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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

FILOSOFIA

INTUIÇÃO E MÉTODO NA FILOSOFIA DE H. BERGSON

Paulo Henrique Flores Cople


2

Rio de Janeiro, 2010

TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO

Trabalho realizado em cumprimento à exigência

para obtenção do Título de Bacharel em Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo


3

Parecer da comissão examinadora da monografia de:

PAULO HENRIQUE FLORES COPLE

INTUIÇÃO E MÉTODO NA FILOSOFIA DE H. BERGSON

Aprovada em ____/____/_____.

MEMBROS TITULARES:

_______________________________________________
Prof. Dr. Rafael Haddock Lobo (UFRJ)

_______________________________________________

Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues (UFRJ)

_______________________________________________

Prof. Dr. Guilherme Castelo Branco (UFRJ)

CONCEITO FINAL: _____________________


4

À meus avós.
5

INTUIÇÃO E MÉTODO NA FILOSOFIA DE H. BERGSON

SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................... 6

Capítulo I – Intuição e duração .................................................................... 11

Capítulo II – Intuição e filosofia ................................................................... 23

Conclusão ..................................................................................................... 30

Bibliografia ................................................................................................... 33
6

Introdução

“Mas um empirismo verdadeiro é aquele que se propõe a compreender de tão


perto quanto possível o original ele mesmo, de aprofundar sua vida e, por uma espécie de
auscultação espiritual, sentir palpitar sua alma; e este empirismo verdadeiro é a verdadeira
metafísica.” - H. Bergson1

Como foi possível que em metafísica, quando pretendemos compreender a realidade


em sua textura íntima, pudéssemos acreditar ser possível proceder seguramente segundo uma lógica
já prontamente disponível ao entendimento humano? Como foi possível pensar que as coisas
exteriores a nós se regulassem por uma estrutura que já nos é acessível de início, a qual bastaria que
tornássemos explícita por um procedimento “metódico” ou “rigoroso”? Como foi possível tomar
como verdadeiro equivalente do concreto a reconstrução que dele operamos com os artifícios de
nossa inteligência? Eis uma das maiores fontes de perplexidade para Bergson: se a metafísica se
pretende uma atividade do espírito pela qual conhecemos as coisas como que de seu interior, nunca
poderia ter deixado de se guiar por um ideal de precisão e por exigir a aderência do pensamento a
seu objeto, de maneira que não pudesse haver qualquer hiato entre ambos, de maneira que a própria
evidência aumente conforme nos inserimos entre as coisas e as seguimos.

No entanto, é bem como o avesso deste projeto que a metafísica, aos olhos de Bergson,
prosseguiu em sua história. Cada vez mais distante das coisas que pretendia compreender, se
fazendo presa das ilusões de “rigor” (aliás, de todo necessárias e quase inevitáveis, análogas àquelas
que Kant denunciava na Crítica da Razão Pura) do entendimento humano, ela seguiu uma
tendência inversa à que pretendia na medida em que se deixou guiar pela inteligência – forma do
espírito que se dedica a garantir a eficácia da ação humana – e pelos hábitos adquiridos por esta no
domínio de nossas práticas usuais. A metafísica acabou, desta maneira, dominada pelos ideais de
rigor e certeza, se tornando um antropocentrismo refletido que estende às coisas as imagens

1
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p.196.
7

desenvolvidas em função de nossas práticas e de nossa vida cotidiana, no qual todo tipo de
miragens se produzem, dando origem a um repertório de falsos problemas e problemas mal
colocados, levantando antinomias insolúveis e se afastando cada vez mais da experiência.

Seria necessário que por um esforço violento o espírito invertesse sua direção
habitual2, aquela de nossa vida usual, e operasse uma verdadeira emendatio em seus procedimentos,
se instalando novamente no imediato: “a metafísica se tornará então a experiência mesma”3. Esta
inversão é a intuição, desenvolvimento próprio ao bergsonismo, que não é outra coisa além do
próprio espírito na medida em que este se insere na experiência concreta e a segue em todas as suas
sinuosidades e seu desenvolvimento constitutivo.

Tentaremos, neste breve trabalho, expor o papel da idéia de intuição na obra de Henri
Bergson, idéia que é a pedra de toque de todo pensamento do filósofo. Este trabalho fará,
necessariamente, com que nos debrucemos em alguns instantes sobre o desenvolvimento da idéia de
duração, o coração vivo da filosofia bergsoniana, da qual a intuição não pode ser dissociada. É que,
ao inverter a tendência habitual do pensamento, a intuição será o esforço do espírito para seguir o
movimento que anima a experiência desde seu interior. A intuição bergsoniana não poderá,
portanto, ser assimilada ou comparada com aquela que encontramos no romantismo ou no
intelectualismo: ela não é um sentimento de identidade absoluta (intuição dita verdadeira da qual já
se parte como de uma definição) ou uma evidência clara para uma consciência reflexiva (intuição
que marca a transparência total de um objeto ao entendimento) – ideais que de qualquer maneira
marcam a presença instantaneamente acessível de uma idéia clara e verdadeira no espírito - , mas o
esforço do espírito para colocar-se em movimento e ultrapassar-se a si mesmo, seguindo neste
gesto o fluxo da própria duração que constitui o tecido da experiência (a intuição não nos parece
de maneira alguma ser a idéia verdadeira da qual parte um método sintético ou a evidência de um
método analítico, mas sim o procedimento característico de um método genético; ela não é, no
bergsonismo, o objeto de um conhecimento determinado, ao qual ela serviria como signo de sua
veracidade, mas um verdadeiro procedimento metódico).

Não há no bergsonismo dissociação possível entre uma teoria sobre o método e a


metafísica4, uma vez que os procedimentos da intuição se moverão sempre segundo a própria
2
“Filosofar consiste em inverter a direção habitual do trabalho do pensamento..”
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p.214.
3
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p.9.
4
“Le bergsonime est une de ces rares philosophies dans lesquelles la théorie de la
recherche se confond avec la recherche elle-même, excluant cette espèce de
8

experiência. No entanto nos pareceu cabível fazer algumas observações preliminares sobre a
natureza do processo de investigação e indicar como e por que este processo se confunde com a
própria metafísica, de modo a tentarmos desenvolver uma breve introdução à teoria do método de
Bergson.

Antes de tudo, a intuição só pôde se tornar um método filosófico conforme Bergson


desenvolveu sua considerações acerca da natureza da duração. Duração indica, na obra de
Bergson, uma das faces do absoluto, aquela que a metafísica tem como intuito apreender (a outra
dirá respeito à ciência, conforme esta leva ao máximo grau de precisão o conhecimento da
matéria5), e diz respeito ao caráter temporal da experiência. Por um lado, a inteligência tende a
pensar o tempo como forma homogênea, composta de partes (“instantes” ou “momentos”) e,
portanto, distinta de todo conteúdo, acabando por se deparar com o contra-senso de um tempo que
perdeu toda a sua natureza temporal e que, portanto, não mais passa (percebemos todos que o
essencial do tempo, tal como o experimentamos em nossas vidas é o processo de passagem que o
constitui; na obra de Bergson o termo “temps” designa preferencialmente um tal tempo estático e
vazio, o “tempo real” sendo mais frequentemente designado como “durée”). É neste ponto em que
as consequências de certo intelectualismo formalista se fazem mais óbvias 6: tomando nossa própria
inteligência como critério de realidade a experiência temporal só poderá aparecer como paradoxal
ou contraditória.

dédoublement réflexif qui engendre les gnoséologies, les propédeutiques et les


méthodes. De la pensée bergsonienne on peut repéter, en un sens, ci qui a été dit
du spinozisme: qu’il n’est pas pour elle de méthode substantiellement et
consciemment distincte de la méditation sur les choses, que la méthode est bien
plutôt immanente à cette méditation, dont elle dessine, em quelque sorte, l’allure
générale.” JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Henri Bergson, p.5.
5
Sobre este ponto, cf. BERGSON, Henri. L'Évolution Créatrice, p. 99-271; assim
como WORMS, Frédéric, Bergson ou les deux sens de la vie, p. 180-277. Se dirá que
a inteligência opera com a forma do espaço, puro múltiplo em que as partes se
distinguem exteriormente umas das outras (“partes extra partes”) em unidades
homogêneas que só diferem por sua quantidade. Mas não se deve confundir a
extensão – ou o “espaço vivido”, como é chamado no Essai, em que nos movemos e
vivemos, chamado de “matéria” depois de Matière et mémoire – com esta forma do
espaço: a primeira envolve uma experiência de natureza temporal e qualitativa,
mesmo que dilatada ou tendendo à imobilidade, enquanto a segunda é concebida,
segundo certas indicações do modelo de Kant na Estética Transcendental de sua
Crítica da Razão Pura, como forma estática através da qual a inteligência opera
distinções na extensão segundo necessidades puramente práticas.
6
Bergson não se cansa de relembrar os paradoxos de Zenão no momento em que
este tentava recompor pela inteligência o tempo e o movimento: a imagem
percorre a quase totalidade das obras do filósofo francês. Partindo deste ponto
Bergson apresentará, obviamente de maneira caricatural, a história da filosofia
como o desenvolvimento de um imobilismo que desnatura a própria experiência do
tempo.
9

A experiência da duração exprime a natureza do tempo tal como ele é vivido por uma
consciência que o percebe imediatamente, ao mesmo tempo como sucessão e continuidade, e o
caracteriza como um impulso simples (sem partes) de mudança. Será a própria experiência da
passagem que o tempo envolve que será colocada como centro da realidade, e partir dela serão
recolocados todos os problemas da metafísica em função deste novo critério de realidade e
efetividade7. Ela será descrita como uma multiplicidade qualitativa ao mesmo tempo diferenciada
em suas qualidades, uma vez que a cada fase de sua passagem o tempo se apresenta como
heterogeneidade e desenvolvimento de uma “novidade radical” em relação ao passado, e indivisa ou
contínua, pois todo o passado está implicado nas fases atuais da duração, constituindo a unidade do
ato de passagem do tempo8.

O primeiro equívoco em relação a este ponto seria crer que a filosofia bergsoniana se
transforma, assim, em simples observação passiva da temporalidade – nada mais distante do espírito
do bergsonismo: “Como ela apareceria [a duração] a uma consciência que apenas desejasse vê-la
sem medi-la, que a compreendesse então sem detê-la, que se tomasse enfim a si mesma por objeto,
e que espectadora e atriz, espontânea e refletida, aproximaria até fazer coincidir a atenção que se
fixa e o tempo que foge?”9. Se o bergsonismo é, como já foi dito, um empirismo superior10, é porque
ao não dividir a experiência em matéria e forma, legando à primeira a natureza de um conteúdo
indefinido por si mesmo e à segunda uma existência intelectual como estrutura a priori que se
decalca sobre uma matéria indefinida para a produção de um objeto distinto, a tomará como uma
experiência em estado puro11. A distinção entre os “dados dos sentidos” e um sujeito que lhes seria
7
“Est réel tout ce qui est perçu ou perceptible. Pour savoir si une chose est réelle,
cherchez seulement si elle fait ou pourrait faire lóbjet d’une expériencie actuelle de
l’esprit; Il n’y a pás d’autre signe de vérité que cette possibilite, pour um fait réel,
d’être experimente ou vecú par une conscience” JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Henri
Bergson, p. 31. Mas uma “experiência atual do espírito”, um acontecimento “vivido
por uma consciência”, só pode se fazer como uma experiência da temporalidade –
falando mais propriamente, a experiência de uma certa duração.
8
Em diversos momentos Bergson empregará a imagem de uma melodia para
sugerir a experiência da duração. Uma melodia se caracteriza por um processo
contínuo de mudança temporal, cada etapa desenvolvendo as anteriores ao mesmo
tempo em que as implica; tanto a ausência de continuidade quando a de
desenvolvimento desnaturam a melodia enquanto tal e acabam por nos
apresentam um monótono ou uma irredutível cacofonia. Cf. os casos exemplares no
Essai sur les donées immédiates de la conscience, p. 75-78, 93, 111.
9
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p.4.
10
DELEUZE, Gilles. Le bergsonime, p. 22.
11
Nisto, Bergson novamente não está sozinho. Sua “fenomenologia” – enquanto
modo de investigação de uma experiência pura – é radicalmente distinta daquela
que se origina com a obra de Kant. Guardadas as distâncias e divergências entre os
pensadores, o tema de uma experiência pura ou transcendental como alternativa a
partilha kantiana entre fenômenos e coisas-em-si-mesmas parece ser, segundo as
10

exterior não mais se aplica, e a experiência não será mais experiência de dados condicionados12,
mas campo em que o espírito e seu exterior são coextensivos; ela será, assim, propriamente
compreendida como consciência, presença imediata de espírito e matéria.

A distância entre o espírito e a realidade se deverá, segundo Bergson, a um


afastamento contingente que depende da inteligência humana, voltada fundamentalmente, já o
vimos, para prática. Seu afastamento é uma das condições da eficácia da ação prática e técnica que
desenvolve e caberá à metafísica superar esta distância e se situar novamente diante do real 13. Isto
só é realizado mediante um imenso esforço de superação de nossa inteligência habitual, que é o
esforço de intuição pelo qual retomamos o movimento da duração. A intuição, segundo nos parece,
é o próprio espírito conforme este se esforça e se flexibiliza ao adentrarmos na corrente da duração
real; o tipo de conhecimento que assim obteremos não será mais relativo – relativo a nós e ao nosso
entendimento –, mas realmente absoluto - limitado, certamente, uma vez que somos seres finitos,
mas de modo algum relativo a nós - e suscetível, por isso mesmo, de uma expansão ou
alargamento. A metafísica de Bergson será este movimento pelo qual uma consciência, tornado-se
coextensiva à duração real que a constitui, prolonga a experiência até sua gênese: “Neste sentido,
a metafísica não tem nada em comum com uma generalização da experiência, e no entanto ela
poderia ser definida como a experiência integral”.14

indicações de Bento Prado Júnior, Jean Hyppolitee e Gilles Deleuze , partilhada tanto
pelos idealistas alemães – Maïmon, Fichte e Hegel – quanto por William James, ele
mesmo próximo de Bergson. Ela será retomada pelo próprio Deleuze no
desenvolvimento de seu “empirismo transcendental”. Cf. PRADO JR., Bento.
Presença e Campo Transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de
Bergson; HYPPOLITE, Jean. “Bergson” in Figures de la pensée philosophique, t. I, p.
443-498. Paris: PUF. 1981; DELEUZE, Gilles. Différence et Répétition, p. 221-226.
Paris: PUF. 2000; JAMES, William. “A World of Pure Experience” in Essays in Radical
Empiricism, p. 19-42. New York: Cosimo. 2008.
12
A própria experiência será liberada da noção de “dado”.
13
“La métaphysique est donc la connaissance qui surmonte, quant à des objets
déterminés, l’écart entre notre connaissance et la réalité, et accéde ainsi à
l’absolu.” WORMS, Frédéric. Le vocabulaire de Bergson, p.44.
14
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 227.
11

Capítulo I: Intuição e duração

Se a intuição pode ter o estatuto de um verdadeiro método em filosofia, é porque tem


um conjunto próprio de regras estritas em sua aplicação, como qualquer outro procedimento. Mas a
questão que coloca sua necessidade, fazendo eco ao quid juris? kantiano, é a própria questão do
acesso à natureza ou fundamento do real. Com que direito o entendimento humano poderá especular
sobre a natureza das coisas? Com que direito podemos acreditar apreender sua constituição interna
através de “uma só inspeção do espírito”? O primeiro passo geral da filosofia de Bergson, no que
diz respeito ao método parece estar melhor explicitado no movimento executado no primeiro
capítulo de Matière et Mémoire: trata-se de tomar a tendência primária do conhecimento humano
como tendência inserida na vida em geral e, portanto, voltada para a ação. Como tal, sua aplicação
ao domínio metafísico traçará o quadro geral de uma série de exigências que só dizem respeito a
uma certa região do real, aquela na qual a prática humana pode pretender a certo nível de eficácia,
região que será descrita através de toda a obra do filósofo como a região da materialidade na qual
se passa grande parte de nossas vidas, aquela na qual nos encontramos em relação com os objetos
que nos circundam e com o próprio mundo humano e social.

Precedendo a filosofia e mesmo a ciência, que virá aparecer como o aprofundamento


extremo de sua tendência, a inteligência já trabalha silenciosamente no senso comum como uma
lógica operacional com o objetivo de regular e aumentar a eficácia da ação de nosso corpo sobre seu
ambiente, sua inserção na matéria. Ela deverá ser dotada desta curiosa adaptabilidade ao regime dos
sólidos que alcançamos, se realizando como pensamento técnico por excelência. O
desenvolvimento das ciências nos convencerá mesmo de que a inteligência pode chegar a coincidir
com algum aspecto desta materialidade, e terá acesso por este mesmo aspecto da materialidade a um
conhecimento absoluto da realidade.

Portanto, é preciso que o processo pelo qual se toma conhecimento da matéria, com
vistas à ação, seja adequado às próprias exigências de seus objetos preferenciais: este método
12

deveria poder compreender tudo o que há de fixo ou estável na realidade – talvez até fixá-la ele
mesmo – visando à mensuração e utilização, deveria apresentar as próprias coisas na medida em
que delas podemos tirar proveito para nossa vida, negligenciando tudo aquilo que delas não lhe
interessa e que poderia vir a dificultar ou confundir sua ação, de modo a aumentar a comodidade
desta mesma ação. Tal método se guiará pelo ideal do rigor ou da exatidão, e o formalismo - a
própria cisão da experiência em matéria e forma segundo os moldes de Kant parece ser uma das
exigências típicas da inteligência – ou intelectualismo, crença na possibilidade de que o
entendimento possa compreender a substância da realidade, que o caracteriza como método
rigoroso reflete as exigências de validade universal (versatilidade prática), clareza (facilidade de
uso) e certeza (garantia de eficácia).

Na medida em que estas tendências da inteligência se realizam, ela mesma tenderá a


aprofundar estes traços que a interessam nos objetos que busca, e tenderá a transformar a
materialidade em espaço, forma vazia de uma distinção partes extra partes das coisas, incapaz de
comportar diferenças qualitativas ao mesmo tempo em que admite sem dificuldade alguma
diferenças puramente quantitativas. Mas as concepções bergsonianas de espaço e matéria não
devem ser confundidas. Se a representação de um espaço inteiramente exterior às coisas que o
ocupam, como determinação mesma da exterioridade de suas posições e da homogeneidade de uma
res extensa, é uma determinação com a qual a inteligência recobre o mundo exterior, a matéria é
uma “extensão” ou “espaço vivido” 15 que apenas prefigura relativamente esta tendência ao fixo que
a inteligência virá radicalizar através de uma projeção da forma espacial.

Novamente, Bergson retoma uma inspiração kantiana e eleva o espaço a uma forma
pura, mas não mais da sensibilidade, pois aqui o espaço passa a exprimir o modo de ação própria da
inteligência humana na medida em que esta se adapta à matéria. Não apenas isso, mas a forma de
um espaço vazio é o aprofundamento de uma certa tendência da matéria a se fixar em superfícies
estáveis, relativamente vulneráveis à potência das ações humanas. Ao aplicá-lo e dividir a
materialidade segundo suas relações determináveis a inteligência “entende simplesmente com isso
que deixará de lado, no universo, tudo aquilo que não é calculável”, ou ainda, tudo o que não se
deixa fixar ou determinar com absoluta determinação. É esta estrutura espacializante da inteligência
que será colocada por Bergson como origem da linguagem e como vício oculto da história da
filosofia em sua tentativa de identificar o todo das coisas que existem à sua representação.

15
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. 72
13

“Nós nos exprimimos necessariamente por palavras e pensamos mais


frequentemente no espaço. Em outros termos, a linguagem exige que estabeleçamos
entre nossas idéias as mesmas distinções claras e precisas que entre os objetos
materiais. Esta assimilação é útil na vida prática, e necessária na maior parte das
ciências.”16

Deve ser admitido que o aspecto da vida humana que se envolve com o domínio
caracterizado como exterioridade, inclusive como meio de nossa existência social, é o
que exige a maior atenção e adaptação, justamente por ser o domínio de nossas
necessidades urgentes. Tendo nossa existência necessariamente ligada a uma tal
gregariedade da vida social, nós tendemos instintivamente, ou talvez mesmo por um
hábito longamente difundido, a impor a nossas impressões a forma da linguagem para
comunicá-las ao meio circundante.17

A inteligência encontra seu domínio próprio no que diz respeito ao senso


comum, eminentemente prático, se aprofundando cada vez mais rumo à pureza
geométrica do espaço conforme tende a se elevar ao nível das ciências. Distinção das
partes (reducionismo), universalidade lógica, fixidez ou determinação da identidade e
fetichização da linguagem serão alguns dos caracteres mais marcantes do ideal de rigor.
Mas este ideal, voltado para a simples ação, torna-se um vício ao se acreditar na
vocação inata da inteligência para um conhecimento puro e desinteressado do real como
tal, ignorando sistematicamente todos aqueles aspectos que lhe são refratários.

“O que mais faltou à filosofia foi a precisão. Os sistemas filosóficos não são
talhados na medida da realidade em que vivemos. São largos demais para ela. (...) É
que um verdadeiro sistema é um conjunto de concepções tão abstratas e, por

16
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. VII
17
Pode-se notar certo paralelismo com a Genealogia da Moral de Nietzsche.
14

conseguinte, tão vastas, que nele caberia todo o possível, e mesmo o impossível, ao
lado do real.”18

É apenas quando forçada a confrontar experiências que contradizem de maneira


radical seus princípios de operação que a inteligência tornará explícita sua inadequação
como método em metafísica. Segundo a narrativa de Bergson em um de seus escritos19,
foi apenas ao se defrontar com a questão da temporalidade que despertou para este fato.
A essência do tempo, tal como se apresenta na própria experiência consciente, é o ato de
sua passagem. Mas a inteligência, ao se esforçar em enquadrar o tempo em suas
categorias produz uma série de antinomias e, incessantemente, o tempo é pensado sob
as exigências do espaço. O tempo é pensado como uma linha, em que momentos se
sucedem como pontos, o movimento como uma trajetória, que se divide em posições, e
a mudança como uma série de estados justapostos. Sobre a passagem, a transição e a
mudança elas mesmas a inteligência silencia.

A imagem exemplar das antinomias em que a inteligência cai ao pensar qualquer


fenômeno dinâmico usada por Bergson será a dos paradoxos de Zenão, já que “a
metafísica data do dia em que Zenão de Eléia assinalou as contradições inerentes ao
movimento e à mudança, tais como a nossa inteligência os representa”20. É por
localizar o movimento em um espaço homogêneo, de partes exteriores umas às outras e
infinitamente divisível, que as distâncias percorridas por Aquiles se tornarão infinitas,
fazendo com que ele nunca possa alcançar ou ultrapassar a tartaruga. Da mesma
maneira, se pôde recorrer ao exemplo de uma trajetória qualquer, na qual um móvel
percorre um trajeto qualquer entre os pontos A e B21. Tal qual Zenão, se poderá dividir o
movimento percorrido em uma série de posições, ao infinito, sem que se encontre a real
transição que preencherá a lacuna de uma posição a outra. Mas o que seria óbvio a
qualquer suposto espectador, o que se torna óbvio em nossas experiências conscientes é
que Aquiles de fato ultrapassa a tartaruga a despeito das dificuldades levantadas em
relação ao espaço percorrido, que uma sucessão de posições ou de instantâneos imóveis

18
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p.3.
19
A primeira introdução de La pensée et le mouvant.
20
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 8.
21
Cf. todo o quarto capítulo de Matéria e memória.
15

é incapaz de substituir o movimento real.22 Partindo destas contradições, a metafísica


acabou por hipostasiar as essências das coisas em realidades acima do tempo e
intocadas pelo mundo sensível e inacessível à percepção. Neste novo fundamento
imaginário do real, isento de contradições, o velho ideal parmenídico de identificação
entre ser e penar pode se erigir sem dificuldades, de modo a identificar conceito e
realidade em uma tediosa repetição dos temas centrais da inteligência, que reconstrói o
real sem cessar em uma síntese conceitual esquecendo-se do procedimento de análise e
abstração pelo qual obteve estes mesmo conceitos.

Através destas questões é que virá a luz a noção de duração, como motor de
todo o pensamento de Bergson. Ela apresenta é uma tentativa de pensar como atributos
positivos estas realidades temporais, que são o próprio tempo, a mudança, o movimento
ou a vida, para além da soma reducionista de unidades “infinitamente pequenas” que a
inteligência se esforça para encontrar nas coisas.

“A duração totalmente pura é a forma que toma a sucessão de nossos estados


de consciência quando nosso eu se deixa viver, quando ele se abstém de estabelecer
uma separação entre o estado presente e os estados anteriores. Não há necessidade,
para isso, de se absorver inteiro na sensação ou idéia que passa, (...) basta que se
relembrando destes estados ele não os justaponha ao estado atual como um ponto a
outro ponto, mas os organize consigo como quando nós nos relembramos, fundidos
conjuntamente por assim dizer, das notas de uma melodia.”23

Poder-se-ia dizer que há duração sempre que houver sucessão contínua ou fluxo,
qualquer que seja ele, de modo a constituir uma totalidade organizada, qualquer que seja
esta organização. A duração jamais poderá ser reduzida a simultaneidade, e duas fases
deste processo jamais podem coexistir: ela constitui, portanto, uma multiplicidade
22
Neste ponto, seria interessante retomar as considerações de Bergson sobre o
cinema de seu tempo. Em uma nota de O pensamento e o movente, escreve: “Se o
cinematógrafo nos mostra em movimento, na tela, as vistas imóveis justapostas no
filme, é sob a condição de, por assim dizer, projetar sobre essa tela, com estas
vistas imóveis elas próprias, o movimento que está no aparelho”. BERGSON, Henri,
O pensamento e o movente, p. 9.
23
BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience, p. 75
16

temporal. Mas ao mesmo tempo, deverá haver unidade na duração, como no próprio ato
de passagem que instaura a continuidade entre a fase anterior e a fase que a segue; é por
isso que o Essai sur les données immédiates de la conscience poderá caracterizá-la
como multiplicidade qualitativamente heterogênea e ao mesmo tempo contínua, em
oposição ao tipo de multiplicidade apresentado pelo espaço e à concepção do tempo que
dele deriva. Contra um tempo cronológico e homogeneizante, decomposto segundo
dimensões (presente, passado e futuro) ou em partes (momentos ou instantes).

Diferentemente do espaço, a duração será descrita não como uma forma a priori
do entendimento, e é neste ponto que Bergson se revela como o avesso de todas as
propostas do kantismo, mas como estofo mesmo da realidade, chegando a ser descrita
como a substância do real, compondo verdadeiramente um Absoluto, além do qual não
poderá haver mais nada. Em suma, a duração é o próprio tempo enquanto caracterizado
como processo de diferenciação imanente.24 É então que “a metafísica tornar-se-á a
própria experiência” e “a duração revelar-se-á tal como é, criação contínua, jorro
25
ininterrupto de novidade”. Se o desenvolvimento e os usos da idéia de duração são o
que definem a obra de Bergson em seus diferentes aspectos, é porque a própria duração
só existe de maneira singular, enquanto se individua de maneira diferente em um
fenômeno ou outro.26

A duração é o tempo ainda não cindido por um entendimento em sua matéria e


sua forma, em que o tempo é o próprio desenvolvimento qualitativo daquilo que o
entendimento tomaria apenas como seu conteúdo. Para o tempo espacializado e
sistemático das ciências, mesmo para todas as imagens cronológicas do tempo, o
próprio Bergson diz que a aceleração, a desaceleração, enfim, as mudanças temporais,
de nada valem. Seu conteúdo e seu processo de desenvolvimento em nada se alterariam.
Mas no momento em que este tempo se torna imanente àquilo que nele se passa, a
diferença é radical, e sua primeira face será a que se apresentará como o tempo tal como
vivido na consciência psicológica.

24
Eis a causa de todo interesse de Deleuze pela filosofia de Bergson. De fato, é a
duração que servirá de modelo para a concepção que Deleuze fará do devir.
25
BERGSON, Henri. La pensée et le mouvant, p. 11.
26
Frédéric, Bergsouou les deux sens de la vie.
17

Através da interioridade, da percepção de nossos próprios estados psicológicos é


que se passa ao primeiro contato com a duração, ou ainda, com nosso “eu que dura”27.
O que a própria investigação psicológica sobre a “profundidade do eu” irá revelar é um
escoamento temporal, é que a “consciência interna do tempo” é a consciência de um ato
de passagem do tempo, ao mesmo tempo em que consciência de uma organização
dinâmica e fluente de todos os estados psicológicos interiores. É exatamente neste
contínuo processo de amadurecimento ou de passagem, que mantém atrás de si um
passado crescente, que Bergson encontrará a imagem primária da duração.

Se posteriormente a duração poderá transpor o campo dos dados imediatos da


consciência, em que o mesmo ato de passagem já citado é usado como paradigma para
estabelecer em novas bases o sentido da liberdade da consciência, e passar a constituir
os termos em que serão colocados o problema das relações entre memória e percepção –
e, por conseguinte, entre a consciência e o mundo, a alma e o corpo – em Matière et
mémoire, de uma cosmologia e de uma leitura da história da filosofia centradas sobre a
questão da vida em L’Évolution créatrice e de uma sociologia e uma teoria da religião
norteadas pela emancipação do homem em Les deux sources de la morale et de la
réligion, é porque ela será investida por um método extremamente cuidadoso do qual os
caracteres já estavam esboçados nessa mesma primeira apresentação da duração no
Essai sur les donées immédiates de la conscience. É este método que será batizado
como intuição.

Primeiramente, é necessário notar que a intuição se faz através de um duplo


movimento. Poderá parecer paradoxal que um método aspire a compreender qualquer
coisa imediatamente, já que um método não pode ser outra coisa senão uma cadeia de
mediações28. Mas a impressão de paradoxo dissipa-se no instante em que se percebe que
a intuição não é apenas um processo geral de imersão na duração, mas em primeiro
lugar delineada em um procedimento crítico. Só através da crítica aos contra-sensos da
inteligência na medida em que tenta pensar a temporalidade pode nos sensibilizar para a
dimensão da duração, e o retorno aos “dados imediatos da consciência” só pode ser
realizado depois de uma crítica metódica das concepções associacionistas ou
naturalizantes do espírito. É pela paciente dissolução de suas antinomias que a própria
27
BERGSON, Henri, La pensée et le mouvant, p. 188.
28
DELEUZE, Gilles. O bergsonismo, p. 8.
18

inteligência poderá ser levada a simpatizar com a realidade da duração. Notemos que a
grande maioria das obras de Bergson começa com a apresentação e a crítica dos
impasses aos quais a inteligência pode chegar quando abandonada a si mesma e a seu
ideal de rigor nas especulações filosóficas, para apenas em seguida esboçar uma
recolocação e solução do problema nos termos da duração.

Por isso mesmo, “”Intuição” é, aliás, uma palavra frente à qual hesitamos
longamente. De todos os termos que designam um modo de conhecimento, ainda é o
mais apropriado; e, no entanto, presta-se a confusão”29 ou ainda “a teoria da intuição
sobre a qual o senhor insiste muito mais do que sobre a teoria da duração, só se
destacou a meus olhos muito tempo após essa última”.30

O segundo aspecto do método bergsoniano é a intuição propriamente dita, em


seu aspecto positivo, na medida em que se busca descrever o tempo com caracteres
positivos. Ela é o conhecimento da duração das coisas como aquilo que as constitui
internamente, não apenas enquanto dado objetivo, mas também enquanto este laço
envolve uma consciência que o percebe. Situando-se anteriormente à cisão da matéria e
da forma, a intuição situa-se também antes da cisão entre o sujeito e o objeto, e uma das
propriedades da duração é ser percebida, de um modo ou de outro, por uma
consciência. Há intuição não apenas como delimitação de uma região da
sensibilidade/receptividade, mas também enquanto a duração exige uma
consciência/atividade que a perceba. Notemos que os traços clássicos da noção de
intuição como contato imediato com um objeto são retomados, mas o bergsonismo de
modo algum admite algo como uma intuição intelectual; só pode haver intuição da
duração concreta, na experiência, portanto de coisas singulares e nunca de universais.
Se em algum momento se pôde pensar em uma intuição extra-temporal da eternidade, é
porque pensava-se que a inteligência operava no tempo. Mas exposta a artificialidade
deste tempo espacializado, o filósofo pode recolocar a intuição na temporalidade e em
contato com dados sensíveis.

É esta concepção de fusão entre subjetividade e objetividade que é a grande


ingenuidade e o grande trunfo de Bergson, pois ambos coincidam na medida em que

29
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 29.
30
BERGSON, Henri. Lettre à Höffding in Écrtis et Paroles, p. 456.
19

duram, em que saem de si mesmos conforme o escoar da duração. Apenas na medida


em que este postulado opera na filosofia bergsoniana é que se começamos a observar a
possibilidade de se conferir à intuição eficácia em metafísica, pois o que ela
compreender, compreenderá não de maneira relativa, mas de maneira absoluta, não
apenas relativa a um sujeito de conhecimento. Vemos retornada a nós a possibilidade de
uma metafísica no sentido pré-kantiano, de uma posição dos problemas da Alma, do
Mundo e de Deus31, e de um conhecimento das coisas tal como são em si mesmas.

O método da intuição exige um ideal radicalmente diferente do método da


inteligência – ela procede segundo o ideal de precisão. Se “o que mais faltou à filosofia
foi a precisão” é simplesmente porque proporcionalmente ao aumento da
universalidade há uma diminuição da precisão. O ideal de precisão vem exigir absoluta
proximidade em relação àquilo sobre o qual o pensamento se aplica, de maneira a gerar
aderência. Nada mais distante da concepção de uma filosofia sistemática, pois aqui não
se trata de partir de um “primeiro princípio” do qual o todo da realidade seria deduzido,
mas de aderir ao contato que temos com a realidade na e pela experiência, para que dela
derivemos os critérios de investigação que nos levarão a seu aprofundamento, rumo
àquilo que será a textura interna do real. Ela deverá realizar um esforço sui generis a
cada investigação, reformular seus métodos, recolocar as questões, de maneira a
encontrar em cada região da experiência um novo problema a ser aprofundado e
resolvido de modo a nos oferecer uma nova face da duração.32

“Intuição, portanto, significa primeiro consciência, mas consciência imediata,


visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo
coincidência. – É, em segundo lugar, consciência alargada, premendo contra as bordas
do inconsciente que cede e que resiste, que se rende e se retoma: através de

31
Gostaríamos de sustentar que a obra de Bergson poderia ser lida como uma
retomada daquilo que a dialética transcendental evitava, ao menos em seus quatro
grandes livros. Passa-se de um problema psicológico sobre a natureza da alma para
sua relação com o mundo, pela formulação de uma cosmologia que resolverá o
problema da liberdade para ao fim se chegar a uma reflexão experimental sobre
deus.
32
A própria duração se fará em muitos campos, em fenômenos que a cada
momento a apresentam em um aspecto complementar: Liberdade, Memória, Vida,
etc.
20

alternâncias rápidas de obscuridade e de luz, faz-nos constatar que o inconsciente está


aí;”33

Delineia-se então o processo pelo qual o método da intuição é capaz de levar o


primeiro trabalho de crítica das mediações e retorno ao imediato não só ao contato com
a substância da consciência, mas para além dela, de modo a se tornar propriamente uma
metafísica. Ela nos fará simpatizar, isto é, entrar em contato com, as estruturas gerais de
34
toda consciência: “A intuição introduzir-nos-ia na consciência em geral.” Para além
das ciências e de sua capacidade de compreensão do que há de mecanismo nos
processos da matéria organizada, a intuição acaba por revelar a vida como princípio da
própria consciência, nos levando a uma “intuição vital” e à recuperação do impulso que
caracteriza esta vida mesma não apenas em nós, como consciências humanas, mas em
todos os seres organizados. Princípio de ação que coordena toda evolução que encontra
uma feliz resolução através da liberdade humana, a vida não é descrita como outra coisa
que não o próprio ato de criação pelo qual os organismos se produzem sempre em novas
formas, apropriando-se da matéria diversamente. A vida é a própria duração se
manifestando na matéria, devir criativo a organizando em função de uma
indeterminação progressiva da ação. Mesmo a matéria inorgânica, que se acreditava
domínio exclusivo das ciências em sua fixidez, nos aparecerá como participando da
duração, mesmo que em um grau infinitamente “dilatado”, por tudo que ela contém de
movimento real e mudança, por tudo aquilo que nela não se presta ao cálculo fixo.35 A
realidade, por si mesma, já é um processo de duração, no qual nos inserimos pela
própria descoberta de nossa duração interior: “toda realidade é, portanto, tendência, se
conviermos em chamar de tendência uma mudança de direção em estado nascente.” 36

“Há no entanto um sentido fundamental: pensar intuitivamente é pensar em


duração”37, tal como a inteligência não é nada além de pensamento espacializante. Se a
inteligência, no domínio da especulação metafísica, só pode acabar por colocar no
33
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 29
34
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 31
35
Segundo Bergson, a idéia de diferencial ou fluxão, tal como a encontramos no
cálculo, é uma operação intuitiva pela qual a própria ciência procura compreender a
duração em seus termos.
36
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 219.
37
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 32.
21

centro do real uma construção que ela mesma montou com suas representações parciais,
não se poderá esquecer que ela não apenas tem imensa utilidade prática, mas está
inscrita como tendência prioritária e reforçada pelo hábito do pensamento humano,
tendo mesmo importância vital como a análise dos fenômenos vitais em L’Évolution
créatrice não cessará de relembrar. Isto é, a inteligência se revela ao pensamento como
direção facilitada a seguir, tendo âmbito válido no que diz respeito à vida prática e
social e a seu aprofundamento nas ciências positivas. Contrariamente, a intuição exigirá
um extremo esforço pelo qual o pensamento segue em direção contrária àquela que
tende no homem, fazendo o movimento de retorno do condicionado ao condicionante,
rumo à gênese metafísica da experiência, em um movimento capaz de pensar a
diferença fundamental entre o fundamento e aquilo que ele fundamenta, fazendo com
que o homem deixe de ser concebido como “um império em um império”. A afinidade
natural entre o pensamento e o Absoluto que percorreu alguns aspectos do idealismo
alemão e que fundamentava o que estes mesmo chamaram de intuição como contato
imediato com um princípio supra-sensível, nada tem a ver com o sentido bergsoniano da
intuição. Esta última exige um paciente e árduo trabalho de conversão do pensamento
em direção à verdadeira duração. “Para isso é preciso que [o pensamento] se violente,
(...) que revire, ou antes, refunde incessantemente suas categorias” 38 de maneira
metódica para que possa acompanhar a textura das coisas.

Mas novas percepções e idéias que a intuição permite revelar exigirão, também
elas, uma certa duração em sua clarificação. Contrariamente ao instantaneísmo
facilmente compreensível das idéias construídas pela inteligência, pois as
compreendemos quase que naturalmente, as idéias da intuição parecerão à primeira vista
contraditórias ou mesmo incompreensíveis. Apenas ao deixar que esta idéia trabalhe os
problemas colocados, veremos que ela os clarifica ou os recoloca, clarificando a si
mesma na medida em que o faz. Se a crítica da intuição é sempre fácil, é por esta
espécie de tendência inata que temos à espacialização do pensamento. Mas é apenas sob
a condição de violentarmos a nosso próprio pensamento que podemos pensar em
metafísica. Ao fim, parecem valer para o pensamento bergsoniano as palavras de
Spinoza:

38
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 221.
22

“Se o caminho que eu mostrei conduzir a este estado parece muito árduo, pode,
todavia, encontrar-se. E com certeza deve ser árduo o aquilo que muito raramente se
encontra. (...) Mas todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras.” 39

39
SPINOZA, Baruch. Ética, p. 411. São Paulo: Autêntica, 2007.
23

Capítulo II: Intuição e filosofia

A intuição não indica somente uma nova maneira de solucionar os problemas –


em termos de duração – mas especialmente uma nova maneira de colocar os problemas
em filosofia. Os conceitos com os quais a filosofia opera usualmente, aqueles que estão
contidos germinalmente na linguagem e na inteligência, estão ligados a uma maneira de
colocar os problemas à qual eles respondem. Dizem respeito ao recorte que a
inteligência operou no real segundo suas necessidades, o que de maneira alguma quer
dizer que ela respeitou as articulações ou nuances da realidade ao fazê-lo. Enquanto a
filosofia se contentar em aceitar o problema tal como o senso comum e a linguagem o
colocam ordinariamente, ela estará condenada a uma insolubilidade angustiante e a opor
eternamente os conceitos antinômicos com os quais aceitou trabalhar, jogando
infinitamente um tedioso jogo de reconstituição das mesmas oposições doutrinais:
determinismo e livre arbítrio, idealismo e realismo, mecanismo e finalismo...

“Mas a verdade é que se trata na filosofia, e mesmo alhures, de encontrar o


problema e, por conseguinte, de pô-lo muito mais do que de resolvê-lo. Pois um
problema especulativo está resolvido assim que é bem posto. Entendo com isso que a
sua solução existe então imediatamente, ainda que possa permanecer escondida e, por
assim dizer, encoberta: só falta, então, descobri-la. Mas por o problema não é
simplesmente descobrir, é inventar.” 40

É através deste ato contingente que é a invenção do problema que ele será
trabalhado. Mas a contingência da invenção do problema não quer dizer arbitrariedade

40
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 54
24

em sua colocação, pois um problema, para ser bem posto, deve ter sentido filosófico, ou
seja, ser um problema real que corresponda a conteúdos qualitativos ou tendências
reais, que deixam de tratar das fantasmagorias da inteligência para tratar do que é.

O caso exemplar deste tipo de problema será o da origem do ser, que encontra
sua expressão acabada na formulação de Leibniz do princípio de razão suficiente: “por
que o ser e não antes o nada?” Acaba-se então por imaginar uma série de causas, umas
ligadas às outras ao infinito, até que, para fugir de uma tal vertigem realizamos toda a
série de causas do mundo em um ens realissimum como causa última que contem o grau
máximo de realidade (mas a mesma estrutura será encontrada ainda em outros
problemas, o problema da ordem que opera na cisão entre matéria e forma do
conhecimento “por que o mundo é ordenado de maneira a podemos pensá-lo?” e realiza
uma ordem absoluta do mundo em oposição a uma matéria desorganizada, ou o
problema dos infinitos possíveis e sua realidade lógica e do real finito em sua existência
efetiva). Contrariamente ao que nos parece óbvio, não é da idéia de ser que partimos,
mas do nada. Partimos dele como ausência total de propriedades que, por sua
simplicidade, deveria possuir anterioridade lógica ao ser real na ordem de produção das
coisas, segundo uma ordem de complexificação crescente dos seres e de suas
propriedades que veem cobrir este vácuo absoluto. Mas isto é coisa que a própria
experiência desmente, coisa que um pensamento que se fizesse em imersão na
experiência deveria abandonar. Contra uma síntese intelectualista que se esforça por
derivar a experiência de conceitos dela abstraídos por um procedimento de análise que
permanece em segredo, é dos “dados imediatos” que se deve partir na investigação.

Tomemos um exemplo. Ao tentar pensar a experiência em moldes


intelectualistas, com seus conceitos fixos, acaba-se por gerar uma série de contradições,
ao que respondemos qualificando a experiência como realidade derivada ou degradada
de qualquer coisa de imóvel e sumamente real: nomeamos a experiência como domínio
do múltiplo e do devir, mas isso não nos basta. Obrigando-nos a possuir
intelectualmente o conhecimento objetivo das causas últimas daquilo que é, derivamos
o devir de uma relação incompreensível entre o ser e o nada, entre o estático e sua
negação. Será necessária a interferência de todos os poderes e do “trabalho do negativo”
25

para que estes elementos fixos possam se movimentar e ganhar vida. A experiência e a
duração só poderão ser ausência de eternidade ou de conhecimento claro e distinto.

Evitando reconstituí-la com aquilo que nela não encontramos, a experiência tem
sua consistência própria retornada. Estamos sempre diante de coisas, em relação com
coisas que são. Um nada absoluto do qual partir, e mesmo sua parcialização em uma
negatividade qualquer, são ficções de uma inteligência que forja o real com seus
instrumentos sem questionar a validade de seu uso. Como toda concepção inteligente, é
na prática que a negatividade encontra seu uso, em relação com a expectativa de um
organismo em relação a um objeto desejado, a substituição deste mesmo objeto e a
frustração do organismo desejante. Nada nos autorizaria a conceber valor metafísico a
esta idéia e se o fizermos recaímos no vício de inserção do condicionado no
condicionante, do empírico no transcendental, diria Kant. Este caso exemplar é apenas
um dentre outros e são operadas tantas outras ilusões retrospectivas quantas são as
miragens da inteligência (a anterioridade do possível ao real, do caos ao cosmo).

Nos enganamos ao pensar que na idéia do nada, e nas outras miragens de


sua família, o possível e a desordem, há menos do que na idéia de ser, ou nas idéias de
real e de ordem. Eis um dos principais argumentos de Bergson: se as idéias devem
passar a colocar-se em função da experiência a idéia de nada é uma mera ficção.
Estando sempre diante de “imagens” e nos relacionando unicamente com objetos reais,
a experiência não comporta vácuo algum, negatividade alguma. Na idéia de nada deve
haver mais e não menos do que na idéia de ser.

“Na idéia de não-ser, com efeito, há a idéia de ser, mais uma operação lógica
de negação generalizada, mais o motivo psicológica particular de tal operação
(quando um ser não convém à nossa expectativa e o apreendemos somente como falta,
como ausência daquilo que nos interessa). Na idéia de desordem já há a idéia de
ordem, mais sua negação, mais o motivo desta negação (quando encontramos uma
ordem que não é aquela que esperávamos).”41

41
DELEUZE, Gilles. O bergsonismo, p. 11.
26

Se podemos dizer que os problemas inexistentes são todos aqueles produzidos


pelos espectros do negativo, a razão para tal se encontra na negatividade que a própria
inteligência vem inserir na experiência concreta. Esta negatividade não só está fundada
“de direito” em suas atividades, como condição de sua versatilidade (os lógicos diriam:
de sua “universalidade”) ao se relacionar com um objeto que ela, por assim dizer,
esvaziou e do qual negou o conteúdo, como encontra seu ápice na operação de
totalização da inteligência, pela qual ela deve necessariamente enxergar negatividade
em uma experiência que é como que a degradação do ser imóvel que ela pode apreender
intelectualmente. Mas há, da mesma maneira, a importância dos motivos psicológicos
que levariam a uma tal idéia:

“Sentimos que uma vontade ou um pensamento divinamente criador, em sua


imensidão de realidade, é demasiado pleno de si mesmo para que nele a idéia de uma
falta de ordem ou de uma falta de ser possa tão-só aflorar. Representar para si a
possibilidade da desordem absoluta e, com mais forte razão, a do nada, seria para ele
dizer a si que ele próprio teria podido totalmente não ser, o que seria uma fraqueza
incompatível com sua natureza, que é força. (...) Não se trata do mais, mas do menos;
trata-se de um déficit do querer.”42

A teoria dos problemas tem esta como sua primeira consequência: uma crítica do
negativo e dos problemas insolúveis que seu fantasma pode levantar em filosofia. Mas
há também um outro tipo de falso problema a ser evitado, os problemas mal colocados.
Neste caso, trata-se menos de idéias da inteligência que inexistem na experiência do que
de falsos agrupamentos das coisas, de problemas colocados segundo recortes arbitrários
e que não correspondem às “articulações naturais” . É o caso com o problema da
liberdade, quando se pergunta se o homem é causa de sua ação ou não, já inserindo
como soluções internas do problema as coordenadas do determinismo ou do livre-
arbítrio. Não se percebe então que sob o “problema da liberdade” são agrupados
diferentes estados e que a questão mesma que se pretende solucionar, aquela da natureza
da ação humana, não pode ser respondida segundo a formulação dada ao problema. É o
42
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 69.
27

mesmo deslize que se encontra sustentando ambos os enganos, pois quando se acredita
poder tratar dos problemas em metafísica segundo o mais ou o menos ou quando os
colocamos de maneiras que não correspondem à experiência é sobretudo porque
acreditamos poder colocá-los “como um juiz que interroga sua testemunha”, desde seu
exterior e segundo critérios que não são os seus.

Aplicando novos critérios aos problemas, os conceitos que operam junto a estes
também acabarão por se modificar profundamente. Aqueles com os quais operamos
usualmente e que são produzidos pelo entendimento 43, merecendo propriamente a
designação de conceitos, em seu sentido mais estrito, ganharão um devido estatuto
simbólico. Sendo representações próprias a inteligência, que em um primeiro momento
tenderá a reificá-los e a fazer com que estes modelos sejam a fonte de todas as coisas
reais, acabarão por passar a operar como “significados” em relação a seus
“significantes” sensíveis. Reconstruindo a história da filosofia como um romance dos
descaminhos da inteligência em metafísica, é essa a tese que Bergson atribuirá a
filosofia antiga em geral: “Há mais no imutável (o conceito) do que no movente e passa-
se do estável para o instável por uma simples diminuição”.44 Uma tal doutrina do
conceito como ens realissimum acabaria por dar lugar ao que Bergson identifica como a
doutrina do kantismo (na verdade, a extensão do debate parece dizer respeito mais aos
neo-kantianos alemães e a leitura epistemologizante de Kant do que a uma leitura crítica
das obras do filósofo alemão), a descoberta da total relatividade do conceito em relação
ao homem, de modo que todo o conhecimento se torna relativo àquilo ou a quem o
constitui como tal. Bastaria que a inteligência fosse levada a encarar o óbvio – a
ausência de legitimidade da aplicação de seus conceitos ao todo do real – para que a
metafísica sofresse tais consequências e que se assumisse como conhecimento de tipo
verdadeiramente simbólico e relativo.

Se a metafísica deverá ser possível, certamente não é como ciência – esta sim,
entendida por Bergson como legítimo domínio de nossas concepções do real segundo
uma rígida estrutura de símbolos, deverá permanecer relativa à nossa inteligência e sua
destinação técnico-prática: “a metafísica é, portanto, a ciência que pretende ultrapassar
43
Nos parece significativo ligá-los a sua matriz kantiana, como unificação discursiva
de um múltiplo da sensibilidade, unificação que de modo algum se confundo com
aquilo que ela unifica e é um produto da espontaneidade do entendimento humano.
44
BERGSON, Henri, O pensamento e o movente, p. 225.
28

os símbolos”.45 Sendo pensamento humano ela deverá necessariamente ser exposta sob
a forma da linguagem, mas deverá fazê-lo torcendo a linguagem desde seu interior,
forçando-a ao limite em que é levada a apenas sugerir aquilo que ela não pode explicar.
Mais propriamente, não deve acreditar que a filosofia de Bergson é um sistema,
composto por sua vez de conceitos. O tema da sugestão ou da indicação aqui se faz da
maior importância, pois tais imagens, chamadas pelo filósofo de “conceitos flexíveis”,
não compreendem um “conteúdo” diverso ao qual elas viriam unificar por uma síntese
em uma unidade discursiva, e os grandes “conceitos” propostos – duração, inconsciente,
matéria, memória, elã vital, etc. - devem ser tratados como imagens ou casos limite que
apenas sugerem uma tendência do movimento constituinte da realidade, como
hipóstases. Não se referindo a uma universalidade partilhada por singulares, os
conceitos flexíveis expressam “somente a escala ou curva contínua resultante do contato
entre realidades singulares e incomensuráveis (assim como o conceito de duração em
filosofia ou de diferencial nas matemáticas)”46, realizando o sentido do ideal de precisão
ao se adequarem com a maior proximidade possível ao objeto que têm por missão
designar. Eles só adquirem sentido enquanto exigidos pelos problemas trabalhados e
enquanto trabalham nestes problemas.

O caráter “literário” da filosofia bergsoniana – tão criticado por, entre outros,


Russel – exprime na verdade maior lucidez quanto ao caráter metafísico do mundo em
uma investigação paciente do tempo, e seu ataque ao intelectualismo, como o vimos, se
faz retomando humildemente uma posição kantiana, mas contra ela mesma: com que
direito se pode pensar que há uma faculdade disponível prontamente ao entendimento
humano para que este compreenda os fundamentos do real? Nada mais descuidadoso do
que caracterizar facilmente uma tal filosofia como “irracionalista” ou “obscurantista”
simplesmente por exigir maior esforço em sua compreensão, simplesmente por
conceber que se há um sentido nas coisas, este deve se fazer de modo bastante distinto
daquele da lógica humana! É que, como dirá o próprio Bergson, existem duas espécies
de clareza:

45
BERGSON, Henri, O pensamento e o movente, p. 188.
46
WORMS, Frédéric. Le vocabulaire de Bergson, p. 36.
29

“Uma idéia nova pode ser clara porque nos apresenta, simplesmente
arranjadas em um nova ordem, idéias elementares que já possuíamos. Nossa
inteligência, não encontrando então no novo nada além do antigo sente-se em território
conhecido; ela está à vontade; ela 'compreende' Tal é a clareza que desejamos, que
procuramos, e somos sempre gratos a quem no-la traz. Há outra que sofremos e que,
aliás, só se impõe com o tempo. É a clareza da idéia radicalmente nova e
absolutamente simples, que capta mais ou menos uma intuição.”47

A filosofia que se guia pelo ideal da precisão será, necessariamente, sempre a


mais difícil para a inteligência humana, acostumada ao rigor. Que a filosofia de Bergson
tenha sido tão frequentemente reduzida a um “romantismo utilitário” ou a um
“intuicionismo espiritualizante e irracionalista”, de todo não espanta. A inteligência só
poderá desprezar o que não lhe é facilmente acessível, viciada que é pela efetividade.
Mas “isto acontece, pois a filosofia, ela também, tem seus escribas e fariseus.”48

47
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 33.
48
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, p. 35.
30

Conclusão

“Au sujet de l’intuition et de sa nature, l’oeuvre de Bergson tradui des


oscillations, plutôt qu’um changement.” – Maurice Merleau-Ponty49

A intuição só poderá ser compreendida como um gesto que comporta um


duplo sentido - é expondo esta articulação que Merleau-Ponty encerra um de seus
cursos sobre o pensamento de Bergson. No entanto o que poderia se mostrar ao leitor
descuidado como insuficiência de precisão ou ambigüidade parece, em uma leitura mais
cuidadosa, revelar que esta tensão interna, que constitui o fundamental no método e, por
conseguinte, em toda a filosofia de Bergson, é portadora de um caráter positivo, ou seja,
constitutivo e produtivo. Gostaríamos de sugerir que realmente é apenas como tal que
ela pode ser devidamente compreendida, pois é essa articulação entre dois sentidos, a
oscilação entre eles, que constituirá o caráter propriamente bergsoniano da intuição, sua
dificuldade e ao mesmo tempo sua fertilidade na busca de outra construção possível. É
apenas compreendendo a ambigüidade da intuição que se compreende seu sentido
específico e sua potencialidade para ultrapassar o modelo intelectualista em filosofia.

A intuição será compreendida hora como contato ou coincidência com o


objeto real tal como existe independentemente de suas deformações relativas a nós, hora

49
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’union de l’âme et du corps chez
Malebranche, Biran et Bergson, p. 109.
31

como compreensão, “caso limite” em que o espírito é forçado a reconstruir este mesmo
objeto através do uso de imagens e conceitos flexíveis.

Em seu primeiro sentido, como coincidência, ela não poderá ser


desvinculada da “ordem das matérias” da filosofia de Bergson, sendo inicialmente
psicológica na medida em que coincidimos com nós mesmos e se estendendo a outras
coisas apenas através de um procedimento de dilatação do espírito que compreende
sucessivamente no inconsciente, na consciência em geral, na vida e na matéria o que há
de espiritual. Poderemos falar de tendência idealista, pois o espírito apenas penetra as
coisas na medida em que simpatiza com elas, isto é, na medida em que há univocidade,
por assim dizer, de seu sentido e do sentido daquilo que lhe é familiar.

Mas em um segundo sentido, a metafísica poderá ultrapassar mesmo o


espírito de certa maneira. É porque aqui a intuição tem como seu horizonte a própria
percepção do mundo. Mas então porque seria este sentido distinto do anterior? É porque
a própria percepção exigirá, mesmo no bergsonismo, a afecção em relação a qualquer
coisa de distinto de nós mesmos, qualquer coisa que não podemos compreender sua
totalidade e que permanece, como tal, inapreensível. Neste ponto, a intuição ultrapassa o
simples contato simpático, e só é obtida ao fim de um trabalho de mediação e radical
conversão do espírito em uma direção contrária aquela que tende normalmente. Mas
ainda assim o trabalho nunca estará terminado e nunca se compreenderá o absoluto em
sua totalidade, cada nova experiência exigindo um esforço sui generis para que se possa
alcançar sua intuição, compreender sua natureza.

“A duração é esta realidade paradoxal que nos liga às coisas, e a coisas


exteriores a nós mesmos. Na intuição a coincidência se confunde com um
momento de transcendência: nós coincidimos, certamente, mas com um
movimento que sai de nós. [...] Nós temos em nós mesmos os meios para esta
retomada, de dar um sentido a vida. A intuição se torna uma reunião de signos
e de fatos graças a um sentido. A simpatia não é mais uma recepção, mas uma
compreensão.”50
50
MERLEAU-PONTY, Maurice. L’union de l’âme et du corps chez
Malebranche, Biran et Bergson, p. 124.
32

É esta ingenuidade que constitui a maior força do bergsonismo, e lhe


permite aceitar plenamente esta ambigüidade. Mas talvez seja a mesma ingenuidade que
o leve a transformar a duração em uma substância, imagem necessária ao sentido da
coincidência. Poderá, na percepção real, em nossa relação com a paisagem, no estofo
mais íntimo de nosso tecido psicológico e de nossos desejos, se sustentar a imagem de
uma coincidência com o que quer que seja? Mas, por outro lado, levantar tal crítica a
Bergson poderá ser também esquecer sua grande lição: “nós coincidimos, certamente,
mas com um movimento que sai de nós”...
33

Bibliografia

BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la conscience. Paris: PUF. 2007.

______________. Matière et mémoire. Paris: PUF. 2008.

______________. L’Évolution créatrice. Paris: PUF. 2007

______________. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes. 2006.

DELEUZE, Gilles. O bergsonimo. São Paulo: Editora 34. 2008.

JANKÉLÉVITCH, Vladimir. Henri Bergson. Paris: PUF. 2008.

MERLEAU-PONTY, Maurice. L'union de l'âme de du cops chez Malebranche, Biran et Bergson.


Paris: Vrin. 2002.

PRADO JR., Bento. Presença e campo transcendental. Consciência e negatividade na filosofia de


Bergson. São Paulo: EDUSP. 1989.

WORMS, Frédéric. Bergson ou les deux sens de la vie. Paris: PUF. 2004.

WORMS, Frédéric. Le vocabulaire de Bergson. Paris: Ellipses. 2000.


34

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