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FILOSOFIA
Aprovada em ____/____/_____.
MEMBROS TITULARES:
_______________________________________________
Prof. Dr. Rafael Haddock Lobo (UFRJ)
_______________________________________________
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À meus avós.
5
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................... 6
Conclusão ..................................................................................................... 30
Bibliografia ................................................................................................... 33
6
Introdução
No entanto, é bem como o avesso deste projeto que a metafísica, aos olhos de Bergson,
prosseguiu em sua história. Cada vez mais distante das coisas que pretendia compreender, se
fazendo presa das ilusões de “rigor” (aliás, de todo necessárias e quase inevitáveis, análogas àquelas
que Kant denunciava na Crítica da Razão Pura) do entendimento humano, ela seguiu uma
tendência inversa à que pretendia na medida em que se deixou guiar pela inteligência – forma do
espírito que se dedica a garantir a eficácia da ação humana – e pelos hábitos adquiridos por esta no
domínio de nossas práticas usuais. A metafísica acabou, desta maneira, dominada pelos ideais de
rigor e certeza, se tornando um antropocentrismo refletido que estende às coisas as imagens
1
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p.196.
7
desenvolvidas em função de nossas práticas e de nossa vida cotidiana, no qual todo tipo de
miragens se produzem, dando origem a um repertório de falsos problemas e problemas mal
colocados, levantando antinomias insolúveis e se afastando cada vez mais da experiência.
Seria necessário que por um esforço violento o espírito invertesse sua direção
habitual2, aquela de nossa vida usual, e operasse uma verdadeira emendatio em seus procedimentos,
se instalando novamente no imediato: “a metafísica se tornará então a experiência mesma”3. Esta
inversão é a intuição, desenvolvimento próprio ao bergsonismo, que não é outra coisa além do
próprio espírito na medida em que este se insere na experiência concreta e a segue em todas as suas
sinuosidades e seu desenvolvimento constitutivo.
Tentaremos, neste breve trabalho, expor o papel da idéia de intuição na obra de Henri
Bergson, idéia que é a pedra de toque de todo pensamento do filósofo. Este trabalho fará,
necessariamente, com que nos debrucemos em alguns instantes sobre o desenvolvimento da idéia de
duração, o coração vivo da filosofia bergsoniana, da qual a intuição não pode ser dissociada. É que,
ao inverter a tendência habitual do pensamento, a intuição será o esforço do espírito para seguir o
movimento que anima a experiência desde seu interior. A intuição bergsoniana não poderá,
portanto, ser assimilada ou comparada com aquela que encontramos no romantismo ou no
intelectualismo: ela não é um sentimento de identidade absoluta (intuição dita verdadeira da qual já
se parte como de uma definição) ou uma evidência clara para uma consciência reflexiva (intuição
que marca a transparência total de um objeto ao entendimento) – ideais que de qualquer maneira
marcam a presença instantaneamente acessível de uma idéia clara e verdadeira no espírito - , mas o
esforço do espírito para colocar-se em movimento e ultrapassar-se a si mesmo, seguindo neste
gesto o fluxo da própria duração que constitui o tecido da experiência (a intuição não nos parece
de maneira alguma ser a idéia verdadeira da qual parte um método sintético ou a evidência de um
método analítico, mas sim o procedimento característico de um método genético; ela não é, no
bergsonismo, o objeto de um conhecimento determinado, ao qual ela serviria como signo de sua
veracidade, mas um verdadeiro procedimento metódico).
experiência. No entanto nos pareceu cabível fazer algumas observações preliminares sobre a
natureza do processo de investigação e indicar como e por que este processo se confunde com a
própria metafísica, de modo a tentarmos desenvolver uma breve introdução à teoria do método de
Bergson.
A experiência da duração exprime a natureza do tempo tal como ele é vivido por uma
consciência que o percebe imediatamente, ao mesmo tempo como sucessão e continuidade, e o
caracteriza como um impulso simples (sem partes) de mudança. Será a própria experiência da
passagem que o tempo envolve que será colocada como centro da realidade, e partir dela serão
recolocados todos os problemas da metafísica em função deste novo critério de realidade e
efetividade7. Ela será descrita como uma multiplicidade qualitativa ao mesmo tempo diferenciada
em suas qualidades, uma vez que a cada fase de sua passagem o tempo se apresenta como
heterogeneidade e desenvolvimento de uma “novidade radical” em relação ao passado, e indivisa ou
contínua, pois todo o passado está implicado nas fases atuais da duração, constituindo a unidade do
ato de passagem do tempo8.
O primeiro equívoco em relação a este ponto seria crer que a filosofia bergsoniana se
transforma, assim, em simples observação passiva da temporalidade – nada mais distante do espírito
do bergsonismo: “Como ela apareceria [a duração] a uma consciência que apenas desejasse vê-la
sem medi-la, que a compreendesse então sem detê-la, que se tomasse enfim a si mesma por objeto,
e que espectadora e atriz, espontânea e refletida, aproximaria até fazer coincidir a atenção que se
fixa e o tempo que foge?”9. Se o bergsonismo é, como já foi dito, um empirismo superior10, é porque
ao não dividir a experiência em matéria e forma, legando à primeira a natureza de um conteúdo
indefinido por si mesmo e à segunda uma existência intelectual como estrutura a priori que se
decalca sobre uma matéria indefinida para a produção de um objeto distinto, a tomará como uma
experiência em estado puro11. A distinção entre os “dados dos sentidos” e um sujeito que lhes seria
7
“Est réel tout ce qui est perçu ou perceptible. Pour savoir si une chose est réelle,
cherchez seulement si elle fait ou pourrait faire lóbjet d’une expériencie actuelle de
l’esprit; Il n’y a pás d’autre signe de vérité que cette possibilite, pour um fait réel,
d’être experimente ou vecú par une conscience” JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Henri
Bergson, p. 31. Mas uma “experiência atual do espírito”, um acontecimento “vivido
por uma consciência”, só pode se fazer como uma experiência da temporalidade –
falando mais propriamente, a experiência de uma certa duração.
8
Em diversos momentos Bergson empregará a imagem de uma melodia para
sugerir a experiência da duração. Uma melodia se caracteriza por um processo
contínuo de mudança temporal, cada etapa desenvolvendo as anteriores ao mesmo
tempo em que as implica; tanto a ausência de continuidade quando a de
desenvolvimento desnaturam a melodia enquanto tal e acabam por nos
apresentam um monótono ou uma irredutível cacofonia. Cf. os casos exemplares no
Essai sur les donées immédiates de la conscience, p. 75-78, 93, 111.
9
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p.4.
10
DELEUZE, Gilles. Le bergsonime, p. 22.
11
Nisto, Bergson novamente não está sozinho. Sua “fenomenologia” – enquanto
modo de investigação de uma experiência pura – é radicalmente distinta daquela
que se origina com a obra de Kant. Guardadas as distâncias e divergências entre os
pensadores, o tema de uma experiência pura ou transcendental como alternativa a
partilha kantiana entre fenômenos e coisas-em-si-mesmas parece ser, segundo as
10
exterior não mais se aplica, e a experiência não será mais experiência de dados condicionados12,
mas campo em que o espírito e seu exterior são coextensivos; ela será, assim, propriamente
compreendida como consciência, presença imediata de espírito e matéria.
indicações de Bento Prado Júnior, Jean Hyppolitee e Gilles Deleuze , partilhada tanto
pelos idealistas alemães – Maïmon, Fichte e Hegel – quanto por William James, ele
mesmo próximo de Bergson. Ela será retomada pelo próprio Deleuze no
desenvolvimento de seu “empirismo transcendental”. Cf. PRADO JR., Bento.
Presença e Campo Transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de
Bergson; HYPPOLITE, Jean. “Bergson” in Figures de la pensée philosophique, t. I, p.
443-498. Paris: PUF. 1981; DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition, p. 221-226.
Paris: PUF. 2000; JAMES, William. “A World of Pure Experience” in Essays in Radical
Empiricism, p. 19-42. New York: Cosimo. 2008.
12
A própria experiência será liberada da noção de “dado”.
13
“La métaphysique est donc la connaissance qui surmonte, quant à des objets
déterminés, l’écart entre notre connaissance et la réalité, et accéde ainsi à
l’absolu.” WORMS, Frédéric. Le vocabulaire de Bergson, p.44.
14
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 227.
11
Portanto, é preciso que o processo pelo qual se toma conhecimento da matéria, com
vistas à ação, seja adequado às próprias exigências de seus objetos preferenciais: este método
12
deveria poder compreender tudo o que há de fixo ou estável na realidade – talvez até fixá-la ele
mesmo – visando à mensuração e utilização, deveria apresentar as próprias coisas na medida em
que delas podemos tirar proveito para nossa vida, negligenciando tudo aquilo que delas não lhe
interessa e que poderia vir a dificultar ou confundir sua ação, de modo a aumentar a comodidade
desta mesma ação. Tal método se guiará pelo ideal do rigor ou da exatidão, e o formalismo - a
própria cisão da experiência em matéria e forma segundo os moldes de Kant parece ser uma das
exigências típicas da inteligência – ou intelectualismo, crença na possibilidade de que o
entendimento possa compreender a substância da realidade, que o caracteriza como método
rigoroso reflete as exigências de validade universal (versatilidade prática), clareza (facilidade de
uso) e certeza (garantia de eficácia).
Novamente, Bergson retoma uma inspiração kantiana e eleva o espaço a uma forma
pura, mas não mais da sensibilidade, pois aqui o espaço passa a exprimir o modo de ação própria da
inteligência humana na medida em que esta se adapta à matéria. Não apenas isso, mas a forma de
um espaço vazio é o aprofundamento de uma certa tendência da matéria a se fixar em superfícies
estáveis, relativamente vulneráveis à potência das ações humanas. Ao aplicá-lo e dividir a
materialidade segundo suas relações determináveis a inteligência “entende simplesmente com isso
que deixará de lado, no universo, tudo aquilo que não é calculável”, ou ainda, tudo o que não se
deixa fixar ou determinar com absoluta determinação. É esta estrutura espacializante da inteligência
que será colocada por Bergson como origem da linguagem e como vício oculto da história da
filosofia em sua tentativa de identificar o todo das coisas que existem à sua representação.
15
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. 72
13
Deve ser admitido que o aspecto da vida humana que se envolve com o domínio
caracterizado como exterioridade, inclusive como meio de nossa existência social, é o
que exige a maior atenção e adaptação, justamente por ser o domínio de nossas
necessidades urgentes. Tendo nossa existência necessariamente ligada a uma tal
gregariedade da vida social, nós tendemos instintivamente, ou talvez mesmo por um
hábito longamente difundido, a impor a nossas impressões a forma da linguagem para
comunicá-las ao meio circundante.17
“O que mais faltou à filosofia foi a precisão. Os sistemas filosóficos não são
talhados na medida da realidade em que vivemos. São largos demais para ela. (...) É
que um verdadeiro sistema é um conjunto de concepções tão abstratas e, por
16
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. VII
17
Pode-se notar certo paralelismo com a Genealogia da Moral de Nietzsche.
14
conseguinte, tão vastas, que nele caberia todo o possível, e mesmo o impossível, ao
lado do real.”18
18
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p.3.
19
A primeira introdução de La pensée et le mouvant.
20
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 8.
21
Cf. todo o quarto capítulo de Matéria e memória.
15
Através destas questões é que virá a luz a noção de duração, como motor de
todo o pensamento de Bergson. Ela apresenta é uma tentativa de pensar como atributos
positivos estas realidades temporais, que são o próprio tempo, a mudança, o movimento
ou a vida, para além da soma reducionista de unidades “infinitamente pequenas” que a
inteligência se esforça para encontrar nas coisas.
Poder-se-ia dizer que há duração sempre que houver sucessão contínua ou fluxo,
qualquer que seja ele, de modo a constituir uma totalidade organizada, qualquer que seja
esta organização. A duração jamais poderá ser reduzida a simultaneidade, e duas fases
deste processo jamais podem coexistir: ela constitui, portanto, uma multiplicidade
22
Neste ponto, seria interessante retomar as considerações de Bergson sobre o
cinema de seu tempo. Em uma nota de O pensamento e o movente, escreve: “Se o
cinematógrafo nos mostra em movimento, na tela, as vistas imóveis justapostas no
filme, é sob a condição de, por assim dizer, projetar sobre essa tela, com estas
vistas imóveis elas próprias, o movimento que está no aparelho”. BERGSON, Henri,
O pensamento e o movente, p. 9.
23
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. 75
16
temporal. Mas ao mesmo tempo, deverá haver unidade na duração, como no próprio ato
de passagem que instaura a continuidade entre a fase anterior e a fase que a segue; é por
isso que o Essai sur les données immédiates de la conscience poderá caracterizá-la
como multiplicidade qualitativamente heterogênea e ao mesmo tempo contínua, em
oposição ao tipo de multiplicidade apresentado pelo espaço e à concepção do tempo que
dele deriva. Contra um tempo cronológico e homogeneizante, decomposto segundo
dimensões (presente, passado e futuro) ou em partes (momentos ou instantes).
Diferentemente do espaço, a duração será descrita não como uma forma a priori
do entendimento, e é neste ponto que Bergson se revela como o avesso de todas as
propostas do kantismo, mas como estofo mesmo da realidade, chegando a ser descrita
como a substância do real, compondo verdadeiramente um Absoluto, além do qual não
poderá haver mais nada. Em suma, a duração é o próprio tempo enquanto caracterizado
como processo de diferenciação imanente.24 É então que “a metafísica tornar-se-á a
própria experiência” e “a duração revelar-se-á tal como é, criação contínua, jorro
25
ininterrupto de novidade”. Se o desenvolvimento e os usos da idéia de duração são o
que definem a obra de Bergson em seus diferentes aspectos, é porque a própria duração
só existe de maneira singular, enquanto se individua de maneira diferente em um
fenômeno ou outro.26
24
Eis a causa de todo interesse de Deleuze pela filosofia de Bergson. De fato, é a
duração que servirá de modelo para a concepção que Deleuze fará do devir.
25
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 11.
26
Frédéric, Bergsouou les deux sens de la vie.
17
inteligência poderá ser levada a simpatizar com a realidade da duração. Notemos que a
grande maioria das obras de Bergson começa com a apresentação e a crítica dos
impasses aos quais a inteligência pode chegar quando abandonada a si mesma e a seu
ideal de rigor nas especulações filosóficas, para apenas em seguida esboçar uma
recolocação e solução do problema nos termos da duração.
Por isso mesmo, “”Intuição” é, aliás, uma palavra frente à qual hesitamos
longamente. De todos os termos que designam um modo de conhecimento, ainda é o
mais apropriado; e, no entanto, presta-se a confusão”29 ou ainda “a teoria da intuição
sobre a qual o senhor insiste muito mais do que sobre a teoria da duração, só se
destacou a meus olhos muito tempo após essa última”.30
29
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 29.
30
BERGSON, Henri. Lettre à Höffding in Écrtis et Paroles, p. 456.
19
31
Gostaríamos de sustentar que a obra de Bergson poderia ser lida como uma
retomada daquilo que a dialética transcendental evitava, ao menos em seus quatro
grandes livros. Passa-se de um problema psicológico sobre a natureza da alma para
sua relação com o mundo, pela formulação de uma cosmologia que resolverá o
problema da liberdade para ao fim se chegar a uma reflexão experimental sobre
deus.
32
A própria duração se fará em muitos campos, em fenômenos que a cada
momento a apresentam em um aspecto complementar: Liberdade, Memória, Vida,
etc.
20
centro do real uma construção que ela mesma montou com suas representações parciais,
não se poderá esquecer que ela não apenas tem imensa utilidade prática, mas está
inscrita como tendência prioritária e reforçada pelo hábito do pensamento humano,
tendo mesmo importância vital como a análise dos fenômenos vitais em L’Évolution
créatrice não cessará de relembrar. Isto é, a inteligência se revela ao pensamento como
direção facilitada a seguir, tendo âmbito válido no que diz respeito à vida prática e
social e a seu aprofundamento nas ciências positivas. Contrariamente, a intuição exigirá
um extremo esforço pelo qual o pensamento segue em direção contrária àquela que
tende no homem, fazendo o movimento de retorno do condicionado ao condicionante,
rumo à gênese metafísica da experiência, em um movimento capaz de pensar a
diferença fundamental entre o fundamento e aquilo que ele fundamenta, fazendo com
que o homem deixe de ser concebido como “um império em um império”. A afinidade
natural entre o pensamento e o Absoluto que percorreu alguns aspectos do idealismo
alemão e que fundamentava o que estes mesmo chamaram de intuição como contato
imediato com um princípio supra-sensível, nada tem a ver com o sentido bergsoniano da
intuição. Esta última exige um paciente e árduo trabalho de conversão do pensamento
em direção à verdadeira duração. “Para isso é preciso que [o pensamento] se violente,
(...) que revire, ou antes, refunde incessantemente suas categorias” 38 de maneira
metódica para que possa acompanhar a textura das coisas.
Mas novas percepções e idéias que a intuição permite revelar exigirão, também
elas, uma certa duração em sua clarificação. Contrariamente ao instantaneísmo
facilmente compreensível das idéias construídas pela inteligência, pois as
compreendemos quase que naturalmente, as idéias da intuição parecerão à primeira vista
contraditórias ou mesmo incompreensíveis. Apenas ao deixar que esta idéia trabalhe os
problemas colocados, veremos que ela os clarifica ou os recoloca, clarificando a si
mesma na medida em que o faz. Se a crítica da intuição é sempre fácil, é por esta
espécie de tendência inata que temos à espacialização do pensamento. Mas é apenas sob
a condição de violentarmos a nosso próprio pensamento que podemos pensar em
metafísica. Ao fim, parecem valer para o pensamento bergsoniano as palavras de
Spinoza:
38
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 221.
22
“Se o caminho que eu mostrei conduzir a este estado parece muito árduo, pode,
todavia, encontrar-se. E com certeza deve ser árduo o aquilo que muito raramente se
encontra. (...) Mas todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras.” 39
39
SPINOZA, Baruch. Ética, p. 411. São Paulo: Autêntica, 2007.
23
É através deste ato contingente que é a invenção do problema que ele será
trabalhado. Mas a contingência da invenção do problema não quer dizer arbitrariedade
40
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 54
24
em sua colocação, pois um problema, para ser bem posto, deve ter sentido filosófico, ou
seja, ser um problema real que corresponda a conteúdos qualitativos ou tendências
reais, que deixam de tratar das fantasmagorias da inteligência para tratar do que é.
O caso exemplar deste tipo de problema será o da origem do ser, que encontra
sua expressão acabada na formulação de Leibniz do princípio de razão suficiente: “por
que o ser e não antes o nada?” Acaba-se então por imaginar uma série de causas, umas
ligadas às outras ao infinito, até que, para fugir de uma tal vertigem realizamos toda a
série de causas do mundo em um ens realissimum como causa última que contem o grau
máximo de realidade (mas a mesma estrutura será encontrada ainda em outros
problemas, o problema da ordem que opera na cisão entre matéria e forma do
conhecimento “por que o mundo é ordenado de maneira a podemos pensá-lo?” e realiza
uma ordem absoluta do mundo em oposição a uma matéria desorganizada, ou o
problema dos infinitos possíveis e sua realidade lógica e do real finito em sua existência
efetiva). Contrariamente ao que nos parece óbvio, não é da idéia de ser que partimos,
mas do nada. Partimos dele como ausência total de propriedades que, por sua
simplicidade, deveria possuir anterioridade lógica ao ser real na ordem de produção das
coisas, segundo uma ordem de complexificação crescente dos seres e de suas
propriedades que veem cobrir este vácuo absoluto. Mas isto é coisa que a própria
experiência desmente, coisa que um pensamento que se fizesse em imersão na
experiência deveria abandonar. Contra uma síntese intelectualista que se esforça por
derivar a experiência de conceitos dela abstraídos por um procedimento de análise que
permanece em segredo, é dos “dados imediatos” que se deve partir na investigação.
para que estes elementos fixos possam se movimentar e ganhar vida. A experiência e a
duração só poderão ser ausência de eternidade ou de conhecimento claro e distinto.
Evitando reconstituí-la com aquilo que nela não encontramos, a experiência tem
sua consistência própria retornada. Estamos sempre diante de coisas, em relação com
coisas que são. Um nada absoluto do qual partir, e mesmo sua parcialização em uma
negatividade qualquer, são ficções de uma inteligência que forja o real com seus
instrumentos sem questionar a validade de seu uso. Como toda concepção inteligente, é
na prática que a negatividade encontra seu uso, em relação com a expectativa de um
organismo em relação a um objeto desejado, a substituição deste mesmo objeto e a
frustração do organismo desejante. Nada nos autorizaria a conceber valor metafísico a
esta idéia e se o fizermos recaímos no vício de inserção do condicionado no
condicionante, do empírico no transcendental, diria Kant. Este caso exemplar é apenas
um dentre outros e são operadas tantas outras ilusões retrospectivas quantas são as
miragens da inteligência (a anterioridade do possível ao real, do caos ao cosmo).
“Na idéia de não-ser, com efeito, há a idéia de ser, mais uma operação lógica
de negação generalizada, mais o motivo psicológica particular de tal operação
(quando um ser não convém à nossa expectativa e o apreendemos somente como falta,
como ausência daquilo que nos interessa). Na idéia de desordem já há a idéia de
ordem, mais sua negação, mais o motivo desta negação (quando encontramos uma
ordem que não é aquela que esperávamos).”41
41
DELEUZE, Gilles. O bergsonismo, p. 11.
26
A teoria dos problemas tem esta como sua primeira consequência: uma crítica do
negativo e dos problemas insolúveis que seu fantasma pode levantar em filosofia. Mas
há também um outro tipo de falso problema a ser evitado, os problemas mal colocados.
Neste caso, trata-se menos de idéias da inteligência que inexistem na experiência do que
de falsos agrupamentos das coisas, de problemas colocados segundo recortes arbitrários
e que não correspondem às “articulações naturais” . É o caso com o problema da
liberdade, quando se pergunta se o homem é causa de sua ação ou não, já inserindo
como soluções internas do problema as coordenadas do determinismo ou do livre-
arbítrio. Não se percebe então que sob o “problema da liberdade” são agrupados
diferentes estados e que a questão mesma que se pretende solucionar, aquela da natureza
da ação humana, não pode ser respondida segundo a formulação dada ao problema. É o
42
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 69.
27
mesmo deslize que se encontra sustentando ambos os enganos, pois quando se acredita
poder tratar dos problemas em metafísica segundo o mais ou o menos ou quando os
colocamos de maneiras que não correspondem à experiência é sobretudo porque
acreditamos poder colocá-los “como um juiz que interroga sua testemunha”, desde seu
exterior e segundo critérios que não são os seus.
Aplicando novos critérios aos problemas, os conceitos que operam junto a estes
também acabarão por se modificar profundamente. Aqueles com os quais operamos
usualmente e que são produzidos pelo entendimento 43, merecendo propriamente a
designação de conceitos, em seu sentido mais estrito, ganharão um devido estatuto
simbólico. Sendo representações próprias a inteligência, que em um primeiro momento
tenderá a reificá-los e a fazer com que estes modelos sejam a fonte de todas as coisas
reais, acabarão por passar a operar como “significados” em relação a seus
“significantes” sensíveis. Reconstruindo a história da filosofia como um romance dos
descaminhos da inteligência em metafísica, é essa a tese que Bergson atribuirá a
filosofia antiga em geral: “Há mais no imutável (o conceito) do que no movente e passa-
se do estável para o instável por uma simples diminuição”.44 Uma tal doutrina do
conceito como ens realissimum acabaria por dar lugar ao que Bergson identifica como a
doutrina do kantismo (na verdade, a extensão do debate parece dizer respeito mais aos
neo-kantianos alemães e a leitura epistemologizante de Kant do que a uma leitura crítica
das obras do filósofo alemão), a descoberta da total relatividade do conceito em relação
ao homem, de modo que todo o conhecimento se torna relativo àquilo ou a quem o
constitui como tal. Bastaria que a inteligência fosse levada a encarar o óbvio – a
ausência de legitimidade da aplicação de seus conceitos ao todo do real – para que a
metafísica sofresse tais consequências e que se assumisse como conhecimento de tipo
verdadeiramente simbólico e relativo.
Se a metafísica deverá ser possível, certamente não é como ciência – esta sim,
entendida por Bergson como legítimo domínio de nossas concepções do real segundo
uma rígida estrutura de símbolos, deverá permanecer relativa à nossa inteligência e sua
destinação técnico-prática: “a metafísica é, portanto, a ciência que pretende ultrapassar
43
Nos parece significativo ligá-los a sua matriz kantiana, como unificação discursiva
de um múltiplo da sensibilidade, unificação que de modo algum se confundo com
aquilo que ela unifica e é um produto da espontaneidade do entendimento humano.
44
BERGSON, Henri, O pensamento e o movente, p. 225.
28
os símbolos”.45 Sendo pensamento humano ela deverá necessariamente ser exposta sob
a forma da linguagem, mas deverá fazê-lo torcendo a linguagem desde seu interior,
forçando-a ao limite em que é levada a apenas sugerir aquilo que ela não pode explicar.
Mais propriamente, não deve acreditar que a filosofia de Bergson é um sistema,
composto por sua vez de conceitos. O tema da sugestão ou da indicação aqui se faz da
maior importância, pois tais imagens, chamadas pelo filósofo de “conceitos flexíveis”,
não compreendem um “conteúdo” diverso ao qual elas viriam unificar por uma síntese
em uma unidade discursiva, e os grandes “conceitos” propostos – duração, inconsciente,
matéria, memória, elã vital, etc. - devem ser tratados como imagens ou casos limite que
apenas sugerem uma tendência do movimento constituinte da realidade, como
hipóstases. Não se referindo a uma universalidade partilhada por singulares, os
conceitos flexíveis expressam “somente a escala ou curva contínua resultante do contato
entre realidades singulares e incomensuráveis (assim como o conceito de duração em
filosofia ou de diferencial nas matemáticas)”46, realizando o sentido do ideal de precisão
ao se adequarem com a maior proximidade possível ao objeto que têm por missão
designar. Eles só adquirem sentido enquanto exigidos pelos problemas trabalhados e
enquanto trabalham nestes problemas.
45
BERGSON, Henri, O pensamento e o movente, p. 188.
46
WORMS, Frédéric. Le vocabulaire de Bergson, p. 36.
29
“Uma idéia nova pode ser clara porque nos apresenta, simplesmente
arranjadas em um nova ordem, idéias elementares que já possuíamos. Nossa
inteligência, não encontrando então no novo nada além do antigo sente-se em território
conhecido; ela está à vontade; ela 'compreende' Tal é a clareza que desejamos, que
procuramos, e somos sempre gratos a quem no-la traz. Há outra que sofremos e que,
aliás, só se impõe com o tempo. É a clareza da idéia radicalmente nova e
absolutamente simples, que capta mais ou menos uma intuição.”47
47
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 33.
48
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 35.
30
Conclusão
49
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’union de l’âme et du corps chez
Malebranche, Biran et Bergson, p. 109.
31
como compreensão, “caso limite” em que o espírito é forçado a reconstruir este mesmo
objeto através do uso de imagens e conceitos flexíveis.
Bibliografia
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: PUF. 2007.
WORMS, Frédéric. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF. 2004.