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agostinho connosco

Sobre a sua ausência, não é possível falar de Agostinho da Silva com


acerto, considerado «científico», para avaliar das potencialidades, e eficácia, das
suas visionárias propostas aplicadas à actualidade. Sendo muito difícil, mais pró
impossível, de classificar, que qualidade de homem alcançou ser, por excesso de
facetas. Certo é que, Agostinho, sempre fez especial referência “à liberdade, ao
paradoxo, e ao imprevisível”... na correnteza da Vida, e sabendo-se que muitos
outros aspectos do seu pensamento poderiam ser salientados, apesar disso, parecem
ser estes os que caracterizaram com mais ênfase e persistência todo o seu trajecto
de vida e conduta, quase epopeica.

Sobre a liberdade, Agostinho era veemente: “Não me preocupo senão em


fazer exactamente o contrário daquilo que eu não gosto no mundo. É certamente
admirável o homem que se opõe a todas as espécies de opressões, porque sente
que só assim se conseguirá realizar a sua vida”. 1 Claro que, para aplicar com
coerência, continuidade e constância tal atitude, é indispensável possuir vários
«instrumentos» alternativos de sobrevivência – e Agostinho tinha-os, assim como
muita coragem – e ele provou-o. Relembremos as palavras do professor: “A lei
José Cabral, contra a qual protestou Fernando Pessoa, era uma lei que
determinava que todos os funcionários públicos tinham de assinar uma declaração
em como não pertenciam a nenhuma sociedade secreta. Se não assinassem a
declaração seriam demitidos (...) A lei era estúpida, porque qualquer membro de
uma sociedade secreta tinha obrigação de assinar, porque se não trairia a
sociedade secreta, não é verdade? O único que podia recusar a declaração sem
trair sociedade secreta nenhuma era eu, por exemplo, porque não pertencendo a
nenhuma podia recusar-me a assinar. E recusei-me!”. 2 Provando a sua aceitação e
amor perante o imprevisível, mudou de direcção para estrangeiros continentes, o
que lhe proporcionou conhecer e enlaçar outros povos e suas culturas, afirmando
numa paradoxal declaração: “Estou bastante grato à ditadura por me ter demitido
em Aveiro”. 3

1
• Ir à Índia sem abandonar Portugal, Assírio & Alvim, 1994
2
• Idem
3
• Considerações e Outros Textos, Assírio & Alvim, 1989

1
Sobre o povo e quem o diz defender, ouçamo-lo: “(...) amam o povo, mas
não desejariam (...) que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a
ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as
lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior
e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito
interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da
sua condição (...) há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco
mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo por que
parecem sacrificar-se (...) se vieram parar a este lado da batalha foi porque os
acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura
de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa,
a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas
como os outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve. (...) só um
grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie
de paixão (...) porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é
culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que
trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que
mais o cantam, o admiram e o protegem.” 4

Sobre o culto de personalidade, é histórico e conhecido que, a


transferência da atenção, do “cerne das ideias e visões que elas catalisam” para a
propaganda aduladora da imagem do futuro «santo e respectiva santologia», resulta
sempre na ofuscação do que de mais nobre e elevado o personagem representava:
as moventes ideias criadoras; dando lugar a hierarquias de interpretes que, com o
tempo, se autolegitimam num qualquer poder. Quando se tende a construir um
mito, um culto de personalidade em torno de quem negava a importância disso, se
algum dia fosse uma realidade tal aberração, não seria decerto da sua, Agostinho,
responsabilidade, e sim, mais uma vez, dos «exegetas». Tal adulteração, seria um
péssimo serviço, fatal até, para a divulgação da sua sagacidade, ideias e propostas,
em favor da edificação de mais uma imagem, fundação ou estátua, que se recusava
ser. É importante nunca esquecer a frase, tantas vezes repetida por Agostinho da
Silva: “Não vou em rótulos nem em modas”. 5 Agostinho afastava de si o
seguidismo adola’dor e acrítico, como se pode constatar facilmente pelas suas
palavras: “Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe

4
• Idem
5
• Conversas Vadias – TV

2
disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem
todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os
acertos, se eles forem meus, não seus. Os meus conselhos devem servir para que
você se lhes oponha”. 6

Sobre a ilusão do ego-autosuficiente, quando Agostinho da Silva afirmava:


“Podemos e devemos aprender com toda a gente. Há coisas da vida que podemos
aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os
estúpidos” 7, para além de uma demonstração de humildade, também se oculta,
subtilmente, o pensamento da sua percepção da “mente aberta” ao mundo e ao
outro, única forma de sentir a totalidade que nos rodeia e da qual fazemos parte.
Também ao afirmar que: “O voto fundamental da pessoa deve ser, de facto, o voto
à liberdade” 8, foca como sendo essencial a importância da individualidade plena,
como condição indispensável para a realização do Ser. Assim, nestes decadentes
tempos de preponderância do nefasto e corruptor culto das aparências, do status, e
do sucesso/safanço individual, a ideia de Agostinho sobre “aprender com os
outros”, é um alerta e uma técnica para neutralizar a doentia exaltação do ego-
separativo – enquanto palavra de ordem «orientadora», imposta pela “realidade
criada pela propaganda e manipulação mediáticas”, competitiva e guerreira mola –
alavanca de rivalidades mesquinhas, desde as regionais à globalbarbarização em
curso.

Sobre a linguagem e a escrita, existem também e ainda, os que pensam ou


simulam, que quanto menos se faz entender mais inteligente é o orador, porém, em
Agostinho da Silva, um homem de imensa cultura e erudição, a linguagem simples
e a dignificação da palavra eram um atributo e preocupação constantes. Agostinho
não falava nem escrevia para esclarecer esclarecidos! Muitos de nós se recordarão
do magnetismo encantatório das suas televisivas “Conversas Vadias”, em que uma
surpreendente capacidade de improviso era aliada ao «esforço» de se fazer
entender por uma maioria de pessoas, e não por elites babadas com labirínticas e
crípticas retóricas, de conferencistas cheios de vaidade contida.
A maneira de ser e actuar de Agostinho era directa e acessível, uma forma de
amor ao mundo que serviu, sem dele se pretender aproveitar para qualquer tipo de
prestigio nem projecto de ascendência pessoal. Ainda sobre o simples comunicar

6
• Textos e Ensaios Filosóficos I, Âncora Editora, 1999
7
• Conversas com Agostinho da Silva, Editora Pergaminho, 1996

3
para os simples, ouçamos as suas palavras: “Há aforismos que são como pequenos
capítulos do livro que se quereria escrever (...) podem ser tão logicamente
encadeados entre si, construir tão seguro edifício como o tratado (...) porei em
primeiro lugar a tendência que nele pode haver para uma fuga da retórica, para a
negativa ante o desejo de encher mais uma página (...) leva o artista a concentrar-
se, a exprimir o máximo de ideias no mínimo de figuras e de gestos. Por outro
lado, é inegável que a obra extensa é pouco acessível àqueles mesmos que mais
precisam de cultura, que duas ou três frases, esplêndidas no seu isolamento,
enérgicas e nítidas, lhes ficam mais gravadas no espírito do que longos
monólogos. De resto quantas obras se não resolvem numa série de aforismos?
Quantas obras não ganhariam em se despojar de todo o aparelho de que foi
necessário revesti-las para chegar ao volume? ”. 9
Para bom entendedor... respeitemos a sua vontade, e façamo-lo desse modo.

josé antónio guille

8
• Vida Conversável, Agostinho da Silva, Assírio & Alvim, 1998
9
• Ir à Índia sem abandonar Portugal, Assírio & Alvim, 1994

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