário - lembrou Pagès.
O tio Gaspard obedeceu, mas, como da primeira
vez, ficou sem resposta.

- Decerto não ouviram.


- Diz antes que não querem responder.
Havia uma Indecisão que me atormentava.
- Pergunte há quanto tempo estamos aqui.
- Há catorze dias.
Catorze dias! Nos nossos cálculos, o mais alto só
atingira cinco ou seis dias.
- Agora, não ficarão aí muito tempo. Tenham
coragem. Não falemos porque Isso retarda o trabalho.
Só mais algumas horas.
Foram elas, creio eu, as mais longas do nosso cativeiro,
e, em qualquer caso, as mais dolorosas. Cada golpe de picareta
parecia-nos dever ser o último;
depois desse vinha outro e outro ainda.
De tempos a tempos retomava-se a conversa:
- Têm fome?
- Muita.
- Podem esperar? Se estão demasiadamente
fracos, faz-se um buraco de sonda e manda-se-lhes
caldo, mas Isto demorará a libertação; se podem
esperar, serão libertos mais cedo.
- Esperaremos; aviem-se.
O funcionamento dos aparelhos de esgotamento
não havia parado um minuto; a água baixava, sempre
regularmente.
Os golpes de picareta tornaram-se menos fortes.
Evidentemente, esperavam de um momento para o
outro abrir um buraco, e,, como tínhamos explicado
a nossa posição, receavam causar um desmoronamento que nos
ferisse ou matasse, ou nos precipitasse na água juntamente com
os destroços.
O professor disse-nos que também era de temer
a expansão do ar, que, logo que encontra uma abertura, se
atira como uma bala de canhão a pontos de derrubar tudo.
Devíamo-nos, pois, acautelar.
O abalo causado no maciço pela picareta desprendia do
tecto da ladeira pedacinhos de carvão que rolavam e iam cair
na água.

Coisa estranha, quanto mais se aproximava o momento da


libertação, mais nos sentíamos enfraquecidos: quanto a mim, já
me não podia suster, e, deitado no carvão, era-me impossível
levantar um
braço; tremia e no entanto não tinha frio.
Por fim, alguns pedaços mais graúdos de carvão
desprenderam-se e rolaram entre nós. A abertura
estava feita no cimo da ladeira; ficámos cegos pela
claridade das lanternas.
mas, Instantaneamente, recaímos na escuridão; a
corrente de ar - uma corrente de ar terrível, uma
tromba que arrastava consigo bocados de hulha e
toda a espécie de destroços - tinha-as apagado.
- É a corrente de ar, não tenham medo, vamos
acendê-las lá fora. Esperem um pouco.
Esperar! Esperar ainda!
Porém, no mesmo momento, ouviu-se grande barulho na água
da galeria e, voltando-me, distingui uma luz brilhante que
vinha ao nosso encontro.
- Coragem! Coragem! - gritavam.
E, enquanto que pela descida acudiam homens,
os outros chegavam pela galeria.
O engenheiro vinha à frente; foi ele quem primeiro subiu,
e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, tomou-me nos
braços.
Era tempo, pois sentia-me desmaiar.
No entanto, tive a consciência de que me levavam
e que, mais adiante, me embrulhavam em cobertores.
Fechei os olhos mas, logo a seguir, senti como que
um deslumbramento que me forçou a abri-los.
Estávamos ao ar livre.
Nessa ocasião um corpo branco atirou-se sobre
mim: era Capi que, de um salto, se lançara aos braços do
engenheiro e me lambia a cara. Ao mesmo tempo senti que me
agarravam na mão direita e ma beijavam. «Remi!» disse uma voz
débil, a voz de Mattia. Olhei em minha volta e vi uma multidão
colocada em duas filas, deixando a meio uma passagem. Toda
essa gente se conservava silenciosa, pois haviam-lhe
recomendado que não nos comovessem com exclamações; porém a
sua atitude, os seus olhares falavam mais do que os lábios.
Na primeira fila pareceu-me ver sobrepelizes
brancas e ornamentos dourados que brilhavam ao sol.
Eram os padres de Varses que tinham vindo até à
entrada da mina rezar pela nossa libertação. Quando
aparecemos, todos eles ajoelharam sobre a poeira.
Vinte braços estenderam-Se para me agarrar, mas
o engenheiro não quis entregar-me e, orgulhoso do seu
triunfo, feliz e soberbo, levou-me até aos escritórios
onde estavam camas preparadas para nos receber.
Dois dias depois eu passeava nas ruas de Varses
seguido de Mattia, de Aleixo e de Capi, e toda a gente,
à minha passagem, se detinha para me contemplar.
Havia pessoas que vinham ao meu encontro e me
apertavam as mãos com lágrimas nos olhos; mas
outras voltavam a cabeça. Estas andavam de luto e
pensavam amargamente por que razão fora a criança
órfã que se salvara, enquanto o pai de família, os
filhos, todos eles ainda estavam na mina - pobres
cadáveres arrastados e sacudidos pelas águas.
- Quando pensava que era por minha causa
que morreras - dizia Aleixo - sentia tamanho desgosto! Porque
eu imaginava que estavas morto e bem morto!
- Eu nunca acreditei que tivesses morrido - confessava-me
Mattia. - Não sabia se sairias vivo da mina e se chegariam a
tempo de te salvar, mas tinha a certeza de que não te
afogaras, e que, se os trabalhos de salvamento marchassem
depressa, te encontrariam em qualquer parte. E, na ocasião em
que perguntaram os nomes de vocês e que o engenheiro,
a seguir a Carrory, pronunciou Remi, caí por terra a
chorar; por sinal que me espezinharam um tanto,
mas nem dei por isso, de tal forma me sentia feliz.
Fiquei orgulhoso ao ver que Mattia tinha tanta
confiança em mim que não acreditava que eu podería
morrer.

CAPÍTULO 27.

UMA LIÇãO DE MúSICA.

Eu arranjara amigos na mina: semelhantes angústias


suportadas em comum unem os corações; sofre-se, espera-se em
conjunto, não se é mais do que um.
Principalmente o tio Gaspard e o professor tomaram-me
grande amizade; e embora o engenheiro não houvesse partilhado
do nosso cativeiro, afeiçoou-se a
mim como a um filho a quem arrancara da morte:
convidou-me a ir à sua casa, e, para a filha ouvir,
tive de fazer a narrativa de tudo,o que nos acontecera durante
os longos dias que estivemos sepultados naquela ladeira.
Toda a gente queria que eu ficasse em Varses.
- Arranjar-te-ei um lugar na mina - dizia-me o
tio Gaspard-e nunca mais nos separaremos.
- Se quiseres um emprego nos escritórios - declarava-me o
engenheiro, - dar-to-ei.
O tio Gaspard achava muito
natural que eu voltasse para a mina, para onde ele iria dentro
em pouco com a despreocupação daqueles que estão habituados
a arrostar o perigo dia a dia, mas eu, que não possuía
a sua indiferença ou a sua coragem, não me sentia
nada disposto a retomar a profissão de mineiro.
Só a esta ideia sentia-me sufocar. Decididamente
não fora feito para trabalhar debaixo da terra; a vida
ao ar livre, com o céu a servir de tecto, mesmo que
fosse um céu enevoado, convinha-me muito mais. Foi
o que expliquei ao tio Gaspard e ao professor. Este
ficou surpreendido e aquele desgostoso com as minhas más
disposições a respeito do trabalho das minas; Carrory, que
tornei a encontrar, chamou-me
poltrão.
Ao engenheiro eu não podia argumentar que não
queria trabalhar debaixo da terra, visto ele oferecer-me
emprego nos escritórios, e até instrução se eu estivesse
atento às suas lições; preferi então contar-lhe toda a
verdade.
- Além disso, gostas mais da vida ao ar livre, da
aventura e da liberdade - finalizou ele. - Não tenho
o direito de te contrariar, meu rapaz; segue o teu
caminho.
Era certo que eu gostava da vida ao ar livre, e
nunca o sentira tanto como durante o meu cativeiro:
não é impunemente que a gente se habitua a ir para
onde quer e a fazer o que deseja.

Durante a sua curta expedição com Capi, enquanto


eu me tornava mineiro, Mattia conseguira amealhar
dezoito francos, o que era uma soma considerável.

Cento e vinte francos que tínhamos em caixa e


dezoito francos ganhos por Mattia, faziam um total
de cento e quarenta e seis francos; só me faltavam
quatro francos para comprar a vaca do «príncipe».
Embora eu não quisesse trabalhar nas minas, não
foi sem desgosto que deixei Varses, pois tornou-se
necessário apartar-me de Aleixo, do tio Gaspard e do
professor; mas era meu destino separar-me daqueles
que estimava e me testemunhavam afeição.
Para a frente!

Com a harpa ao ombro e o saco às costas,


eis-nos de novo a caminho, acompanhados de Capi, que
rola de contentamento na poeira.
Confesso que não foi sem um sentimento de satis
fação que, ao sairmos de Varses, eu ia batendo com
os pés na estrada sonora que ecoava bem diferente mente do
chão lamacento da mina. Que bom sol, que belas
árvores!
Antes de partirmos, eu e Mattia havíamos
discutido longamente o nosso Itinerário - porque eu
ensinara-lhe a ler nos mapas e ele já não julgava
que as distâncias eram maiores para as pernas que
fazem uma caminhada do que para um dedo que,
sobre um mapa, vai duma cidade a outra. Depois de
considerar os prós e os contras, decidíramos que-em
vez de nos dirigirmos directamente para Ussel e daí
para Chavanon - passaríamos por Clermont, o que
não alongaria muito o nosso percurso e nos traria a
vantagem de explorar as estações termais, nessa
ocasião cheias de doentes, Saint-Nectaire, Mont
-Dore, Royat, La Bourboule. Enquanto eu trabalhara
na mina, Mattia, na sua excursão, encontrara um
amestrador de ursos que ia para essas termas onde,
segundo ele dissera, podiam ganhar dinheiro. Ora
Mattia desejava adquirir dinheiro, pois achava que
cento e cinquenta francos para comprar uma vaca
não eram suficientes. Quanto mais amealhássemos,
mais bonita seria a vaca, mais contente se mostraria
a mãe Barberin e, por este motivo, mais satisfeitos
ficaríamos.
Era, pois, preciso dirigirmo-nos para Clermont.
Ao virmos de Paris para Varses, eu começara a
instrução de Mattia. Ensinara-lhe a ler e fizera-o
conhecer os rudimentos de música; de Varses a Cler mont
continuei as lições.
Fosse eu fraco professor -o que é muito provável
- ou fosse Mattia mau aluno - o que é também
possível - os progressos em leitura caminhavam
lentos e difíceis, conforme já o disse.

Mattia em vão fixava atentamente os olhos no


livro; lia coisas fantásticas que faziam mais honra à
sua imaginação do que à aplicação de espírito.
Porém na música estas dificuldades não se apresentaram e,
desde o princípio, Mattia fez progressos surpreendentes e tão
notáveis que depressa me chegou a espantar com as suas
perguntas; depois de me espantar embaraçou-me e, finalmente,
com os seus
interrogatórios, várias vezes sucedeu embatucar-me.
Confesso que isto me vexava e me enchia de mortificação;
tomando eu a sério o papel de professor, achava humilhante que
o meu aluno me dirigisse
perguntas às quais eu não sabia responder; parecia-me que, até
certo ponto, o mistificava. Ora o meu discípulo não me
poupava as perguntas:
- Porque razão não se escreve a música com a
mesma clave?
-Porque é que se empregam os sustenidos ao
subir e os bemóis ao descer?
-Porque é que o primeiro e último compasso de
um trecho não contém sempre o número de tempos
regulares?
-Porque razão afinam um violino com determinadas notas de
preferência a outras? A esta derradeira pergunta respondi
muito dignamente que não tocava violino e que nunca me ocupara
em saber como se devia ou não afiná-lo, e Mattia
nada teve que me replicar.
Mas esta forma de me livrar dos apuros não era
admissivel com perguntas como aquelas que se referiam às
claves e aos bemóis: isto aplicava-se simplesmente à música, à
teoria da música; sendo eu professor de música, de solfejo,
devia responder ou então perdia a autoridade.
Três dias depois de deixarmos Varses, ele fez-me
precisamente uma pergunta desse género; em vez de
responder «Não sei», respondi altivamente: «Porque
é assim mesmo».

Pareceu-me então preocupado, e durante todo o


dia não lhe pude arrancar uma palavra, coisa bastante
extraordinária, pois estava sempre disposto a tagarelar e a
rir.

Tanto insisti que acabou por falar:


- Certamente que és bom professor, e creio que
ninguém me teria ensinado como tu o que aprendi;
todavia...
- Todavia, o quê?
- Todavia, há talvez coisas que não sabes; isto
acontece até aos sábios, não é verdade? Quando me
respondes: «É assim, por que é assim mesmo», existem talvez
outras razões que tu não dás porque também não tas deram.
Pensei que, se quisesses, poderíamos comprar um livro, um
livro barato, que tratasse dos rudimentos da música.
- Um bom mestre vale mais do que o melhor livro.
- O que estás a dizer leva-me a falar doutra
coisa: se consentisses, pedia uma lição a um verdadeiro
mestre, uma só para que ele me ensinasse tudo o que não sei.
- Porque razão não foste tomar essa lição a um
verdadeiro mestre enquanto estavas sozinho?
- Porque esses fazem-se pagar e eu não queria
mexer no teu dinheiro.
Sentia-me ofendido por Mattia me falar de autênticos
professores, mas a minha tola vaidade não resistiu àquelas
últimas palavras.
- És bom demais - disse-lhe. - O meu dinheiro
é teu também, visto que o ganhas como eu, e, muitas
vezes, mais do que eu. Tomarás as lições que quiseres;
hei-de ir contigo.
Depois ajuntei corajosamente esta
confissão da minha ignorância:
- Assiim, também poderei aprender o que não sei.
o autêntico professor que precisávamos, não seria
um menestrel de aldeia, mas um artista, um grande
artista como só se encontra nas cidades Importantes.
O mapa dizia-me que, antes de chegar a Clermont, a
maior cidade com que toparíamos no nosso percurso
era Mende. Seria realmente uma cidade Importante?
Ignorava-o, mas o seu nome estava escrito no mapa
em tipo graúdo, e eu devia acreditar no meu mapa.
Resolvemos então que seria em Mende a nossa
grande despesa de uma lição de música.
Depois de atravessarmos em toda a sua extensão o
planalto Méjean - a região mais triste e mais pobre
do mundo-chegámos finalmente a Mende.
Como já escurecera havia algumas horas, não
podíamos ir nessa mesma noite tomar a nossa lição.
No entanto, Mattia tinha tanta pressa de saber se
em Mende - que lhe não parecia a cidade importante
a que eu aludira -existiria um professor de música,
que enquanto ceava perguntou à estalajadeira se
haveria ali um bom músico que desse lições.
Respondeu-nos que estava muito surpreendida
com a nossa pergunta: "então não conhecíamos o
senhor Espinassous?"
- Vimos de longe - esclareci eu.
- De muito longe?
- De Itália - disse Mattia.
Nessa altura dissipou-se-lhe o espanto, e pareceu
admitir que, vindo de tão longe, desconhecêssemos o
senhor Espinassous.
Invadiu-me um receio: um artista assim tão célebre
consentiria em dar uma lição a pobres miseráveis como nós?
- E esse senhor Espinassous tem muito trabalho? -
indaguei.
- Oh! Sim! !Creio que anda sempre ocupado,
como não podia deixar de ser.
- Acha que ele nos receberá amanhã de manhã?
- Com certeza; recebe toda a gente, gente que
tenha dinheiro, bem entendido.
Ficámos tranquilizados e, antes de nos deitarmos,
discutimos longamente, apesar da fadiga, todas as
perguntas que faríamos no dia seguinte ao ilustre
professor.
Depois de nos vestirmos cuidadosamente, isto é,
com fato lavado-pois não possuíamos outros além
dos que levávamos às costas - agarrámos nos nossos
instrumentos, Mattia no seu violino e eu na minha
harpa, e lá fomos a caminho da casa do senhor
Espinassous.
Capi quisera acompanhar-nos como de costume,
mas havíamo-lo prendido na cavalariça da estalagem, pois não
achávamos conveniente apresentarmo-nos com um cão em casa do
célebre músico de Mende.
Quando chegámos à porta que nos Indicaram,
imaginámos termo-nos enganado: na fachada da
casa balançavam-se dois pratinhos de cobre para a
barba, o que jamais foi a tabuleta de um professor
de música.
Estávamos a olhar para aquela habitação, que
tinha todo o ar de pertencer a um barbeiro, quando
passou alguém a quem perguntámos onde morava o
senhor Espinassous.
- É ali - disse o transeunte, apontando para a
barbearia.
No fim de contas, por que razão um professor de
música não moraria em casa de um barbeiro?

Entrámos: a loja era dividida em duas partes


Iguais; na direita, em prateleiras, encontravam-se
escovas, pentes, boiões de pomada, sabões; na da
esquerda, sobre um banco e na parede, viam-se instrumentos de
música, violinos, cornetins, trombetas...
- o senhor Espinassous está? - perguntou Mattia.
Um sujeito, vivo e buliçoso como um passarinho,
que barbeava um camponês sentado numa cadeira,
respondeu com voz de barítono:
- Sou eu mesmo.
Olhei furtivamente para Mattia a fim de lhe dar a
entender que o barbeiro-músico não era o homem
que nos convinha, e que, se nos dirigíssemos a ele
com o intuito de nos dar a lição, seria deitarmos
dinheiro pela janela fora; mas, em vez de me compreender e de
se ir embora, Mattia foi sentar-se numa cadeira, e perguntou
com ar resoluto:
- Poderá cortar-me o cabelo depois de fazer a
barba a esse senhor?
- Certamente, e também o barbearei se assim o
desejar...
- Agradeço-lhe - volveu Mattia - mas hoje não; fica para
outra vez.
Eu estava espantado com Mattia: este deitou-me
uma olhadela significativa em que me aconselhava
a esperar um momento antes de me zangar.
Dentro em pouco Espinassous acabou de barbear
o camponês e, de toalha na mão, veio cortar o cabelo
de Mattia.
- Senhor Espinassous - disse o meu companheiro
enquanto ele lhe amarrava a toalha em volta do pescoço -, eu e
aquele meu amigo tivemos uma discussão e, como sabemos que o
senhor é músico afamado, pensámos que nos poderia dar a sua
opinião sobre aquilo que nos embaraça.
- Digam de que se trata, meus rapazes.
Compreendi aonde queria Mattia chegar: em primeiro lugar
desejava saber se o barbeiro-músico era capaz de responder às
suas perguntas, e depois, no
caso das respostas serem satisfatórias, tentaria obter
a sua lição de música pelo preço dum corte de cabelo:
decididamente, Mattia era manhoso.
- -Por que motivo se afina um violino por certas
notas e não por outras?
Imaginei que o homenzinho, que justamente nessa
ocasião passava o pente nos compridos cabelos de
Mattia, ia dar uma resposta no género das minhas,
e já eu ria à socapa, quando ele começou a falar:
- Devendo a segunda corda do instrumento dar
o lá do diapasão nonnal, as outras devem ser afinadas de
maneira a dar as notas de quinta em quinta, isto é,
sol na quarta corda; ré na terceira corda; lá na segunda; mi
na primeira corda ou prima.
Chegara a vez de Mattia rir; estaria a troçar do
meu ar de espanto? Ou sentir-se-ia siinplesmente
satisfeito por saber enfim o que quisera aprender?
O caso é que ele ria às gargalhadas.
Quanto a mim, fiquei de boca aberta a olhar para
o barbeiro que, de volta de Mattia e fazendo tlie-tlae
com a tesoura, expunha aquele discurso, que me
pareceu prodigioso.
Enquanto durou o corte do cabelo, Mattia não
cessou de o Interrogar, e a todas as perguntas o
barbeiro respondeu com a mesma facilidade e segurança.
Mas, depois de esclarecer as nossas dúvidas musicais,
interrogou-nos por seu turno e não tardou a saber com que
intenção fôramos a casa dele.
]então desatou a rir às gargalhadas.
- Mas que rapazes tão patuscos! Tão engraçados!
Em seguida pediu a Mattia - que evidentemente
era muito mais engraçado do que eu - que lhe tocasse
um trecho; e este, empunhando corajosamente o
violino, principiou a tocar uma valsa.
- E não sabes uma nota de música! - exclamou
o barbeiro, batendo as palmas e tratando Mattia por
tu como se o conhecesse há muito tempo.
Já me referi aos Instrumentos que estavam pousados sobre
um banco e aos outros dependurados na parede. Mattia, depois
de terminar o seu trecho de
violino, foi buscar um clarinete.
- Também toco isto - disse ele. - e também cornetim.
- Então toca - sugeriu Espinassous.
E Mattia executou uma música em cada um
daqueles instrumentos.
- Este miúdo é um prodígio - exclamou Espinassous. - Se
quiseres ficar na minha companhia, farei de ti um grande
músico. Estás a ouvir? um
grande músico! De manhã ajudar-me-ás aqui na
barbearia, e no resto do dia estudarás música. Não
penses que sou incompetente para te ensinar pelo
facto de ser barbeiro; é preciso viver, comer, beber,
e para isto a navalha serve.
Mattia aproximou-se vivamente de mim e agarrou-me na mão.
- Deixar o meu amigo! Nunca poderei fazer tal
coisa! Agradeço-lhe muito, senhor.
Espinassous insistiu, dizendo que, depois de Mattia
completar a primeira parte da sua educação, arranjaria maneira
de o mandar para Toulouse e, em seguida, para o Conservatório
de Paris; todavia, o meu companheiro retorquia sempre:
- Deixar Remi! Nunca!
- Pois bem! Quero fazer qualquer coisa por ti. - disse
Espinassous. - Vou dar-te um livro onde aprenderás o que
ignoras.
E pôs-se a vasculhar as gavetas: depois de muito
tempo, acabou por encontrar o livro que tinha por
título: Teoria da música. Era um volume muito velho
e enxovalhado, mas que importava?
]Foi então buscar uma caneta e escreveu na primeira
página: «Oferta ao garoto que, tornado artista, se lembrará do
barbeiro de Mende».
Não sei se havia nessa altura em Mende outros
professores de música além do barbeiro Espinassous,
mas este foi aquele que eu conheci e de quem jamais
nos esquecemos.

CAPÍTULO 28.

A VACA DO PRíNCIPE.

Eu já estimava Mattia quando chegámos a Mende;


mas depois de deixarmos essa cidade ainda gostei mais dele. Haverá nada
melhor, nada mais doce
para aamizade do que possuir a certeza de que se é
estimado por aqueles a quem nos afeiçoámos?

E que maior prova de estima me podia dar Mattia


do que recusar, como o fez, a proposta de Espinassous, isto é,
recusar a tranquilidade, a segurança, o bem-estar, a instrução
nos primeiros tempos e no
futuro a riqueza, para partilhar a minha existência
aventurosa e precária, sem ideal, ignorante do dia
de amanhã?
Não lhe pude dizer na presença de Espinassous a
comoção que me provocara o seu grito: «Deixar
Remi!» Quando saímos, agarrei-lhe na mão e apertei-a, dizendo:
- Seremos amigos até à morte!
Sorriu e fitou-me com os seus grandes olhos.
- Já o sabia há muito tempo - disse ele.
Mattia, que até então pouco percebia de leitura,
fez progressos surpreendentes desde o dia em que
teve a Teoria da Música de Kuhn. Infelizmente não
pôde estudar, como ele e eu desejaríamos: éramos
obrigados a andar, de manhã à noite, fazendo caminhadas
enormes para atravessarmos o mais depressa possível aquelas
regiões de Lozère e de Auvergne que
são tão pouco hospitaleiras para os cantores e
os músicos.
Finalmente, por Saint-Flour e Issoire chegámos às
termas - objectivo da nossa expedição - e vimos,
por felicidade, que asinformações do adestrador de
ursos eram verdadeiras: em Bourboule, principalmente, e em
Mont-Dore, fizemos belas receitas. Para ser Justo, devo
dizer que foi sobretudo pela
habilidade e tacto de Mattia que conseguimos esse
dinheiro. Quanto a mim, quando via gente reunida,
pegava na harpa e tocava, na verdade o melhor que
podia, mas com certa indiferença. Mattia não procedia desta
forma primitiva; não bastava ter público para começar logo a
tocar. Antes disso, observava as
pessoas em redor e não lhe era preciso muito tempo
para ver se tocaria ou não, e, principalmente, o que
deveria tocar.

Foi nas termas que Mattia manifestou toda a sua


habilidade; o público era aquele público parisiense
que ele conhecera e tornava a encontrar ali.
- Atenção - dizia o meu sócio quando via aproximar-se uma
senhora. de luto nas alamedas do Capuci -, temos de tocar uma
coisa triste; tentemos enternecê-la e fazê-la pensar na pessoa
que lhe
morreu; se ela chorar, ficaremos ricos.

E tocávamos tão docemente, que era de cortar o


coração.

Mas sobretudo junto das crianças é que Mattia


obtinha os mais frutuosos êxitos; com o violino,
impelia-as a dançar e, com o sorriso, fazia-as rir
mesmo quando estavam de mau-humor. Não sei como
conseguia isto, mas o facto é que o seu ar agradava,
e elas gostavam dele.
O resultado da nossa expedição foi maravilhoso;
pagas as despesas, tirámos de lucro sessenta e oito
francos.
Ora esta soma, com os cento e quarenta e seis francos que
tínhamos em caixa, perfazia um total de duzentos e catorze
francos; chegara o momento de nos dirigirmos para Chavanon
através de Ussel, onde,
segundo nos disseram, devia haver uma importante
feira de gado.
Era isto mesmo que desejávamos: uma feira de
gado; íamos poder finalmente comprar a famosa
vaca, motivo de tão grandes economias.
Como se deveria escolher a vaca com a certeza de
que possuiria realmente todas as qualidades exigidas? Caso
grave. Não sabia quais os sinais por que se reconhece uma boa
vaca, e Mattia mostrava-se tão
ignorante nesse ponto como eu.
O queredobrava a nossa inquietação eram as histórias
singulares que ouvíramos contar nas estalagens desde que se
nos metera na cabeça a bela ideia de adquirir uma vaca. Quando
falavam de negociantes de gado dir-se-ia que aludiam a um
burlão. Lembrávamo-nos, assustados, de algumas dessas
histórias: um camponês compra numa feira uma vaca com uma
linda cauda tão comprida como ele nunca
viu; com uma cauda daquelas, a vaca poderá enxotar
as moscas até ao focinho, o que, como toda a gente
sabe, é uma grande vantagem. O homem volta para
casa triunfante, porque comprou barato aquela vaca
extraordinária. No dia seguinte vai vê-la: o animal
já não tem cauda nenhuma; o belo ornamento fora
colado a um coto; era uma cauda postiça. Outro
compra uma que tem chifres falsos; e ainda outro,
quando vai ordenhar a sua vaca, percebe que ela
tem as tetas assopradas e que não dará dois copos
de leite em vinte e quatro horas. Ora nós não queríamos que
semelhantes desgraças nos acontecessem.
Quanto à cauda falsa, Mattia não receava nada;
suspender-se-ia nas caudas de todas as vacas que
desejássemos e puxaria por elas com bastante força;
se estivessem coladas, haviam de desprender-se. Para
as tetas assopradas, existia também um meio absolutamente
seguro, que era picá-las com uma agulha grossa e comprida.
Sem dúvida isto seria infalível, sobretudo se a
cauda fosse postiça e a teta assoprada; mas, se tudo
fosse autêntico, não seria de temer que a vaca desse
um coice no ventre ou na cabeça daquele que a estivesse a
picar ou a puxar-lhe pela cauda? A ideia de receber um
coice acalmou a imaginação de Mattia, e ficámos entregues à
nossas incertezas: seria realmente terrível oferecer à mãe
Barberin uma vaca que não desse leite ou não tivesse cornos.
Entre as histórias que nos haviam contado havia
uma na qual um veterinário representava papel temível, pelo
menos para o comerciante de gado. Se arranjássemos um
veterinário para nos ajudar, certamente seria uma despesa, mas
ficaríamos tranquilos.
No meio do nosso embaraço, tomámos esta decisão,
que, sob todos os aspectos, parecia a mais prudente,
e continuámos então alegremente a nossa viagem.

De Mont-Dore a Ussel a distância não é grande;


gastámos dois dias a percorrê-la e chegámos lá de
manhãzinha.

Sentia-me, por assim dizer, na minha terra: fora


em Ussel que eu aparecera pela primeira vez em público na peça
O criado do senhor Joli-Coeur ou O mais estúpido dos dois não
é aquele que imaginamos; e
fora também em Ussel que Vitalis me comprara o
primeiro par de sapatos, aqueles sapatos ferrados que
me haviam tornado tão feliz.

De seis que éramos então, só dois existiam agora:


eu e Capi; esta ideia fez-me entrar melancólico em
Ussel; mau grado meu, parecia-me que ia ver o chapéu
de Vitalis em cada canto de rua e ouvir a exclamação que
tantas vezes escutara: «A caminho!» A loja do adelo onde
Vitalis me levara para me
vestir de artista veio, por felicidade, expulsar os meus
tristes pensamentos: encontrei-a tal e qual quando
eu então descera os três degraus escorregadios.
À porta balançava-se o mesmo Casaco agaloado nas
costuras, que tanto me encantara, e na montra viam-se as
mesmas espingardas velhas, as mesmas lanternas usadas.
Quis também mostrar a praça onde me estreara
ao representar o papel de criado do senhor Joli-Coeur,
isto é, O mais estúpido dos dois; Capi reconheceu-a
e abanou a cauda.
Depois de depositarmos os sacos e os instrumentos
na estalagem onde me hospedara com Vitalis, fomos
à procura de um veterinário.
Quando este ouviu o nosso pedido, desatou a rir.
- Mas nesta terra não existem vacas sábias. - disse ele.
- Não precisamos de uma vaca que faça habilidades;
queremos uma que dê bom leite.
- E que tenha uma cauda verdadeira - ajuntou
Mattia, a quem a ideia da cauda colada atormentava
bastante.
- Enfim, senhor veterinário, vimos pedir-lhe que
nos ajude com a sua ciência, para impedir que sejamos roubados
pelos negociantes de gado.
Disse Isto tentando Imitar os ares nobres que VItalis
assumia tão bem quando queria cativar as pessoas.
- E para que diabo querem uma vaca? - indagou
o veterinário.
Expliquei em poucas palavras o motivo da nossa
compra.
- Vocês são bons rapazes - comentou ele - e,
amanhã de manhã, terei muito gosto em acompanhá-los à feira;
prometo-lhes que a vaca escolhida por mim não terá cauda
postiça.

- Nem chifres fingidos? - perguntou Mattia.


- Nem chifres fingidos.
- Nem tetas assopradas?
- Será uma vaca esplêndida; mas, para a comprar, é
preciso que tenham dinheiro.
Sem responder, desamarrei um lenço onde guardávamos o
nosso tesouro.
- óptimo! Venham buscar-me amanhã às sete horas.
- E quanto lhe pagaremos, senhor veterinário?
- Absolutamente nada; acham então que ia levar
dinheiro a rapazinhos tão simpáticos como vocês!?
A cidade de Ussel, na noite tão tranquila, apresentou-se
movimentada e barulhenta no dia seguinte de manhã; de
madrugada ouvimos, no nosso quarto, o
ruído incessante de carroças que passavam, relinchos
de cavalos, mugidos de vacas, balidos de carneiros e
gritos de camponeses que vinham para a feira.
Às sete horas fomos buscar o veterinário que já
estava à nossa espera e voltámos com ele à feira,
explicando-lhe novamente as qualidades exigidas à
vaca que íamos comprar.
Resumiam-se elas em duas palavras: dar muito
leite e comer pouco.
- Aqui está uma que deve ser boa - disse Mattia
apontando para uma vaca brancaça.
- Parece-me que aquela é melhor - retorqui eu
designando uma malhada.
O veterinário pós-nos de acordo, não parando defronte de
uma nem de outra e dirigindo-se para uma terceira: era
pequenina, de pernas delgadas e de pêlo
avermelhado, com orelhas castanhas, olhos rodeados
de preto e um círculo branco em volta do focinho.
- Eis aqui uma vaca de Rouergue que é justamente o que
lhes convém - disse ele.
Um camponês com ar infeliz segurava-a pela
corda; foi a ele que o veterinário se dirigiu para
saber o preço da vaca.
- Trezentos francos.
Já estávamos todos contentes com aquela vaquinha airosa e
frágil; ficámos sucumbidos ao ouvir o preço.
Trezentos francos! Não era isso que queríamos!
Fiz um sinal ao veterinário, dando-lhe a entender
que devíamos passar a outra; mas ele, num gesto,
disse-me que tínhamos de perseverar.
Então entabulou-se grande discussão entre ele e o
camponês: ofereceu cento e cinquenta francos; o vendedor
diminuiu dez francos. O veterinário subiu a cento e setenta; o
negociante desceu a duzentos e oitenta.
- Vamos ver outras - propus eu.
Ao ouvir Isto, o camponês diminuiu de novo dez
francos.
Enfim, de abatimento em abatimento, chegou a
duzentos e dez francos, mas ficou por ali.
Entretanto, Mattia fora pelo lado detrás e arrancara um
comprido pêlo da cauda da vaca, que lhe deu logo um coice.
Isso decidiu-me.
- Fica em duzentos e dez francos - disse eu, Imaginando
que resolvia assim tudo.
E estendi a mão para agarrar na corda, mas o
camponês não macedeu.
- E a gorjeta para a patroa? - insinuou ele.
Entabulou-se nova discussão, e finalmente concordámos em
vinte soldos de gorjeta. Ficavam-nos só três francos.

Avancei a mão outra vez; o homenzinho apertou-ma


fortemente em sinal de amizade.
Justamente por sermos amigos, eu não devia
esquecer o vinho da filha.
O vinho da filha custou-nos dez soldos.

Numa terceira tentativa quis agarrar na corda,


mas o meu amigo aldeão deteve-me:
- Não trouxe um cabresto? Eu vendi a vaca mas
não me desfiz do cabresto.
Todavia, como éramos amigos, quis ceder-me o
cabresto por trinta soldos. E não era caro.
Precisávamos daquilo para conduzir a nossa vaca;
entreguei-lhe os trinta soldos, calculando que ainda
nos ficariam vinte.
- E onde está a sua corda? - perguntou ele.
- Vendi-lhes o cabresto e não a corda.
E lá foram os derradeiros vinte soldos.
Liquidadas as contas, levámos enfim a vaca com
o cabresto e a corda.
Possuiamos uma vaca, mas não tínhamos um
único soldo para a alimentar e para nos alimentarmos.
- Vamos trabalhar - disse Mattia -, os cafés
,estão cheios de gente; podemos ir, cada um para seu
lado, tocar em todos, e assim arranjaremos uma boa
receita esta tarde.
E depois de levarmos a vaca para a estrebaria da
estalagem, onde a prendemos com vários nós, fomos
separadamente, trabalhar; à noite, quando contámos
os lucros, vi que Mattia conseguira quatro francos e
cinquenta cêntimos e eu três francos.
Com sete francos e cinquenta cêntimos estávamos
ricos.
Mas a alegria de havermos adquirido este dinheiro
não se comparava à que sentíamos por termos gasto
as nossas economias numa compra tão ambicionada.
Convencemos a cozinheira a mungir a vaca, e
ceámos daquele leite: nunca bebêramos coisa tão boa.
Mattia declarou que era açucarado e que cheirava a
flor de laranjeira, como o que ele tomara no hospital,
mas muito melhor.
No dia seguinte levantámo-nos ao romper do sol
e pusemo-nos a caminho de Chavanon.

Sentia-me cheio de gratidão para com Mattia pela


grande ajuda que me prestara, pois sem ele eu nunca
poderia amealhar a fabulosa quantia de duzentos e
catorze francos; quis dar-lhe o prazer de conduzir a
nossa vaca, e ele ia bastante feliz ao levá-la pela
corda. Nunca eu vira bicho tão lindo!
Efectivamente, tinha um belo aspecto, e meneava-se
lentamente enquanto andava, pavoneando-se como um animal que
possui a consciência do seu valor.
Agora eu já não precisava de consultar o mapa a
cada instante como o fazia desde a nossa partida de
Paris: sabia o caminho e, embora houvessem decorrido alguns
anos depois que passara ali com Vitalis, reconhecia todas as
voltas da estrada.
A minha intenção, para não fatigar a vaca e para
não chegarmos muito tarde a Chavanon, era a de
pernoitarmos na aldeia onde estivera na minha primeira noite
de viagem com Vitalis-naquela cama de palha em que o bom Capi,
ao ver o meu desgosto,
viera deitar-se ao meu lado, exprimindo dessa forma
que era meu amigo. Daí, partiríamos no dia seguinte de manhã
para chegarmos cedo à casa da mãe Barberin.
Mas a sorte, que até então nos fora favorável,
voltou-se contra nós e modificou os nossos desígnios.
Decidíramos dividir a nossa caminhada em duas
partes para almoçarmos e, principalmente, por causa
do almoço da vaca, que consistiria das ervas da estrada.
Por volta das dez horas, encontrámos um sítio
onde a erva era tenra e espessa; pusemos os sacos no
chão e fizemos a vaca descer para o valezinho.
De começo, tive-a segura pela corda; ela mostrava-se tão
tranquila e, sobretudo, tão aplicada a pastar, que daí a pouco
embrulhei-lhe a corda em
volta dos chifres e sentei-me perto dela para comer
o pão.
Como é natural, acabámos a nossa refeição muito
antes dela findar a sua; depois de a admirarmos
durante Imenso tempo, já sem saber com que nos
distrairmos pusemo-nos a jogar o berlinde, Mattia e
eu - pois não pensem que éramos dois homenzinhos
graves e sisudos, só querendo ganhar dinheiro: se
levávamos uma vida diferente da maioria dos pequenos da nossa
idade, não deixávamos por isso de termos as predilecções e as
ideias da nossa juventude; em resumo, gostávamos de brincar
como qualquer criança, e nem um só dia se passava sem jogarmos
ao berlinde, à bola e ao eixo. Findámos a brincadeira
antes da vaca ter acabado
de pastar, e quando ela nos viu aproximar pós-se a
comer vorazmente a erva como para nos dizer que
tinha ainda fome.
- Esperemos um bocadinho - propôs Mattia.
- Então não sabes que uma vaca come todo o dia?
- Só um instantinho.
Enquanto esperávamos, agarrámos nos sacos e nos
instrumentos.
-E se eu lhe tocasse uma ária no cornetim? - lembrou
Mattia, que nunca estava sossegado. - Havia uma vaca no circo
Gassot que adorava a música.
Sem esperar a resposta, Mattia principiou a tocar
uma marcha militar.
Às primeiras notas a vaca levantou a cabeça,
depois, de repente, antes que lhe pudesse agarrar na
corda, partiu à desfilada.
Fomos atrás dela, correndo o mais que podíamos
e chamando-a.
Gritei a Capi que a detivesse, mas não é possível
possuir todos os talentos: um cão de pastor teria saltado ao
focinho da vaca; Capi, que era apenas sábio, atirou-se-lhe às
pernas.
Claro que isso não a fez parar, antes pelo contrário, e
continuámos- a corrida, ela à frente e nós atrás.
Enquanto corria ia chamando «estúpido» a
Mattia; e ele, sem me ouvir, gritava-me com voz
ofegante: *Bate-me, que bem o mereço».
Fora a uns dois quilómetros de distância de uma
aldeia que descansáramos para comer, e era para
essa aldeia que a vaca galopava. Como é natural,
entrou lá antes de nós, e, como o caminho era estreito,

pudemos ver, apesar de longe, que algumas pessoas lhe barravam


a passagem e se apoderavam dela.
Então diminuímos um pouco a correria: a vaca
não estava perdida; só teríamos de a reclamar às
boas criaturas que a haviam Impedido de ir mais
para diante, e com certeza entregá-la-iam aos donos.
O número de pessoas aumentava em redor da
vaca, e, quando finalmente chegámos junto dela,
havia lá uns vinte homens, mulheres e crianças que
discutiam enquanto nos olhavam.
Eu imaginara que só precisava de reclamar a
vaca, mas, em vez de no-la darem, rodearam-nos e
encheram-nos de perguntas: «Donde vínhamos? Onde
arranjáramos aquela vaca?»
As nossas respostas eram tão simples como
fáceis; todavia não os persuadiram e duas ou três
vozes elevaram-se para dizer que havíamos roubado
a vaca que nos fugira, e que deviam prender-nos
enquanto isso se não esclarecesse.
Entretanto, chegou um polícia; em poucas palavras
contaram-lhe o que se passava, e, como tudo aquilo lhe
pareceu pouco claro, declarou que nos Ia
prender e levar a vaca para o depósito: ver-se-ia
mais tarde.
Quis protestar, Mattia tentou dizer qualquer coisa,
mas o polícia impôs-nos brutalmente silêncio; e
como eu me recordasse da cena de Vitalis com o
guarda de Toulouse, aconselhei a Mattia que se
calasse e seguisse o agente.
Ao chegarmos à prisão tivemos um momento de
esperança: o guarda da administração, que fazia as
vezes de carcereiro, e que era também guarda-rural,
não quis ao princípio receber-nos. Pensei logo que se
tratava de um homem honrado. Mas o polícia insistiu e o
carcereiro acabou por consentir; foi à nossa frente e abriu
uma porta que fechava no exterior
com uma grande fechadura e dois ferrolhos enormes; vi então
por que motivo ele opusera dificuldade em nos receber:
colocara a sua provisão de cebolas a secar no sobrado da
prisão. Revistaram-nos; levaram-nos o dinheiro, os canivetes,
os fósforos; nesse meio tempo, o carcereiro juntou, à pressa,
as cebolas num canto do quarto. Deixaram-nos então e a porta
fechou-se com um som de ferrolhos verdadeiramente
trágico.
Estávamos na cadeia. Por quanto tempo?
Quando fazia a mim próprio esta pergunta, Matia
veio colocar-se em minha frente, de cabeça baixa:
- Bate-disse ele-, bate-me na cabeça, nunca
me castigarás bastante pela minha tolice.
E desatou a chorar.
Tive de o consolar, explicando-lhe que a nossa
posição não era das mais graves; nada cometêramos
de mau, e não nos seria difícil provar que havíamos
comprado a vaca, se o veterinário de Ussel quisesse
comparecer como testemunha.
- E se nos acusam de termos roubado o dinheiro
com que comprámos a vaca, como provaremos que o
ganhámos? Bem vês que, quando se tem pouca sorte,
é-se culpado de tudo.
Mattia tinha razão.
- Além disso - continuou Mattia -, quando sairmos da
prisão, se nos entregarem a vaca, teremos a certeza de
encontrar a mãe Barberin?
- Por que motivo não a encontraríamos?
- Depois que a deixaste, ela podia ter morrido.
Senti uma pancada no coração: era verdade que
a mãe Barberin podia ter falecido. Não sei como não
me viera já ao pensamento essa lembrança.

Porém Mattia não só pensava na nossa vida; também a vaca


o preocupava.
- Quem lhe vai dar de comer? Quem a vai
mungir?

Decorreram várias horas naqueles tristes pensamentos, e


quanto mais o tempo passava mais desanimávamos.

Por fim a porta entreabriu-se com um terrível


som de ferros e vimos entrar um senhor de Idade, de
cabelos brancos, cujo ar franco e bondoso nos esperançou.
- Vamos, patifes, levantem-se - ordenou o carcereiro - e
respondam ao senhor juiz de paz.
- -Bem, bem, - disse este, fazendo sinal ao carcereiro
para o deixar só - Encarrego-me de interrogar aquele. -
Apontou-me com o dedo. - Leve o outro e
vigie-o; interrogá-lo-ei a seguir.
Julguei que, nessas condições, devia advertir
Mattia do que tinha a responder.
- Como eu, senhor juiz de paz, ele contará toda
a verdade, só a verdade.
- Está bem, está bem, - Interrompeu vivamente
o juiz de paz, como se me quisesse cortar a palavra.
Mattia saiu; mas, antes, teve tempo de me deitar
uma olhadela furtiva, dando-me a entender que me
percebera.
- Acusam-vos de haverem roubado uma vaca, - começou o
juiz, fitando-me nos olhos.
Respondi que compráramos a vaca na feira de
Ussel, e nomeei o veterinário que assistira à compra.
- Isso será verificado.
- É o que eu desejo, pois dessa verificação virá o
sinal da nossa inocência.
- E com que Intenção compraram uma vaca?
- Para a levar a Chavanon e oferecer à mulher
que foi minha ama de leite, como prova de reconhecimento pelos
seus cuidados e lembrança da minha afeição por ela.
- Como se chama essa mulher?
- Barberin.
- É a mulher de um pedreiro que há anos se
aleijou em Paris?
- Exactamente, senhor juiz.
- também será verificado.
Mas não respondi a esta frase como o fizera ao
tratar-se do veterinário de Ussel.

Ao ver o meu embaraço, o juiz de paz encheu-me


de perguntas e fui obrigado a dizer que se ele Interrogasse a
mãe Barberin a propósito da nossa viagem, ficaria sem efeito:
deixaria de haver a surpresa.
Todavia, no meio da minha atrapalhação, sentia
grande contentamento: visto que o juiz conhecia a
mãe Barberin e que se Informaria junto dela da
veracidade ou mentira da minha narrativa, Isso provava que ela
continuava viva. Daí a pouco tive outra alegria; no meio
de todo
aquele Interrogatório o juiz disse-me que Barberin
regressara a Paris havia algum tempo.
Isso tornou-me tão feliz que achei palavras persuasivas
para o convencer que a deposição do veterinário devia bastar
como testemunho de que não roubáramos a vaca.
- E onde arranjaram esse dinheiro para a comprar?
- Ganhámo-lo.
- Aonde? Como?
Contei-lhe então como o ganháramos e amealháramos soldo a
soldo, desde Paris a Varses e desde Varses a Mont-Dore.
- e que foram fazer a Varses?
Esta pergunta obrigou-nos a nova narração;
quando o juiz soube que eu estivera enterrado vivo
na mina de La Truyère, Interrompeu-me e, com voz
branda, quase amigável, indagou:
- Qual de vocês é Remi?
- Sou eu, senhor Juiz.
- Quem o prova? Não tens papéis - disse-me ele.
, É verdade que não tenho.
- Então conta-me como aconteceu a catástrofe
de Varses; li a descrição dela nos jornais,, e, se és
realmente o Remi, nãome me enganarás; vê lá o que
me vais dizer, que eu escuto.
Eu vira, pela forma como o Juiz me tratara, que
não me era hostil. Isso deu-me coragem.
Quando acabei a minha narrativa, o magistrado
contemplou-me com olhos meigos e enternecidos.
Imaginava que ele me Ia dizer que nos restituía à
liberdade, mas tal não aconteceu: sem me dizer
palavra, deixou-me só. Ia, sem dúvida, Interrogar
Mattia para verificar se as nossas duas versões condiziam
entre si.
Fiquei muito tempo entregue às minhas reflexões;
por fim o juiz de paz voltou acompanhado de Mattia,
- Vou mandar tomar informações a Ussel - disse
ele - e se, como espero, confirmarem o que vocês
declararam, ponho-os amanhã em liberdade.
- E a nossa vaca? - perguntou Mattia.
- Ser-lhes-á entregue.
- Não é Isso que eu queria dizer - volveu o meu
companheiro. - Quem é que lhe vai dar de comer?
E ordenhá-la?
- Está descansado, rapaz.
Mattia tranquilizou-se de facto.
- Se mungirem a vaca - disse ele sorrindo - não
nos podiam dar o leite? Calhava bem para a ceia.
Logo que o juiz se foi embora, comuniquei a
Mattia as duas grandes novidades que me haviam
feito esquecer a prisão: a mãe Barberin viva e o
marido em Paris.
- A vaca do príncipe fará uma entrada triunfal - exclamou
Mattia.
Alegre como estava, pôs-se a dançar e a cantar.
Agarrei-lhe as mãos, levado pela sua alegria comunicativa, e
entregámo-nos então a uma dança tão jovial que o carcereiro,
assustado - provavelmente por causa das cebolas - apareceu
para ver se se tratava de uma revolta.
Mandou-nos calar, sem contudo se nos dirigir brutalmente
como o fizera quando havia entrado com o juiz.
Daí concluímos que a nossa situação não era
má, e depressa obtivemos a confirmação de que não
nos enganáramos, pois não tardou a voltar trazendo-nos

um tarro enorme cheio de leite; com Isso deu-nos também um pão


grande e branco e um pedaço de vitela fria que nos enviava o
juiz, segundo ele Informou.
Jamais houve prisioneiros tão bem tratados;
comendo a carne e bebendo o leite, meditei de novo
sobre as prisões: decididamente valiam mais do que
eu tinha imaginado.
Mattia partilhava deste mesmo sentimento.
- Cama e mesa de graça - disse ele a rir. - Isto
é uma pechincha!

CAPÍTULO 29.
A MãE BARBERIN.

A noite que passámos na tarimba não foi má de


todo; já tínhamos tido muito piores ao ar livre.
Às oito da manhã a porta abriu-se e vimos entrar
o juiz de paz seguido do nosso amigo veterinário,
que quisera vir pôr-nos em liberdade.
Quanto ao juiz, a sua solicitude pelos dois prisioneiros
Inocentes não se limitou ao jantar que nos oferecera na
véspera; entregou-me um belo papel selado.
- Vocês foram uns doidos - disse-me ele amigavelmente -
em se meterem assim pelas estradas. Aqui têm um passaporte que
consegui do administrador e que será o vosso salvo-conduto de
ora em diante. Boa viagem, meus rapazes.
E deu-nos um aperto de mão; por seu lado, o veterinário
abraçou-nos.
Entráramos miseravelmente naquela aldeia mas saímos em
triunfo, levando a vaca presa pela corda;
caminhávamos de cabeça erguida, olhando altivamente
os camponeses que nos miravam das suas poigas.
- Só tenho pena de uma coisa, - confessou
Mattia - é que o policia que achou por bem prender-nos não
esteja aqui para nos ver passar.
Recebêramos uma lição tão rude que não nos atrevíamos a
largar a corda da vaca; era meiga realmente, mas muito
medrosa.
Não tardámos a chegar à aldeia onde eu pernoitara com
Vitalis; de aí só tínhamos que atravessar uma charneca enorme
para chegarmos à encosta que desce para Chavanon.
Ao passarmos pela rua dessa aldeia, veio-me uma
Ideia que me apressei a comunicar a Mattia.
- Lembras-te que te prometi coscorões feitos pela
mãe Barberin; mas para os fabricar é preciso manteiga, farinha
e ovos?
- Deve ser esplêndido.
- Verás como é bom; de comer e gritar por mais;
mas talvez não haja manteiga nem farinha em casa da mãe
Barberin, porque ela não é rica. Se nós levássemos tudo isso?
- É uma bela lembrança.
- Então agarra na vaca, mas não a largues; vou
entrar naquela mercearia e comprar manteiga e farinha. Quanto
aos ovos, se ela não tiver, pedi-los-á emprestados. Podíamos
quebrá-los pelo caminho.
Entrei na mercearia e comprei uma libra de manteiga e
duas de farinha; depois, continuámos a andar.
Eu não queria cansar a vaca, mas sentia tanto desejo de
chegar que, mau grado meu, apressei o passo.
Mais dez quilómetros, mais oito, mais seis; coisa
curiosa, a estrada parecia-me mais comprida à volta
do que no dia em que partira de Chavanon e, todavia,
nessa ocasião caía essa chuva glacial de que eu nunca
mais me esquecera.
Sentia-me comovido, febril, e a cada instante consultava
o relógio.
- Não é uma linda terra? - perguntava eu a Mattia,
Atingido pelo meu entusiasmo, Mattia voltava
também (mas somente em Imaginação, coitado!)
para a terra onde nascera.
- Se fosses a Lucca, - dizia ele. - eu também te
mostraria coisas lindas.
- Havemos de Ir a Lucca depois de visitarmos a
Estefânia, a Lise e o Benjamim.
- Queres Ir a Lucca?
- Vieste comigo a casa da mãe Barberin; Irei
contigo ver a tua mãe e a tua irmã Cristina,
e até pegarei nela ao colo, se já não estiver muito
crescida; será como se fosse minha Irmã.
- Oh! Remi!
E nada mais pôde dizer, de tal forma estava

comovido.
Enquanto Íamos falando assim e andando a passos largos,
chegáramos ao alto da colina onde começa a encosta que em
ziguezagues conduz a Chavanon e passa mesmo em frente da casa
da mãe Barberin.
Mais uns metros e atingíamos o sítio onde eu
pedira licença a Vitalis para me sentar no muro a
fim de contemplar a habitação que Imaginara nunca
mais ver.
- Segura na corda - disse eu a Mattia.
E, num salto, subi para o parapeito. Nada mudara
no valezinho; apresentava o mesmo aspecto. Entre
os dois maciços de árvores, distingui o tecto da casa
da mãe Barberin.
- Que tens? - perguntou Mattia.
- Olha! Ali! ali!
Veio ele para o meu lado, mas sem subir o muro,
cuja erva a vaca principiou logo a comer.
- Repara para onde estou a apontar. Lá está a
minha casa, a pereira, o meu jardim.
Mattia, a quem as recordações não o ajudavam
como a mim, pouca coisa via, mas não fez comentários.

Nesse momento elevou-se da chaminé uma colunazinha de


fumo amarelado e, como o vento não soprava, subiu direita no
ar ao longo do flanco da colina.
- A mãe Barberin está em casa - disse eu.
Uma ligeira brisa passou nas árvores, desfez a
coluna de fumo e atirou-no-lo para a cara: cheirava
a folhas de carvalho.
Então, de repente, senti os olhos encherem-se-me
de lágrimas e, saltando para o chão, abracei Mattia.
Capi saltou para mim e eu, pegando nele ao colo,
beijei-lhe o focinho.
- Vamos depressa! - exclamei eu.
- Se a mãe Barberin estiver em casa, como é que
lhe vamos fazer a surpresa? - indagou Mattia.
- Entras sózinho e dizes-lhe que lhe levas uma
vaca da parte do príncipe, e quando ela te perguntar
de que príncipe se trata, eu apareço.
Quando dobrávamos uma volta da estrada, mesmo
por cima da casa da mãe Barberin, vimos uma touca
branca aparecer no quintal: era ela, que abriu a cancela e
saiu à estrada, dirigindo-se para o lado da aldeia.
Paráramos e eu mostrei-a a Mattia.
- Vai-se embora - disse ele. - E a nossa surpresa?
- Vamos inventar outra forma de a fazer.
- E se a chamasses?
A tentação foi forte mas resisti a ela; se me
entusiasmara durante meses com a ideia de uma surpresa, não
podia renunciar a isso de repente.
Não tardámos a chegar à cancela da minha antiga
moradia, e entrámos como eu entrava antigamente.

Conhecendo bem os hábitos da mãe Barberin,


sabia eu que a porta só ficara fechada na tranqueta
e que poderíamos entrar em casa; mas, antes de tudo,
devíamos meter a vaca no curral.
Fui ver em que estado ele estaria e encontrei-o
tal e qual como noutro tempo, só com a diferença
que tinha alguns feixes de lenha aqui e ali. Chamei
Mattia, e, depois de prendermos a vaca mesmo em
frente da manjedoura, arrumámos rapidamente a
lenha a um canto, o que não nos demorou porque
não era muita.
- Agora - disse eu a Matia - vamos entrar; sento-me junto
da lareira para que a mãe Barberin dê logo comigo; como a
cancela range, logo que ela
empurre terás tempo de te esconderes atrás da cama
com Capi. Só me verá a mim. Como ela vai ficar
surpreendida
Arranjaram-se as coisas assim. Fui sentar-me
junto da lareira, onde passara tantas noites de
Inverno.
Do meu lugar via a cancela e não era de recear
que a mãe chegasse sem eu dar por isso.
,Assim instalado, olhei em redor. Dir-se-ia que
deixara a casa na véspera: nada mudara, tudo estava
no mesmo sítio, e o papel com que se remendara
um vidro partido por mim, não fora substituído, embora
estivesse bastante enegrecido pelo fumo. De súbito, vi
uma touca branca e, ao mesmo tempo,
a cancela rangeu.
- Esconde-te depressa, - disse eu a Mattia.
A porta abriu-se: do limiar, a mãe Barberin deu
fé da presença de alguém.
- Quem está aí? - perguntou.
Olhei-a sem responder e, por seu lado, ela olhou-me
também.
- Meu Deus! - murmurou. - Meu Deus! Será
verdade? Remi!
Levantei-me e, de um pulo, lancei-me nos seus
braços.
- Mamã!
- Meu filho! É o meu filho!
Foram-nos precisos alguns minutos para nos refazermos da
comoção e enxugarmos os olhos.
- Se eu não pensasse sempre em ti - disse-me -, tenho a
certeza de que não te reconheceria; estás tão diferente, tão
forte e crescido!
Um suspiro sufocado fez-me lembrar que Mattia
estava atrás da cama; chamei-o e ele levantou-se.
- Este é o Mattia - apresentei eu -, o meu irmão.
- Ah! Então encontraste os teus pais! - exclamou a mãe
Barberin.
- -Não, eu queria dizer que ele é o meu companheiro, o
meu amigo; e ali está Capi, outro camarada. Cumprimenta a mãe
do teu dono, Capi!
Capi ergueu-se nas patas traseiras e, pondo uma
das dianteiras no coração, inclinou-se gravemente,
o que fez rir bastante a mãe Barberin e lhe secou
as lágrimas.
Mattia, que não tinha as mesmas razões do que
eu para se esquecer, fez-me sinal a fim de me recordar a nossa
surpresa.
- Se quisesse - disse eu à mãe Barberin - iríamos até ao
quintal, para ver a pereira de que tanto falei a
Mattia.
- Também podemos ir ver o teu Jardim; conservei-o tal
como o arranjaste para que o reconhecesses quando
regressasses, porque, contra o que os outros
diziam, sempre acreditei que voltarias para casa.
E os topinambos que eu plantei? Achou-os bons?
- Foste então tu que me fizeste essa surpresa!
Bem o calculei: sempre gostaste de fazer surpresas.
Chegara o momento propício. Perguntei então:.
- O estábulo foi modificado depois de se Ir embora a
pobre Ruça, que, como eu, não queria partir?
- -Está a mesma coisa; é lá que guardo a lenha.
Como estivéssemos exactamente defronte do
curral a mãe Barberin empurrou a porta; neste instante a
vaca, que tinha fome e naturalmente imaginava que lhe levavam
de comer, pôs-se a mugir.
- -,Uma vaca! Uma vaca no curral! - exclamou a
mãe Barberin.
Sem nos podermos conter mais, eu e Mattia desatámos a
rir.
A mãe Barberin mirou-nos, espantada, mas era
uma coisa tão inverosímil a instalação daquela vaca
no estábulo que, apesar das nossas gargalhadas, ela
não compreendeu nada.
- É uma surpresa - disse eu -, uma surpresa
que lhe fazemos, e vale bem a dos topinambos, não é
verdade?
- Uma surpresa - repetiu ela -, uma surpresa!
- Não quis entrar de mãos a abanar na casa
daquela que foi tão boa para Remi, o enjeitado;
então, procurando o que poderia ser mais útil, pensei
numa vaca para substituir a Ruça, e na feira de
Ussel comprámos esta com o dinheiro ganho por
Mattia e por mim.
- Oh! meu bom filho! Querido filho! - exclamou a mãe
Barberin, beijando-me.
Entrámos no curral para ela examinar a vaca que
lhe pertencia agora. A cada descoberta, a mãe dava
gritos de alegria e de admiração.

- Que bela vaca!


De súbito, Interrompeu-se e olhou para mim.
- Nesse caso,, voltaste rico?
- Parece-me que sim - replicou Mattia rindo.
- Temos cinquenta e oito soldos.
E a mãe Barberin repetiu o seu estribilho, mas
com uma variante:
- Que bons rapazes!
Aquilo deu-me uma suave alegria, ao ver que ela
nos reunia no seu coração.
Entretanto a vaca não cessava de mugir.
- Está a pedir que a ordenhem - esclareceu
Mattia.
Corri a casa a buscar o balde de zinco bem areado,
no qual se mungia outrora a Ruça e que eu vira
dependurado no canto habitual, embora já não houvesse há anos
vaca alguma no estábulo.
Que satisfação para a mãe Barberin quando viu o
seu balde quase cheio de belo leite espumoso!
, Parece-me que dá mais leite do que a Ruça - disse ela.
Depois de ordenharmos a vaca, deixámo-la no
quintal a pastar e fomos para dentro de casa, onde,
ao vir buscar o balde, eu colocara sobre a mesa, em
evidência, a manteiga e a farinha.
Quando a mãe Barberin deu com aquela nova surpresa
recomeçou as suas exclamações, mas a fraqueza obrigou-me a
interrompê-las:
- Isto é para todos nós: morremos de fome e desejamos
comer coscorões; lembra-se como fomos
surpreendidos na última terça-feira de Carnaval que eu passei
aqui, e como a manteiga que pediu emprestada para fazer os
coscorões serviu para afogar as cebolas? Desta vez, espero que
não seremos Incomodados.
- -Sabes que Barberin está em Paris? - perguntou a mãe
Barberin.
- Bem sei.
- E estás ao facto do que ele foi fazer a Paris?
- Não.
- É coisa de Interesse para ti.
- Para mim! - repliquei, assustado.
Mas, antes de responder, a mãe Barberin olhou
para Mattia como se não quisesse falar na presença dele.
- Pode falar em frente de Mattia - disse eu. - Já
lhe expliquei que é como se fosse meu irmão.
- Mas é que a história é muito comprida - desculpou-se
ela.
Percebi que lhe repugnava falar e, não querendo
insistir na presença de Mattia com receio de que ela
recusasse, o que me parecia que o devia magoar,
decidi esperar para saber o motivo da ida de Barberin a Paris.
- Ele demora-se lá? - perguntei.
- Oh! Creio que sim.
- Então não há pressa; tratemos dos coscorões e
contar-me-á mais tarde o que é que eu tenho com
a viagem de Barberin. Há ovos cá em casa?
- Não, já não tenho galinhas.
- Não os trouxemos com receio de os quebrar.
Não pode pedi-los emprestados?
Ficou atrapalhada e percebi que, naturalmente.
Já abusara dos empréstimos das vizinhas e não
queria pedir mais nada.
- É melhor que eu os vá comprar - lembrei-lhe
- e nesse meio tempo Irá preparando a massa com
o leite. Deve haver ovos em casa de Soquet, não é
verdade? Vou num pulo. Diga a Mattia que parta
a lenha, ele tem uma jeiteira para isso.
Comprei não só uma dúzia de ovos mas também
um pedaço de toucinho.
Quando regressei, a farinha já estava diluída no
leite e apenas faltava juntar os ovos à massa; é verdade que
não chegaria a levedar, mas tínhamos excessiva fome para que
pudéssemos esperar; se os
coscorões ficassem muito pesados, os nossos estômagos eram tão
fortes que não se queixariam.
- Como é que sendo tão bom rapaz - disse a mãe
Barberin, enquanto batia vigorosamente a massa, - nunca me
escreveste? Muitas vezes te imaginei morto, porque eu pensava:
"se Remi ainda fosse deste mundo, daria noticias suas à mãe
Barberin".
- BeM, é que não existia só a mãe; vivia com ela,
um pai que era o dono da casa e que provara Isso ao
vender-me, em certo dia, por quarenta francos, a um
velho músico.
- Não falemos disso, meu Remi.
- Não me estou a lastimar; é para me justificar
por não lhe haver escrito; eu temia, se me descobrissem, que
me tornassem a vender e não desejava semelhante coisa. Foi
esta a razão por que lhe não dei noticias minhas quando morreu
o meu pobre velho mestre, que aliás era uma excelente
criatura.
- Ah! Morreu o músico?

- Morreu, sim, e bastante o chorei. Depois da sua


morte, encontrei uma honrada gente que me recolheu
e em casa de quem trabalhei; se eu lhe tivesse mandado dizer:
«Sou jardineiro em, Glacière», não me Iriam buscar ou, então,
não exigiriam dinheiro àquela família tão honesta? E eu não
queria nem uma coisa nem outra.
- Compreendo-te.
Enquanto a mãe Barberin batia a massa para os
coscorões e Mattia partia a lenha, eu ia conversando
e pondo na mesa os pratos, os garfos e os copos;
depois, fui à fonte encher a bilha de água.
Quando voltei, a malga estava cheia de belas
papas amareladas, e a mãe Barberin esfregava vigorosamente a
frigideira com um pedaço de ferro. Na lareira flamejava um
lume brilhante em que Mattia
Ia pondo cavacas uma a uma; sentado num canto
da lareira, Capi contemplava aqueles preparativos
com olhos enternecidos, e, como por vezes se queimava,
levantava de bocado a bocado ora uma pata, ora outra, com um
ligeiro latido. A claridade forte
da chama incidia até nos recantos mais escuros, e
eu via dançar os bonecos estampados nas cortinas
de chita da cama, bonecos que frequentemente na
minha infância me assustavam se, por acaso, acordava em noites
de luar.
A mãe Barberin pôs a frigideira ao lume e, depois
de tirar um pedacinho de manteiga com a ponta da faca,
deitou-a dentro do tacho, onde se derreteu logo.
- Isto cheira bem - exclamou Mattia, que estava
debruçado sobre o lume sem medo de se queimar.
A manteiga começou a chiar.
- Olha como ela canta! - disse ele. - Tenho de
a acompanhar!
Para Mattia tudo se devia fazer com música; foi
buscar o violino e, docemente, em surdina, tirou
alguns acordes sobre a canção da frigideira, o que
fez a mãe Barberin rir às gargalhadas.
Mas o momento é solene em demasia para me
abandonar a uma alegria intempestiva; a mãe Barberin mete a
colher na terrina e tira a massa que corre em longos fios
leitosos, para a deitar na frigideira; a manteiga desaparece
sob aquela inundação branca e guarnecida de um círculo
doirado.
Por meu turno, inclino-me para a frente; a mãe
Barberin dá um solavanco no cabo da frigideira e faz
saltar a massa com grande susto de Mattia; mas
nada temos a recear; depois de um passeiozinho na
chaminé, a massa recai na frigideira com a face
tostada para o ar.
Só tenho tempo de ir buscar um prato para receber o
coscorão. É para Mattia, que queima os dedos, os lábios,
a
língua, a garganta; mas Que importa, ele nem pensa nisso.
- Ah! Como é bom! - exclamou, de boca cheia.
É a minha vez de estender o prato e de me queimar; mas,
como Mattia, nem dou pela conta.
o terceiro coscorão está frio e Mattia avança a
mão, mas Capi dá um formidável latido; reclama a
sua parte e, como é justo, Mattia oferece-lhe o
coscorão, com grande escândalo da mãe Barberin,
que tem pelos cães a Indiferença da gente do campo,
e que não compreende que se dê a um animal «ccomer
de cristão».
A mãe Barberin declarara que não tocaria nos
coscorões enquanto a nossa terrível fome não estivesse
apaziguada. Foi-nos preciso muito tempo antes que essa fome, e
principalmente a nossa gulodice, ficassem satisfeitas; no
entanto chegou um momento em que declarámos, de comum acordo,
que não comeríamos mais um único coscorão enquanto a mãe
Barberin não comesse alguns.
Quando, finalmente, a terrina se esvaziou, Mattia,
que percebera muito bem que a mãe Barberin não
queria falar na presença dele «do que me interessava»,
declarou que Ia ver como a vaca se portava no quintal, e
deixou-nos sózinhos.
Se eu esperara até essa ocasião, não fora todavia
sem grande impaciência, e só a preparação dos
coscorões me não deixara absorver pela minha
preocupação.
Quando Mattia saiu, Interroguei a mãe Barberin.
- Agora que estamos sós, dir-me-á que interesse
tem para mim a viagem de Barberin a Paris?
Aproximou-se de mim e, a meia voz, toda sorridente,
começou:
- Parece que a tua família te procura.
- Minha família!
- Sim, a tua família, meu Remi.
- Tenho família? Eu? Eu, o enjeitado?
- Creio que não foi voluntariamente que te abandonaram,
visto que te procuram agora.
- Procuram-me? Oh! mamã, fala, fala depressa,
por favor!

De súbito, pareceu-me que estava doido, e exclamei:


- Não, é impossível; é Barberin que me procura.
- Já se sabe que é ele, mas por conta da tua
família.
- Não, não! É ele que me quer encontrar para me
tornar a vender, mas não me apanhará.
- Ouve o que eu própria ouvi: acreditas na minha
palavra, não é verdade? Faz na segunda-feira um
mês, eu estava a meter o pão no forno quando um homem, ou
antes, um senhor, entrou cá em casa, onde nesse momento se
encontrava Barberin. «É você que se chama Barberin?» disse o
senhor que falava com um acento um tanto estrangeiro. «Sim>.
respondeu Jerónimo, «sou eu». «Foi você que achou uma criança
em Paris, na Avenida de Breteuil, e que se encarregou de a
educar.?» «Fui eu, sim». «Onde está essa criança, agora?» «Que
tem com isso?», retorquiu Jerónimo.
Se eu duvidasse da sinceridade da mãe Barberin,
reconheceria pela amabilidade daquela resposta do
marido, que ela, de facto, me contava o que ouvira.
- Sabes - continuou ela - que do lado do forno
se ouve tudo o que se diz aqui, e, como a conversa
se referia a ti, fiquei com vontade de escutar. Então
para ouvir melhor, aproximei-me, e, sem querer, pisei
um ramo de pinheiro que se quebrou. «Não estamos
sozinhos?» perguntou o senhor. «É minha mulher»,
respondeu Jerónimo. «Faz aqui muito calor», disse o
senhor «se não se importa, iremos para a rua conversar.»
Foram-se os dois, e só três ou quatro horas depois é que
Jerónimo voltou sózinho. Deves calcular
como eu estava curiosa de saber o que se passara
entre meu marido e aquele senhor que era talvez teu
pai, mas Jerónimo não respondeu nada ao que lhe
perguntei. Apenas me declarou que o dito cavalheiro
não era teu pai, mas que andava a procurar-te em
nome dos teus parentes.
- E onde está a minha família? Quem é ela?
Tenho pai? E mãe?
- Foi o que eu perguntei ao Jerónimo. Mas ele
disse-me que não sabia nada disso. Depois ajuntou
que ia a Paris a fim de procurar o músico a quem
te alugara, e que lhe dera a sua morada: Paris, rua
Loureine, em casa de outro músico chamado Garofoli.
Decorei os nomes, vê se os decoras também.
- Conheço-os muito bem, esteja descansada: e
depois de se ir embora, Barberin não lhe mandou
dizer nada mais?
- Não; naturalmente continua as suas buscas: o
senhor dera-lhe cem-francos em cinco luízes de ouro,
e sem dúvida recebeu depois outro dinheiro. Tudo
Isto, e as belas roupas com que estavas vestido quando
te encontraram, provam que teus pais são ricos;
quando te descobri ali, no canto da lareira, Imaginei
que os tinhas encontrado, e por isso é que pensei que
o teu companheiro era realmente teu irmão.
Nesse momento Mattia passou em frente da porta
e eu chamei-o.
- Mattia, os meus pais procuram-me, tenho uma
família, uma família autêntica.
Mas, coisa estranha, Mattia não pareceu partilhar
da minha alegria e entusiasmo.
Então narrei-lhe o que a mãe Barberin acabara
de contar-me.

CAPÍTULO 30.

A ANTIGA E A NOVA FAMíLIA.

LoGo que me deitei, a fadiga da minha jornada e


da noite passada na prisão fizeram-me adormecer; mas não
tardei a despertar em sobressalto e então foi-me impossível
conciliar o sono; sentia-me
perturbado, febril.
A minha família!
A minha família procurava-me, mas para a encontrar era a
Barberin que eu me devia dirigir. Não fora por piedade
que Barberin me recolhera,
mas simplesmente porque eu vestia belas roupas e
porque ele seria pago no dia em que me entregasse
a meus pais; como esse dia não viera tão depressa
quanto ele o desejava, vendera-me então a Vitalis,
agora, Ia vender-me a meu pai.
Que diferença entre o marido e a mulher!
Só me vinha à cabeça a ideia desesperante que
seria Barberin quem me levaria a meus pais que lhe
agradeceriam, o recompensariam, a ele.
Enfim, visto ser impossível proceder doutra forma,
seria eu, mais tarde, quando fosse rico, quem recompensaria a
mãe Barberin.

Por agora só tinha de me ocupar de Barberín.


Onde habitaria? Ela ignorava a morada certa, mas
bastava procurá-lo em duas ou três hospedarias do
bairro Mouff etard, hospedarias de que a mãe Barberin conhecia
o nome, e encontrá-lo-iam em qualquer delas. Eu devia,
pois, partir para Paris e Ir ao encontro
daquele que buscava o meu paradeiro.
Evidentemente que era para mim uma grande e
inesperada alegria ter família; todavia esse contentamento,
nas condições em que me chegara, misturava-se de
aborrecimentos e até de desgosto. Esperara poder passar
alguns dias tranquilos,
felizes, junto da mãe Barberin, recordar as minhas
antigas brincadeiras com Mattia, e eis que no dia
seguinte tínhamo-nos de pôr a caminho.
Eu calculara que, ao deixar a casa da mãe Barberin, iria
pela beira-mar, a Esnandes, ver Estefânia - e agora tinha de
renunciar a essa viagem e a abraçar a pobre Estefânia que fora
tão boa e afectuosa para mim. Depois de visitá-la, devia Ir a
Dreuzy, para dar a Lise notícias do irmão e da Irmã -, e
também tinha de renunciar a Lise como renunciava
a Estefânia.
Foi nestas reflexões que passei quase toda a noite.
De manhã, quando nos reunimos todos três, a mãe
Barberin, Mattia e eu, conferenciámos em volta da
lareira, onde o leite da vaca se aquecia sobre um
lume brilhante.
- Tens de ir Já a Paris - aconselhou a mãe Barberin. - Os
teus pais procuram-te, não lhes retardes a alegria.
- Está combinado - volvi -, vamos então a Paris.
Mattia, porém, não mostrou aprovar essa resolução:
- Acho, - disse - que os novos não devem
fazer esquecer os velhos. Até hoje a tua Família era
Lise, Estefânia, Aleixo e Benjamiin, que foram verdadeiros
irmãos para ti; mas apresenta-se de repente uma nova.famllia
que não conheces, que nada fez por ti senão enjeitar-te, e
pronto! abandonas os que foram bons pelos maus. Isto não é
justo.
- Quem sabe lá se os pais de Remi o enjeitaram -
interrompeu a mãe Barberin. - Talvez lhes roubassem o filho
que eles choram e procuram desde esse dia.
- Isso não sei, mas sei que o tio Acquin recolheu
Remi, que morria no degrau da sua porta, que tratou
dele como de um filho, e que Aleixo, Benjamim, Estefânia e
Lise estimaram-no como Irmão.
Mattia pronunciou estas palavras como se estivesse
revoltado comigo, sem me olhar, e sem olhar para a mãe
Barberin. Aquilo penalizou-me, mas sem
que o desgosto de me ver assim exprobado me Impedisse de
sentir toda a força daquele raciocínio.
- mattia tem razão - repliquei eu - e não era
sem pena que eu resolvia Ir a Paris sem ter visto
Estefânia e Lise.
- Mas os teus pais! - insistiu a mãe Barberin.
Era preciso formular uma decisão; tentei conciliar tudo:
- Não Iremos visitar Estefânia porque nos desviaríamos
muito; aliás, ela sabe ler e escrever, podemo-nos entender por
carta; mas antes de Irmos a Paris passaremos por Dreuzy para
ver Lise.
- Bom! - apoiou Mattia, sorridente.
Ficou assente que partiríamos no dia seguinte;
passei parte da tarde a redigir uma carta a Estefânia,
em que lhe explicava quais os motivos por que não
a ia visitar conforme fora minha Intenção.
E no outro dia tive mais uma vez de suportar a
tristeza das despedidas; mas, ao menos, não deixava
Chavanon como quando me fora com Vitalis; pude
beijar a mãe Barberin e prometer-lhe que viria visitá-la em
breve, com meus pais.
E eis-nos de novo a marchar, com o saco às costas,
e Capi na vanguarda; caminhávamos rápidos, ou antes,
de vez em quando apressava o passo, insensivelmente, na minha
ânsia de chegar a Paris.
Mattia, porém, depois de me seguir uns instantes,
disse-me que, se continuássemos daquela maneira,
não tardaríamos a ficar fatigadíssimos, e então diminui a
marcha; mas depois tornei a acelerá-la.
- Como estás apressado! - exclamou mattia, com
amargura.
- É verdade que sim, e tu também devias estar.
Ele abanou a cabeça.
- Não posso compartilhar da tua alegria. E só por...
porque nosvamos separar e eu Imaginara, acreditara mesmo,
sonhara que viveríamos sempre juntos: não como agora, pobres
músicos ambulantes; trabalharíamos, tornar-nos-íamos
verdadeiros músicos, a tocar perante um verdadeiro público,
sem nunca nos apartarmos.
- Mas tudo será assim, Mattia; se os meus pais
são ricos para mim também o serão para ti; se me,
mandarem para o colégio, virás comigo; nunca nos
separaremos, estudaremos juntos, cresceremos e viveremos
juntos, como tu desejas e como eu desejo também, podes crer.
- Eu ficaria contente se eles fossem pobres.
- És tolo!
- Talvez.
Se não Fôssemos obrigados a ganhar o pão de cada
dia, eu continuaria a apressar o passo, mesmo contra vontade
de Mattia; mas precisávamos tocar pelas aldeias em que
passávamos, e, enquanto meus pais
não dividissem connosco a sua riqueza, devíamo-nos
contentar com os soldos que dificilmente recebíamos
aqui e ali.
Gastámos por Isso mais tempo do que eu desejava
no percurso de Chavanon e Dreuzy, através de Aubusson,
Montiuçon, Moulins e decize. Aliás, sem ser o pão de cada
dia, tínhamos outro
motivo que nos fazia querer arranjar receitas tão
grandes quanto possível: queria que a minha lise
ficasse satisfeita como a mãe Barberin ficara. Claro
que dividiria os meus bens comlise, mas entretanto,
antes de ser rico, desejava levar a lise um presente
comprado com dinheiro ganho por mim: a oferta da

pobreza.
Foi uma boneca que comprámos em Deeize; por
felicidade, custava mais barato do que uma vaca.
A partir de Crátillon, seguimos pelas margens do
anal, e aquelas ribas arborizadas, aquela água tranquila,
aquelas embarcações que deslizavam lentamente puxadas por
cavalos fizeram-me saudades dos tempos felizes em que, com a
senhora Milligan e Artur, eu navegara assim no Cisne. Onde
estariam agora? Quantas vezes, ao passar por um canal,
perguntara se teriam visto um barco de recreio que, pela sua
varanda, pelo seu luxo, não se podia confundir com
outro! Certamente a senhora Milligan regressara, à
Inglaterra com o filho, já curado. Era Isto o mais
lógico, o mais sensato de Imaginar; todavia, ao
costear as margens do canal do Nivermais, perguntei
em frequentes ocasiões a mim próprio, ao ver um
barco conduzido por cavalos, se não seria o Cisne que
vinha a aproximar-se.

Apesar de apertarmos o passo, entrámos em


Dreuzy já noite fechada.
Para chegar à casa da tia de Lise só tínhamos de
seguir pela margem do canal, visto o marido da tia
Catarina, que era guarda das águas, morar numa
habitação construída mesmo ao lado da comporta que
lhe competia manobrar; ora isto poupou-nos tempo,
e não tardámos a chegar à dita casa, situada nos
limites da aldeia, numa veiga plantada de grandes
árvores que pareciam flutuar no nevoeiro.
O meu coração pulsava fortemente ao aproximar-me daquela
moradia, cuja janela estava Iluminada pela reverberação do
lume bem ateado que ardia na
lareira, e que punha, de bocado a bocado, reflexos
vermelhos no caminho que íamos a percorrer.
Ao aproximarmo-nos da casa, vi que a porta e a
janela estavam fechadas, mas, pela janela sem cortinas nem
postigos, distingui Lise sentada à mesa, ao lado da tia, e um
homem, sem dúvida o tio, instalado
em frente dela e de costas voltadas para nós.
- Estão a cear - segredou-me Mattia - chegamos em boa
altura.
Detive-o com um gesto e fiz sinal a Capi para
que ficasse silencioso atrás de mim. Em seguida
desenfiei do ombro a correia da harpa e preparei-me
para tocar.
- Olha! - disse Mattia baixinho. - Uma serenata! Boa
ideia.
- Tu não. Só eu.
E toquei as primeiras notas da canção napolitana,
mas sem cantar, para que a voz me não traísse.
Enquanto tocava, ia olhando para Lise; levantara
ela vivamente a cabeça e vi-lhe nos olhos como que
uma centelha.
Cantei então.
Nesse momento, saltou da cadeira para o chão e
correu em direcção à porta; só tive tempo de entregar a harpa
a Mattia; Lise caiu-me nos braços. Mandaram-nos entrar, e
a tia,Catarina, depois de
me haver beijado, pôs mais dois talheres na mesa.
PedI-lhe, nessa ocasião, que pusesse mais um.
- Se nos dão licença - disse eu -,. trago também
uma companheira.
E tirei do saco a boneca, que sentei na cadeira
colocada junto de Lise.
Jamais poderei esquecer o olhar que Lise me deitou.

CAPÍTULO 31.

BARBERIN.
Se eu não tivesse pressa de chegar a Paris, ficaria
muito, muito tempo com Lise; havia tanta coisa
a dizer, e tão pouco podíamos conversar com a linguagem que
empregávamos!
Lise contou-me a sua instalação em DreUzy, como
caíra em graça a seu tio e sua tia, cujos cinco filhos
se haviam Ido todos embora - infelicidade muito vulgar nas
Famílias de Nièvre, onde as mulheres abandonam os próprios
filhos para serem amas em Paris. Disse-me como eles a tratavam
muito meigamente;
como vivia, quais as ocupações, quais os seus jogos
e prazeres: pesca, excursões em barco, passeios pelas
florestas, tudo coisas em que empregava todo o tempo,
visto não poder frequentar a escola.
E eu, por meu lado, tive de contar-lhe o que me
acontecera desde a nossa separação: como estivera
quase a morrer na mina em que Aleixo trabalhava,
e como, ao chegar a casa da mãe Barberin, soubera
que a minha Família me procurava, o que me Impedira de visitar
Estefânia, como era meu desejo.
Claro que foi a minha Família o grande assunto
das nossas conversas, a minha Família endinheirada,
e eu repetia a lise o que jà dissera a Mattia, Insistindo
sobretudo nas minhas esperanças de riqueza, que, se se
realizassem, nos permitiriam ser felizes:
o pai, os irmãos, e ela, principalmente ela. Lise, que
não adquirira a precoce experiência de Mattia, e não
estivera felizmente para ela) na escola de Garofoli,
sentia-se disposta a admitir que as pessoas ricas nada
têm a fazer senão andarem satisfeitas neste mundo,
e que o dinheiro era um talismã que, como nos contos de fadas,
dava instantaneamente tudo o que se podia desejar.
Não era só a conversar em frente da represa, ao
som da água precipitando-se nas comportas, que passávamos o
tempo; passeávamos também todos três, Lise, Mattia e eu,
sempre acompanhados do senhor
Capi e da menina boneca..
À noite, quando a humidade não era excessiva,
sentávamo-nos defronte da casa, ou instalávamo-nos
em volta da lareira se havia muito nevoeiro; para
maior prazer de Lise, eu tocava harpa e Mattia tocava violino
ou cornetim;, mas Lise preferia a harpa, o que me tornava
orgulhoso a valer. Antes de nos
separarmos para dormir, Lise pedia-me que cantasse
a canção napolitana e eu fazia-lhe a vontade.
No entanto, apesar de tudo, foi-nos forçoso partir.
Por mim, a separação não me custou muito; acalentara
tanto os meus sonhos de riqueza que acreditava, não que um dia
chegaria a ser rico, mas que o era já, é que só precisava
formular um desejo para
o realizar num futuro próximo, muito próximo, quase
Imediato.
As últimas palavras que dirigi a Lise farão compreender,
melhor do que longas explicações, como era sincero na minha
Ilusão.
- Virei buscar-te numa carruagem puxada por
quatro cavalos - disse-lhe.

E ela, acreditando-me piamente, fez o gesto de


chicotear os cavalos: certamente Lise via, como eu,
a carruagem.
Entretanto, antes de fazer de carro o percurso de
Paris a Dreuzy, foi necessário ir a pé de Dreuzy a
Paris; e, se não fosse Mattia, eu não teria outra
preocupação senão a de abreviar as paragens, contentando-me
com ganhar o estrictamente necessário para o pão quotidiano.
De que valia esforçar-me a
trabalhar, agora? Já não tínhamos de comprar vacas
nem bonecas, e contanto que arranjássemos de comer,
não me competia levar dinheiro a meus pais.
Mattia porém não se deixava convencer pelas
razões que eu expunha a justificar a minha opinião.
- Ganhemos o mais que pudermos - dizia-me
ele, obrigando-me a pegar na harpa. - Quem sabe lá
se encontraremos Barberin logo que chegarmos?
- Se o não encontrarmos ao meio-dia, encontramo-lo às
duas horas; a rua Mouffetard não é muito comprida.
- Como vais ser preguiçoso quando fores rico!
- comentava Mattia.
A partir de Corbeil, encontrámos o caminho que
havíamos percorrido seis meses antes, quando deixáramos Paris
para ir a Chavanon; passámos e entrámos na quinta onde, numa
boda, déramos o nosso primeiro concerto em conjunto. Os noivos
reconheceram-nos e quiseram que tocássemos outra vez para eles
dançarem.. Ofereceram-nos ceia e cama.,
Foi de lá que saímos no dia seguinte de manhã,
a caminho de Paris; fazia justamente seis meses e
catorze dias que nos fôramos dali.
Mas o dia do regresso não se parecia em nada
com o da partida: o tempo estava frio e feio; não
havia sol, nem flores, nem verdura nas árvores da
estrada.
Que importava porém a tristeza do tempo? Tínhamos dentro
de nós uma alegria que não precisava de Incitamentos
exteriores.

Quando digo nós, não sou exacto; era em mim que


havia alegria, só em mim.
Quanto a Mattia, conforme se aproximava de
Paris, tornava-se cada vez mais melancólico, e caminhava
durante horas sem me dirigir palavra. Jamais ele me
dissera a causa dessa tristeza, e eu,
Imaginando que derivava apenas dos seus receios de
separação, não lhe quis repetir o que já lhe explicara
várias vezes: que meus pais não podiam pensar em
nos separar.
Foi só quando parámos para almoçar, antes de
chegarmos às fortificações, que, enquanto comia o
pão, sentado numa pedra, ele me disse o que tanto
o preocupava:
- Sabes em quem penso, agora que vou entrar
em Paris?
- Em quem?
- Em Garotoli. Se tivesse saído da cadeia?
Quando me disseram que ele estava preso, não me
lembrei de perguntar por quanto tempo era; é possivel que
esteja solto e voltasse para a casa da rua Lourcine. É na rua
Mouffetard que devemos procurar Barberin, isto é, mesmo no
bairro de Garofoli, à porta dele. Que acontecerá, se, por
acaso, nos encontrar? É meu patrão e meu tio. Pode levar-me
com ele, sem que eu tenha possibilidades de lhe escapar.
Com o espírito transportado pela esperança, eu
não pensava em Garofoli; mas tudo o que Mattia me
acabava de dizer era possível, e não precisava de
explicações para compreender o perigo a que estávamos
expostos.
- Mas então? - perguntei-lhe eu. - Não queres
entrar em Paris?
- Acho que se não fosse à rua Mouffetard, seria
o bastante para escapar à triste possibilidade de
encontrar Garofoli.
- Pois bem! Não vais à rua Mouffetard: Irei sózinho, e
encontrar-nos-emos em qualquer parte esta tarde, às sete
horas.
O local combinado para o nosso encontro foi o
extremo da ponte do Arehevèché, do lado de Notre-Dame; e
arranjadas assim as coisas, pusemo-nos a caminho de Paris.
Chegados à praça da Itália, separámo-nos, comovidos como
se nunca mais nos devêssemos tornar a ver; e, enquanto Mattia
e Capi desciam para o Jardim Botânico, dirigi-me para a rua
Mouffetard que não fica longe dali.
Era a primeira vez, de há seis meses para cá, que
eu me via só, sem Mattia e sem Capi a meu lado; e,
naquele Paris Imenso, esse facto produzia em mim
uma sensação penosa.

Mas não devia deixar-me Invadir pelo mal-estar


que sentia: não Ia ao encontro de Barberin, a fim de
conhecer a minha Família?
Tomara nota dos nomes e das moradas dos hospedeiros onde
havia probabilidades de Barberin se aloJar; fora, porém, uma
precaução desnecessária: não esquecera nem os nomes, nem as
moradas, e não me
foi preciso consultar o papel: Pajot, Barrabaud,
Chopinet.

Como a casa de Pajot fosse a primeira com que


topei, ao descer a rua Mouffetard, entrei, com bastante
coragem, na taberna que ocupava o rés-do-chão;mas a minha voz
tremeu quando perguntei por Barberin.
- Quem é esse Barberin?
- O Barberin, de Chavanon.
E descrevi a figura de Barberin, ou, pelo menos,
daquele que eu vira regressar de Paris: rosto cruel,
aspecto mal humorado, cabeça inclinada sobre o
ombro direito.
- Não tivemos ninguém assim. Não o conhecemos.
Agradeci, e fui um pouco mais longe, a casa de
Barrabaud; este, além da hospedaria, tinha uma loja
de fruta.
novamente a mesma pergunta.

De começo, tive dificuldade em que me atendessem; o


marido e a mulher estavam ocupados, um a servir um
esparregado, que ele ia dividindo com uma colher e que,
segundo dizia, era de espinafres; a outra a discutir com um
freguês por causa dum soldo que lhe dera a menos. Finalmente,
depois de repetir três vezes a minha pergunta, consegui obter
resposta.
- Ah! Barberin... Tivemo-lo hospedado há quatro
anos, pelo menos.
- Cinco - rectificou a mulher. - Por sinal que
nos ficou a dever uma semana; onde é que ele pára,
esse patife?
- Era justamente o que eu queria saber.
Saí desanimado e até um tanto inquieto. Só faltava
Chopinet. A quem me dirigir, se ele não soubesse do
paradeiro de Barberin? Onde procurá-lo? Como Pajot,
Chopinet era dono duma casa de pasto, e quando entrei na sala
onde ele cozinhava e servia a comida, vi várias pessoas
sentadas à mesa.
Interroguei o próprio Chopinet, que estava a distribuir
sopa aos fregueses.
- Barberin, - respondeu-me ele - Já cá não está.
- Então onde está? - perguntei, todo trémulo.
- Ah! Isso não sei.
Senti-me desfalecer; pareceu-me que as caçarolas
dançavam sobre o fogão.
- Onde poderei encontrá-lo?
- Ele não deixou o endereço.
Com certeza a minha cara traiu a decepção de
forma expressiva e comovente, porque um dos homens que estavam
a comer numa mesa colocada perto da lareira me Interpelou:
- Que desejas de Barberin?
Era-me impossível responder francamente e contar a minha
história.
- É que eu venho da terra dele, de Chavanon, e queria
dar-lhe noticias da mulher; disseram-me que
o encontraria aqui.

- Barberin esteve hospedado no hotel do Cantal,


na passagem de Austerlitz: vi-o lá há três semanas. Coitado!
Coitado! - acrescentou.
Depois, mirando-me, com um tremor de cabeça
ainda mais visível, indagou.
- Será por acaso, o tal rapaz?
- Que rapaz?
- Aquele que ele procurou?
Que ele procurou... Ao ouvir isto, senti o coração
apertar-se-me.
- Barberin! - gritei eu.
- Diga antes defunto Barberin.
Apoiei-me na harpa.
- Morreu então? - exclamei com uma voz que a
comoção tornava rouca.
- Há oito dias, no hospital de Santo António.
Fiquei sucumbido. Barberin morto! E como encontrar agora
a minha Família?
- Então você é que é o tal rapaz? -perguntou
a mulher.-Aquele que ele procurava para entregar
à Família, gente rica?
A esperança voltou-me; agarrei-me àquelas palavras:
- Então sabe?
- Sei o que ele contava, coitado do homem! Que
encontrara e criara uma criança; agora a Família,
que perdera a criança, reclamava-a, e ele estava em
Paris a fim de a procurar.
- Mas a Família? - perguntei ofegante.-A minha Família?
- Visto isso, sempre é o tal rapaz? Ah! É você,
é você mesmo!
E, abanando a cabeça, encarou-me fixamente.
Arranquei-a porém, ao seu exame:
- Por favor, minha senhora, diga-me o que sabe.
- Mas eu não sei mais nada do que aquilo que já
lhe contei, meu rapaz, quero dizer meu senhor.
- o que é que Barberin lhe contou sobre a minha
Família? Bem vê como estou aflito, angustiado.

Sem me responder, levantou de novo os braços


ao céu.
Neste momento entrou no aposento uma mulher
com todo o aspecto de uma criada. então a dona do
hotel do Cantal voltou-se para ela, dizendo:
- Isto é que é um sarilho! Este rapazinho, este
senhor que aqui vê, é aquele de quem Barberin falava: chega
agora aqui e Barberin já não existe; isto é que é um sarilho!
- Barberin nunca lhe disse nada acerca da minha família?
- insisti eu.
- Mais de vinte vezes, mais de cem vezes; uma
Família rica!
- E onde mora ela? Como se chama?
- Não sei. Barberin nunca me falou desse pormenor.
Compreende, fazia segredo disso. Queria que a
recompensa fosse só para ele, como é justo, e, além
disso, era muito manhoso.
Ai de mim! Bem a compreendia; compreendia
perfeitamente o que a velha me acabara de dizer.
Barberin morrera e levara consigo o segredo do meu
nascinento.
Eu chegara quase ao fim e falhara. Ah! Belos
sonhos! Esperanças minhas!
- E não conhece ninguém a quem Barberin tivesse dito mais
do que à senhora? - perguntei eu à velha.
- Barberin não era tão tolo que se fosse confiar
a alguém; era muito desconfiado para isso.
- E nunca viu nenhum seu parente vir procurá-lo?
- Nunca.
- Nem amigos, a quem tivesse falado da minha
família?
- Ele não tinha amigos.
Levei as mãos à cabeça; em vão tentei solucionar
o caso, nada encontrava para me guiar; aliás, sentia-me tão
aflito que não podia conciliar as Ideias.
- Ele uma vez recebeu uma carta - disse a velha
depois de reflectir um bom pedaço -, uma carta registada.
- Donde vinha?
- Não sei: o correio entregou-lha em mão própria
e eu não vi o selo.
- E pode-se, talvez, reaver essa carta?
- Quando ele morreu, vasculhámos tudo o que
deixou cá em casa. Ah! Não foi por curiosidade, bem
entendido, mas sim para avisar a mulher; não encontrámos nada;
no hospital também não acharam nenhum papel nas algibeiras do
fato, e, se ele não tivesse dito que era de Chavanon, não
podiam avisar a mulher.
- Nesse caso, preveniram a mãe Barberin?
- Pois!
Fiquei muito tempo calado. Que havia de perguntar?
Tinham-me dito o que sabiam, o que equivalia a nada. E
evidentemente, haviam feito tudo para
apanhar o que Barberin lhes quisera esconder.
Dirigi-me para a porta.
- E para onde vai? - perguntou-me a mulher.
- Encontrar-me com um amigo.
- Ah! Tem um amigo?
- Tenho, sim.
- E ele mora em Paris?
- Chegámos esta manhã a Paris.
- Então, se não estão em nenhum hotel, podiam
vir hospedar-se aqui; ficariam bem Instalados, disso
me gabo, e numa casa honesta. Repare que, se a sua
Família o procura, cansada de não ter notícias de
Barberin, é aqui que ela virá ter, e não a outra parte.
O que eu digo é no seu Interesse. Que Idade tem o
seu amigo?
- É um pouco mais novo do que eu.
- Pense bem! Duas crianças em Paris! Às vezes
arranjam-se conhecimentos tão maus! Há hotéis tão
mal frequentados! Aqui, ao menos, há sossego.
A gente deste bairro gosta da tranquilidade.

Eu não estava muito convencido de que


aquele bairro fosse favorável ao sossego; em
qualquer caso, o hotel do Cantal era a casa
mais abjecta e miserável que se podia ver. No
hotel do Cantal a despesa não seria grande, e
agora a despesa devia preocupar-nos. Ah! Como
Mattia tivera razão em querer ganhar dinheiro no
percurso de Dreuzy a Paris! Que seria de nós se
não possuíssemos dezassete francos?
- Por quanto nos alugaria um quarto, ao meu amigo e a
mim?
- Dez soldos por dia. É muito caro?
- Está bem! Voltaremos esta noite.
- Venham cedo. ]Paris é mau à noite.
Sentia as pernas lassas e o espírito desnorteado.
A decepção fora tão brusca,
inesperada e cruel! Como não fosse ainda o
momento de me encontrar com Mattia, pus-me a
vaguear pelos cais a ver o riocorrer.
Anoiteceu; acenderam os bicos de gás;
encaminhei-me para a Igreja de Notre-Dame, cujas torres
se destacavam no poente vermelho. Na parte detrás
da igreja vi um banco onde me
sentei, o que me foi muito agradável, pois
estava tão cansado como se tivesse andado
léguas; e depois de me sentar retomei as minhas tristes
reflexões. Nunca me sentira tão alquebrado. Em mim, em redor
de mim, tudo era lúgubre; naquele Paris enorme, cheio de
luzes, de barulho e de movimento, via-me mais perdido do que
no meio dos campos ou dos bosques.
Só tinha a distracção de contar as badaladas das
horas; punha-me então a calcular quanto tempo
tinha de esperar ainda para recuperar a força e a
coragem na amizade de Mattia. Que consolação pensar que daí a
pouco veria os seus olhos meigos e risonhos!
Um pouco antes das sete horas ouvi um latido
alegre; quase no mesmo instante, distingui na sombra um corpo
branco que me saltou para o colo sem me dar tempo a reflectir.
Era Capi, que já me lambia as mãos.

Apertei-o nos braços e beijei-o no focinho.


Mattia não tardou a aparecer.
- Então? - perguntou ele de longe.
- Barberin morreu.
Pôs-se a correr para chegar mais depressa a meu
lado; em poucas palavras contei-lhe por onde andara
e o que soubera.
Tentou consolar-me com frases afectuosas e quis,
sobretudo, convencer-me de que não devia desesperar.
- Se teus pais falaram com Barberin, hão-de se
inquietar por não terem notícias dele e vão procurar
saber do seu paradeiro; naturalmente irão ao hotel
do Cantal; hospedamo-nos lá, e pronto! É só questão
de esperar uns dias e mais nada.
Fora o que a velhota de cabeça trémula me dissera;
todavia aquelas palavras na boca de Mattia tomavam outra
importância: evidentemente que era
só questão de esperar algum tempo. Como eu tinha
sido tolo em desanimar!
Então, sentindo-me um pouco mais calmo, contei
a Mattia o que soubera acerca de Garofoli.
- Mais três meses! - exclamou ele.
E principiou a dançar e a cantar no meio da rua.
Subitamente, deteve-se e aproximou-se de mim.
- Vê a diferença que existe entre a tua e a minha
Família! Tu, cheio de desgosto porque não sabes da tua, e eu a
cantar porque a minha desapareceu.
- Um tio não é Família, é, um tio como o
teu; se perdesses a tua Irmã Cristina, dançarias de
prazer?
- Oh! Não digas semelhante coisa!
- Então, Já vês.
É possível que o hotel do Cantal fosse uma casa
honesta, mas não podia ser mais feia, e, quando nos
vimos com uma candeia fumarenta numa água-furtada, tão
estreita que um de nós tinha de se sentar na cama quando o
outro queria ficar de pé, pensei que não era num

quarto daquele género que eu esperara deitar-me. E os lençóis


de algodão encardidos, como se pareciam tão pouco com as belas
roupas de que a mãe Barberin me falara!
O pedaço de pão barrado de queijo da Itália que
tivemos para a ceia era também muito diferente do
festim que eu imaginara poder oferecer a Mattia.
Mas, enfim, não estava tudo perdido, tinha apenas
de esperar.
E foi com este pensamento que adormeci.

CAPÍTULO 32.

INVESTIGAÇõES.

LoGo na manhã seguinte escrevi à mãe Barberin


para lhe transmitir o que soubera, e Isso, para
mim, não foi trabalho fácil.
Como falar do defunto marido? Ela gostava bastante do seu
Jerónimo; tinham vivido juntos durante muitos anos, e
ficaria penalizada se eu não partilhasse do seu desgosto.
Por fim, conforme pude, e com repetidos protestos
de afeição, consegui chegar ao fim do papel. No caso
da minha Família lhe escrever a fim de saber notícias de
Barberin, pedia-lhe que me avisasse logo, e principalmente me
remetesse a morada que lhe
dessem, enviando-a para o hotel do Cantal, Paris.
Cumprido este dever, tinha ainda outro a resolver
para com o pai de Lise, e esse também me era penoso-pelo menos
sob certo aspecto. Quando em Dreuzy eu dissera a Lise que o
meu primeiro passeio
seria para ir visitar o pai prisioneiro, explicara-lhe
que, se a minha Família fosse rica, como eu esperava,
lhe pediria que pagasse a dívida do pai, e por Isso só
iria à prisão para o pôr em liberdade e o trazer
comigo. Que decepção ir de mãos vazias à prisão
tornar a ver o pai Acquin sem poder fazer nada
por ele, absolutamente como quando nos havíamos
separado!
Felizmente, tinha a dar-lhe notícias e beijos de
Lise e de Aleixo, e a sua alegria paternal abrandaria
as minhas tristezas; pelo menos sempre lhe prestava
esse serviço.
Mattia, que desejava ardentemente visitar uma
prisão, acompanhou-me; aliás eu tinha empenho em
que ele conhecesse aquele que durante dois anos tão
bom fora para mim.
Sabia- agora quais os meios que se empregavam
para penetrar na cadeia de Clichy e por isso não
fiquei tanto tempo defronte do portão como da primeira vez que
ali fui. Mandaram-nos entrar no parlatório e daí a pouco
chegou o pai; ainda na porta, estendeu-me os braços.
- Ah! Meu bom rapaz! - disse-me ele, abraçando-me.
Falei-lhe logo delise e de Aleixo e, na altura em
que lhe quis explicar a razão por que não fora a casa
de Estefânia, interrompeu:
- E os teus pais?
- Pois.Já sabe?
Então contou-me que tivera a visita de Barberin
quinze dias antes.
- Ele morreu - disse-lhe eu, cortando-lhe a palavra.
Declarou-me que Barberin se lhe dirigira a fim de
saber do meu paradeiro; quando chegara a Paris,
Barberin fora a casa de Garofoli, mas não o encontrara, bem
entendido; então tinha ido procurá-lo muito longe, na
província, à prisão onde Garofoli
estava encarcerado, e este dissera-lhe que depois da
morte de Vitalis eu fora recolhido por um jardineiro
chamado Acquin. Na Glacière, Barberin soubera que
esse jardineiro se achava preso em Clichy. Veio então
ali e o pai disse-lhe que eu percorria a França nessa
altura, de forma que não sabia ao certo onde estaria.
Não havia dúvida que eu passaria em qualquer ocasião
pela casa dos filhos e por isso o pai Acquin lembrou- se de me
escrever para Dreuzy, Varses, Esnandes e
Saint-Quentin; se não recebera a carta dele fora
decerto porque eu partira já quando ela chegou.
- E que lhe disse Barberin acerca da minha Família?
- Pouca coisa: teus pais depois de descobrirem
no comissariado da polícia do bairro dos Inválidos
que o filho abandonado na Avenida de Breteuil fora
recolhido por um operário de Chavanon chamado
Barberin, procuraram-te em casa dele; como não te
encontrassem, pediram-lhe que os auxiliasse nas
suas buscas.
- E não lhe disse o nome deles, nem de que terra
eram?
- Quando o interroguei sobre esse assunto, respondeu-me
que me esclareceria mais tarde. Disse-lhe qual a nossa
derradeira esperança, e ele confirmou-a com bons argumentos.
- Visto que teus pais souberam descobrir Barberin em
Chavanon e que Barberin soube dar com Garofoli e comigo,
hão-de encontrar-te no hotel do Cantal; deixa-te ficar lá.
Estas palavras foram-me simpáticas e fizeram-me
ficar outra vez satisfeito: falou-se então de Lise, de
Aleixo, da inundação da mina.
- Que horrível profissão! - comentou ele quando
cheguei ao fim da narrativa. - E dizer que o meu
pobre Aleixo trabalha nesses buracos! Ah! Como era
mais feliz se estivesse a cultivar os seus goivos!
- Isso há-de voltar - disse eu.
- Deus te oiça, meu filho.
Estive vai não vai para lhe dizer que a minha
Família o faria sair da prisão, mas pensei que não
devia contar com grande antecedência as coisas que
eu me propunha fazer e limitei-me a afirmar que
dentro em pouco ele estaria em liberdade e rodeado
de todos os filhos.
- Enquanto esperamos por esse belo momento
- disse-me Mattia ao chegarmos à rua - sou de opinião
que aproveitemos o tempo e que ganhemos dinheiro.
Em Paris estou como em minha casa e conheço os
sítios bons.
Conhecia tão bem os sítios bons - praças públicas,
pátios particulares, cafés - que, antes de nos deitarmos,
contámos catorze francos de receita. Eu estava tão
convencido dos meus pressentimentos, que ficaria todo o dia
seguinte no hotel se Mattia me não obrigasse a sair; forçou-me
também a cantar
e a tocar, e conseguimos assim onze francos.
- Se dentro em pouco não nos tornássemos ricos
por causa dos teus pais, acabávamos por enriquecer à
nossa custa, o que seria óptimo - disse Mattia a rir.
Decorreram assim três dias sem que houvesse nada
de novo e sem que a criada do hotel respondesse às
minhas perguntas senão com o seu eterno estribilho:
«Ninguém veio saber de Barberin e não recebi
nenhuma carta para ele nem para si». Mas ao quarto
dia entregou-me finalmente um sobrescrito.
Era a resposta que a mãe Barberin mandara
escrever, visto ser analfabeta. Dizia-me que fora prevenida da
morte do marido e que pouco antes recebera deste uma carta que
ela me enviava, por talvez me ser útil pelo facto de conter
informações acerca
da minha Família.
- Depressa, depressa - exclamou Mattia -, vamos ler a
carta de Barberin.
Foi com as mãos trémulas e o coração oprimido
que desdobrei o papel:

Minha querida mulher:

Estou no hospital, tão doente que acho não me


levantarei mais. Se eu tivesse forças para isso, contar-te-ia
como adoeci; mas não servia de nada; o melhor é falar-te
do que é mais urgente. Quero dizerte que, se eu não escapar,
deverás escrever para Greth ancl Galley, Green-Square,
Lincolns-Inn, Londres; são os advogados encarregados de
procurar Remi. Farás saber a eles que só tu é que podes dar
noticias do pequeno, e tem cuidado em que te paguem
bem as informações. É preciso que esse dinheiro
te faça -viver feliz na velhice. -Escreve a um tal Acquin,
antigo jardineiro que está agora preso na cadeia de
Saint-Clichy em Paris, para saber do paradeiro do
garoto. Pede ao senhor prior que te escreva todas as
cartas, pois, neste assunto, não te deves fiar em
ninguém. Não faças nada antes de saber se morri.
Beijo-te pela derradeira vez.

Barberin.

Não acabara ainda de ler a última palavra quando


Mattia se levantou, dando um pinote.
- Vamos para Londres! - exclamou.
A leitura da carta havia-me comovido tanto que
olhei para Mattia sem compreender o que ele queria dizer.
- Pois se Barberin na carta diz que são advogados
Ingleses os que estão encarregados de te procurar, Isto
significa que teus pais são ingleses, não é verdade?
- Mas...
- Aborrece-te ser inglês?
- Antes queria ser compatriota de Lise.
- E eu antes queria que fosses Italiano.
- Se sou Inglês, sou do mesmo país de Artur e da
Senhora Milligan.
- Se és inglês? Mas está-se a meter pelos olhos
dentro: se teus pais fossem franceses não Iam recorrer a
advogados ingleses para procurarem em França o filho que
perderam. E visto seres inglês o melhor meio de te aproximares
de teus pais é Irmos à Inglaterra.
- E, se eu escrevesse a esses advogados?
- Para quê? A gente entende-se melhor a falar
do que a escrever. Embarca-se em Bolonha, em navios que vão
ter a Londres, e Isso não custa caro. -Nunca estiveste em
Londres?
- Bem sabes que não; mas havia no circo Gassot
dois clowns que eram ingleses; falavam às vezes de
Londres e ensinaram-me muitas palavras inglesas.
Quando chegarmos a Londres, sirvo-te de guia.
- Eu também aprendi inglês com Vitalis.
- Pois sim, mas já foi há três anos e decerto
esqueceste, enquanto que eu ainda sei: verás.
- Partamos - disse-lhe eu.
- Sempre queres?
Em dois minutos afivelámos sacos e descemos, já
prontos para a viagem.
Quando nos viu assim equipados, a dona do hotel
começou com grandes exclamações:
- O senhor (o senhor era eu) não espera então
por seus pais? Seria muito mais prudente; e depois
os pais veriam como o senhor foi tão bem tratado.
Mas não era esta eloquência que me podia reter;
depois de pagar a dormida, dirigi-me para a rua onde
Mattia e Capi me esperavam.
- Não me deixa a sua morada? - perguntou a velha.
De facto, talvez fosse ajuizado deixar o meu endereço;
escrevi-o no livro.
- Em Londres! - exclamou
ela. - Dois miúdos para Londres! A viajarem por mar!
Antes de irmos para Bolonha, fomos fazer as
nossas despedidas ao pai Acquin.
Ficou todo contente ao saber que eu Ia- encontrar
a minha Família, e eu tive o prazer de lhe dizer e
repetir que não tardaria a vir com meus pais para
lhe agradecer.
- Até à vista, meu rapaz, e sê feliz. Se não voltares
tão depressa como pensas, escreve-me.
- Hei-de voltar.
Nesse dia fomos sempre a seguir até Moisselles,
onde pernoitámos numa herdade, porque precisávamos economizar
o dinheiro para a nossa travessia. Mattia dissera-me que não
era caro, mas quanto custaria?
Gastámos oito dias no trajecto de Paris a Bolonha
porque fizemos umas curtas paragens nas principais
cidades que encontrámos - Beauvais, Abeville,
Montreuil-sur-Mer - a fim de dar alguns espectáculos e
reconstituir o nosso capital.

Quando chegámos a Bolonha possuíamos ainda


trinta e dois francos, Isto é, muito mais do que precisávamos
para a passagem.
O barco de Londres partia no dia seguinte às
quatro da manhã; ás três e meia estávamos a bordo
e instalámo-nos o melhor que pudemos junto duns
caixotes empilhados que nos protegiam um pouco do
vento norte, húmido e frio.
À claridade de algumas lanternas fumarentas,
vimos carregar o navio; gemiam as roldanas, estalavam as
caixas que desciam para o porão, e os marinheiros praguejavam
de tempos a tempos com voz rouca; mas, o que dominava o
tumulto era o ruído do vapor que se escapava da máquina em
flocozinhos brancos. Tocou um sino, as amarras tombaram na
água; estávamos a caminho, a caminho da minha pátria.
Eu dissera muitas vezes a Mattia que nada havia
tão agradável como um passeio de barco: deslizava-se pela água
sem ter consciência do percurso que se fazia, era realmente
encantador, um sonho.

Quando eu falava assim, pensava no Cisne e na


viagem do canal do Sul; mas o mar é muito diferente de um
canal. Logo que saímos do porto o barco pareceu enfiar-se pelo
mar dentro, depois levantou-se, mergulhou novamente pela água
abaixo e assim sucessivamente quatro ou cinco vezes,
movendo-se como um baloiço enorme.
- É fresco o teu deslizar na barra - comentou Mattia.
Não soube o que lhe havia de responder. Pois se
eu ignorava o que era uma barra!
Mas não foi só a saída da barra que fez balançar
o navio, foi também o mar que, no largo, se achava

bastante picado.
De súbito, Mattia, que já não falava há bocado,
levantou-se bruscamente.
- Que tens? - perguntei-lhe.
- É que isto está a dançar muito e eu tenho náuseas.
- É o enjoo.
- Isso sei eu.
Alguns minutos depois correu a encostar-se à
amurada do navio.
Quando amanheceu, -uma manhã pálida, enevoada e sem sol -
viam-se altos penedos esbranquiçados, e aqui e ali
distinguiam-se barcos imóveis e sem velas. Pouco a pouco o
balanço diminuiu e o
nosso navio flutuou na água tranquila quase tão
docemente como num canal. Já não estávamos no
mar, e de cada lado, muito ao longe, percebíamos
margens arborizadas através da névoa matinal;
entráramos no Tamisa.
- Eis-nos na Inglaterra - disse eu a Mattia.
Ele porém recebeu mal esta boa nova e deitou-se
ao comprido no convés, replicando:
- Deixa-me dormir.
Como eu não enjoara durante a travessia, não
tinha vontade de descansar; acomodei Mattia para
que ele estivesse ali o melhor possível e, trepando
para os caixotes, sentei-me no mais elevado com Capi
sobre os Joelhos.
De lá eu dominava o rio e podia ver para todos os lados;
à direita estendia-se um grande banco de
areia que a espuma franjava de branco, e à esquerda
parecia que se ia entrar de novo no mar.

Mas Isto não passava duma Ilusão; as margens


azuladas não tardaram a aproximar-se, e em seguida
mostraram-se mais distintamente amarelas e lodosas.
A meio do rio estava uma frota de navios ancorados por
entre os quais corriam vapores, rebocadores que deixavam atrás
deles longos penachos de fumo
negro.
Para que diabo Mattia queria dormir? Era melhor
que acordasse, porque tudo aquilo formava um espectáculo digno
de ser visto. Também mereciam ser observadas as margens
que
agora se mostravam nítidas, com todos os pormenores - casas
garridamente pintadas, prados muito verdes, árvores que jamais
haviam sido podadas, e
aqui e ali pontes de embarque a avançarem para
cima do lodo negro, com vestígios da maré e estacas
esverdinhadas e viçosas.

Assim fiquei muito tempo embasbacado, só pensando em ver


e admirar.

Mas eis agora que, nas duas margens do Tamisa,


as casas estão aglomeradas em longas filas vermelhas, e a
atmosfera vai escurecendo; o fumo e o nevoeiro misturam-se sem
que se saiba qual é o mais espesso; depois, em lugar de
árvores ou de animais
nos prados, é uma floresta de mastros que ali surge
de repente: são os navios.

Desço do meu posto de observação e vou buscar


Mattia; acordou, já não está enjoado nem de mau-humor, de
forma que me acompanha de boa vontade para cima dos caixotes;
ele também fica maravilliado e esfrega os olhos para ver
melhor.
Infelizmente o nevoeiro e a fumarada tornam-se
mais espessos; pouco ou nada se distingue em redor,
e quanto mais se avança menos se vê.
Por fim o navio diminui a marcha, a máquina
pára, os cabos são atirados para terra; estamos em
Londres e desembarcamos no meio de gente que nos
olha mas que não nos diz coisa alguma.
- É altura de te servires do teu inglés, caro Mattia.
E Mattia, a quem não falta descaramento, aproxima-se dum
homem gordo de barba arruivada para lhe perguntar cortesmente,
com o chapéu na mão, o caminho de Green-Square.
Tenho a impressão de que Mattia se demora muito
a entender-se com o seu interlocutor, que várias vezes
o manda repetir as mesmas palavras, mas não quero
parecer que duvido do saber do meu amigo.
Finalmente, ele volta:
- É muito fácil, é só Ir ao longo da costa; vamos
seguir o cais.
Mas não existem cais em Londres, ou por outra,
não existiam nesta época; as casas avançavam até
à água; somos então obrigados a Ir pelas ruas que
pensamos serem paralelas ao rio.
Prendo Capi com uma corda e levo-o atrás de
mim; é apenas uma hora da tarde e todavia o gás
está aceso nas lojas; a fuligem cai sobre nós.
Caminhamos, e de tempos a tempos Mattia Indaga
se ainda estamos longe de Lincolns Inn.
De súbito, quando nos imaginamos perdidos, encontramo-nos
defronte dum cemitério cheio de túmulos de pedra, tão escuros
como se os houvessem pintado com fuligem ou betume: é
Green-Square. Enquanto Mattia interroga uma sombra que
passa, eu paro a fim de evitar as fortes pulsações do
meu coração; tremo e quase nem respiro.
Sigo então Mattia e detemo-nos em frente duma
tabuleta de cobre onde se lè: Greth and Galley.
Mattia avança para puxar a sineta, porém agarro-lhe no
braço.
- Que tens? - díz-me ele. - Como estás pálido!
- Espera um bocadinho para eu retomar coragem.
Ele toca e nós entramos.
Estou de tal forma perturbado que não vejo muito
distintamente em minha volta; parece-me que penetramos num
escritório onde duas ou três pessoas,
debruçadas sobre mesas, escrevem à luz de vários
bicos de gás que ardem chiando.
É a uma dessas pessoas que Mattia se dirige, porque eu
incumbi-o de falar. Na sua conversa oiço os nomes de boy,
family e Barberin; percebo que ele explica ser eu o rapaz que
a minha família encarregou Barberin de procurar. O nome de
Barberin produz efeito: fitam-nos, e aquele com quem Mattia
falou levanta-se para nos abrir a porta.
Entramos num quarto cheio de livros e de papéis;
defronte duma escrevaninha está sentado um cavalheiro, e outro
de toga e de cabeleira, com vários papéis azuis na mão,
conversa com ele.
Em poucas palavras, o homem que nos precede
anuncia quem somos, e então os dois senhores miram-nos dos pés
à cabeça.
- Qual de você é o pequeno que Barberin recolheu? - diz
em francês o senhor Instalado defronte da secretária.
Ao ouvir falar francês, avanço um passo.
- Sou eu.
- Onde está Barberin?
- Morreu.
Os dois senhores entreolham-se e o da cabeleira
vai levando os papéis.
- Como vieram até aqui? - perguntou aquele que
começara a Interrogar-me.
- A pé até Bolonha e de barco de Bolonha a
Londres; acabámos de desembarcar.
- Barberin deu-lhes dinheiro?
- Não chegámos a ver Barberin.
- Então como souberam que deviam vir aqui?
Fiz, o mais resumidamente possível, a narrativa
que me pediam.
Foi preciso que eu contasse como fora criado por
Barberin, como este me havia vendido a Vitalis, como
tinha sido recolhido pela família Acquin depois da
morte do meu mestre, e, finalmente, a razão por que
retomara o meu antigo modo de vida de músico ambulante.
À medida que eu falava, o senhor Ia tomando
notas e olhava-me duma maneira que me constrangia; devo
acrescentar que o rosto dele era antipático, com qualquer
coisa de velhaco no sorriso.
- E quem é este rapaz? - perguntou ele apontando para
Mattia com a pena de aço, como se lhe quisesse atirar uma
flecha.
- É um amigo, um camarada, um irmão.
Pareceu-me que era a ocasião própria para Indagar o que
me oprimia desde o começo da nossa conversa.
-A minha família mora na Inglaterra?
- Pois claro. Mora em Londres, pelo menos, agora.
- Então vou vê-la?
- Dentro de alguns Instantes estará junto dela.
Vou mandá-lo conduzir lá.
E tocou a campainha.
- Mais uma coisa, meu senhor; diga-me, por
favor: tenho pai?
A custo ouvi pronunciar a resposta.
- Não só tem pai, como mãe, Irmãos e Irmãs.
- Ah! meu senhor!
Mas a porta, abrindo-se, cortou a minha efusão:
só pude voltar-me para Mattia com os olhos cheios
de lágrimas.
O advogado dirigiu a palavra em Inglês àquele
que acabava de entrar e pareceu-me compreender
que dava ordem para nos servir de guia.
Eu levantara-me.
- Ah! Já me esquecia - disse ele -, o seu pai
chama-se Driscoll.
Apesar da sua cara antipática creio que o teria
abraçado, se me houvesse dado tempo para Isso; mas,
com a mão, apontou-nos a porta e nós saímos.

CAPÍTULO 33.

A FAMíLIA DRISCOLL.

O escrevente que me devia levar a casa de meus


pais era um velhinho encarquilhado, cheio de
rugas, vestido com um fato preto coçado e lustroso,
e engravatado de branco.
Olhou-nos e sem nos falar fez «psit, psit», como
se se dirigisse a cães, o que significava que devíamos
Ir atrás dele e não o perder de vista.
Não tardámos a nos encontrarmos numa rua
larga atulhada de carros; mandou parar uma carruagem cujo
cocheiro, em vez de estar sentado no banco atrás do cavalo, ia
empoleirado lá no cimo da
parte de trás, numa espécie de toldo.
Soube mais tarde que essa variedade de carruagem se chama
cab. Então o velho mandou-nos subir para o carro,
que não era fechado à frente, e, por meio de um
buraquinho aberto na capota, entabulou um diálogo
com o cocheiro; pronunciaram o nome de Bethnal-Green e pensei
que fosse o nome do bairro onde meus pais moravam; eu sabia
que green em inglês quer dizer verde e isso sugeriu-me
a Ideia de que esse bairro devia ter belas árvores, o que,
como é natural, me era agradável; com certeza, seria muito
diferente das feias ruas de Londres tão escuras e
tristes que havíamos atravessado ao chegar; coisa
tão linda, uma casa no meio de um jardim rodeado
de árvores!
A discussão foi bastante demorada entre o nosso
guia e o cocheiro; ora se erguia um até ao buraquinho para dar
explicações, ora era o outro que parecia querer precipitar-se
do assento por aquela estreita abertura para dizer que não
compreendia absolutamente nada do que pediam. Mattia e eu
estávamos metidos num canto com
Capi no colo, e, ao ouvir a discussão, eu pensava que
era realmente espantoso que um cocheiro não conhecesse um
local tão bonito como devia ser Bethnal-Green; haveria muitos
bairros verdes em Londres? Era de admirar, pois os que víramos
até aí pareciam-nos antes bairros de fuligem. A carruagem
roda depressa pelas ruas largas,
depois por outras ruas estreitas e outra vez mais
largas, mas o nevoeiro é tão denso que quase não
vemos nada em redor; começa a fazer frio e todavia
sentimos certo mal-estar, como se sufocássemos.
Em vão arregalo os olhos, pouco mais vejo do que
as luzes vermelhas do gás que ardem no nevoeiro,
como numa espessa nuvem de fumo; a custo se distinguem as
lanternas das carruagens e de vez em quando paramos para não
atropelar os transeuntes
que enchem as ruas.
E a carruagem continua a rodar; há já muito
tempo que saímos dos escritórios de Greth and Galley
e isto confirma a ideia de que meus pais moram no
campo; certamente não tardaremos a ver parques.
Em vez de chegarmos ao campo, entramos em ruas
ainda mais estreitas e ouvimos o apito de comboios.
Então peço a Mattia que pergunte ao nosso guia se
estamos muito longe da casa de meus pais; a resposta
que Mattia me transmite é desesperante: o escrevente de Greth
and Galley disse que nunca viera a este bairro de ladrões.
Decerto Mattia engana-se; não compreendeu talvez o que o outro
lhe replicou.
Porém ele afirma que thieves, a palavra Inglesa de
que o escrevente se serviu, significa ladrões. Fico um
momento desconcertado, mas depois penso que o
escrevente receia os ladrões Justamente porque vamos entrar no
campo, e que green se aplica bem a árvores e a prados.
Comunico a minha Ideia a Mattia
e o medo do velhote dá-nos vontade de rir: como
são estúpidas as pessoas que nunca saíram das
cidades!
Mas nada nos anuncia o campo; a Inglaterra não
é pois senão uma cidade de pedra e de lama que se
chama Londres? Essa lama Inunda-nos a carruagem,
respinga-nos de manchas escuras, e um cheiro Infecto
envolve-nos há muito tempo; tudo Isto Indica, que
estamos num bairro miserável, sem dúvida o últhno
antes de chegarmos aos prados de Bethnal-Green.
Parece-me que andamos sempre de roda, e de tempos
a tempos o cocheiro diminui a marcha como se não
soubesse onde está. De súbito, pára bruscamente e o
buraquinho do toldo abre-se.

Então Inicia-se uma conversa, ou antes, uma discussão.


Mattia diz-me que o cocheiro não quer Ir mais longe porque não
conhece o caminho; pede Indicações ao escrevente e este
continua a responder que nunca veio a este bairro de ladrões;
ouvi-o pronunciar a palavra thieves. Decididamente, não
estamos em Bethnal-Green.
A discussão prossegue pelo buraco e é com Igual
cólera que o cocheiro e o velhote lançam as suas réplicas por
essa abertura. Por fim, o escrevente, depois de haver
pago ao
cocheiro que resmunga, desce do cab, e faz-nos novamente:
«psit, psit». É claro que devemos também sair da carruagem.

De novo vamos atrás do escrevente; agora a rua


é tão estreita que, apesar do nevoeiro, vemos as casas
que a marginam. De lado a lado, há cordas, e roupas
e andrajos dependurados.
Para onde vamos? Começo a ficar Inquieto, e de
tempos a tempos Mattia olha para mim; no entanto,
não me Interroga.
Da rua passamos para uma viela, depois para um
pátio, e em seguida para outra ruazinha; as casas
parecem-me ainda mais miseráveis do que na mais
pobre aldeia de França; muitas delas são feitas de
tábuas à laia de alpendres ou estábulos e todavia
são verdadeiras moradias; mulheres em cabelo e
crianças fervilham no limiar das portas.
Quando uma débil claridade nos permite ver
qualquer coisa, reparo que essas mulheres são pálidas, de
cabelos dum louro cor de linho, caídos nos ombros, e que as
crianças estão quase nuas e a pouca
roupa que têm sobre si é esfarrapada.
o nosso guia pára; com certeza não sabe o caminho. Porém,
neste momento, aproxima-se um homem vestido com uma casaca
azul e, na cabeça, um chapéu guarnecido de coiro envernizado;
circunda-lhe o punho da manga um galão preto e branco; é um
polícia, um policeman.

Inicia-se uma conversa com ele e daí a pouco


recomeçamos a andar, precedidos do policeman;
atravessamos ruas, pátios, vielas tortuosas, e tenho
a Impressão de que aqui e ali há casas desabadas.

Finalmente detemo-nos num pátio que ao meio


tem um charco.
- Red Linon Court - diz o policeman.
Estas palavras, que eu já ouvi pronunciar várias
vezes, significam, segundo me esclarece Mattia: «Pátio do
Leão-vermelho».
Porque razão paramos? É Impossível que estejamos em
Bethnal-Green. Será neste pátio que meus pais moram? Mas
então?...

Não tenho tempo de ponderar estas perguntas que


me passam pelo espírito Inquieto; o polícia bateu
na porta duma espécie de telheiro feito de tábuas e o
nosso guia agradece-lhe: decididamente, já chegámos.
Eu estava de tal forma perturbado que não sei
quem abriu a porta, mas a partir do instante em que
entrámos num aposento vasto, Iluminado por uma
lanterna e pelo lume que ardia num fogão, lembro-me então de
tudo.
Diante desse lume, numa poltrona de palha que tinha a
forma dum nicho de santo, conservava-se, Imóvel como
uma estátua, um velho de barba branca, de cabeça
coberta com um barrete preto; defronte um do outro, mas
separados por uma mesa, estavam um homem e uma mulher; o homem
teria cerca de quarenta anos, vestia casaco de veludo
cinzento, e a sua fisionomia era Inteligente mas desagradável;
a mulher, mais nova cinco ou seis anos, tinha os cabelos
loiros caídos sobre um xaile de quadrados brancos e pretos que
se lhe cruzava sobre o peito; o seu olhar era vago, e a
Indiferença e a apatia viam-se-lhe impressas no rosto que
devia ter sido belo, e nos gestos indolentes; no quarto
encontravam-se quatro crianças, dois rapazes e duas raparigas,
todos eles loiros, dum loiro claro como o da mãe; o mais velho
dos pequenos parecia ter onze ou doze anos; a mais nova das
rapariguinhas nem teria ainda três anos e andava arrastando-se
no chão.
Dum só relance de olhos vi tudo isto, antes mesmo do
escrevente de Greth and Galley haver acabado de falar.
Que disse ele? Dificilmente o ouvi e não compreendi nada;
o nome de Driscoll - o meu nome, segundo me informara o
advogado - foi a única palavra que me chamou a atenção. Todos
os olhos se haviam voltado para Mattia e para mim, até os do
velho Imóvel; só a pequena mais nova prestava
atenção a Capi.

- Qual de vocês dois é Remi? - perguntou em


francês o homem de casaco de veludo cinzento.
Avancei um passo.
- Sou eu.
- Então, abraça teu pai, meu rapaz.
Quando eu antevira esse momento, imaginara que
Ia sentir um transporte de ternura que me faria lançar nos
braços de meu pai; essa efusão não a tive. Todavia abracei-o.
- Dá um aperto de mão a teu avô - disse-me. -
meu pai-, mas faz isso com brandura porque ele é paralítico.
Cumprimentei também meus Irmãos e a irmã mais
velha; quis pegar na mais pequenina ao colo, mas,
como estava ocupada em acariciar Capi, repeliu-me.
Ao Ir assim dum a outro, sentia-me Indignado
comigo mesmo. Pois quê!? Não me alegrava por me
encontrar enfim no seio da família?
Se houvesse encontrado meus pais num palácio
em vez de os ver assim num barracão, não experimentaria aquele
amor que algumas horas antes sentia no meu coração por um pai,
por uma mãe que eu não conhecia, amor que não podia exprimir
ao
pai e à mãe agora encontrados?

Esta ideia sufocou-me de vergonha: voltando para


junto de minha mãe, abracei-a novamente e beijei-a;
com certeza ela não compreendeu o que me provocava aquela
emoção, porque, em lugar de me retribuir os beijos, olhou-me
com o seu ar Indolente; depois ergueu os ombros e dirigiu
algumas palavras ao marido e ao pai, palavras que eu não
compreendi mas que os fizeram rir; essa Indiferença dum lado e
do outro o riso oprimiram-me o coração: parecia-me
que a minha ternura não merecia ser recebida daquela maneira.
Não me deixaram, porém, tempo para me abandonar às minhas
Impressões.
- E aquele - perguntou meu pai apontando
Mattia, - quem é?

Expliquei quais os laços que me prendiam a Mattia,


esforçando-me por pôr nas minhas palavras um
pouco da amizade que eu tinha por ele; tentei também explicar
o reconhecimento que lhe devia.
- Bem - redarguiu meu pai - o rapaz quis ver londres.
Eu Ia replicar; Mattia interrompeu-me dizendo:
- Justamente.
- E Barberin? - perguntou meu pai - Porque razão não
veio?
Contei que Barberin morrera, o que fora uma
grande decepção para mim quando chegara a Paris,
depois de saber pela mãe Barberin que meus pais me procuravam.
Então meu pai traduziu a minha mãe o que eu
acabara de dizer e pareceu-me compreender que esta
retorquiu que era muito bom ou que estava muito
bem; fosse o que fosse, o que é certo é que pronunciou várias
vezes as palavras well e good que eu conhecia. Porque motivo
estava bem ou era bom que Barberin houvesse falecido?
Foi o que perguntei a mim mesmo sem encontrar

resposta a Isso.
- Não sabes Inglês? - Indagou meu pai.
- Só sei francês e também italiano por o ter
aprendido com um mestre a quem Barberin me alugou.
- Vitalis?
- Pois sabe?
- Foi Barberin que me disse o seu nome, quando
há tempos fui a França para te procurar. Mas deves
estar cheio de curiosidade por saber a razão pela qual
não fizemos buscas para te encontrar durante treze
anos e de repente tivemos a Ideia de procurar Barberin.
- Oh! Estou muito curioso, sim senhor, muito curioso.
- Anda para junto do lume, que eu vou contar-te Isso.
Ao entrar, encostara a harpa à parede; desafivelei
o saco e fui tomar o lugar que me haviam indicado.
Então, como estendía as pernas Belas de lama e
molhadas em frente do lume, o avô fungou para o
meu lado sem dizer nada, mais ou menos como um
gato encolerizado; não precisei de outra explicação
para perceber que o Incomodava, e então retirei as pernas.
- Não faças caso - aconselhou meu pai - o velho
não gosta que se coloquem defronte do seu braseiro
mas, se tens frio, aquece-te. Ninguém se Incomode
por causa dele.
Fiquei espantado de ouvir falar assim daquele
ancião de cabelos brancos; parecia-me que, a fazer
caso de alguém, devia ser precisamente dele; conservei, pois,
as pernas debaixo da cadeira.
- És o nosso filho mais velho - disse-me meu pai.
- e nasceste um ano depois do meu casamento com
tua mãe. Quando casei com ela, havia uma rapariga
que se lhe meteu na cabeça que eu a tomaria por
mulher e a quem o meu casamento inspirou um ódio
feroz contra aquela que ela considerava como rival.
Foi para se vingar que no próprio dia em que fizeste
seis meses ela te raptou e levou para França, onde
te abandonou numa rua de Paris. Fizemos todas as
buscas possíveis, mas sem irmos a Paris, pois nunca
podíamos supor que te haviam levado para tão longe.
Não te encontrámos, e imaginávamos-te morto, perdido para
sempre, quando, há três meses, a tal mulher, atingida por uma
doença mortal, revelou toda a verdade antes de morrer. Parti
logo para França e
fui ao comissariado de polícia do bairro onde foras
abandonado. Lá disseram-me que tinhas sido adoptado por um
operário de Dreuse, o mesmo que te encontrara na rua, e
então dirigi-me a Chavanon. Barberin Informou-me que te
alugara a Vitalis, um músico ambulante, e que percorrias a
França com este. Como eu não podia ficar em França a
Investigar onde estava Vitalis, encarreguei disso Barberin e
dei-lhe dinheiro para Ir a Paris. Na mesma ocasião
recomendei-lhe que avisasse os meus advogados,
Greth e Galley, se por acaso te encontrasse. Se lhe
não dei este endereço é porque só habitamos Londres
no Inverno; durante o Verão andamos pela Inglaterra
e pela Escócia, por causa do nosso comércio ambulante, com os
carros que temos e toda a família. Compreendo que te aches
aqui estranho porque não
nos conheces e não nos entendes, como também não
percebemos o que dizes; mas espero que te habituarás depressa.
Certamente me habituaria; não era uma coisa
natural, visto que estava no seio da família, e que
todos aqueles com quem Ia viver eram meu pai, minha mãe e meus
Irmãos?
As belas roupinhas não haviam dito a verdade;
para a mãe Barberin, para Lise, para o pai Acquin,
para os que me haviam socorrido, era uma Infelicidade; eu não
podia realizar o que Idealizara, porque mercadores ambulantes,
e em especial os que moram
num barracão, não devem ser muito ricos; mas, no
fim de contas, Isso pouco importava; eu tinha família; fora um
sonho Infantil Imaginar que seria rico. a ternura vale mais do
que a riqueza; não era de
dinheiro que eu precisava, mas sim de afeição.

Enquantoescutava a narrativa de meu pai, tinham


estendido a toalha e posto a mesa: pratos com flores
azuis, e, numa travessa de metal, um grande pedaço
de carne assada com batatas.
- Vocês têm fome, rapazes? - perguntou meu pai,
dirigindo-se a Mattia e a mim.
Mattia mostrou os seus dentes brancos.
- Então vamos comer - retorquiu meu pai.
Mas, antes de se sentar, empurrou a poltrona de
meu avô para junto da mesa. Depois Instalou-se
com as costas para o lume, e começou a cortar o
roastbeef e serviu a cada um de nós uma grossa fatia
acompanhada de batatas.
Acabada a ceia, julguei que íamos passar o serão
defronte do lume; mas meu pai disse-me que esperava alguns
amigos e que nos devíamos deitar; depois, pegando numa
candeia, levou-nos para uma cocheira
anexa ao quarto onde havíamos comido: aí se encontravam duas
dessas grandes carriolas que vulgarmente servem para os
mercadores ambulantes. Abriu a porta
de uma delas e vimos que dentro estavam dois leitos
sobrepostos.
- Ali têm as suas camas - disse ele. - Durmam bem.
Tal foi a recepção que tive na família Driscoll - a minha
família!

CAPÍTULO 34.

HONRARáS PAI E MãE.

Ao retirar-se, meu pai deixara-nos a candeia, mas


trancara por fora a porta do carro; tínhamos
de deitar-nos. Foi o que fizemos o mais depressa possível, sem
tagarelar como era nosso costume todas as noites e sem
trocarmos as Impressões daquele dia
tão movimentado.
- Boa noite, Remi - disse Mattia.
- Boa noite.
Mattia tinha tão pouca vontade de falar, como eu,
e fiquei satisfeito com o seu silêncio.
Porém, não sentir desejo de palrar, não é desejar
dormir. Apagada a candeia, foi-me Impossível fechar
as pálpebras e pus-me a reflectir em tudo o que se
passara, dando mil e uma voltas na cama estreita.
Enquanto Ia meditando, ouvi Mattia, que ocupava
o leito colocado debaixo do meu, remexer-se também, o que
provava não dormir ele mais do que eu. O sono não chegou
e o decorrer das horas aumentou o vago temor que me oprimia:
de começo eu não compreendera bem a impressão que dominava
entre todas as que se me baralhavam no cérebro, mas agora
bem via que era o medo. Medo de quê? Não o sabia,
mas sentia que receava qualquer coisa. Não era de
estar deitado naquela carripana, no centro do miserável bairro
de Bethnal-Green, que eu tinha medo, Quantas vezes, na
existência, vagabunda que levara,
passara noites menos protegido do que estava naquele
momento?. Tinha a consciência de que me via abrigado de
qualquer perigo, e todavia sentia-me assustado; quanto mais
queria resistir a esse pavor, menos me tranquilizava.
Passaram-se horas umas após outras sem que pudesse saber
a quantas andava, pois nas proximidades não havia nenhum
relógio que badalasse. De súbito
ouvi bater à porta da cocheira, que dava para outra
rua do pátio do Leão Vermelho; em seguida, depois
de insistentes pancadas batidas com Intervalos regulares,
penetrou no nosso carro certa claridade. Surpreendido,
olhei em redor, enquanto Capi, que
dormia aos pés da minha cama, se erguia para ladrar; vi então
que essa claridade entrava por uma janelinha aberta na
carriola, do lado onde os nossos
leitos estavam fixados, janelinha em que eu não reparara ao
deitar-me por ter uma cortina no Interior; metade dessa fresta
ficava na altura da cama de
Mattia e outra metade na minha.
Para Capi não alvoroçar toda a casa com os seus
latidos, tapei-lhe o focinho com a mão e olhei para
fora.
Meu pai, que viera à cocheira, abrira rapidamente
e sem ruído a porta da rua e fechara-a da mesma
forma depois da entrada de dois homens que traziam
aos ombros grandes fardos.
Então pôs um dedo nos lábios a recomendar silêncio e com
a outra mão, que segurava uma lanterna de luz frouxa, apontou
o carro onde estávamos deitados; aquilo significava que não
devia fazer barulho para não acordarmos. Aquele cuidado
enterneceu-me e tive a ideia de gritar que não se
constrangessem por minha causa porque eu não dormia,
mas, como isto podia despertar Mattia que certamente já
adormecera, calei-me muito bem calado.
Meu pai ajudou os homens a descarregar os fardos e
desapareceu uns instantes para voltar com minha mãe. Na sua
ausência os dois indivíduos,
haviam desamarrado os fardos: um estava cheio de
peças de fazenda; no outro encontravam-se ceroulas,
meias, luvas e outras roupas de malha.
Percebi nessa ocasião o que tanto me espantara
de começo: aqueles homens eram comerciantes que
vinham vender as mercadorias a meu pai.
Este agarrava em cada objecto, examinava-o à luz
da lanterna e passava-o a minha mãe, que, com uma
tesoura, cortava as etiquetas e as ia metendo na
algibeira do vestido.
Aquilo pareceu-me tão estranho como a hora escolhida para
a transacção.
Enquanto procedia a esse exame, meu pai dirigia
algumas palavras em voz baixa aos homens que haviam trazido os
fardos: se eu soubesse inglês teria talvez percebido o que
eles diziam, mas só compreendi a palavra policeman várias
vezes repetida.
Depois de inspeccionado cuidadosamente o conteúdo dos
pacotes, meus pais e os dois homens saíram da cocheira para
entrar em casa e novamente recaímos na escuridão; era evidente
que eles tinham ido saldar as suas contas.
Quis convencer-me de que nada havia mais natural do que a
cena a que eu assistira, mas, apesar da minha boa vontade, não
o consegui: porque razão
aquela gente não entrara pela porta do pátio? Porque haviam
falado da polícia em voz baixa como se receassem ser ouvidos
lá fora? Porque motivo minha
mãe cortara as etiquetas às peças que comprara?
Passado certo tempo vi de novo a luz inundar o
carro e tornei a espreitar pela fresta; mas desta vez
fiz Isto contra a minha vontade, enquanto que da
primeira fora apenas um gesto natural de curiosidade.
Agora eu pensava que não devia olhar e olhava mau grado meu.
Dizia de mim para mim que seria melhor não profundar nada, e
todavia queria ver.
Meus pais estavam sozinhos; minha mãe embrulhava
rapidamente em dois pacotes os objectos trazidos e meu pai
varria um canto da cocheira; sob a are a que ele levantava com
grandes vassouradas,
apareceu daí a pouco um alçapão: como minha mãe
acabasse de amarrar os dois embrulhos, meu pai,
depois de abrir esse alçapão, desceu com eles para
uma cave, de que não vi a fundura, enquanto minha
mãe o alumiava com a lanterna; depois tornou a
aparecer sem os pacotes, fechou o alçapão e, com a
vassoura, tapou-o outra vez com a areia; acabado
Isso, foi Impossível ver onde se encontrava a entrada
da cave, tanto mais que eles deitaram palha por
cima, como havia por todo o chão da cocheira. Por
fim, saíram.
Na ocasião em que fechavam mansamente a porta
da casa, pareceu-me que Mattia se voltava na sua
cama e deitava a cabeça no travesseiro.
Teria visto o que se acabara de passar?
Não me atrevi a perguntar-lhe; já não era um
receio indefinido que me afligia; sabia agora porque
tinha medo: dos pés à cabeça sentia-me banhado de suor frio.
Fiquei assim durante toda a noite: um galo cantou na
vizinhança, anunciando a aproximação da manhã: só então
adormeci, mas com um sono ansioso
e febril povoado de pesadelos.
Despertou-me um som de ferrolhos e vi a porta
do nosso carro abrir-se; imaginando que seria meu
pai que nos vinha prevenir de que eram horas de nos
levantarmos, fechei os olhos para o não encarar.
- É teu irmão que nos dá a liberdade - disse
Mattia. - Já se foi embora.
Levantámo-nos então; Mattia não Indagou se eu
dormira bem e eu também não lhe fiz pergunta alguma.

Como ele Me fitasse em certa ocasião, desviei os olhos.


Tivémos de entrar na cozinha, mas nem meu pai
nem minha mãe se achavam lá; o avô estava em
frente do lume, sentado na poltrona, como se não se
houvesse mexido desde a véspera, e minha Irmã mais
velha, que se chamava Annie, limpava a mesa enquanto o irmão
Allen varria o quarto. Aproximei-me para lhes apertar a
mão, porém continuaram a sua tarefa sem fazerem caso de mim.
Avancei para o avô, mas ele não me deixou adiantar mais,
porque, como na véspera, assoprou para o lado.
- Pergunta a que horas verei meus pais - disse
eu a Mattia.
Mattia obedeceu-me, e meu avô, ao ouvir falar
Inglês, humanizou-se; a sua fisionomia perdeu um
pouco a horrível fixidez e consentiu em responder.
- Que diz ele? - perguntei a Mattia.
- Que teu pai saiu por todo o dia, que tua mãe
dorme e que podemos ir passear.
- Só disse isso? - Indaguei, achando muito curta
aquela tradução.
Mattia pareceu embaraçado.
- Não sei se compreendi bem o resto - confessou-me ele.
- Diz-me o que percebeste.
- Julgo que ele aconselhou que se encontrássemos
uma boa oportunidade para arranjarmos dinheiro que não a
perdêssemos, e depois acrescentou, disto estou eu certo: «Não
te esqueças da minha lição: devemos viver à custa dos
imbecis».
Sem dúvida meu avô percebia o que Mattia me
explicava, porque a estas últimas palavras fez, com
a mão que não estava paralisada, o gesto de meter
qualquer coisa no bolso e ao mesmo tempo piscou-me o olho.
- Vamos embora - disse eu a Mattia.

Durante duas ou três horas passeámos nas proximidades do


pátio do Leão Vermelho, sem nos atrevermos a afastar com
receio de nos perdermos; e, de dia, Bethnal-Green pareceume
ainda mais horrível
do que à noite: por toda a parte, nas casas e nas
pessoas, se via a miséria com tudo o que ela tem de
mais triste.
Eu e Mattia entreolhávamo-nos, mas não dizíamos nada.
Retrocedemos, e então, encontrando uma das
extremidades do pátio do Leão Vermelho, entrámos
por aí.
A minha mãe já saíra do quarto; da porta, vi-a de
cabeça apoiada sobre a mesa: pensando que estivesse doente,
corri para ela no Intuito de a beijar, visto não lhe poder
falar.
Abracei-a; ergueu a cabeça, balançando-a, e
depois olhou para mim, mas como se não me visse;
então respirei um cheiro de genebra que o seu hálito
quente exalava. Recuei, e ela deixou de novo cair a
cabeça sobre os braços estendidos na mesa.
- Gin - exclamou meu avô.
E olhou-me escarninho, dizendo algumas palavras
que não compreendi.
Primeiramente fiquei imóvel como se estivesse privado de
sentimentos, mas passados alguns segundos voltei-me para
Mattia, que me contemplava com lágrimas nos olhos. Fiz-lhe um
sinal e tornámos a sair.
Durante imenso tempo caminhámos lado a lado,
de mãos dadas, calados e andando sempre para a
frente sem saber para onde nos dirigíamos.
- Para onde queres ir? - perguntou Mattia, um
tanto inquieto.
- Não sei; para qualquer parte onde se possa conversar;
preciso de falar contigo, e, no meio de
multidão, não o poderia fazer.
Na ocasião em que Mattia me fez aquela pergunta,
chegávamos a uma rua mais larga do que as vielas
de onde vínhamos, e pareceu-me ver árvores no fim
dessa rua; dirigimo-nos para o lado delas. Era um
parque enorme com grandes arrelvados e cheio de
árvores ainda novas: um bom sítio para conversar.
A minha resolução estava tomada e eu já decidira o que ia
dizer:
- Mattia, tens de partir, de voltar para França.
- Deixar-te? Nunca!
- Eu já sabia o que me Ias responder, e fico
muito contente por me dizeres Isso, podes crer; todavia tens
de me deixar, de voltar para a França, para a Itália, para
onde quiseres, contanto que não fiques
em Inglaterra.
- E tu, para onde vais? Para onde queres que
se vá?
- Eu! Devo ficar aqui, em Londres, com a minha
família. -Não tenho a obrigação de morar com meus
pais? Toma o resto do teu dinheiro e vai-te embora.
- Não digas isso, Remi; se alguém tem de partir,
és tu.
- Porquê?
- Porque...
Não acabou a frase e desviou a vista do meu olhar
interrogador.
- Mattia, responde-me sinceramente, sem receio
de me afligir: não dormiste esta noite? Viste?
E ele, de olhos baixos e voz sufocada, disse-me: -
Não dormi.
- Que viste?
- Tudo.
- E compreendeste?
- Que aqueles que vendiam as mercadorias não
as tinham comprado. Teu pai ralhou-lhes por haverem batido à
porta da cocheira e não à da casa; e eles responderam que a
polícia os espreitava.
- Bem vês então que é preciso partires - disse eu.
- Se tenho de partir, também deves vir comigo;
essa decisão não é mais útil para um do que para o outro.

Dizendo isto, agarrou-me na mão e depois abraçou-me; os


olhos encheram-se-me de lágrimas.
No entanto, por muito comovido que estivesse,
obstinei-me na mesma Ideia:
- É preciso que partas, que voltes para França,
que vejas Lise, o pai Acquin, a mãe Barberin, todos
os meus amigos e que lhes digas a razão porque não
faço o que prometi. Explicarás que meus pais não
são ricos como pensáramos, e Isto é o bastante para
me desculparem. Compreendes, não é verdade? Eles
não são ricos, e Isto justifica tudo: não é vergonha
nenhuma não ser rico.
- Não é por eles serem pobres que queres que eu
me vá; por isso não partirei.
- Mattia, por favor não aumentes o meu desgosto, bem vês
como ele já é grande.
- Tens medo que eu um dia também chegue a
cortar as etiquetas de objectos que não foram comprados.
- Oh! Cala-te, Mattia! Por amor de Deus, cala-te!
E escondi entre as mãos o rosto vermelho de vergonha.
- Pois bem! Se receias Isso de mim - continuou
Mattia - eu receio-o também de ti, e é por esta
razão que te digo: partamos juntos, voltemos para
França para ver a mãe Barberin, Lise e os teus amigos.

- É Impossível! Os meus pais não te são nada, e


nada lhes deves; mas são meus pais, tenho obrigação
de ficar com eles.
- Teus pais i Aquele velho paralítico, teu avô!
Aquela mulher encostada à mesa... tua mãe!
Levantei-me vivamente e, em tom de ordem e não
de Imploração, exclamei:
- Cala-te, Mattia, proíbo-te que fales dessa maneira i É
de meu avô e de minha mãe que falas; devo honrá-los e
estimá-los.

- Devias, se fossem realmente teus pais, teu avô;


mas eles não são teus pais, nem o outro é teu avô, e
então tens de honrá-los e amá-los?
- Não ouviste o que meu pai contou?
- E que prova isso? ]Perderam um filho da mesma
Idade do que tu; fizeram buscas e encontraram um da
mesma Idade daquele que eles perderam; e pronto!
- Esqueces que o filho que lhe roubaram foi
abandonado na Avenida de Breteuil, e que foi aí que
deram comigo no próprio dia em que o deles se perdeu.
- E porque razão não foram abandonados dois
pequenos na Avenida de Breteuil, no mesmo dia?
- É absurdo.
- Além disso, repara que não te pareces nada com
teu pai, nem com tua mãe, e não tens cabelos loiros,
como teus Irmãos; nota que todos eles têm a mesma
cor de cabelo; porque motivo és diferente? Por outro
lado, há uma coisa muito estranha: como é que pessoas que não
são ricas gastaram tanto dinheiro para encontrar um filho? Na
minha opinião, por todas estas razões, não és um Driscoll e
não deves ficar com essa gente. Se, apesar de tudo, teimas em
ficar, eu fico contigo; mas faz favor de escrever à mãe
Barberin, pedindo-lhe que nos informe ao certo como
era a roupa que tinhas vestida quando te encontraram; depois
de termos a resposta dela, Interrogarás aquele a que chamas
pai, e então talvez comecemos a destrinçar o caso; até lá, não
me mexo, fico onde estou: se for preciso trabalhar,
trabalharemos juntos.
- E se um dia baterem na cabeça de Mattia?
Pôs-se a sorrir tristemente:
- Isso não seria o pior: as pancadas não doem
quando as recebemos por causa dum amigo.

CAPÍTULO 35.

«CAPI» PERVERTIDO.

Foi só ao anoitecer que voltámos ao pátio do Leão


Vermelho; passámos o dia a passear no lindo parque,
conversando, depois de almoçar um naco de pão que comprámos.
Meu pai regressara a casa e minha mãe estava de
pé: nenhum deles fez observações sobre a nossa demora; só
depois do jantar é que o pai nos disse que precisava de falar
a mim e a Mattia, e para esse fim
levou-nos para defronte da chaminé, o que nos valeu
um grunhido de mau humor do avô, que decididamente era feroz
em guardar a sua parte do calor do lume.
- Digam-me, como ganhavam a sua vida em França? -
perguntou meu pai.
Satisfiz-lhe o pedido.
- Assim, nunca tiveram receio de morrer de fome?
- Nunca: não só ganhávamos a vida mas até ganhámos com
que comprar uma vaca - disse Mattia com firmeza.
E por sua vez contou-lhe a aquisição da nossa vaca.
- Nesse caso, têm realmente talento? - indagou
meu pai. - Dêem-me uma amostra do que são capazes.
Agarrei na harpa e toquei uma ária, mas não foi a

canção napolitana.
- Bem, bem - comentou meu pai. - E Mattia que sabe?
Mattia tocou também um trecho de música no

violino e outro no cornetim.


Foi este último que provocou os aplausos dos pequenos,
que nos escutavam em nossa volta.
- E Capi? Que habilidades faz? Calculo que não
é só por prazer que vocês andam acompanhados de um cão; deve
ao menos ganhar o pão que come.
Eu era orgulhoso das prendas de Capi, não só por
ele mas também por causa de Vitalis; ordenei-lhe
que representasse alguma das suas peloticas e ele
obteve, principalmente das crianças, o sucesso habitual.
- Mas este cão vale uma riqueza - disse o pai.
A este cumprimento retorqui com um grande elogio
a Capi, afirmando que ele era capaz de aprender em
pouco tempo tudo o que lhe quisessem ensinar, mesmo
que fossem coisas que os cães vulgarmente não

sabem fazer.
Meu pai traduziu as minhas palavras em inglês, e
pareceu-me que acrescentava quaisquer frases que
não compreendi mas que fizeram rir toda a gente,
até o avô que me piscou o olho várias vezes e exclamou: Fíne
dog, o que significa «belo cão». Mas Capi não ficou orgulhoso
por isso.
- Sendo assim - continuou meu pai -, proponho
o seguinte... Mas antes de tudo é preciso que Mattia
declare se lhe convém ficar em Inglaterra, e se quer
morar connosco.
- DeseJo ficar com Remi - respondeu Mattia, que
era muito mais esperto do que parecia e até do que
ele mesmo pensava.

Meu pai, que não podia adivinhar o que havia de


reservado naquela resposta, mostrou-se satisfeito.
- Visto isso, - disse ele - volto à minha proposta.
Não somos ricos, e todos nós trabalhamos para viver,
no Verão, percorremos a Inglaterra, e os pequenos
vão mostrar as minhas mercadorias aos que não se
querem incomodar para virem junto de nós; mas no
Inverno não há muita coisa a fazer; enquanto estivermos em
Londres, Remi e Mattia poderão tocar música nas ruas, e não
duvido que ganhem bastante,
especialmente quando forem as festas do Natal, festas a que
chamamos waits ou veladas. Mas como não se pode desperdiçar
nada neste mundo, Capi irá dar representações com Allen e Ned.
- Capi só trabalha bem comigo - retorqui vivamente, pois
não me convinha separar-me dele.
- Aprenderá a trabalhar com Allen e Ned, estejam
sossegados, e, assim divididos, ganharão muito mais.
- Mas asseguro-lhe que ele nada fará de jeito,
e, por outro lado, as nossas receitas, de Mattia e minhas,
serão mais fracas; lucraríamos mais com Capí.
- Basta de conversas! - ordenou meu pai. - Quando digo
uma coisa, Isso tem de se fazer logo; é a regra da casa e tens
de te conformar, como toda a gente.
Não havia nada a replicar e não respondi, mas
pensei que os meus belos sonhos acerca de Capi se
realizariam tão tristemente como os meus próprios.
Íamos ser separados! Que desgosto!
Fomo-nos deitar para a carriola, mas nessa noite
meu pai não nos trancou a porta.
Quando me metia na cama, Mattia, que se demorara mais
tempo a despir-se, aproximou-se e falou-me em voz sufocada ao
ouvido:
- Vês como aquele a que chamas pai não só quer
crianças a trabalhar para ele, como também precisa
de cães para esse fim? Isto não te abre os olhos?
Amanhã vamos escrever à mãe Barberin.

Mas no dia seguinte tivemos de dar a lição a Capi,


peguei nele ao colo e docemente, beijando-o de vez
em quando no focinho, disse-lhe o que esperava dele.
Pobre cão, como me olhava ao escutar-me!
Quando meti a trela na mão de Allen, recomecei
as minhas explicações, e Capi era tão Inteligente,
tão dócil, que seguiu os meus Irmãos com ar triste, mas,
enfim, sem resistência.
Meu pai quis acompanhar-nos a um bairro onde
havia probabilidades de fazer boas receitas, e atravessámos
Londres para chegar a uma parte da cidade onde só se viam
lindas casas com pórticos, ruas monumentais marginadas de
jardins: nessas explêndidas ruas de passeios largos, não
andavam pessoas esfarrapadas e de aspecto faminto, mas sim
belas damas com vestidos flamantes, carruagens de vidros
reluzentes como espelhos, cavalos magníficos conduzidos por
Imponentes cocheiros de cabeleira empoada.
Regressámos tarde ao pátio do Leão Vermelho porque
a distância é longa do West-End a Bethnal-Green, e tive a
alegria de encontrar Capi, muito enlameado mas de bom humor.
Fiquei tão contente de o tornar a ver que, depois
de o limpar com palha Seca, o embrulhei na pele de
carneiro e o deitei na minha cama. Quem estava mais
satisfeito? Ele ou eu? Seria difícil responder.
As coisas continuaram assim durante alguns dias;
partíamos de manhã e só voltávamos à noite depois
de tocar o nosso repertório, ora num bairro ora
noutro, enquanto que por seu lado Capi ia dar representações
sob a direcção de Allen e de Ned; mas uma noite o pai disse-me
que no dia seguinte eu poderia levar Capi comigo, visto Allen
e Ned ficarem em casa.
Isso deu-nos grande prazer e prometemos, Mattia
e eu, fazer uma bela receita com capi, para que daí
em diante no-lo dessem sempre; tratava-se de reconquistar
Capi, e nenhum de nós se pouparia a Isso.
Arranjámo-lo o mais apuradamente possível logo
de manhã e, depois do almoço, pusemo-nos a caminho
do bairro onde a experiência nos ensinara que «o respeitável
público» dava dinheiro com facilidade.
Para chegar lá tínhamos de atravessar Londres da
leste a oeste passando por Holborn e Oxford Street.
Infelizmente para o êxito da nossa empresa, o
nevoeiro há dois dias que não se levantava; o céu,
ou aquilo que substitui o céu em Londres, era uma
nuvem alaranjada, e nas ruas flutuava uma espécie
de fumo cinzento que só permitia ver a alguns passos de
distância: poucos transeuntes haveria e atrás das janelas
ninguém nos escutaria, nem veria Capi;
as condições eram terríveis para a nossa receita. Por
Isso Mattia Injuriou o nevoeiro, aquele maldito fog,
sem suspeitar do serviço que ele nos prestaria alguns
Instantes mais tarde.
Caminhando velozes, com Capi na nossa peugada
- eu dizia-lhe qualquer palavrinha, o que valia mais
do que uma sólida trela - chegámos a Holborn que
como toda a gente sabe, é uma das ruas comerciais
mais frequentadas de Londres. De súbito percebi que
Capi não vinha atrás de nós. Para onde fora? Aquilo
era extraordinário! Parei num ângulo do passeio a
fim de esperar por ele e assobiei baixinho, pois não
podíamos ver ao longe. Sentia-me já inquieto, receoso de que
mo houvessem roubado, quando Capi chegou a galope, trazendo na
boca um par de meias
de lã. Abanando a cauda, colocou as patas dianteiras
de encontro a mim e apresentou-me as meias, convidando-me a
agarrar nelas; parecia todo orgulhoso, como quando conseguia
fazer as peloticas mais difíceis e vinha pedir a minha
aprovação. Isto demorou apenas alguns segundos e eu
estava
espantado com aquela cena quando, bruscamente,
Mattia pegou nas meias com uma das mãos e, com a
outra, me puxou pelo passeio fora.
- Vamo-nos depressa - disse ele - mas sem correr.
Foi só ao fim de alguns minutos que me deu a
explicação daquela fuga.

- Eu estava como tu a pensar donde vinha este


par de meias quando ouvi um homem exclamar: «Onde está o
ladrão?» O ladrão era Capi, compreendes? Sem o
nevoeiro, seríamos presos como larápios.
Compreendi o bastante; fiquei um momento sufocado: tinham
feito de Capi um ladrão - do bom, do honrado Capi!
- Voltemos para casa - disse eu a Mattia - e
leva Capi pela trela.
Mattia não replicou e regressámos ao pátio do
Leão-Vermelho, caminhando apressados.
O pai, a mãe e os filhos estavam em redor da mesa
ocupados em dobrar peças de fazenda: atirei para a
mesa o par de meias, o que fez rir Allen e Ned.
- Aí está um par de meias que Capi roubou - disse eu. -
Porque fizeram de Capi um ladrão? Suponho que isso foi a
brincar.
Eu tremia ao falar desta maneira, e todavia jamais
me sentira tão resoluto.
- E se não fosse uma brincadeira? - perguntou
meu pai - que farias tu, fazes favor de dizer?
- Amarraria uma corda ao pescoço de Capi, e,
embora goste muito dele, deitava-o a afogar no Tamisa: não
quero que Capi se transforme num ladrão, como também não o
quero ser; se adivinhasse que isso podia acontecer um dia,
atirava-me já ao rio com ele.
Meu pai encarou-me fixamente e fez um gesto de
cóleracomo para me bater; os olhos dele faiscavam,
mas não baixei os meus; pouco a pouco o rosto contraído
distendeu-se-lhe.
- Tiveste razão em julgar que se tratava de uma
brincadeira, - disse ele. - E para que isso não se repita,
daqui em diante, Capi só sairá contigo.
CAPÍTULO 36.

AS LINDAS ROUPINHAS MENTIRAM.

A todas as minhas tentativas de amizade, Allen e


Ned só me responderam com uma antipatia
desdenhosa, e tudo o que quis fazer por eles foi mal
acolhido; evidentemente não me consideravam como Irmão.
Sem irmãos, gostaria de ter Irmãs; mas Annie, a
mais velha das raparigas, não me testemunhava melhores
sentimentos do que os outros; mostrava também desdém por mim e
não se passava um dia em que ela não me pregasse uma partida
da sua lavra,
no que, devo dizer, era muito engenhosa.
Repelido por Allen e por Ned, repelido por Annie,
só me restava a pequena Kate que, com os seus três
anos, era excessivamente nova para entrar em sociedade com os
irmãos; consentira em deixar-se acariciar por mim, no
princípio, porque eu fazia habilidades com Capi, e mais tarde,
quando Capi me foi entregue, porque eu lhe levava chocolates,
bolos e
laranjas que nas representações as crianças nos
davam com ar majestoso, dizendo: «Para o cão». Oferecer
laranjas a um cão não era coisa muito sensata, mas eu
aceitava-as reconhecido, pois permitiam-me ganhar as boas
graças de Miss Kate.
Assim, de toda a minha família por quem eu sentia tanta
ternura quando desembarcara em Inglaterra, só a miúda Kate
permitia que eu a estimasse; o avô continuava a cuspir
furiosamente para o meu
lado todas as vezes que eu tentava aproximar-me
dele; meu pai só se preocupava comigo à noite para
me pedir contas da receita que fizéramos durante
o dia; minha mãe era como se não existisse; Allen,
Ned e Annie detestavam-me. Só Kate se deixava
acarinhar, e apenas pela razão de as minhas algibeiras estarem
cheias. Que decepção!

Por isso, no meio do meu desgosto, e se bem que


tivesse repelido ao princípio as suposições de Mattia,
acabei por pensar que, se realmente eu fizesse parte
da família, mostrariam por mim outros sentimentos
que não aqueles que me testemunhavam tão abertamente.

Quando Mattia me via sob a Influência destes tristes


pensamentos, percebia muito bem o motivo que mos provocava, e
então dizia, como se falasse consigo mesmo..
- Tenho curiosidade de saber qual a resposta da
mãe Barberin.
]Para ter essa carta que me devia ser dirigida para
a «posta restante» havíamos mudado o nosso itinerário e, em
vez de irmos a Holborn por West-Smlth Field, descíamos até ao
correio. Durante muitos dias fizemos esse percurso
inutilmente, mas, por fim, foi-nos entregue a carta tão
ansiosamente esperada.
O correio geral não era local favorável à leitura;
fomos para o recanto de uma ruazinha próxima, o
que me deu tempo de acalmar um pouco a comoção,
e então abri a carta da mãe Barberin, isto é, a carta
que o pároco de Chavanon escrevera por ela:

Meu querido Remi

Fiquei muito surpreendida e triste com as notícias


que me deste, pois pelo que o meu pobre Jerónimo
me dizia, tanto depois de te encontrar na avenida de
Breteuil como depois de conversar com a pessoa que
te procurava, imaginei que teus pais fossem criaturas
abastadas.
Esta Ideia era-me confirmada pela maneira como
te apresentavas vestido quando Barberin te trouxe
para Chavanon, e que dizia bem claramente que as
tuas roupinhas eram parte do enxoval de uma
criança rica. Pedes-me que te explique como eram
essas roupas com que estavas vestido: posso informar-te
facilmente porque conservei tudo com a ideia de que serviria
para te reconhecer no dia em que te
reclamassem, o que, na minha opinião, devia acontecer
forçosamente. Mas, primeiramente, devo dizer-te que não
tinhas
faixas; se alguma vez te falei de faixas foi pelo hábito em
que estou de os nenés daqui andarem embrulhados nelas; tu,
pelo contrário, estavas vestido; e vou enumerar agora as
coisas que tinhas contigo:
uma touca de renda, sem nada de especial a não ser
o seu aspecto rico e bonito; uma camisinha de cambraia
guarnecida com uma rendinha, nas mangas e na gola, um cueiro
de flanela, meias de lã brancas; sapatinhos de malha com laços
de seda; um vestido comprido também de flanela branca e
finalmente, uma ampla capa de casimira branca, com capuz,
forrada de seda, e por fora guarnecida de lindos bordados.
Não tinhas o cueiro de linho que te pertencia porque te haviam
mudado no comissariado de polícia e substituído por
outro de pano de algodão.
Devo acrescentar também que nada disto estava
marcado, -mas o cueiro de flanela e a camisa haviam
tido qualquer marca, porque os cantos onde as costumam ter
estavam cortados, o que indica que tomaram
todas as precauções para despistar qualquer
investigação.
E aqui está, meu querido Remi, tudo o que te
posso dizer. Se precisares desses objectos, manda-me
dizer, que eu tos enviarei.
Não te desconsoles, meu querido filho, por não me
poderes oferecer os belos presentes que me prometeste; a tua
vaca, comprada com o dinheiro que ganhaste, vale mais para mim
do que todas as ofertas do mundo. Tenho prazer em dizer-te que
ela continua de saúde; o leite não diminuiu, e, graças à tua
vaquinha, tenho tudo o que preciso; todas as vezes
que a vejo lembro-me de ti e do teu companheiro Mattia.
Quando puderes, escreve-me, porque me darás
muita alegria, e espero que as tuas notícias serão
sempre boas: és tão meigo e afectuoso, que hás-de
ser feliz com a tua família; pai, mãe, irmãos, hão-de
estimar-te como mereces.
Adeus, meu querido filho, beija-te afectuosamente

a tua ama.

Viúva Barberin.

Senti o coração oprimir-se quando li o fim da


carta; pobre mãe Barberin, como era boa! Porque
gostava de mim, achava que toda a gente me devia
estimar como ela.
- É uma mulher às direitas - disse Mattia. - e
lembrou-se de mim; mas mesmo que se tivesse esquecido da
minha pessoa isso não impediria que lhe agradecesse a carta;
com uma descrição tão completa, o sr. Driscoll não nos poderá
enganar quanto à enumeração das coisas que levavas quando te
raptaram. ,
Não era coisa fácil pedir a meu pai que nos
dissesse como eu estava vestido no dia em que fui
roubado.
Mas um dia em que a chuva glacial nos fizera
regressar a casa mais cedo do que habitualmente,
enchi-me de coragem e levei a conversa para o
assunto que me causava tanta angústia.
À primeira frase da minha interrogação, meu pai
olhou-me fixamente como costumava quando se sentia ofendido
com o que eu lhe dizia, mas sustentei o seu olhar mais
heroicamente do que esperava ao pensar nesse momento.
Julguei que ia zangar-se, porém nada de mau
aconteceu, e, passado o primeiro movimento de cólera,
o pai sorriu, é verdade que havia qualquer coisa de
cruel nesse sorriso, mas, enfim, era um sorriso.
- O que mais serviu para te encontrar - disse
ele - foi a descrição do fatinho que vestias quando
te roubaram: uma touca de renda, uma camisa de
linho guarnecido de rendas, um cueiro e um vestido
de flanela, meias e sapatos de lã, uma capa com capuz de
casimira branca bordada; eu contara com a marca da tua roupa
F. D., isto é, Francis Driscoll, que é como te chamas, mas a
marca foi cortada pela mulher que te roubou e que pela
precaução que teve imaginou que eu nunca mais te poderia
descobrir. Tive também de exibir o teu assento de baptismo,
que mandei copiar na tua paróquia, onde mo entregaram; ainda o
devo ter cá em casa.
Dizendo isto, e com uma complacência bastante
extraordinária nele, foi vasculhar uma gaveta e daí
a pouco trouxe um grande papel selado que me
entregou.
Fiz um derradeiro esforço:
- Se não se importa, Mattia vai traduzi-lo para eu ouvir.
- Pois sim.
Dessa tradução, que Mattia fez conforme pôde, só
se apurava que eu nascera em 2 de Agosto e que era
filho de Patrick Driscoll e de Margaret Grande, sua
mulher.
Que mais informações havia de querer?
Todavia Mattia não se mostrou satisfeito, e à
noite, quando já estávamos na carriola, inclinou-se
para o meu ouvido, como fazia sempre ao querer
confiar-me algum segredo.
- Queres que te diga uma coisa que se me meteu
na cabeça? É que tu não és filho de Master Driscoll
mas sim a criança roubada por Master Driscoll.
Tentei replicar, mas Mattia já se enfiara na cama

CAPÍTULO 37.

O TIO DE ARTUR.

SE eu estivesse no lugar de Mattia, talvez fantasiasse


tanta coisa como ele, mas, na minha situação,
as suas liberdades de pensamento eram-me interditas.
Tratava-se de meu pai.
E, quando Mattia queria que compartilhasse das
suas suspeitas, eu tinha a obrigação de lhe impor
silêncio.

Era o que eu tentava, mas Mattia possuía a sua


teimosia, e eu nem sempre conseguia vencê-la.
E então, mau grado meu, devia ouvir as suas
perguntas:

Por que razão Allen, Ned, Annie e Kate tinham


cabelos loiros e os meus não eram dessa cor?
Por que motivo toda a gente na família Driscoll,
com excepção de Kate que não sabia o que fazia, me
testemunhava maus sentimentos, como se eu fosse
um cão sarnento?
Como era que pessoas pobres vestiam os filhos com
rendas?

A todas estas perguntas só podia dar uma resposta que era


também uma interrogação:
-Por que razão a família Driscoll me procurara
se eu não fosse seu filho? Por que teria dado dinheiro
a Barberin e a Gret and Galley?
A isto, Mattia via-se obrigado a confessar que não
sabia retorquir.
No entanto, não se declarava convencido.
- Compreendo que isso a que chamas respeito
para com a família te prenda um pouco, mas não te
devia paralisar completamente.
- Que queres que eu faça?
- Quero que voltemos para França.
- É impossível.
- Porque o dever te retém junto da família; mas
se essa gente não te for nada, o que é que te retém?
Discussões desta natureza só podiam dar o resultado de me
tornar ainda mais infeliz. Como a dúvida é terrível!
E, apesar de eu não a querer, ela invadia-me também.
Aquele pai seria de facto meu pai? Aquela mãe seria minha mãe?
Aquela família seria a minha?
Quem me esclareceria? De onde me viria a luz?
Como poderia saber a verdade?
Entretanto era preciso cantar, tocar música de
dança, e fazer caretas risonhas, quando me sentia
tão profundamente triste.
Os domingos eram os meus melhores dias, porque
no domingo não se toca música nas ruas de Londres,
e eu então podia entregar-me livremente à melancolia,
passeando com Mattia e Capi. Num desses domingos, quando
me preparava para
sair com Mattia, meu pai reteve-me em casa com o
pretexto de que ia precisar de mim durante o dia, e
mandou Mattia passear sozinho; o avô ainda não
descera do quarto; minha mãe estava fora de casa
com Kate e Annie, e meus irmãos andavam pelas
ruas; fiquei só eu com o pai.
Decorreu uma hora, quando por fim bateram à
porta; meu pai foi abri-la e voltou acompanhado de
um senhor que não se parecia nada com os amigos
que ele recebia habitualmente; aquele era realmente
o que na Inglaterra se chama um gentleman, um
autêntico cavalheiro, elegantemente vestido e de
fisionomia altiva, com um leve ar de enfado; teria
uns cinquenta anos. O que mais me impressionou
foi o sorriso que lhe descobria os dentes brancos e
aguçados como os dum cãozinho; aquilo era tão
característico que a gente ficava a pensar se seria
um sorriso que lhe contraía assim os lábios ou se um
desejo de morder.
Enquanto falava com meu pai em Inglês, voltava
a cada instante os olhos para o lado onde eu estava,
mas, se por acaso encontrava os meus, cessava logo
de me observar.
Depois de alguns minutos de conversa, abandonou o inglês
pelo francês, que ele falava com facilidade e quase sem
sotaque:
- Aquele é que é o rapazinho a que aludiu? - disse ele a
meu pai, apontando para mim. - Parece-me
robusto.
- Responde - ordenou-me meu pai.
- Vai bem de saúde? - indagou o gentleman.
- Vou bem, obrigado.
- Nunca esteve doente?
- Tive uma pneumonia.
- Ah! Ah? E como arranjou isso?
- Foi por haver dormido sobre a neve, numa
noite de frio horrível; a pessoa que estava comigo,
morreu; eu, apanhei a pneumonia.
- Aconteceu isso há muito tempo?
- Há três anos.
- E desde então, não se tem ressentido da doença?
- Não.
- Nem fadiga, nem cansaço, nem suores nocturnos.
- Nunca; quando me sinto cansado é porque
andei muito, mas não adoeço por causa disso.
- E suporta facilmente a fadiga?
- Que remédio tenho eu!

Ergueu-se da cadeira e aproximou-se de mim;


apalpou-me os braços e colocou-me a mão sobre o
coração; por fim encostou-me a cabeça no peito e
nas costas e mandou-me respirar fundo; também me
disse para tossir.
Feito Isto, olhou-me atento durante muito tempo e
foi nessa altura que pensei que ele devia gostar de
morder, de tal forma o seu sorriso era assustador.
]Sem me dizer nada, voltou a conversar em inglês
com meu pai, e daí a instantes saíram os dois, não
pela porta da rua, mas pela da cocheira.
Quando me encontrei só, perguntei a mim mesmo
o que significaria o interrogatório do gentleman;
quereria tomar-me para o seu serviço? Mas então
deveria separar-me de Mattia e de Capi! E, além
disso, eu estava bem decidido a não ser criado de
ninguém, fosse daquele cavalheiro que me desagradava ou de
qualquer outro mesmo simpático. Ao fim de certo tempo, o
pai voltou para dentro de
casa; declarou-me que não me empregaria como fora
sua intenção, e que, se eu desejasse, podia ir passear.
Não me apetecia nada, mas que havia de fazer
naquela casa tão triste? Tanto valia dar um passeio
como ficar para ali aborrecido.
Como chovesse, entrei na nossa carriola para ir
buscar a pele de carneiro: qual não foi a minha surpresa ao
ver ali Mattia! Ia dirigir-lhe a palavra, mas ele tapou-me a
boca com a mão e disse-me em voz baixa:
- Vai abrir a porta da cocheira; irei de mansinho
atrás de ti. Não é preciso que saibam que eu estava no carro.
Foi só na rua que Mattia resolveu falar:
- Sabes quem é o senhor que veio visitar teu pai
há bocadinho? James Milligan, o tio do teu amigo Artur.
Como eu ficasse estarrecido no meio do caminho,
ele agarrou-me no braço e fez-me andar, enquanto continuava:

- Aborreci-me a passear sozinho nestas ruas tristonhas,


num domingo tão triste, e entrei no carro para me deitar e
dormir uma soneca; mas não consegui adormecer. Teu pai,
acompanhado de um senhor, entrou na cocheira, e eu ouvi a
conversa deles ,sem querer: «É forte como uma rocha», disse o
tal
senhor; «qualquer outro teria morrido, e ele só apanhou aquela
pneumonia, de que ficou ileso». Nessa altura vi que se tratava
da tua pessoa e então escutei
com atenção. Mas mudaram logo de assunto. «Como
vai o seu sobrinho?» perguntou teu pai. «Está melhor,
ainda escapa desta vez. Há três meses, os médicos
não davam nada por ele; mas a mãe salvou-o com
os seus cuidados. Ah! é uma boa mãe, a Sr.a Milligan».
Como deves calcular, a este nome apurei o ouvido.
«Então se o seu sobrinho está melhor», continuou
teu pai, «todas as suas precauções são inúteis?» «Por
agora talvez», respondeu o senhor; «nem mesmo
quero admitir que Artur viva: seria um milagre, e
hoje em dia já não há milagres. É preciso que na
ocasião em que ele morrer eu esteja livre de qualquer
reivindicação e que o único herdeiro seja eu, James
Mlligan.» «Descanse», disse teu pai, «descanse que eu
respondo por isso.» Conto consigo», retorquiu o tal
cavalheiro. E acrescentou algumas palavras que não
compreendi muito bem mas que me pareceram ser
mais ou menos isto que te vou traduzir, embora não
lhe veja sentido: «Agora veremos o que se tem a
fazer». E foi-se embora.
A minha primeira ideia ao ouvir aquela narrativa
foi regressar a casa e perguntar a meu pai a morada
do senhor Milligan, a fim de ter notícias de Artur e
da mãe; mas vi logo que isto seria uma loucura: não
era a um homem que esperava com impaciência a
morte do sobrinho que se devia perguntar notícias
desse seu parente. Além disso, não seria imprudência
dar a entender ao senhor Milligan que o ouvíramos?
Artur estava vivo e melhorava. Presentemente, a
alegria dessa boa nova bastava para mim.

CAPÍTULO 38.
VÉSPERAS DE NATAL.

Só falávamos agora de Artur, da Sr.a Millilgan e de


James Milligan.
Onde estariam Artur e a mãe? Onde poderíamos
procurá-los, encontrá-los?
A visita de James Milligan Inspirara-nos um projecto e
sugerira-nos um plano cujo êxito nos parecia assegurado: visto
que o tio de Artur viera um dia ao
pátio do Leão-Vermelho, era provável que voltasse
ali segunda vez; não tinha assuntos a tratar com
meu pai? Então, quando se fosse embora, Mattia,
que era um desconhecido para ele, segui-lo-ia; saberíamos
assim a sua morada; faríamos os criados falar, e talvez nos
levassem onde estava Artur.
Isto não se nos afigurava impossível.
cOm belo plano não só tinha a vantagem de poder
encontrar-se Artur, mas também me tirava presentemente da
angústia em que eu andava. Se quiséssemos esperar por
James Milligan e saíssemos de manhã para só entrar à noite,
como fazíamos desde que estávamos em Londres, teria sido uma
Ideia pouco inteligente: mas aproximava-se o tempo
em que em vez de Irmos tocar pelas ruas durante o
dia, iríamos tocar pela noite adiante, pois só de noite
é que têm lugar os Waits, isto é, os concertos do Natal.
Nessa ocasião, ficando em casa nas horas do dia, um
de nós vigiaria a chegada do tio de Artur e acabaríamos por
surpreendê-lo.
- Se soubesses como desejo que encontres a
Sr.a Milligan! - disse-me Mattia numa tarde.
- Porquê?
Hesitou uns momentos:
- Porque foi muito boa para ti.
E acrescentou:
- E também porque talvez te faça encontrar teus pais.
- Mattia!
- Não gostas que eu diga isto; asseguro-te que
não tenho culpa, mas é-me impossível admitir um
só minuto que sejas da Família Driscoll. Não me refiro só aos
cabelos cor de linho. Se fosses um Driscoll não terias
hesitado em ficar com as meias de lã para quando precisasses
delas e tivesses as algibeiras vazias, o que já te sucedeu
mais de uma vez. O que é que roubaste para ti enquanto Vitalis
estava preso? Meu pai era músico, e eu sou-o também; é
absolutamente natural; tu, parece-me muito natural que sejas
um gentleman, e tenho a certeza de que o serás quando
encontrarmos a Sr.a Milligan.
- E como?
- Tenho cá a minha ideia.
- Dizes-me que ideia é essa?
- Oh! Não!
- Porquê?
- Porque talvez seja uma ideia tola...
Não insisti porque eu também tinha uma ideia.
É certo que era muito vaga, muito confusa, muito
tímida, evidentemente muito mais tola do que a de
Mattia devia ser; mas precisamente por isso eu não
me atrevia a insistir com ele para que dissesse a sua:
que poderia responder se fosse Igual àquela que flutuava
indecisa como um sonho no meu espírito? E se eu não ousava
defini-la, como teria coragem de discutir com Mattia?
Nada mais havia a fazer do que esperar, e esperámos.
Entretanto continuávamos a percorrer Londres de
lés-a-lés, pois não éramos desses músicos privilegiados que
tomam posse de um bairro onde há um público que lhes pertence:
muito novatos ainda, chegados há pouco, não podíamos
instalar-nos ali como donos, e devíamos ceder lugar àqueles
que sabiam
fazer valer os seus direitos de prioridade com argumentos a
que não éramos de força a resistir.
Não podíamos competir com os grupos de músicos
negros que percorrem as ruas e a quem os Ingleses
chamam nígger-melodists; esses falsos pretos que se
vestem grotescamente de casaca e grande colarinho
onde a cabeça lhes fica envolvida como um ramalhete numa folha
de papel, eram para nós terror ainda maior do que os músicos
escoceses: logo que os víamos aparecer, ou simplesmente lhes
ouvíamos o banjo, calávamo-nos respeitosamente e íamos para
longe dali, para outro bairro onde esperávamos não
encontrar nenhum dos seus ranchos; ou então esperávamos que
eles acabassem o charivari.
Num dia em que estávamos assim à espera, servindo de
espectadores, vi um deles fazer sinais a Mattia.
- Tu conhece-lo? - perguntei-lhe eu.
- é o Bob.
- Quem é o Bob?
- O meu amigo Bob do circo Gassot, um dos dois
clowns de que te falei, aquele que me ensinou o pouco
Inglés que sei.
- Não o tinhas reconhecido?
, Pudera! No circo ele enf arinhava a cara, e aqui
enfarrusca-se todo!
Terminada a representação dos nigger-melodists,
Bob aproximou-se de nós e vi então claramente como
o meu companheiro sabia fazer-se estimar: um irmão
não mostraria mais alegria no olhar e na voz do que
aquele antigo palhaço «que se vira obrigado a fazer-se
itinerant musician em consequência das dificul dades da vida»
segundo nos disse. Mas depressa nos
tivemos de separar; ele para seguir o seu grupo, nós
para irmos para um bairro onde ele não fosse; e os
dois amigos deferiram para o domingo seguinte o
prazer de contarem um ao outro o que haviam feito
desde que se não viam. Naturalmente por amizade
para com Mattia, Bob mostrou simpatizar comigo, e
dentro em pouco tivemos um amigo que, pela sua
experiência e conselhos, nos tornou a vida em Londres muito
mais fácil do que nos fora até aí. Assim que chegámos à
época do Natal; em vez
de sairmos de casa de manhã, punhamo-nos a caminho cerca das
oito da noite e íamos para os bairros previamente escolhidos.
Começávamos por frequentar os jardins públicos e
as ruas onde a circulação dos carros havia já cessado:
precisávamos de certo silêncio para o nosso concerto
penetrar através das portas fechadas e ir acordar as
crianças já adormecidas, anunciando-lhes a aproximação do
Natal, festa tão querida aos corações ingleses. Depois,
encaminhávamo-nos para as ruas mais importantes. Rodavam as
últimas carruagens levando
os espectadores dos teatros e estabelecia-se uma espécie de
sossego, que a pouco e pouco se sucedia ao ruído ensurdecedor
da tarde que findara. Então tocávamos as árias mais
melodiosas, mais suaves, aquelas que tinham carácter
melancólico ou religioso; chorava o violino, a harpa gemia, e,
quando descansávamos uns momentos, o vento trazia-nos
fragmentos de música que outros tocavam a distância; dávamos
por findo o concerto: «Meus senhores e minhas senhoras, boa
noite e feliz Natal!»

Depois, íamos mais longe recomeçar outro concerto.


E em imaginação, percorrendo as ruas, tristes
miseráveis que éramos, víamos suaves festas de família, tanto
nos solares aristocráticos como nas choupanas do pobre.
Alegre Natal para aqueles que são amados!

CAPÍTULO 39.

VÉSPERAS DE NATAL.

Só falávamos agora de Artur, da Sr.a Millilgan e de


James Milligan.
Onde estariam Artur e a mãe? Onde poderíamos
procurá-los, encontrá-los?
A visita de James Milligan Inspirara-nos um projecto e
sugerira-nos um plano cujo êxito nos parecia assegurado: visto
que o tio de Artur viera um dia ao
pátio do Leão-Vermelho, era provável que voltasse
ali segunda vez; não tinha assuntos a tratar com
meu pai? Então, quando se fosse embora, Mattia,
que era um desconhecido para ele, segui-lo-ia; saberíamos
assim a sua morada; faríamos os criados falar, e talvez nos
levassem onde estava Artur.
Isto não se nos afigurava impossível.
cOm belo plano não só tinha a vantagem de poder
encontrar-se Artur, mas também me tirava presentemente da
angústia em que eu andava. Se quiséssemos esperar por
James Milligan e saíssemos de manhã para só entrar à noite,
como fazíamos desde que estávamos em Londres, teria sido uma
Ideia pouco inteligente: mas aproximava-se o tempo
em que em vez de Irmos tocar pelas ruas durante o
dia, iríamos tocar pela noite adiante, pois só de noite
é que têm lugar os Waits, isto é, os concertos do Natal.
Nessa ocasião, ficando em casa nas horas do dia, um
de nós vigiaria a chegada do tio de Artur e acabaríamos por
surpreendê-lo.
- Se soubesses como desejo que encontres a
Sr.a Milligan! - disse-me Mattia numa tarde.
- Porquê?
Hesitou uns momentos:
- Porque foi muito boa para ti.
E acrescentou:
- E também porque talvez te faça encontrar teus pais.
- Mattia!
- Não gostas que eu diga isto; asseguro-te que
não tenho culpa, mas é-me impossível admitir um
só minuto que sejas da Família Driscoll. Não me refiro só aos
cabelos cor de linho. Se fosses um Driscoll não terias
hesitado em ficar com as meias de lã para quando precisasses
delas e tivesses as algibeiras vazias, o que já te sucedeu
mais de uma vez. O que é que roubaste para ti enquanto Vitalis
estava preso? Meu pai era músico, e eu sou-o também; é
absolutamente natural; tu, parece-me muito natural que sejas
um gentleman, e tenho a certeza de que o serás quando
encontrarmos a Sr.a Milligan.
- E como?
- Tenho cá a minha ideia.
- Dizes-me que ideia é essa?
- Oh! Não!
- Porquê?
- Porque talvez seja uma ideia tola...
Não insisti porque eu também tinha uma ideia.
É certo que era muito vaga, muito confusa, muito
tímida, evidentemente muito mais tola do que a de
Mattia devia ser; mas precisamente por isso eu não
me atrevia a insistir com ele para que dissesse a sua:

que poderia responder se fosse Igual àquela que flutuava


indecisa como um sonho no meu espírito? E se eu não ousava
defini-la, como teria coragem de discutir com Mattia?
Nada mais havia a fazer do que esperar, e esperámos.
Entretanto continuávamos a percorrer Londres de
lés-a-lés, pois não éramos desses músicos privilegiados que
tomam posse de um bairro onde há um público que lhes pertence:
muito novatos ainda, chegados há pouco, não podíamos
instalar-nos ali como donos, e devíamos ceder lugar àqueles
que sabiam
fazer valer os seus direitos de prioridade com argumentos a
que não éramos de força a resistir.
Não podíamos competir com os grupos de músicos
negros que percorrem as ruas e a quem os Ingleses
chamam nígger-melodists; esses falsos pretos que se
vestem grotescamente de casaca e grande colarinho
onde a cabeça lhes fica envolvida como um ramalhete numa folha
de papel, eram para nós terror ainda maior do que os músicos
escoceses: logo que os víamos aparecer, ou simplesmente lhes
ouvíamos o banjo, calávamo-nos respeitosamente e íamos para
longe dali, para outro bairro onde esperávamos não
encontrar nenhum dos seus ranchos; ou então esperávamos que
eles acabassem o charivari.
Num dia em que estávamos assim à espera, servindo de
espectadores, vi um deles fazer sinais a Mattia.
- Tu conhece-lo? - perguntei-lhe eu.
- é o Bob.
- Quem é o Bob?
- O meu amigo Bob do circo Gassot, um dos dois
clowns de que te falei, aquele que me ensinou o pouco
Inglés que sei.
- Não o tinhas reconhecido?
, Pudera! No circo ele enf arinhava a cara, e aqui
enfarrusca-se todo!
Terminada a representação dos nigger-melodists,
Bob aproximou-se de nós e vi então claramente como
o meu companheiro sabia fazer-se estimar: um irmão
não mostraria mais alegria no olhar e na voz do que
aquele antigo palhaço «que se vira obrigado a fazer-se
itinerant musician em consequência das dificul dades da vida»
segundo nos disse. Mas depressa nos
tivemos de separar; ele para seguir o seu grupo, nós
para irmos para um bairro onde ele não fosse; e os
dois amigos deferiram para o domingo seguinte o
prazer de contarem um ao outro o que haviam feito
desde que se não viam. Naturalmente por amizade
para com Mattia, Bob mostrou simpatizar comigo, e
dentro em pouco tivemos um amigo que, pela sua
experiência e conselhos, nos tornou a vida em Londres muito
mais fácil do que nos fora até aí. Assim que chegámos à
época do Natal; em vez
de sairmos de casa de manhã, punhamo-nos a caminho cerca das
oito da noite e íamos para os bairros previamente escolhidos.
Começávamos por frequentar os jardins públicos e
as ruas onde a circulação dos carros havia já cessado:
precisávamos de certo silêncio para o nosso concerto
penetrar através das portas fechadas e ir acordar as
crianças já adormecidas, anunciando-lhes a aproximação do
Natal, festa tão querida aos corações ingleses. Depois,
encaminhávamo-nos para as ruas mais importantes. Rodavam as
últimas carruagens levando
os espectadores dos teatros e estabelecia-se uma espécie de
sossego, que a pouco e pouco se sucedia ao ruído ensurdecedor
da tarde que findara. Então tocávamos as árias mais
melodiosas, mais suaves, aquelas que tinham carácter
melancólico ou religioso; chorava o violino, a harpa gemia, e,
quando descansávamos uns momentos, o vento trazia-nos
fragmentos de música que outros tocavam a distância; dávamos
por findo o concerto: «Meus senhores e minhas senhoras, boa
noite e feliz Natal!»

Depois, íamos mais longe recomeçar outro concerto.


E em imaginação, percorrendo as ruas, tristes
miseráveis que éramos, víamos suaves festas de família, tanto
nos solares aristocráticos como nas choupanas do pobre.
Alegre Natal para aqueles que são amados!

CAPÍTULO 40.

OS RECEIOS DE MATTIA.

JAMES MiLLIGAN não apareceu no pátio do Leão-Vermelho,


ou, pelo menos, apesar da nossa vigilância, não o vimos.
Sem dizer tudo o que nos preocupava, Mattia
desabafara com o seu amigo Bob e perguntara-lhe
se não haveria meio de encontrar a morada duma
tal senhora Milligan que tinha um filho paralítico,
ou, pelo menos, a morada de James Milligan. Bob
porém respondera que seria preciso saber de que senhora
Milligan se tratava e também qual era a profissão e posição
social do senhor James Milligan, visto aquele apelido ser
usado por um certo número
de pessoas em Londres e por muitas em toda a
Inglaterra.
Nunca pensáramos nisso. Para nós, só existia
uma senhora Milligan, que era a mãe de Artur, e um
James Milligan, que era o tio daquele.
O tempo decorreu lento, muito lento; os dias e as
semanas foram passando e chegou a ocasião em que
a Família devia abandonar Londres a fim de percorrer
a Inglaterra.

As duas carripanas haviam sido pintadas de novo


e tinham-nas carregado com as mercadorias que
seriam vendidas durante o Verão.
E quando ali estávamos víamos sair da cave
grandes fardos que tinham chegado ao pátio do
Leão-Vermelho sem virem directamente das lojas
onde se costuma vender aqueles objectos.
Por fim as carriolas ficaram cheias e os cavalos
foram comprados: onde e como? Não o sei, mas o
que é certo é que eles apareceram ali e tudo se
aprontou para a partida.
E nós, que íamos fazer? Ficaríamos em Londres
com o avô que não saíra do pátio do Leão-Vermelho?
Seríamos negociantes como Allen e Ned? Ou acompanharíamos a
Família, mas como músicos, tocando o nosso repertório nas
aldeias e cidades por onde
passássemos?
Meu pai, como se achasse que ganhávamos bastante com o
violino e com a harpa, decidiu que continuaríamos músicos e
manifestou-nos a sua vontade na véspera da partida.
- Voltemos para França - disse-me Mattia - e
aproveitemos a primeira oportunidade para nos safarmos.
- E por que se não há-de fazer uma viagem pela
Inglaterra?
- Porque tenho a Impressão de que nos vai acontecer
qualquer desgraça.
- Temos probabilidades de encontrar a senhora
Milligan em Inglaterra.
- E eu acho que as temos muito mais em França...
- Bem sei que não tenho o direito de te reter
aqui. Vai-te embora. E diz a Lise...
- És tolo! Julgas que me separaria de ti quando
te sentes infeliz? Pois então, vamos lá percorrer a
Inglaterra.

Eis-nos de novo a viajar; desta vez, porém, não


sou livre de Ir para onde quero, de fazer o que me
apetece. Todavia, é com um sentimento de libertação
que deixo Londres: já não verei o pátio do Leão-Vermelho e
aquele alçapão que, mau grado meu, me atraía irresistivelmente
os olhos.
Caminhávamos atrás das carriolas, e, em vez das
exalações fétidas e doentias de Bethnal-Green, respirávamos o
ar puro das belas montanhas que atravessávamos, e que talvez
não se chamem Green, mas que têm verdura para os olhos se
deliciarem, e cantar de pássaros para deleite dos ouvidos.
No próprio dia da nossa partida, observei como se
procedia à venda daquelas mercadorias que tão baratas haviam
custado: chegáramos a uma aldeia e os carros ficaram
enfileirados na praça principal.
Abaixaram um dos lados das carripanas, formados
de vários caixilhos, e as mercadorias apareceram
assim expostas à curiosidade dos compradores.
- VeJam os preços! Vejam os preços! - gritava
meu pai. - Não encontram iguais em parte nenhuma;
as minhas mercadorias, como nunca as pago, isso
permite-me vendê-las baratas. Não as vendo, ofereço-as.
Vejam os preços! Vejam os preços!
Ouvi pessoas que tinham observado os preços dizerem ao
irem-se embora.
- Aquilo por força que são coisas roubadas.
Se essas pessoas olhassem para mim, o rubor da
minha cara ter-lhes-ia demonstrado como eram fundadas as suas
suposições. Mas, se não viram a vermelhidão da minha
cara, Mattia reparou nela, e à noite falou-me disso, embora
quase sempre evitasse aflorar francamente aquele assunto.
- Poderás suportar tamanha vergonha?
- Não digas nada a este respeito se não me
queres tornar essa vergonha ainda mais cruel.
- Não quero tal coisa. Só desejo que voltemos para
França. Vê se me compreendes: mais dia, menos dia,
a polícia vai investigar a razão por que Master Driscoll
vende as suas mercadorias tão baratas; e que sucederá então?
- Mattia, peço-te...
- Já que não queres ver as coisas como elas são,
tenho de vê-las por ti: sucederá que vão prender
todos, mesmo tu, mesmo eu, que nada fizemos.
E como provaremos que estamos Inocentes?
Aquela ideia, que nunca se me apresentara ao
espírito, foi como uma pancada que me houvessem
dado na cabeça.
- Ganhamos o nosso pão - repliquei eu, tentando
defender-me, não contra Mattia, mas contra esse
pensamento.
- É verdade, mas também é verdade que estamos
associados com gente que não ganha o seu. E só disso
quererão saber. Seremos condenados, como os outros.
Fujamos enquanto é tempo.
- Foge tu.
- Dizes sempre a mesma tolice; fugiremos juntos
ou seremos ambos presos; e quando formos presos, o
que não tardará muito, terás a responsabilidade de
me haveres arrastado contigo e verás então se essa
responsabilidade te será leve.
- Pois então deixa-me reflectir alguns dias e
depois veremos.
- Despacha-te. As feras sentem à distância o
cheiro da carne, e eu sinto o perigo.
As circunstâncias resolveram o que eu de moto
próprio não ousara resolver.
Havia já várias semanas que deixáramos Londres
e chegáramos a uma cidade nos arredores da qual se
deviam realizar corridas de cavalos. Na Inglaterra as
corridas são uma festa popular para o local, e não
são só os cavalos que dão espectáculo no campo que
serve de hipódromo; muitos dias antes começam a
chegar ali saltimbancos, ciganos, vendedores ambulantes que
fazem uma espécie de feira. Apressáramo-nos para fazer parte
dessa feira, nós como músicos e a Família Driscoll como
negociantes.

Mas, em vez de Ir para o campo de corridas, meu


pai estabelecera-se na própria cidade, onde sem dúvida julgava
fazer melhor negócio.
Como era cedo ainda e não tínhamos de nos
ocupar da exposição das mercadorias, fomos, eu e
Mattia, ver o campo de corridas que ficava a uma
curta distância da cidade, junto duma charneca;
numerosas tendas estavam armadas, e de longe viam-se colunas
de fumo que marcavam o lugar e os limites do campo: não
tardámos a desembocar num caminho fundo, na banda árida e
despovoada noutras ocasiões, mas onde nessa tarde se viam
barracões de madeira em que haviam instalado tabernas e até
hospedarias, tendas, carripanas, ou simples acampamentos em
redor dos quais se acotovelavam pessoas com trajes pitorescos.
Quando passávamos em frente de uma daquelas
fogueiras que tinha suspensa por cima uma marmita,
reconhecemos o nosso amigo Bob. Mostrou-se encantado em
ver-nos. Viera às corridas com dois companheiros para dar
representações de exercícios acrobáticos, mas os músicos com
quem contavam haviam faltado, de sorte que o dia seguinte, em
vez de ser
frutuoso como o tinham esperado, seria provàvelmente
detestável. Se quiséssemos, podíamos prestar-lhe um grande
serviço: substituir aqueles músicos, e a receita seria
dividida entre nós cinco; até Capi
teria o seu quinhão.

Pelo olhar furtivo que Mattia me lançou, compreendi que


gostaria que eu aceitasse a proposta de Bob, e, como éramos
livres de fazer o que nos apetecesse, contanto que levássemos
para casa uma receita graúda, aceitei-a.

Ficou pois combinado que no dia seguinte nos


poríamos à disposição de Bob e dos seus dois amigos.

Mas, depois de regressarmos à cidade, apresentou-se uma


dificuldade quando comuniquei a meu pai as nossas
disposições.
- Não podem levar Capi amanhã porque preciso
dele - declarou.
Ao ouvir aquilo senti-me inquieto; quereriam empregar
Capí nalgum trabalho desonesto? Meu pai dissipou-me logo estas
apreensões
- Capi tem o ouvido apurado - disse ele. - Dá
fé de tudo e é um bom vigia; será útil para os carros,
pois, no meio desta confusão de gente, poderiam roubar-nos.
Vão sozinhos tocar com o Bob, e, se o trabalho de vocês se
prolongar pela noite adiante, o que é provável, venham ter
connosco ao Albergue do Carvalho Alto, onde pernoitaremos,
pois a minha intenção é partir daqui ao anoitecer.
Aquele Albergue do Carvalho Alto, onde passáramos a noite
precedente, era situado a uma légua da cidade, em pleno campo,
num local deserto e sinistro; estava a cargo de certo casal
cujo aspecto não inspirava confiança; seria muito fácil dar
com essa
estalagem, mesmo durante a noite: a estrada ia lá ter.
No dia seguinte de manhã, depois de passear Capi
e de lhe haver dado de comer e beber, para ter a
certeza de que nada lhe faltaria, eu próprio o amarrei ao eixo
do carro que ele devia guardar e fomos para o campo de
corridas, eu e Mattia.
Logo que chegámos, começámos a tocar e assim
continuámos sem descanso até à noite; eu tinha as
pontas dos dedos doridas como se mas estivessem a
picar com dezenas de alfinetes, e Mattia assoprara
tanto no cornetim que já nem podia respirar; no
entanto, devíamos tocar sempre. Bob e os companheiros não se
cansavam de exibir as suas acrobacias, e nós não tínhamos o
direito de nos mostrarmos mais cansados do que eles. Quando
anoiteceu, Julguei
que íamos repousar; mas abandonámos a barraca
por uma vasta taberna armada com tábuas e, uma
vez aí, peloticas e música recomeçaram com maior
entusiasmo. Isto durou até depois da meia-noite.
Se nos sentíamos fatigados, os nossos camaradas,
que dispendiam muito mais força do que nós, mostravam-se
extenuados. Por esse motivo falharam mais duma vez as suas
acrobacias: em dado momento, uma grande percha que servia para
os seus exercícios caiu sobre um pé de Mattia; a dor foi tão
forte que Mattia deu um grito; julguei que ele ficara
com o pé esmagado e rodeámo-lo, Bob e eu. Felizmente, a
ferida não tinha essa gravidade; havia contusão e a carne
estava rasgada, mas os ossos não
pareciam quebrados. No entanto, Mattia não podia
dar um passo.
Ficou decidido que ele dormiria no carro de Bob
e que eu iria sozinho para o Albergue do Carvalho
Alto, pois precisava saber para onde se destinava no
dia seguinte a Família Driscoll.
- Não te vás embora - repetia-me Mattía-par..
tiremos amanhã juntos.
- Deixa-me ir, prometo-te voltar amanhã.
- E se não consentirem que venhas?
- Para que Isso não aconteça, deixo aqui a harpa.
Forçosamente tenho de vir buscá-la.
E, apesar dos receios de Mattia, pus-me a caminho sem
medo de nada. De quem, de que teria medo? Que podiam
exigir
a um pobre diabo como eu?
Apesar de fatigado, ia andando depressa, e acabei
por chegar ao Albergue do Carvalho Alto; mas em
vão procurei os nossos carros, não os vi em parta
alguma. Apenas havia ali duas ou três carripanas
com toldo de pano, um barracão de madeira e dois
carros fechados donde saíram rugidos de animais
ferozes quando me aproximei: mas os carros pintados
de cores vivas, da Família Driscoll, não os descobri
em nenhum recanto.
Ao rondar a estalagem, distingui uma luz que iluminava
uma cornija envidraçada e, depreendendo daí que nem toda a
gente estaria a dormir, bati à porta:
o estalajadeiro de face sinistra veio abri-la e assestou-me
mesmo no rosto a luz da sua lanterna; notei que me reconhecia,
mas, em lugar de me mandar entrar, colocou a luz
atrás de si, olhou em redor e pôs-se à escuta durante alguns
minutos.
- Os carros Já se foram embora, e o seu pai recomendou-me
que fosse encontrar-se com ele em Lewes, sem perda de tempo, e
que não parasse no caminho. Boa viagem.
E fechou-me a porta na cara sem acrescentar
mais nada.
Desde que estava em Inglaterra aprendera Já
inglês suficiente para compreender aquela curta
frase; no entanto havia uma palavra, e a mais importante, que
eu não percebia: Luisse pronunciara o hospedeiro. Onde ficava
essa terra? Eu não fazia a
menor ideia, pois ignorava então que Luisse era a
pronúncia Inglesa de Lewes, nome da cidade que eu
vira escrito no mapa.
De resto, soubesse eu onde ficava Lewes que não
iria assim a correr, abandonando Mattia; por Isso,
devia voltar ao campo de corridas por muito cansado
que estivesse.
Pus-me a caminho, e hora e meia depois pude deitar-me num
bom feixe de palha ao lado de Mattia, na carriola de Bob;
fiz-lhe um resumo do que se passara e logo em seguida
adormeci, morto de fadiga.
Algumas horas de sono fizeram-me recuperar as
forças e de manhã acordei pronto para partir, no
caso de Mattia, que dormia ainda, me poder acompanhar.
Saí do carro e dirigi-me para o amigo Bob que se
erguera mais cedo e se ocupava agora em acender o
lume: acocorado, assoprava as brasas com todas as
forças; eu observava aquele trabalho quando me
pareceu reconhecer Capi levado pela trela, por um polícia.
Estupefacto, fiquei Imóvel, perguntando a mim
mesmo que poderia aquilo significar; mas Capi, que
me vira, deu um violento puxão à trela que se escapou das mãos
do policeman e, em dois saltos, correu e pulou para os meus
braços.

O policeman aproximou-se:
- Este cão pertence-lhe, não é verdade?
- É meu, sim.
- Então está preso.
E a mão dele agarrou-me no braço fortemente.
As palavras e o gesto do guarda fizeram levantar
Bob, que avançou para nós:
- E porque é que prende este rapaz? - perguntou ele.
- É Irmão dele?
- Sou amigo
- UM homem e um pequeno, entraram esta noite
na igreja de Saint George por uma janela, com o
auxílio duma escada; tinham consigo este cão para
lhes dar sinal se alguém aparecesse e os descobrisse,
o que aconteceu; na precipitação da fuga não levaram, nem
tiveram tempo de levar o cão com eles pela Janela onde se
safaram, e o animal, como os não pudesse seguir, foi
encontrado na igreja; eu tinha a certeza de descobrir os
ladrões por meio do cão. Um Já cá está. Onde está o pai?
Compreendi o que se passara; ou pelo menos,
adivinhava. Não era para ficar de vigia aos carros
que Capi fora requisitado. Era porque tinha o ouvido
apurado e poderia advertir aqueles que estariam a
roubar a igreja. E não fora só pelo prazer de Ir pernoitar ao
Albergue do Carvalho Alto que Driscoll partira ao anoitecer.
Se ele não estava nessa estalagem é porque o roubo tinha sido
descoberto e porque precisava de fugir o mais depressa
possível. Não devia pensar nos culpados, mas sim na minha
pessoa; quaisquer que fossem eles, eu podia defender-me, e,
sem os acusar, provar a minha Inocência; apenas tinha que
dizer o que fizera nessa noite.
Enquanto eu raciocinava assim, Mattia, que ouvira
o polícia ou o clamor que se elevara, saiu do carro e,
coxeando, aproximou-se de mim.
- Diga-lhe que não sou culpado - disse eu a Bob - visto
que fiquei consigo até à uma hora da manhã.
Em seguida estive no Albergue do Carvalho Alto onde falei ao
estalajadeiro e voltei logo para aqui.
Bob traduziu as minhas palavras ao policeman;
mas este não pareceu convencido como eu esperara,
antes pelo contrário:
- Foi à uma hora e um quarto que se Introduziram na
igreja - disse ele. - Se este garoto partiu daqui à uma hora
ou alguns minutos antes, como ele pretende, podia estar na
igreja à uma e um quarto com os gatunos.
- Leva-se mais dum quarto de hora daqui à cidade -
retorquiu Bob.
- Oh! A correr, chega-se depressa -
replicou o guarda. - Além disso, quem me prova que ele saiu
daqui à uma hora?
- Eu, que o juro - exclamou Bob.
- Oh! Você! Ainda se está para ver o que vale o
seu depoimento.
Bob zangou-se.
- Lembre-se que sou um cidadão inglês - disse
ele com grande dignidade.
O polícia encolheu os ombros.
- Ele me insulta - replicou Bob - escreverei para
o Times.
- Entretanto, levo o rapaz comigo e ele explicar-se-á em
presença do magistrado.
Mattia lançou-se-me nos braços e imaginei que
era com o fim de me beijar: porém Mattia era mais
prático do que sentimental, ou antes, deixava o sentimento
sempre para o fim.
- Coragem - disse-me ele ao ouvido. - Não te
abandonaremos.
E só depois é que me beijou.
- Prende Capi - disse eu em francês a Mattia.
- Não, não - disse ele-, - eu fico com o cão. Fez-me
encontrar este, também fará descobrir os outros.
A prisão onde me encarceraram não era uma
prisão a fingir como a outra que tínhamos encontrado
atulhada de cebolas; era uma verdadeira prisão
com grossos ferros na janela, e cuja vista matava
logo pela raiz qualquer projecto de evasão. O mobiliário
compunha-se de um banco e de uma cama. Deixei-me cair
sobre o banco e fiquei para ali a
pensar na minha triste situação, mas sem resolver
nada, pois não estava em estado de juntar duas ideias
e passar de uma a outra.
Como o presente era terrível, como o futuro se
apresentava assustador!
«Coragem», dissera-me Mattia, «não te abandonaremos»; mas
que podia uma criança como Mattia? Que podia um homem como
Bob, se este estivesse na
disposição de ajudar Mattia?
Fui até à janela e abri-a para observar os varões
de ferro que se cruzavam pelo lado de fora: estavam
chumbados na pedra; examinei as paredes, tinham
perto de um metro de espessura; o chão era coberto
de grandes lajes; a porta, via-a eu forrada de uma
chapa de ferro.
Voltei à janela: dava para um patiozinho estreito
e comprido, limitado por um muro que tinha pelo
menos quatro metros de altura.
Evidentemente ninguém se escapava daquele cárcere, mesmo
com a ajuda de amigos devotados. Que pode a dedicação, a
amizade, contra a força das
coisas? A dedicação não fura as paredes.
Ser-me-ia possível defender sem lançar as culpas
sobre aqueles que eu não queria, que não devia
acusar?
Esta angústia, juntamente com todas as outras
que eu sentia, impediram-me de dormir, embora me
sentisse ainda fatigado da véspera; Impediram-me
de tocar nos alimentos que me trouxeram; mas, se
pus de lado a comida, outro tanto não aconteceu com
a água, pois tinha uma sede ardente. Durante todo
o dia recorri à bilha de quarto a quarto de hora, bebendo
grandes goladas, sem conseguir matar a sede nem diminuir o
gosto a fel que me enchia a boca.

Quando o carcereiro entrou na prisão, senti um


Impulso de alegria, como que uma esperança, porque,
desde que eu ali estava encerrado, havia uma pergunta que me
atormentava e me tornava febril, pergunta a que eu não sabia
responder.
Quando me Interrogariam? Quando poderia defender-me?
Esclareceu-me de boa vontade que eu certamente
compareceria na audiência do dia seguinte.
Mas a minha pergunta sugeriu-lhe a lembrança
de me interrogar por seu turno; visto que me informara, não
era justo que eu lhe dissesse o que ele desejava saber?
- Como é que vocês entraram na igreja? - Indagou.
A isto respondi com os mais ardentes protestos de
inocência, e ele limitou-se a olhar para mim e a encolher os
ombros; depois, como eu continuasse a repetir que me não
introduzira na igreja, dirigiu-se
para a porta e disse a meia voz:
- Que viciosos são estes garotos de Londres!
Se eu o não convencera, ser-me-ia possível convencer o
juiz? Felizmente, teria testemunhas que falariam por mim; e se
o juiz não me escutasse, ao
menos seria obrigado a ouvir e a crer nos depoimentos que
provariam a minha Inocência. No dia seguinte de manhã, o
carcereiro entrou na
minha cela trazendo uma bilha e uma bacia; aconselhou-me a
lavar-me e a arranjar-me apuradamente, porque daí a pouco ia à
presença do Juiz; e acrescentou que o aspecto decente é muitas
vezes o melhor meio de defesa de um acusado.
Quando acabei de me preparar, foi-me Impossível
ficar quieto, e pus-me a andar em volta do quarto
como fazem ás feras nas jaulas.
Voltou o carcereiro e convidou-me a acompanhá-lo:
segui-o, e, depois de atravessar vários corredores, achámo-nos
em frente de uma portinha que abriu.
- Passe - ordenou ele.
Bateu-me na cara uma baforada quente e ouvi um
sussurro confuso; entrei e encontrei-me numa espécie de
varanda; estava na sala do tribunal. Se bem que me
achasse quase alucinado e sentisse as artérias da cabeça bater
como se fossem estalar, no olhar que relanceei em volta tive
uma
visão nítida e completa do que me rodeava-a sala
da audiência e a gente que a enchia.
Aquela sala era bastante vasta, de tecto alto e de
janelas largas, e dividia-se em dois recintos, um
reservado ao tribunal e outro franqueado aos curiosos.
Num estrado alto via-se o juiz. Mais em baixo, e
defronte dele, estavam sentados três homens também
pertencentes à justiça; eram, conforme soube mais tarde, um
escrivão, um tesoureiro para as multas, e outro magistrado a
que se chama em França delegado do Ministério Público. Em
frente da minha
tribuna encontrava-se uma personagem de toga e de
peruca, o meu advogado.
Como me aparecera ali um advogado? Donde vinha? Quem mo
arranjara? Seria Mattia ou Bob? Não era o momento oportuno de
examinar estas perguntas. Eu tinha um advogado e isso bastava.
Numa das tribunas vi Bob, os seus dois companheiros, o
estalajadeiro do Albergue do Carvalho Alto e algumas pessoas
desconhecidas; noutra, no
meio de alguns homens, reconheci o polícia que me
prendera; compreendi que essas tribunas eram as
das testemunhas.
O recinto reservado ao público estava cheio; por
cima duma balaustrada distingui Mattia; os nossos
olhares encontraram-se e, instantaneamente, voltou-me a
coragem. O delegado do Ministério Público tomou a
palavra,
e, resumidamente-tínha um ar apressado-, expôs
o assunto: fora cometido um roubo na igreja Saint
George; os ladrões, um homem e um pequeno, haviam-se
Introduzido na igreja por meio de uma escada, partindo o vidro
de uma janela; tinham consigo um cão,
levado com o fim de vigiare os prevenir do perigo, se alguém
surgisse; um transeunte retardatário - era nessa altura uma
hora e um quarto ficara surpreendido de ver uma claridade
débil na igreja; escutara, e ouvira certos ruídos; fora
Imediatamente acordar o sacristão e voltara
acompanhado; então o cão ladrara, enquanto os ladrões
espavoridos
haviam fugido pela janela abandonando o animal
que não pudera galgar a escada.
Ora, esse cão, levado ao campo de corridas pelo
agente Jerry - cuja Inteligência e zelo não seria
demais louvar - reconhecera o dono, que não era
outro senão aquele Indivíduo sentado no banco dos
réus; quanto ao segundo ladrão, andavam-lhe na pista.
Depois de algumas considerações que demonstravam a minha
culpa, o delegado calou-se. Então o juiz, sem se voltar
para o meu lado e
como se falasse consigo mesmo, perguntou-me o
nome, idade e profissão.
Respondi em inglês que me chamava Prancis
Driscoll e que residia no pátio do Leão-Vermelho, em
Bethnal-Green; depois pedi-lhe licença para me justificar em
francês, atendendo a que havia sido criado em França e que
estava na Inglaterra apenas há alguns meses.
- Não julgue que me engana - disse-me severamente o juiz.
- Eu entendo o francês.
Expus então o caso nessa língua e expliquei que
era impossível ter estado na Igreja a tal hora, pois
naquele momento encontrava-me no campo de corridas, e, às duas
e meia, batia à porta do Albergue do Carvalho Alto.
- Onde se achava à uma hora e um quarto? - indagou o
juiz.
- Ia a caminho.
- É o que falta provar. Diz que se dirigia para a
estalagem, mas a acusação sustenta que estava na
Igreja. Tendo partido do campo das corridas à uma
hora menos alguns minutos, ser-lhe-ia fácil juntar-se ao
cúmplice, nas Imediações da igreja, onde ele o esperaria com
uma escada. Depois do roubo frustrado, partiria então para o
Albergue do Carvalho Alto.
Esforcei-me por demonstrar que aquilo não podia
ser, mas vi que o juiz não estava convencido.
- Como explica a presença do seu cão na igreja?
- perguntou-me ele.
- Não a explico, nem mesmo a compreendo; o
cão não andava comigo porque eu prendera-o de manhã debaixo de
uma das nossas carriolas.
Não me convinha dizer mais, pois não queria fornecer mais
armas contra meu pai; olhei para Mattia
e ele fez-me sinal para continuar, mas eu calei-me.
Chamaram uma testemunha que jurou sobre o
Evangelho dizer a verdade sem ódio e sem paixão.
Era um homenzinho gordo, atarracado, com ar
prodigiosamente majestoso, apesar do nariz avermelhado; antes
de prestar juramento fez uma genuflexão ao tribunal e
ergueu-se com grande importância: vinha a ser o sacristão da
igreja de Saint George.
Começou por contar demoradamente como ficara
perturbado por o terem acordado bruscamente com
o fim de lhe dizerem que havia ladrões na igreja.
Vestira-se com tanta pressa que fizera soltar dois
botões do colete; abrira a porta da igreja, logo que
chegara ao local, e quem encontrara lá dentro? Ou
antes, o que encontrara? Um cão.
Eu nada tinha a responder àquilo, mas o meu
advogado, que até então nada dissera, levantou-se,
deu umas pancadinhas na peruca, assentou melhor a
toga nos ombros e tomou a palavra.
- Quem fechou a porta da igreja ontem à noite?
- perguntou ele.
- Eu - respondeu o sacristão - como era meu dever.
- Tem a certeza disso?
- Quando faço uma coisa, estou certo de que a faço.
- Muito bem: então pode jurar que não fechou na igreja o
cão de que se trata?
- Se o cão estivesse lá, eu tinha-o visto.
- Acabara de jantar quando fechou a porta da igreja?
- Sim, senhor.
- E é da cerveja fraca ou da forte que bebe?
- Cerveja forte.
- Quantas canecas?
- Duas.
- Só?
- Às vezes, três.
- Nunca toma quatro? Nem cinco?
- É muito raro.
- Não toma aguardente depois do jantar?
- Algumas vezes.
- Gosta da forte, ou da fraca?
- Não muito fraca.
- Quantos copos bebe?
- Depende das ocasiões.
- Está pronto a jurar que nunca toma três ou
mesmo quatro copos?
Como o homenzinho, cada vez mais carmesim, não
respondesse, o advogado serenou e, tornando-se a
sentar, disse:
- Este interrogatório basta para provar que o cão
podia ter sido fechado na igreja pela testemunha.
É tudo o que eu desejava saber.
Se me atrevesse, teria beijado o meu advogado.
Estava salvo.

Era admissivel que Capi tivesse sido fechado na


Igreja. E se isso acontecera, não fora eu quem o Introduzira
ali; eu não era pois culpado, visto que só existia essa
acusação contra mim.
Em seguida ao sacristão, depuseram as pessoas
que o acompanhavam quando ele entrara na Igreja:
não tinham visto nada a não ser a janela aberta pela
qual se haviam escapado os ladrões.
Depois Interrogaram as minhas testemunhas;
Bob, os seus companheiros, o estalajadeiro, todos confirmaram
como eu empregara o meu tempo; entretanto houve um ponto que
não foi esclarecido e que era de capital importância, pois se
referia à hora
exacta em que eu deixara o campo de corridas.
Terminados os interrogatórios, perguntou-me o
juiz se eu não tinha nada a dizer, advertindo-me que
podia guardar silêncio se assim o julgasse conveniente.

Respondi que estava inocente.

Então o juiz mandou ler no processo os depoimentos que eu


acabara de ouvir, declarando depois que me transferia para a
prisão do condado a fim de
esperar que o júri decidisse se devia comparecer perante o
tribunal criminal. Tribunal criminal!
Deixei-me cair sobre o banco. Pobre de mim! Se
tivesse dado ouvidos a Mattia!
CAPÍTULO 41.

BoB.

Só muito tempo depois de eu haver voltado para a


minha cela é que consegui encontrar uma razão
Para o facto de não ser absolvido: o juiz queria
esperar a prisão daqueles que se haviam introduzido
na igreja para verificar se eu era ou não Cúmplice.
Estavam-lhes na pista - dissera o delegado do
Ministério Público - teria, pois, a dor e a vergonha
de, dentro de pouco tempo, aparecer no Tribunal
criminal ao lado deles.
Um pouco antes da noite ouvi o som dum cornetim e
reconheci a maneira de tocar de Mattia: o bom rapaz queria
significar-me que pensava em mim e
não me abandonava. Aquele toque chegava-me por
cima do muro que ficava em frente da janela; evidentemente
Mattia estava do outro lado do muro, na rua, e uma curta
distância nos separava, apenas
alguns metros. Por infelicidade, os olhos não podem
perfurar as pedras. Mas, se o olhar não atravessa as
paredes, o som passa por cima delas. Aos toques de
cornetim juntaram-se ruídos de passos, vagos rumores
- e eu compreendi que Mattia e Bob estavam a
dar ali algum espectáculo.
Por que teriam escolhido aquele lugar? Por lhes
ser mais favorável à receita? Ou pretendiam prevevenir-me de
qualquer coisa?
De repente ouvi uma voz clara, a de Mattia, gritar
em francês: «Amanhã, ao romper da aurora!» E em
seguida recomeçou com maior entusiasmo, o toque do
cornetim.
Não havia necessidade dum grande esforço de
Inteligência para perceber que não era ao seu público
inglês que Mattia dirigia aquelas palavras, mas sim
à minha pessoa; em compensação não me era fácil
adivinhar o que elas significavam, e de novo fiz a
mim próprio uma série de perguntas às quais não me
foi possível encontrar respostas com lógica.
Só uma coisa era clara e definida: no dia seguinte,
ao romper da aurora, devia estar acordado e atento;
até lá liinitar-me-ia a ter paciência, se a pudesse ter.
Logo que anoiteceu deitei-me e tentei adormecer;
ouvi várias horas soarem sucessivamente nos relógios
próximos, e por fim o sono chegou e levou-me nas
suas asas.
Quando despertei era ainda noite, as estrelas brilhavam
no firmamento e tudo estava silencioso; certamente a manhã
ainda vinha longe. A minha única ocupação foi contar as
badaladas
dos relógios; mas como me pareciam longos os quinze
minutos que decorriam entre a hora e o quarto, entre
o quarto e a meia hora!
Conservava os olhos fixos na janela; tive a iinpressão de
que a estrela que eu contemplava ia perdendo o brilho e que o
céu clareava levemente. .Era a aproximação da manhã; ao
longe, cantaram
galos.

Levantei-me e, nas pontas dos pés, fui abrir a


janela; foi trabalho difícil impedir que ela desse estalidos,
mas com doçura, e principalmente com lentidão, consegui o que
desejava.

Que felicidade que aquela masmorra fosse numa


antiga sala de rés-do-chão que tinham adaptado a
cárcere, e que confiassem nos varões de ferro para
guardar os prisioneiros, pois se eu não abrisse a janela não
poderia responder ao apelo de Mattia.
As estrelas empalideceram cada vez mais e a frescura da
manhã fez-me tiritar; todavia não me afastei da janela e ali
fiquei, de pé, a escutar, a olhar, sem saber o quê.

O céu velou-se de branco e na terra os objectos


começaram a desenhar-se comformas mais ou menos
nítidas; era bem a aurora de que Mattia me falara.
Pus-me à escuta retendo a respiração, mas só ouvi as
palpitações do coração a bater-me no peito.

Finalmente pareceu-me que alguém raspava ao de


leve no muro, mas, como não dera fé de ruído de
passos, imaginei ter-me enganado; no entanto, escutei: o
arranhar continuava. De repente, uma cabeça elevou-se acima do
muro; vi logo que não era a de
Mattia, e, embora ainda estivesse escuro, reconheci
Bob.

Encarou comigo, ali encostado aos varões.


- Chut! - disse ele baixinho.
Com a mão fez-me um sinal que me pareceu significar que
devia afastar-me da janela. Sem compreender, obedeci. Então a
outra mão surgiu armada com um tubo brilhante como vidro.
Levou-o à boca e percebi que era uma zarabatana. Ouvi um
assopro e ao mesmo tempo uma bolinha branca atravessou o ar e
veio cair a meus pés. Instantâneamente a cabeça
de Bob desapareceu atrás do muro e tudo se tornou
silencioso.

Precipitei-me para a bola; era de papel fino enrolado em


volta dum grão de chumbo não muito pequeno: pareceu-me que
estavam caracteres traçados nesse papel, mas não havia ainda
claridade suficiente
para que eu os pudesse ler; devia esperar que amanhecesse.

Fechei a janela com precaução e deitei-me depressa na


cama com a bola de papel bem apertada nas mãos.
Lentamente, muito lentamente para a minha impaciência, o
céu empalideceu, até que uma claridade rósea deslizou pelas
paredes; desenrolei o papel e li o seguinte:
«Serás transferido amanhã à tarde para a prisão
do condado; vais viajar de comboio num compartimento de
segunda classe com um polícia; colocas-te junto da portinhola
por onde hás-de entrar. Depois do comboio andar durante
quarenta e cinco minutos (conta-os bem) há-de diminuir a
marcha por causa de um entroncamento; abre então a tua
portinhola e atira-te para fora sem medo: dá um impulso,
estende as mãos para a frente e faz as coisas de forma que
caias de pé. Logo que estiveres em terra, sobe
o talude da esquerda, que lá nos verás com uma carruagem e um
bom cavalo para te levarem. Nada temas; dois dias depois
estaremos em França.»
Salvo! Eu não compareceria no tribunal criminal!
Não veria o que se havia de passar ali!
Ah! Que corajosos e bons eram Mattia e Bob!
Pois com certeza ele ajudava generosamente Mattia:
«lá nos verás com uma carruagem e um bom cavalo
para te levarem»; Mattia sozinho não podia combinar tudo
aquilo. Reli o bilhete: «Quarenta e cinco minutos depois
da partida; o talude da esquerda; cair de pé». Certamente que
me atiraria sem medo, nem que tivesse de morrer. Mais valia
Isso do que ser condenado como
ladrão.
Ah! Como tudo aquilo estava bem engendrado!
Reli o bilhete mais duas ou três vezes e, depois de
o mastigar, engoli-o. Agora só precisava de dormir
tranquilamente; e apliquei-me a Isso tão bem que só
acordei quando o carcereiro me trouxe de comer.
O tempo decorreu rápido e, no dia seguinte, à
tarde, um polícia que eu não conhecia entrou no cárcere
e mandou-me segui-lo; observei com satisfação
que era um homem de cerca de cinquenta anos e que
não parecia muito ágil.
As coisas puderam arranjar-se conforme as prescrições de
Mattia, e quando o comboio começou a andar estava eu instalado
junto da portinhola por
onde entrara. Eu ia de costas; o polícia colocara-se
em minha frente e nós dois éramos os únicos no
nosso compartimento.
Encostara-me à portinhola cuja vidraça estava
aberta; pedi-lhe licença para olhar para a região que
atravessávamos, e respondeu-me que podia olhar
tanto quanto me apetecesse. Que tinha a recear se o
comboio ia com toda a velocidade?
Como se sentisse gelado com o ar que lhe batia na
cara, daí a pouco afastou-se da janela e foi sentar-se a meio
da carruagem. Quanto a mim, não sentia frio nenhum;
deslizando furtivamente a mão esquerda pelo lado de fora, dei
a volta ao puxador da portinhola enquanto
a segurava com a mão direita.

Os minutos foram passando: o comboio apitou e


diminuiu a marcha; chegara o momento. Empurrei
rapidamente a portinhola e saltei tão longe quanto
pude; caí no valado, mas felizmente, as mãos, que
eu conservara estendidas para a frente, embateram
no talude arrelvado; todavia o choque foi tão violento que
rolei por terra, sem sentidos.
Quandovoltei a mim imaginei que ainda estava
no comboio, pois senti-me transportado por um movimento rápido
e ouvi rodar qualquer coisa: ia deitado sobre palha;.
Caso estranho! Tinha a cara molhada, e nas faces
e na testa passava-me uma carícia suave e quente.
Abri os olhos; um cão, um feio cão amarelo, inclinava-se
para mim e lambia-me o rosto.
Os meus olhos encontraram os de Mattia, que
estava ajoelhado junto de mim.

- Estás salvo - disse-me ele, afastando o cão e


abraçando-me.
- Onde estamos?
- Num carro. É Bob quem o conduz.
- Como vai Isso? - perguntou-me Bob, virando-se para
trás.
- Não sei; creio que vou bem.
- Mexe os braços e estende as pernas - exclamou Bob.
Eu estava deitado sobre palha. Fiz o que ele me
aconselhava.
- Bom - disse Mattia -, não tens nada partido.
- Mas, que aconteceu?
- Saltaste do comboio como eu te recomendei;
com o choque, ficaste atordoado e caíste no fosso;
como não te visse chegar, Bob desceu o talude, enquanto eu
segurava o cavalo, e trouxe-te em braços. Julgámos que estavas
morto. Que susto! Que aflição!
Enfim, estás salvo.
- E o polícia?
- Continua no comboio que segue o seu destino.
Já sabia o essencial; olhei em redor e descobri o
cão amarelo que me contemplava ternamente com
olhos que se assemelhavam aos de Capi. Mas não se
tratava de Capi, pois que esse era branco.
- E Capi? - perguntei - Que é feito dele?
Antes que Mattia me respondesse, o cão amarelo
saltou sobre mim ecomeçou a lamber-me, ganindo.
- Aí o tens - disse Mattia. - Mudámos-lhe a cor.
Retribuí as carícias do bom Capi e beijei-o.
- Por que razão o tingiste?
- Isso é uma história que te vou contar.
Mas Bob não consentiu nessa narração.
- Guia o cavalo - disse ele a Mattia - e segura-o
bem; entretanto vou disfarçar o carro para não o
reconhecerem na passagem das barreiras.
Era uma carripana coberta com um toldo de lona
colocada sobre uma armação de ferro. Desfez a dita
armação, arrumou-a dentro do carro, e, depois de
dobrar o toldo em quatro, disse-me para me cobrir
com ele; em seguida, mandou Mattia esconder-se
também debaixo da lona: assim, o carro mudava
Inteiramente de aspecto; não tinha toldo e só levava
uma pessoa em vez de três. Se nos perseguissem, as
indicações dadas por aqueles que vissem passar a
nossa carriola fariam despistá-los.
- Para onde vamos? - perguntei a Mattia,
quando este se estendeu a meu lado.
- Para Littlehampton: é um pequeno porto de mar
onde Bob tem um Irmão, comandante de um barco
que faz as viagens a França para Ir buscar manteiga
e ovos à Normandia, a Isigny; se nos salvarmos-e
salvar-nos-emos -, devê-lo-emos a Bob: tratou de tudo.
- E Capi, quem se lembrou de o trazer?
- Fui eu, mas Bob é que sugeriu tingi-lo para que
o não reconhecessem, quando o roubámos ao polícia,
ao inteligente Jerry (como dizia o juiz) que desta vez
não foi muito Inteligente, pois deixou Capi safar-se
sem mesmo dar por isso; é certo que Capi pressentiu-me e fez
quase tudo, mas Bob ajudou muito porque conhece todas as
artimanhas dos gatunos de cães.
- E o teu pé?
- Está quase curado; não tive tempo de pensar nele.
As estradas de Inglaterra não são livres como as
da França; de vez em quando encontram-se barreiras
onde se deve pagar certa soma para se poder passar;
quando chegávamos a uma dessas barreiras, Bob
mandava-nos calar e estar quietos e os guardas não
viam mais do que uma carriola conduzida por um
homem apenas; Bob dirigia-lhes quaisquer gracejos
e passava.
Com o seu talento de clown em se disfarçar,
arranjara uma fisionomia, de rendeiro, e mesmo
aqueles que o conhecessem bem, ter-lhe-iam falado
sem saber quem ele era.

Íamos rapidamente, pois o cavalo era bom e Bob


parecia ser excelente cocheiro; todavia, tínhamos de
parar a fim do cavalo descansar um pouco e para
lhe dar de comer; mas, para isso, não entrámos numa
estalagem; Bob deteve-se em pleno bosque, desenfreou o cavalo
e passou-lhe ao pescoço um alcofa repleta de aveia que ele
tirou de dentro do carro;
a noite estava escura; não havia grande perigo de
sermos surpreendidos.
Voltámos a aninhar-nos debaixo do toldo e o cavalo, já
descansado, partiu a galope. De tempos a tempos
cruzávamos com algumas
carruagens, mas nenhuma vinha atrás de nós: as
aldeias que atravessávamos estavam silenciosas e
raras eram as Janelas onde se mostrava uma luz retardatária;
apenas um ou outro cão prestava atenção à nossa corrida e nos
perseguia com os seus latidos.
Quando, depois de uma subida um tanto íngreme,
Bob detinha o cavalo para o deixar respirar, descíamos da
carriola e encostávamos a cabeça ao chão a fim de escutar, mas
o próprio Mattia, que tinha
o ouvido mais apurado do que nós, não percebia
nenhum ruído suspeito; viajávamos no meio do escuro e do
silêncio da noite. Não era para nos escondermos que nos
conservávamos sob o toldo, mas para nos defendermos do frio,
pois já há bocado que soprava um vento glacial. Ao
passarmos a língua nos lábios encontrávamos-lhes
um gosto a sal; aproximávamo-nos do mar. Daí a
pouco distinguimos uma claridade que, com intervalos
regulares, desaparecia para reaparecer como um
foco de luz: era um farol. Estávamos a chegar.
Bob refreou o cavalo e, metendo-o a passo, encaminhou-o
para um atalho; depois, desceu do carro e disse-nos que
ficássemos ali e segurássemos as rédeas; quanto a ele, ia ver
se o Irmão não partira e se podíamos sem perigo ir para bordo
do navio deste.
Confesso que, enquanto Bob esteve ausente, o
tempo me pareceu longo, muito longo.

Finalmente ouvimos um som de passos no caminho que Bob


seguira. Sem dúvida era ele que voltava. Ia-se decidir a minha
sorte.
Bob não vinha só. Quando se aproximou vimos que
alguém o acompanhava: era um homem vestido com
um casaco de oleado e com um barrete de lã na cabeça.
- Aqui está meu Irmão - disse Bob. - Consente
em levá-los no seu navio e vai conduzi-los para
bordo. Agora, vamo-nos separar, pois é Inútil que
saibam que eu vim aqui.
Quis agradecer a Bob, mas ele cortou-me a palavra,
apertando-me a mão. Seguimos o irmão de Bob, entrámos nas
ruas silenciosas da cidade, e, depois de algumas voltas de
caminhos, encontrámo-nos num cais e o vento bateu-nos na cara.
Sem nada dizer, o irmão de Bob apontou com a
mão um barco aparelhado; percebemos que era dele;
em poucos minutos pusemo-nos a bordo; então fez-nos descer
para um minúsculo camarote.
- Só partirei daqui a duas horas - disse ele. - Fiquem aí
e não façam barulho.
Quando o Irmão de Bob fechou à chave a porta
do camarote, foi mansamente que Mattia me rodeou
com os braços e me estreitou contra si.

CAPÍTULO 42.

O CISNE.

DEPois do irmão de Bob se ir embora, o navio ficou


silencioso durante algum tempo, e não ouvimos
senão o barulho do vento na mastreação e o marulho da água de
encontro à querena; mas a pouco e pouco foi-se animando;
soaram passos na coberta;
deixaram tombar cabos; gemeram as roldanas e
houve um rolar e desenrolar de correntes. E, de repente, o
barco inclinou-se para o lado esquerdo e principiou a arfar:
íamos a caminho; eu estava salvo.
Lento e suave ao começo, o balanço do navio não
tardou a tornar-se rápido e brusco; as vagas vinham
bater, violentas, na roda da proa, ou de encontro ao
costado do barco, enquanto este parecia afundar-se
e se erguia de súbito.
- Pobre Mattia! - disse eu ao meu camarada,
agarrando-lhe na mão.
- Não tem importância - retorquiu ele. - O principal é
que estejas salvo.
Neste momento abriu-se a porta do camarote.
- Se quiserem ir para a coberta - disse-nos o
irmão de Bob. - podem ir porque já não há perigo.

- Como e aonde se enjoa menos?


- Deitado.
- Agradecido. Fico então deitado.
E estendeu-se na cama.
- O grumete vai trazer-lhe o que lhe é necessário
- disse o capitão.
- Obrigado; e se ele puder vir agora, melhor.
- já?
- Há bocado que estou assim.
Quis ficar junto de Mattia, mas ele mandou-me
passear para a coberta, repetindo-me:
- Isto não tem importância; estás salvo; nunca
pensei que teria tanto prazer em enjoar.
Chegado à coberta, só consegui conservar-me de
pé agarrando-me solidamente a um dos cabos; tão
longe quanto a vista alcançava na escuridão da noite,
só se via uma planície branca de espuma sobre a
qual ia o nosso naviozinho, inclinado como se fosse
virar-se; mas não se virava; pelo contrário, erguia-se
ligeiramente, saltando sobre as vagas, levado, Impelido pelo
vento oeste. Voltei-me para o lado da terra; já as luzes
do
porto não eram mais do que uns pontos na obscuridade vaporosa,
e, ao vê-los assim diminuir e desaparecer uns após outros, foi
com doce sentimento de libertação que disse adeus à
Inglaterra.
- Se o vento continuar como está agora - disse-me o
capitão. - não chegaremos tarde, esta noite, a IsIgny; é um
bom veleiro, o Eclipse.
Mais de um dia sobre o mar! Pobre Mattia! E dizer
que se sentia satisfeito em enjoar!
Todavia, o tempo foi passando, e entretive-me em
idas e vindas, da coberta para o camarote e do camarote para a
coberta; em certa altura, quando eu conversava com o capitão,
ele apontou para o lado
do sudoeste e distinguiu uma coluna branca e alta
que se destacava nofundo azulado.
- Barfleur - disse-me ele.
Precipitei-me a levar a boa notícia a Mattia:

A França estava à vista; mas de Barfleur a Isigny a


distância é ainda grande, pois é preciso costear
a península de Cotentin antes de entrar no Vire e
no Aure.
Como já fosse tarde quando o Eclipse acostou no
cais de Isigny, o capitão quis que ficássemos essa
noite a bordo, e só no dia seguinte de manhã é que
nos separámos dele, depois de lhe ter agradecido
como convinha.
- Quando vocês quiserem voltar para a Inglaterra
- disse-nos ele,,dando-nos um forte aperto de mão, - Já sabem
que o Eclipse parte daqui às terças-feiras.
Era uma proposta amável, mas que não tínhamos
desejo algum de aceitar.
Desembarcámos na França só com a roupa que
vestíamos e os instrumentos. Mattia tivera o cuidado
de trazer a harpa que eu deixara na barraca de Bob.
Quanto aos nossos sacos, haviam ficado com todo o
conteúdo nos carros da família Driscoll.
o nosso primeiro trabalho, ao sairmos do Eclipse,
foi procurar uma mochila de segunda mão e em seguida comprar
duas camisas, dois pares de meias, sabão, um pente, linhas,
botões, agulhas, e, finalmente, aquilo que nos era ainda mais
Indispensável do que aqueles objectos, aliás tão úteis: um
mapa
da França.
Efectivamente, para onde havíamos de ir, agora
que estávamos em França? Que caminho tomar?
Foi isto que discutimos ao deixar Isigny pela estrada de
Bayeux.
- Por mim - declarou Mattia - não tenho preferências:
tanto me faz Ir para a direita como para a esquerda; só exijo
uma coisa.
- O que é?
- Seguir o curso dum rio, ou dum canal, por
causa duma Ideia que se me meteu na cabeça.
Como eu lhe pedisse que me dissesse qual era essa
I deia, ele continuou:

- Já vejo que tenho de ta explicar: quando Artur


estava doente, a senhora Milligan passeava-o de
barco, e foi assim que os encontraste no Cisne.
- Ele já não está doente.
- Melhorou, é o que tu queres dizer; esteve bastante
doente, e só se salvou devido aos cuidados da mãe. Penso que,
para o curar completamente, a senhora Milligan anda outra vez
em viagem com o filho, pelos rios e pelos canais em que o
Cisne pode ser levado; de forma que, seguindo o curso desses
rios, temos probabilidades de encontrar o Cisne.
- Quem nos diz que o Cisne está em França?
- Ninguém, mas, como o Cisne não pode navegar
no mar, é de crer que ele não tenha deixado a França,
e portanto havemos de encontrá-lo.
- Mas Lise e o Aleixo? E Benjamim? E Estefânia?
- Havemos de visitá-los enquanto procurarmos a
senhora Milligan; temos, pois, de viajar perto dum
rio ou dum canal: vejamos no mapa qual é o rio
mais próximo.
Abrimos o mapa, estendemo-lo sobre a erva do
caminho, e procurámos o rio que menos distante
ficasse dali; vimos que era o Sena.
- Não se pode seguir o Sena até aos arredores
de Paris, e aí desviarmo-nos dele e retomá-lo mais
adiante? Não faço empenho em ver Garofoli.
- Claro que se pode.
- Então façamos isto: interrogamos os marinheiros, os
rebocadores, pelas margens do rio adiante, e como o Cisne com
a sua varanda é muito diferente dos outros barcos, se passou
por ali, forçosamente repararam nele; se o não encontrarmos no
Sena, iremos procurá-lo no Loire, no Garonne, em todos
os rios da França, e acabaremos por achá-lo.
Nada tinha a objectar contra o plano de Mattia;
ficou então resolvido que iríamos até ao Sena, para
o costearmos.
Era tempo de pensarmos em Capi; tingido de
amarelo, não o considerava Capi; comprámos um
sabão especial e, no primeiro riacho que vimos, esfregámo-lo
vigorosamente, revezando-nos quando estávamos fatigados.
Através de Bayeux, Caen, Pont-lÉvèque e Pont-Aude-mer,
atingimos o Sena em La Bouille. Ignorava eu ainda que não
é fácil Interrogar os
normandos, os quais raras vezes respondem de forma
concreta, e que, pelo contrário, fazem perguntas a
quem lhes pede Informações.
- Refere-se a um barco do Havre ou a um de Ruão?
- É um batel?
- Uma barquinha?
- Um lanchão?
- Uma corveta?
Depois de termos respondido a todas estas
perguntas, ficou mais ou menos averiguado que o Cisne nunca
viera a La Bouille, ou, se aqui tinha passado,
fora de noite, de maneira que ninguém o havia visto.
De La Bouille fomos a ruão, onde continuámos as
investigações sem melhor resultado; em Elbeuf também não nos
deram notícias do Cisne; em Poses, onde há comportas e por
consequência dão atenção aos
barcos que passam, aconteceu a mesma coisa.
Como não caminhávamos só para avançar, mas
precisávamos também ganhar o pão de cada dia,
cinco semanas no percurso de Isigny a
gastámos
Chareton.
Felizmente, em Chareton, acabaram-se as dúvidas,
pois às nossas perguntas, responderam-nos, pela primeira vez,
que tinham visto um barco semelhante ao Cisne; era um barco de
recreio, com uma varanda.
Mattia ficou tão contente que se pôs a dançar no
cais: de repente, deixou de bailar, pegou no violino
e começou a tocar freneticamente uma marcha
triunfal.
Entretanto, eu continuava a interrogar o marinheiro que
nos respondera com tão boa vontade: não havia dúvida,
tratava-se do Cisne; fora há dois meses
que ele passara em Charenton, subindo o Sena.
Dois meses! Era formidável o avanço que ele levava sobre
nós. Mas que importava?
- Quem tinha razão?! - exclamava Mattia.
Não havia agora necessidade de nos determos a
fim de interrogarmos as pessoas; devíamos apenas
seguir o Sena.

Em Moret, porém, o Loing desagua no Sena, e


tivemos de nos informar novamente: o Cisne continuara a subir
o Sena.
Em Monterau perguntámos outra vez por ele.
O Cisne abandonara o Sena pelo Yonne; havia
dois meses que ali passara; iam a bordo uma senhora
inglesa e um rapazinho deitado numa cama.
,Chegámos ao confluente do Yonne e do Armençon: o Cisne
continuara pelo Yonne; íamos, pois, passar por Dreuzy e ver
Lise; ela própria nos falaria
da senhora Milligan e de Artur.
Depois que corríamos atrás do Cisne dávamos rapidamente
os nossos espectáculos, e Capi, que era um artista
consciencioso, não compreendia a nossa
pressa: por que motivo não o deixávamos ficar gravemente
sentado com a bandeja nos dentes defronte do «respeitável
público» que se demorava a tirar a
moeda do bolso? É preciso saber esperar.
Mas nós já não esperávamos; por Isso as receitas
diminuíam e tínhamos de lançar mão ao que nos
restava dos quarenta francos: em vez de aumentarmos o capital,
íamo-lo gastando. Como o Yonne dá muitas voltas entre
Joigny e
Auxerre, nós, que seguíamos pela estrada real, tomámos grande
avanço. Mas tornámos a perdê-lo a partir de Auxerre, pois o
Cisne, havendo seguido o canal de Nivernais, deslizara rápido
nas águas tranquilas.
Em cada comporta tínhamos notícias dele; neste
canal, onde a navegação não é muito activa, toda a
gente reparara naquele barco tão diferente dos que
vulgarmente se viam por ali.

Não só nos falavam do Cisne mas também da


senhora Milligan, «uma senhora inglesa muito bondosa»,
e de Artur, «um rapazinho que estava quase sempre deitado numa
cama Instalada no convés, ao abrigo de uma varanda guarnecida
de flores e de
folhagem, mas que às vezes se levantava».
Nesse caso, Artur estava melhor.
Aproximamo-nos de Dreuzy; faltam dois dias, falta um,
faltam apenas algumas horas.
Finalmente, distinguimos os bosques onde brincámos com
Lise no Outono anterior; vemos também a represa e a casinha da
tia Catarina.
Sem combinarmos nada, mas de comum acordo, eu
e Mattia apertamos o passo; já não marchamos,
corremos; Capi, que reconhece tudo aquilo, vai à
frente, a galope.
Está um homem a manobrar uma comporta, mas
não é o tio de Lise.
Vamos até perto da casa; uma mulher, que não
conhecemos, anda cá e lá na cozinha.
- A senhora Suriot está? - perguntamos.
Ela olha-nos um momento antes de responder,
como se lhe fizéssemos uma pergunta absurda.
- Já cá não mora - diz-nos por fim.
- Onde é que mora então?
- No Egipto.
Entreolhámo-nos espantados. No Egipto!
- E a Lise? Conhece a Lise?
- Pois não havia de a conhecer! Foi-se embora de
barco com uma senhora inglesa.
Lise no Cisne! Tornaremos a ver-nos?
A mulher encarrega-sse de me chamar à realidade.
- Você é que é o Remi?
- Sou eu, sim.
- Pois escute: quando Suriot se afogou...
- Afogou-se!
- Afogou-se na represa. Ah! Não sabia que Suriot
caiu à água e que ficou preso num prego do fundo
de um barco? São desgraças que às vezes acontecem
a quem tem este ofício. Mas, como eu Ia dizendo,
quando ele se afogou, Catarina viu-se bastante aflita
embora fosse mulher desembaraçada. Mas, quando o
dinheiro falta, não se pode arranjá-lo de um dia a
outro, e o dinheiro faltou-lhe.
«Estava ela a matutar no destino que havia de dar
àgarota quando, numa tarde, aparece aqui uma senhora Inglesa
que andava a passear de barco com o filho, um rapazinho
doente.
«Começaram a conversare a senhora inglesa que
andava em procura de uma criança para brincar com
o filho que se aborrecia sozinho no barco, pediu que
lhe dessem a Lise, prometendo encarregar-se dela,
de a curar, enfim, de lhe assegurar o futuro. Era
uma senhora muito boa, meiga para toda a gente.
Catarina aceitou a proposta, e, quando Lise embarcou com a
senhora inglesa, ela foi para o Egipto».
Eu estava de tal forma atordoado que não consegui dizer
nada, mas Mattia não perdia o sangue-frio, como eu.
- E para onde ia a senhora inglesa?
- Para o sul da França, ou então para a Suíça.
Lise tencionava escrever-me para eu vos dar o endereço dela,
mas não recebi nenhuma carta.

CAPÍTULO 43.

AS BELAS ROUPINHAS FALARAM VERDADE.

Como eu continuasse espantado, Mattia fez o que


eu não me decidia a fazer:
- Muito agradecido, minha senhora - disse ele.
E, empurrando-me brandamente, pós-me fora da
cozinha.
- A caminho! - exclamou ele. - Não só temos de
encontrar a senhora Milligan e Artur, mas também
Lise. Mas que bela coincidência! Teríamos perdido
tempo em Dreuzy, e assim podemos continuar o nosso
caminho; é o que se chama ter sorte.
E continuámos no encalço do Cisne, só parando o
tempo suficiente para dormir e ganhar alguns sous.
Em Decize, onde o canal do Nivermais desemboca
no Loire, perguntámos pelo Cisne; ele tomou o canal
lateral, e é esse que seguiremos até Digoin; chegados
lá, iremos pelo de Centre até Châlon.
- Vamos pelo Saône desde Chalon -até Lyon.
Nova e séria dificuldade se apresenta: o Cisne
teria descido ou subido o dano? Quero dizer, a
senhora Milligan Iria para a Suíça ou para o sul da
França?

No meio do movimento de barcos que vão e vêm


no Ródano e no Saône, o Cisne podia ter passado
despercebido; Interrogamos os marinheiros, os barqueiros e
toda a gente que vive nos cais, e no fim obtemos a certeza de
que a senhora Milligan foi para
a Suíça; seguimos pois o curso do Ródano.
- Da Suíça vai-se à Itália - diz Mattia; - isto
já é tudo devido à sorte; se atrás da senhora Milligan
chegarmos a Lucca, como a Cristina vai ficar contente!
Querido Mattia! Ajuda-me a procurar aqueles que
estimo, e eu nada faço para que ele beije a irmãzinha!
Chegamos a Seyssel, que é uma cidade dividida a
meio pelo rio, por cima do qual há uma ponte, e descemos para
a margem. Qual é a minha surpresa quando, a distância, me
parece reconhecer o Cisne!
Desatamos a correr: é de facto ele, e no entanto
tem o aspecto dum barco abandonado. Está sólidamente
amarrado, atrás duma espécie de estacada que o protege, e a
bordo tudo se apresenta fechado; já não há flores na varanda.
Que se passou? Que aconteceu a Artur?
Interrogamos um homem que de bom grado nos
responde: é justamente ele quem está encarregado
de guardar o Cisne.
- A senhora inglesa que estava a bordo com duas
crianças, um menino paralítico e uma menina muda,
encontra-se agora na Suíça. Ela deixou aqui o barco
porque não podia ir mais longe pelo Ródano. A senhora e os
dois meninos foram de carruagem com uma criada, e os outros
servos seguiram com as bagagens. Vai voltar no Outono para
descer o Ródano no barco até ao mar e passar o Inverno no sul
da França.
Respiramos de alívio: nenhum dos receios que
nos assaltou foi razoável; devíamos imaginar o melhor e não o
pior.
- E onde está essa senhora nesta ocasião? -
pergunta Mattia.

- Partiu para alugar uma casa de campo à beira


do lago de Genebra, nas bandas de Vevey, mas não
sei bem aonde. Deve passar lá o Verão.
- A caminho para Vevey! Em Genebra compraremos um mapa da
Suíça, e havemos de dar com essa cidade ou aldeia. Agora, o
Cisne já não corre à nossa frente; e se a senhora Milligan
deve passar o Verão na sua casa de campo, temos a certeza de a
encontrar; é só questão de a procurarmos.
E, quatro dias depois de deixarmos Seyssel, começamos as
buscas nos arredores de Vevey, por entre as numerosas vilas
que, desde o lago de águas azuis, se enfileiram graciosamente
nas encostas verdes e arborizadas da montanha. Chegamos, e
muito a tempo: só possuímos três soldos e os nossos sapatos já
não têm sola.
Mas Vevey não é nenhuma aldeia! É uma cidade,
e não vulgar, pois até Villeneuve há uma série de
aldeias ou de subúrbios que fazem parte dela. Quanto
a perguntar pela senhora Milligan, ou simplesmente
por uma senhora inglesa acompanhada dum filho
doente e duma rapariga muda, depressa reconhecemos que isso
não é prático: Vevey e as margens do lago são habitadas por
tantos ingleses como se fosse
uma estância de recreio dos arredores de Londres.
O melhor meio será nós mesmos visitarmos -as
casas onde possam morar estrangeiros: na realidade,
isso não é muito difícil; basta que toquemos o nosso
repertório em todas as ruas.
Percorremos Vevey num dia e fizemos uma bela
receita.
No dia seguinte, foi nos arredores de Vevey que
continuámos as nossas pesquisas, caminhando sempre em frente,
ao acaso, tocando defronte das casas de boa aparência, quer as
janelas estivessem abertas
ou não; mas, à noite, regressámos à estalagem da
mesma forma que na véspera.
Depois de inspeccionarmos os arredores de Vevey,
afastámo-nos um pouco de Clarens e de Montreux,
furiosos com o mau resultado das nossas buscas, mas
não desanimados; o que não se conseguira ontem,
conseguir-se-ia certamente amanhã.
Ora caminhávamos em estradas marginadas de
muros, ora em caminhos ladeados por castanheiros
enormes cuja folhagem espessa, Interceptando o ar
e a luz, só deixava crescer, à sua sombra, musgos
aveludados. A cada passo, naquelas estradas e caminhos, se
abria uma porta gradeada de ferro ou uma cancela de madeira, e
então viam-se alamedas de
jardim bem ensaibradas a serpentearem em volta
dos canteiros plantados de maciços de arbustos e de
flores.
Esses jardins causavam muitas vezes o nosso desespero,
pois, como nos conservávamos distantes das casas, impediam-nos
de sermos ouvidos por aqueles
que se encontravam lá dentro, se não cantássemos
com todas as forças - o que, repetido de manhã à
noite, se tornava fatigante.
Numa tarde dávamos assim um concerto em plena
rua, não tendo em nossa frente senão uma porta de
ferro, para a qual cantávamos; atrás de nós ficava
um muro para onde nem olhámos. Eu esganiçara-me
na primeira estrofe da canção napolitana e Ia começar a
segunda quando de súbito a ouvimos cantar além daquele muro,
mas debilmente e com uma voz estranha
De quem podia ser aquela voz?
Incapaz de me conter, gritei- Quem canta?
E a voz respondeu:
- Remi?
O meu nome, em vez duma resposta! Entreolhámo-nos
perplexos.
Quando estávamos assim espantados em face um
do outro, vi, por trás de Mattia, na extremidade do
muro e por cima duma sebe baixa, um lenço branco
a adejar ao vento; corremos para esse lado.
Só quando chegámos à sebe é que conseguimos
ver a pessoa a quem pertencia o braço que agitava
o lenço - Lise, sim, tínhamo-la encontrado, e, com
ela, a senhora Milligan e Artur.
Porém, quem havia cantado? Foi a pergunta que
lhe dirigimos ao mesmo tempo, quando pudémos dizer
qualquer coisa.
- eu - respondeu ela.
Lise cantava! Lise falava!
É certo que mil vezes ouvira dizer que Lise recuperaria
um dia a fala, e provavelmente sob o abalo duma comoção
violenta, mas eu nunca acreditara na possibilidade disso.
E todavia realizara-se o milagre: ela falava; e
fora ao ouvir-me cantar, ao ver-me voltar para junto
de si - quando me Imaginava perdido para sempre - que sentira
a tal comoção violenta.
Ao reflectir nisto, eu próprio fiquei tão comovido
que fui obrigado a agarrar-me a um ramo da sebe
para não cair. Porém, a ocasião não era para desfalecimentos.
- Onde está a senhora Milligan? E Artur? - perguntei.
Lise moveu os lábios para responder, mas da sua
boca só saíram sons inarticulados; então, Impaciente,
empregou a linguagem das mãos para se explicar e
fazer-se compreender mais depressa, visto a língua
e o espírito serem ainda inábeis para se servirem da
palavra.
Quando eu seguia com os olhos a mímica que o
meu companheiro não entendia, vi ao longe, no jardim, na curva
duma alameda arborizada, um carrinho estreito e comprido que
um criado empurrava: nesse carro achava-se deitado Artur.
Atrás dele vinha a mãe e... (inclinei-me para ver melhor) e
James Milligan! Instantaneamente abaixei-me atrás da
sebe e disse a Mattia, com voz precipitada, que fizesse
a mesma coisa que eu, sem me lembrar que James Milligan não o
conhecia.
Passado o primeiro movimento de terror, pensei
que Lise devia estar espantada com a nossa brusca
desaparição. Então soergui-me e disse-lhe a meia voz:
- preciso que o senhor James Milligan me não
veja, pode-me mandar outra vez para a Inglaterra.
Lise levantou os braços num gesto de susto.
- Não fales de nós - continuei eu. - Amanhã de
manhã, às nove horas, voltaremos aqui; faze a diligência de
estares sozinha; agora, vai-te embora.
Ela hesitou.
- Vai-te embora, por favor, senão perdes-me.
Corremos os dois ao longo do muro e chegámos
aos vinhedos que nos esconderam; uma vez aí, depois
de expandirmos a nossa alegria, pudémos conversar
calmamente.
- Sabes - disse-me Mattia -, não estou disposto
a esperar pelo dia de amanhã para falar com a senhora
Milligan; neste meio tempo James Milligan pode matar Artur.
Vou já procurar a senhora Milligan e dizer-lhe... tudo o que
sabemos. Como o cunhado nunca me viu, não há perigo que se
lembre de ti e da família Driscoll; será a senhora Milligan
quem decidirá o que devemos fazer.
Evidentemente que a proposta de Mattia era sensata;
deixei-o ir e, antes, combinei com ele um encontro num grupo
de castanheiras que se achava ali perto; se por acaso eu visse
vir James Milligan, poderia esconder-me lá.
Deitado sobre o musgo, esperei muito tempo o
regresso de Mattia, e Já pensara mais de dez vezes
se não nos teríamos equivocado, quando enfim o vi
voltar acompanhado da senhora Milligan.
Corri para ela e, agarrando-lhe na mão que estendia para
mim, beijei-a; porém ela enlaçou-me com os braços e,
Inclinando-se, deu-me um beijo terno na testa.

Era a segunda vez que ela me beijava; no entanto,


pareceu-me que da primeira não me apertara assim
nos seus braços.
- Pobre, querido filho! - murmurou.
E com os seus belos dedos brancos e macios afastou-me os
cabelos a fim de me contemplar.
- Meu filho - disse ela sem desviar de mim os
olhos -, o seu camarada informou-me de coisas muito
graves. Só devemos, pois, agir com prudência e depois
de consultarmos pessoas competentes para nos guiarem. Mas até
lá, considere-se como camarada, como amigo (ela hesitou um
pouco), como Irmão de Artur; e deve, desde hoje, abandonar,
tanto você como o seu amiguinho, a sua vida miserável; daqui a
duas horas apresentem-se em Territet, no hotel
dos Alpes, onde vou mandar uma pessoa de confiança
tratar da vossa hospedagem; será lá que nos encontraremos,
pois tenho de os deixar.
Beijou-me novamente e, depois de apertar a mão
de Mattia, afastou-se com passo rápido.
- Que foi que contaste à senhora Milligan? - perguntei a
Mattia.
- Tudo o que ela te acabou de dizer e muito mais coisas.
Ah! Que senhora tão boa e tão bonita!
Continuei a interrogar Mattia; evitou responder
concretamente. Então falámos de coisas indiferentes
até ao momento em que, conforme a recomendação
da senhora Milligan, nos apresentámos no hotel dos
Alpes. Se bem que tivéssemos o nosso miserável traje
de músicos ambulantes, fomos recebidos por um criado de casaca
e gravata branca que nos conduziu aos nossos aposentos. Como
nos pareceu lindo aquele quarto! Tinha dois leitos brancos; as
janelas davam para uma varanda suspensa sobre o lago, e o
panorama que se abrangia dali era maravilhoso: quando nos
decidimos a voltar para o quarto, o criado, que
continuava imóvel a esperar as nossas ordens, perguntou-nos o
que desejávamos para o jantar que ele nos Ia servir na
varanda.

- Têm tortas? - indagou Mattia.


- Temos torta de ruibarbo, de morangos e de
groselhas.
- Então, traga-nos as tortas.
- As três?
- Pois claro.
- E que desejam de entrada, de assado e de
legumes?
A cada palavra do criado Mattia arregalava os
olhos, mas não se desconcertou.
- O que quiser - respondeu ele.
O criado saiu gravemente.
- Tenho a Impressão de que vamos jantar melhor
aqui do que na casa da família Driscoll.
No dia seguinte, a senhora Milligan veio visitar-nos,
acompanhada de um alfaiate e duma costureira que nos tomaram
as medidas para fatos e roupa
branca.
Disse-nos que Lise continuava a tentar falar e que
o médico lhe afirmara que ela estava curada. Depois
de passar uma hora connosco, deixou-nos, beijando-me
ternamente e apertando a mão a Mattia. As suas visitas
repetiram-se nos três dias seguintes, e ela mostrou-se cada
vez mais afectuosa, mas todavia um tanto constrangida, como se
não quisesse
abandonar-se a essa ternura e manifestá-la abertamente.
Ao quinto dia, foi a criada que eu vira outrora no
Cisne quem veio em seu lugar; participou-nos que a
senhora Milligan nos esperava em casa e que à porta
do hotel estava uma carruagem para nos levar lá:
era uma caleça descoberta na qual Mattia se instalou com ar
muito digno e desembaraçado como se desde pequeno andasse de
carruagem; Capi também pulou atrevidamente para cima duma das
almofadas.
O trajecto foi curto; pareceu-me mais curto ainda,
pois eu Ia como num sonho, com o cérebro cheio de
Ideias loucas, ou pelo menos que imaginava loucas.
Mandaram-nos entrar para um salão onde se encontrava

a senhora Milligan, Artur deitado num divã, e Lise.


Artur estendeu-me os braços; corri para ele a fim
de o abraçar; beijei Lise, mas a senhora Milligan foi
quem me beijou.
- Enfim - disse-me ela - soou a hora em que
pode retomar o lugar que lhe pertence.
Como eu a olhasse para lhe pedir a explicação
daquelas palavras, foi abrir a porta e vi entrar a mãe
Barberin que trazia nos braços roupinhas de nené,
uma capa branca, uma touca de renda e sapatinhos de lã.
Só teve tempo de descansar estes objectos numa
mesa antes de eu correr a abraçá-la; enquanto eu
estava nessa efusão de ternura, a senhora Milligan
deu uma ordem ao criado; só ouvi o nome de James
Milligan, o que me fez empalidecer.
- Não receie nada - disse-me ela docemente
venha para junto de mim e dê-me a sua mão.
Neste momento abriu-se a porta do salão e James
Milligan apareceu sorridente, mostrando os dentes
aguçados; logo que me viu o sorriso desapareceu-lhe
e foi substituído por uma careta feroz.
A senhora Milligan não lhe deu tempo a falar:
- Mandei-o chamar - disse ela em voz lenta e
ligeiramente trémula - para lhe apresentar o meu
filho mais velho que tive enfim a felicidade de encontrar (e
ela apertou-me a mão). Aqui está ele; mas já o conhece, visto
que foi a casa do homem que o roubou a fim de se informar da
sua saúde.
- Que quer dizer? - balbuciou James Milligan
com a fisionomia alterada.
- Esse homem, que hoje está preso por causa
dum roubo cometido numa Igreja, fez uma confissão
completa. Eis aqui uma carta que confirma o que
digo: declarou como executou o rapto deste meu filho,
como o abandonou em Paris, na Avenida de Breteuil;
finalmente, como tomou todas as precauções, cortando as marcas
da roupa da criança para que não descobrissem
quem ela era. Aqui estão essas roupas que foram guardadas pela
excelente mulher que generosamente criou o meu filho. Deseja
ler esta carta? Deseja ver estas roupas?
James Milligan ficou Imóvel um Instante, certamente a
pensar se deveria ou não estrangular-nos a todos; em seguida
encaminhou-se para a porta. porém, antes de sair, voltou-se e
disse:
- Veremos qual a opinião dos tribunais acerca
desse filho suposto.
Sem se perturbar, a senhora Milligan - agora
posso dizer minha mãe - respondeu:
- Se quiser, recorra aos tribunais; eu, não levarei
lá aquele que foi o Irmão de meu marido.
A porta fechou-se sobre meu tio; então lancei-me
nus braços que minha mãe me estendia e pude beijá-la pela
primeira vez enquanto ela me enchia de beijos.
Quando a nossa comoção se acalmou um pouco,
Mattia aproximou-se:
- Fazes favor de dizer à tua mamã que eu guardei bem o
segredo dela?
- Então Já sabias tudo? - perguntei.
Minha mãe encarregou-se da resposta:
- Quando Mattia me fez a sua narrativa, recomendei-lhe
silêncio, pois, se eu tinha a convicção de que o pobre Remi
era meu filho, necessitava de provas para que o erro não fosse
possível. Que mágoa para ti, meu querido, se depois de eu te
considerar e te beij ar como a um filho, te viesse dizer que
nos havíamos enganado[ Essas provas temo-las, e agora
estamos reunidos para sempre; para sempre viverás
com tua mãe e teu Irmão e com aqueles que te estimaram
enquanto foste Infeliz.
E a estas últimas palavras, minha mãe apontou
para Lise e Mattia.

CAPÍTULO 44.

EM Família.
PASSAraM-SE anos - muitos mas rápidos, visto
serem preenchidos de dias felizes e agradáveis.
Habito neste momento na Inglaterra, em Milligan-Park, o
solar de meus pais. A criança sem família não só tem
agora mãe e
Irmão que a estimam e a quem ama, mas também
tem antepassados que lhe legaram um nome honrado no seu país
e uma grande riqueza. O pequeno miserável, que tantas
noites dormiu
nos celeiros, nos estábulos, ou ao relento no canto
de um bosque, é presentemente o herdeiro de um
velho castelo histórico que os curiosos visitam e os
guias recomendam.
Fica situado a umas vinte léguas a oeste do local
onde embarquei, perseguido pela polícia, na meia
encosta de um vale muito arborizado apesar da
vizinhança do mar.
É neste velho solar de Milligan-Park que vivemos
todos em família, minha mãe, meu irmão, minha
mulher e eu.
Há seis meses que nos Instalámos aqui.
Vamos baptizar o nosso primeiro filho, o meu
filho, o pequeno Mattia, e por ocasião desse baptismo,
reunirei no solar de meus pais todos aqueles que
foram meus amigos dos maus dias passados.
Só um faltará a esta festa-pois por muito
grande que seja o poder da riqueza, ela não pode dar
vida aos que morreram. Pobre e querido velho mestre, como eu
ficaria feliz em te assegurar o descanso na velhice! Em Paris,
no cemitério Montparnasse, o
nome de Carlo Balzani está inscrito no jazigo que
a minha mãe, a meu pedido,,ergueu para ti; e o busto
de bronze, esculpido conforme os retratos publicados
no tempo da tua celebridade, recorda a tua memória
àqueles que te aplaudiram. Não te esqueci, nem esquecerei
jamais, tem a certeza disso. E durante a festa o teu lugar
será piedosamente reservado: se não me vês, ver-te-ei eu.
Aí vem minha mãe que avança na galeria dos
retratos; continua tal e qual como quando me apareceu a
primeira vez na varanda do Cisne, com o seu ar nobre, tão
cheio de doçura e de bondade; mas a
melancolia, que então lhe sombreava o rosto, desvaneceu-se
completamente. Chega apoiada no braço de Artur, pois
agora já
não é a mãe que sustém o filho débil e cambaleante,
é o filho, que se tornou num belo e vigoroso rapaz,
quem, com afectuosa solicitude, oferece o braço à
mãe; pois ao contrário do prognóstico de meu tio
James Milligan, o milagre realizou-se: Artur venceu
a doença.
Alguns passos atrás deles vejo aproximar-se uma
mulher velha, vestida como uma camponesa de
França, que trás nos braços uma criancinha embrulhada numa
capa branca; a velha camponesa é a mãe Barberin e o nené é o
meu filho, o meu pequeno
Mattia.
Depois de encontrar minha mãe, quis que a mãe
Barberin ficasse connosco; não aceitou a proposta,
dizendo-me nessa ocasião:
- Não, meu querido Remi, o meu lugar não é em
casa de tua mãe. Deixa-me voltar para Chavanon,
o que não quer dizer que a nossa separação seja
eterna. Vais crescer, casar, e hás-de ter filhos. Então,
se quiseres, e se eu ainda for viva, voltarei para
junto de ti para ajudar a criar os teus filhos. Não
poderei ser ama deles como fui tua, pois nessa altura
serei velha, mas a velhice não Impede de cuidar bem
de uma criança.
Fez-se o que a mãe Barberin desejava: pouco
tempo antes do nascimento do meu filho, foram
buscá-la a Chavanon, e ela abandonou tudo - a casa dela, os
amigos, a vaca, filha da outra que lhe oferecêramos -para vir
viver connosco. O nosso pequeno Mattia é amamentado pela mãe,
mas
quem cuida
dele, quem, o diverte e lhe faz mimos é a mãe Barberin, que
declara a toda a gente que nunca viu criança tão linda como
aquela.
Artur traz na mão um número do Times; coloca-o
na minha mesa de trabalho e pergunta-me se já o li.
Perante a resposta negativa aponta com o dedo uma
notícia do correspondente de Viena, que eu traduzo:
«Dentro de alguns dias, Londres receberá a visita
de Mattia; apesar do extraordinário êxito que a
série dos seus concertos obteve aqui, ele deixa Viena,
chamado à Inglaterra por compromissos a que não
pode faltar. Já aqui falámos dos seus concertos; produziram
grande sensação, tanto pela originalidade e poder de expressão
do virtuoso, como pelo talento
do compositor; para dizermos tudo em poucas palavras, do
violino.» Mas, Mattia é o Chopim, não tenho necessidade deste
artigo para saber que o pequeno músico das ruas, meu camarada
e aluno, se tornou num grande artista.
Neste momento um criado entrega-me um telegrama que
acabam de trazer.
«Esta é talvez a travessia mais curta, mas não a
mais agradável. Aliás, haverá alguma agradável por
mar? Seja como for, estive tão enjoado que só em
Red-Hill arranjei forças para te prevenir. Passei em
Paris e trouxe Cristina. Chegaremos a Chegford às
quatro horas e dez minutos. Manda uma carruagem
ao nosso encontro.

Mattia.»

Ao nome de Cristina eu olhei para Artur, porém


ele desviou os olhos, e só ergueu as pálpebras quando
cheguei ao fim da leitura.
- Tenho vontade de ir a Chegford - diz ele -,
vou mandar atrelar o landau.
- É uma excelente Ideia; no regresso virás junto
de Cristina.
Sem responder, ele sai vivamente do quarto;
então volto-me para minha mãe e digo-lhe:
- Como vê, Artur não dissimula a sua solicitude;
aquilo é significativo.
- Artur confessou os seus sentimentos e aspirações?
- Sim -querida mamã, - digo eu sorrindo -, dirigiu-se a
mim como ao chefe da família. -E o chefe da
família?...
- Prometeu ajudá-lo.
Minha mãe interrompe-me:
- Aí vem a tua esposa. Falaremos de Artur mais tarde.
Minha mulher -não é preciso que eu o diga, já
o adivinharam, não é verdade? - minha mulher é a
rapariguinha de grandes olhos e rosto expressivo que
os leitores conhecem, é Lise, a pequena Lise, esbelta,
frágil, aérea; Lise já não é muda, mas felizmente
conservou o seu ar frágil e aquela leveza que lhe dão
à formosura qualquer coisa de celeste.
- Então que é isso? - disse Lise ao entrar. - Que
segredos são esses?
Sorrimos mas não lhe respondemos.
Passou-se uma hora.

Neste momento, e quase simultaneamente, ouvimos o rodar


de duas carruagens; corremos à janela e vimos o break no qual
Lise reconhece o pai, a tia
Catarina, a irmã Estefânia, os irmãos Aleixo,e Benjamim; junto
de Aleixo vem sentado um velhoencanecido e curvado: é o
professor. Do lado oposto chega o landau descoberto donde
Mattia e Cristina nos
fazem sinais com as mãos. Atrás do landau vem um
cabriolé guiado pelo próprio Bob; Bob tem todo o
aspecto de um gentleman, e o irmão é sempre o rude
marinheiro que nos desembarcou em Isigny.
Descemos rapidamente a escada a fim de recebermos os
nossos convidados no patamar da entrada. Reunimo-nos
todos ao jantar em volta da mesa e,
como é natural, recordámos o passado.
- Encontrei há pouco tempo em Bade - diz
Mattia - nas salas de jogo, um cavalheiro de dentes
brancos e aguçados que sorria sempre apesar da
pouca sorte. Não me reconheceu e deu-me a honra
de me pedir um florim para o jogar numa certa
combinação de números de que ele previa o êxito;
mas não foi feliz e o senhor James Milligan perdeu.
- Por que é que conta isso defronte de Remi,
meu caro Mattia? - diz minha mãe.-Ele é capaz
de mandar dinheiro ao tio.
- Muito capaz, querida mamã.
- Nesse caso, onde está a expiação? - perguntou
minha mãe.
- No facto de meu tio, que tudo sacrificou pelo
dinheiro, ficar a dever o seu pão àqueles que ele
perseguiu e a quem desejou a morte.
- Tive notícias dos seus cúmplices - diz Bob.
- Do horrível Driscoll? - indaga Mattia.
- Não do próprio Driscoll, que deve estar muito
longe, mas da família Driscoll; a mãe morreu queimada em certo
dia que se deitou sobre a lareira em vez de se deitar na cama,
e Allen e Ned foram há tempos condenados ao degredo; vão
reunir-se ao pai.
- E Kate?

- A pequena Kate cuida do avô que continua


vivo; mora com ele no pátio do Leão-Vermelho; o
velho tem dinheiro e eles não são infelizes.
- Se a rapariga é friorenta, lastimosa - comenta
Mattia a rir. - O velho não consente que se aproximem da
lareira.
E, nesta evocação do passado, cada um diz uma
coisa. Não temos recordações comuns de que gostamos de falar
uns aos outros? É o laço que nos une.
Acabado o jantar, Mattia aproxima-se de mim e
leva-me para o vão de uma janela:
- Tenho uma ideia - diz-me ele. - Temos tocado
tantas vezes para indiferentes que devíamos fazer um
concerto para aqueles que estimamos.
- Para ti, não há alegria sem música; música
sempre música por toda a parte; lembra-te do medo da vaca.
- Queres cantar a canção napolitana?
- Com grande prazer, pois ela é que fez Lise falar.
E vamos buscar os nossos instrumentos; de uma
bela caixa forrada de veludo, Mattia tira um velho
violino que, se o quiséssemos vender, nem nos dariam
dois francos por ele, e eu retiro do seu invólucro uma
harpa cuja madeira lavada pelas chuvas retomou a
sua cor natural.
Fazem círculo à nossa volta, mas neste momento
um cão - Capi - apresenta-se; está muito velho, o
bom Capi, tornou-se surdo mas conserva boa vista.
Da almofada onde está sempre deitado, reconheceu a
harpa e aproxima-se, coxeando, para o «espectáculo». Traz uma
bandeja nos dentes; quer mostrar as suas habilidades ao
«respeitável público» caminhando nas patas traseiras, mas
faltam-lhe as forças e então senta-se e cumprimenta o
«público», colocando uma pata no peito.
No fim da canção, Capi levanta-se e, conforme
pode, faz o «peditório»; Cada um põe a sua oferta na
bandeja, e Capi, maravilhado com a receita, vem
entregar-ma. É a mais bela que eu jamais fiz, só

há moedas de ouro e de prata: cento e setenta francos.


Beijo-o no focinho como outrora, quando ele me
consolava, e a evocação da miséria da minha infância sugere-me
um projecto que explico imediatamente:
- -Esta soma será a primeira destinada a fundar
uma casa de protecção e de refúgio para os pequenos
músicos das ruas; minha mãe e eu faremos o resto.
- Minha querida senhora - diz Mattia beijando
a mão de minha mãe -, peço-lhe que me deixe contribuir para a
sua obra; se me permite, o produto do primeiro concerto que
darei em Londres juntar-se-á à receita de Capi.
Falta uma página ao meu manuscrito, a que deve
ter a minha canção napolitana; escreveu-a Mattia,
que é melhor músico do que eu.

FIM

***

Biblioteca das Raparigas

EM FAmílIA

HECTOR MALOT

PORTUGáLIA EDITORA
LISBOA

Do mesmo autor e nesta colecção, «Em Família» é


um romance cheio de ternura. Fevrine, que cedo se tornou órfã,
vê-se a braços com a mais negra miséria: noites ao
relento, a comida angariada e preparada com muito esforço, a
falta de um lar onde acolher-se. Mas Fevrine é uma rapariguita
cheia de coragem e tem de cumprir o juramento
que fez à mãe no seu leito de morte: procurar a família que
nunca viu. Para isto oferece-se como operária na fábrica do
senhor Vulfran - o avô desconhecido que encontra cego.
Durante um ano, Fevrine tem de lutar com o desejo de dar-se a
conhecer e o medo de ser mal recebida, com a energia dos
chefes que a vêem tornar-se cada vez mais imdispensável ao
Senhor Vulfran.
Mas conseguirá vencer os obstáculos que constantemente
se lhe deparam? Conseguirá, finalmente, realizar a grande
esperança do seu coração faminto de ternura?

Data da Digitalização

Amadora, Outubro de 1996

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