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Sobre os 8 vícios capitais (1)

Evágrio Pôntico
(Tradução de Carlos Martins Nabeto)

I. A Gula (1)

Capítulo 1

A origem do fruto é a flor e a origem da vida ativa (2) é a moderação (3); quem domina o
próprio estômago, diminui as paixões; pelo contrário, quem é subjugado pela comida, aumenta
os prazeres.

Assim como Amalec é a origem dos povos, também a gula é a origem das paixões. Assim como
a lenha é alimento do fogo, a comida é o alimento do estômago. Muita lenha proporciona uma
grande chama e a abundância da comida nutre a concupiscência. A chama se extingue quando
há menos lenha e a miséria de comida apaga a concupiscência.

Aquele que domina a boca, confunde os forasteiros e desata facilmente as suas mãos. Da boca
bem coordenada brota uma fonte de água e a libertação da gula gera a prática da contemplação.

A estaca da tenda, atacando, matou a boca inimiga e a sabedoria da moderação mata a paixão
(4).

O desejo de comida gera desobediência e uma deleitosa degustação afasta do Paraíso. As


comidas saborosas saciam a garganta e nutrem o glutão de uma imoderação que nunca cochila.

Um ventre indigente prepara para uma oração vigilante; ao contrário, um ventre bem cheio
convida para um longo sono.

Uma mente sóbria se alcança com uma dieta bem pobre, enquanto que uma vida cheia de
delicadezas lança a mente no abismo.

A oração daquele que jejua é como um pintinho voando mais alto que uma águia, enquanto que
a [oração] do glutão está envolta nas trevas. A nuvem esconde os raios do sol e a digestão
pesada dos alimentos ofusca a mente.

Capítulo 2

Um espelho sujo não reflete claramente a imagem daquele que se põe diante dele e o intelecto,
tonto pela saciez, não acolhe o conhecimento de Deus.

Uma terra não cultivada gera espinhos e de uma mente corrompida pela gula germinam maus
pensamentos.

Como na lama não emana boa cheiro, tampouco no glutão é possível sentir o suave perfume da
contemplação.

O olho do glutão explora com curiosidade os banquetes, enquanto que o olhar do moderado
observa os ensinamentos dos sábios.

A alma do glutão enumera a lembrança dos mártires, enquanto que a do moderado imita os seus
exemplos.

O soldado fraco foge ao som da trombeta que preanuncia a batalha; da mesma forma, o glutão
foge dos chamados à moderação.
O monge guloso, submetido às exigências do seu ventre, faz questão de sua parte cotidiana. O
caminhante, que caminha com afinco, alcançará logo a cidade e o monge glutão não chegará à
casa da paz interior (5).

O vapor úmido do incenso perfuma o ar, tal como a oração do moderado deleita o olfato divino.

Se te abandonas ao desejo de comida, já nada te bastará para satisfazer o teu prazer; o desejo
de comida, com efeito, é como o fogo que sempre envolve e sempre se inflama. Uma medida
suficente enche o prato, mas um ventre mal acostumado jamais dirá: "Basta!". A extensão das
mãos pôs em fuga a Amalec e uma vida ativa elevada submete as paixões carnais.

Capítulo 3

Extermina tudo o que for inspirado pelos vícios e mortifica fortemente a tua carne. Com efeito,
uma vez morto o inimigo, este não mais produz medo; assim, um corpo mortificado não
perturbará a alma. Um cadáver não sente a dor produzida pelo fogo; e, menos ainda, o
moderado sente o prazer do desejo extinto.

Se matardes o Egípcio (6), esconda-o sob a areia e não engordes o corpo por uma paixão
vencida; assim como na terra preparada germina o que está escondido, também no corpo gordo
revive a paixão.

A chama que se reduz é reacendida quando a alimentamos com lenha seca e o prazer que está
se atenuando revive com a saciedade da comida; não te compadeças do corpo que se lamenta
pela carestia e não te agrades com comidas suntuosas; com efeito, se te reforças, encontrareis
uma guerra sem trégua, que escravizará tua alma e te fará servo da luxúria.

O corpo indigente é como um cavalo dócil que jamais derrubará o cavaleiro; [o cavalo], com
efeito, dominado pelas rédeas, se submete e obedece a mão daquele que as detém; assim, o
corpo, dominado pela fome e vigília, não reage por um pensamento que o cavalga, nem relincha
excitado pelo ímpeto das paixões.

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Notas:

1. Ao que hoje chamamos gula, Evágrio chamava gastrimargia, literalmente "loucura do ventre".

2. "Vida ativa" é a tradução mais próxima para praktiké, a disciplina espiritual que, segundo
Evágrio, se encontra no princípio do processo de conformação com o Senhor Jesus e que tem
por fim purificar as paixões da alma humana. A isto Evágrio dedica o seu "Tratado Prático".

3. Enkráteia é um conceito muito mais rico que o termo "moderação", se por este se entende
apenas a virtude contrária à gula. Pela raiz krat, que significa "força" ou "poder", esta virtude
implica "domínio de si" ou "senhorio de si".

4. Trata-se de uma comparação obscura, mas a mensagem é clara.

5. O termo usado por Evágrio é Apátheia, que em sua espiritualidade equivale ao estado de
plenitude espiritual, alcançado mediante o domínio das paixões e o silenciamento do interior.

6. O "Egípcio" é o nome dado, pelos Padres do Deserto, a um demônio especialmente voraz na


tentação.

Autor: Evágrio Pôntico

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