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A

Maquina

Samuel Peregrino
Não façamos da máquina
o sucedâneo do humano
ou seu mutante metálico.

O homem é o imprevisível,
o orgasmo do paradoxo,
e a aversão às repetências,
que é a essência do mecânico.

Falta-lhe o senso do acaso,


do lúdico e do absurdo,
a convivência do equívoco

A máquina é a ordem sólida


oposta à fluidez do orgânico.

Valter da Rosa Borges


A Maquina
Por
SAMUEL PEREGRINO
2008

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Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998
“Ei gato acorde! Onde puseste minha dEus ExMachina? Preciso sair, comprar pão!”

_Duzentos denários!
_Aceito!
Uma caixa de trinta centímetros de altura, retangular, alumínica. Outra caixa, quadrada feita de
vítreo retilíneo, denso, coberta de placas brancas. Levou-as para fora da pequena loja cheia de outras
dessas coisas plásticas, sem vida. Vem lá outra dessas, porém, metálica, com rodas.
Guardou os estranhos objetos, nem tanto assim, posto que de tudo vi nessa cidade. Despediu-se
do vendedor polonês de silício contrabandeado e voltou-se ao móvel transeunte tendo uma tábua
debaixo do braço.
Pregado à tábua havia todas as letras e sinais que existiam nos livros. Tudo em desconexa
ordem, palavras soltas, aleatoriedade pretensiosa. Segui-o de longe até que... Para a coisa rodável!
Descarrega e leva tudo para o catre imundo.
Entrei com cuidado, sorrateiro, mantendo a porta aberta por precaução. Ele bem sabia o que
fazia. Colocou a parafernália sobre a pequena mesa de pinho envelhecido - cor âmbar. Os fios
enroscados numa engenhosidade mórbida, cabos que se descruzam unindo-se à parede por um
pequeno objeto em forma de T. De repente para! Detêm-se ao vidro lusco revérbero que reflete sua
imagem na escuridão espectral. Espera! Falta alguma coisa! A botoeira vermelha na coluna plástica
ao chão é ligada. Banzé! A máquina vivia!
Estrupício, alaridos, ruídos e grunhidos! A caixa no chão tremia se debatendo por dentro, como
quisesse se levantar e partir. Retornando o olho ao quadrado espelhado um translúcido brilho
figurava o vidro numinoso varrendo a treva da sala. O ícone energúmeno em biose e ele ali, quedo,
demorado, desafogado, tornando-se cúmplice do heteróclito mecanismo esconjurado e eu alheio a
essa coisa toda, simbiótica.
Foi-se treva adentro, na mão o frasco cônico esverdeado acomodava a preciosa água-pé. Retira a
cortiça de casca de sobreiro e dá um gole. Pus-me à porta, preparado para fugir a qualquer alardo.
Vai-não-vai...! Zummmm Plackkkk, Tziii!!!! Um estalo advindo um silêncio aterrador, o som
diminuiu e a luz foi se guardando nos olhos. Puxa a cadeira e lá se vai frente ao ser brilhante.
Estirou as mãos sobre a tábua de letras e pôs a bater levemente os dedos sobre símbolos ideográficos
embaralhados misturados a sinais míticos. Palavras lançadas da tábua letrada ao vidro luminescente
como que magia. Cheguei perto sem que ouvisse meus passos, estava inerte, absolvido pela coisa
viva, cintilante. Não notara minha presença, ao fuzilar dos olhos ao fulgurar a luz, li o fólio
envidraço.
Pára! De novo?! Sim, mas uma vez! Os dedos descansam. Desentabula as palavras. Maldito
calhamaço que se faz por possessão iconográfica! Uma écloga?! Estático permaneceu contemplando
o diáfano vítreo cheio de letras mortas que jamais caíam ou retornavam à tábua abaixo delas.
Apoltronou-se confortavelmente, a garrafa segura refletia à meia-luz de um fim de tarde qualquer já
perdida na cidade vazia, afastei-me, deixei-o, insulado como os que sonham.

Desci a escadaria circular refletindo sobre o que vi, a máquina quase bácula, imóbil, vazia(...)
usara mãos mortais para se revelar(?) E sua tábua maldita, esconjurada, transmitira um códice.
E o li.

“Chove, a noite deita lutuoso véu sobre o dia que jaz morno

Tépido sangue que adestra os dedos

Trêmulos sobre a folha branca,

A tinta fresca, o areeiro ao lado,

Certamente conhecem o sibiloso coração

As gotas beijam a terra fria, o cheiro úmido da brisa veraneia,

Folhas tocadas, um zéfiro assopro, rosáceas gotejadas de haste


oca, flor das campanuláceas

E a vida sendo o menor dos astros perdido nesse espaço de um ar


que um dia finda no calor de teus pulmões

Quero respirar teu ar.”

A máquina amava!

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