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ILICITUDE
___________________________
10.1 CONCEITO
VON LISZT distinguia uma ilicitude formal de outra material, dizendo que seria
formalmente ilícita a conduta humana que violasse a norma penal, e substancialmente
ilícito o comportamento humano que ferisse o interesse social tutelado pela própria
1 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 160.
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles
norma.
Do ponto de vista formal, portanto, a ilicitude seria a simples contradição entre o fato
realizado pelo agente e a norma penal incriminadora.
No entanto, sabe-se, a norma penal está contida no tipo. Em matar alguém está
contida a ordem: não matar, de sorte que contrariar a norma penal incriminadora é
adequar-se ao tipo.
2 Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 310.
3 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.
4 Op. cit. p. 163.
Ilicitude - 3
Com efeito, quando se diz que a ilicitude é tão-somente a lesão do bem jurídico,
faz-se referência à ilicitude como conceito válido para todo e qualquer dos ramos do
direito, ao passo que, ao se acrescentar a relação de colidência entre o fato e a norma
incriminadora, a referência será exclusivamente à ilicitude penal.
Por essa razão, diz-se que os crimes de lesão corporal e de homicídio são,
igualmente, ilícitos. Um é tão ilícito quanto o outro. O homicídio não é mais nem
menos proibido que a lesão corporal, nem que o aborto, nem que o estupro. São
igualmente proibidos, pois constituem, todos, lesões a bens jurídicos. A qualidade de
ser ilícito é a mesma para todos os crimes. Todos são, na mesma intensidade, ilícitos,
proibidos, contrários ao Direito, lesivos aos bens jurídicos, ou expositivos a perigo de
lesão.
Por outro lado, não se pode dizer que o homicídio é tão injusto quanto o furto.
Aquele é muito mais injusto que uma simples subtração de coisa alheia móvel, porque
5 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p.
86.
6 Idem.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles
No homicídio, o bem é mais importante, a lesão é mais grave do que num delito
menor, contra um bem menor, o patrimônio, e com uma conduta menos grave, sem
violência à pessoa. Por isso, a pena para o homicídio é maior que a pena cominada para
o furto, como o é para o estupro, para a lesão corporal.
Como já se disse, e não é demais repetir, a ilicitude é resolvida num juízo de valor
acerca da lesividade do bem jurídico.
Uma das funções do tipo é ser indiciário da ilicitude, dela portador, o que significa
dizer que o tipo traz, em seu interior, a ilicitude, a proibição. É de toda obviedade. No
tipo matar alguém, está inserida a proibição de matar. Se alguém mata outrem, tem-se
a idéia, a princípio, de que tal comportamento é proibido, é ilícito, pois, ao realizar a
figura descrita no tipo, infringiu a norma proibitiva nele contida, implicitamente.
A conclusão a que se chega é: toda vez que houver um fato típico, deve-se dizer:
este fato é, a princípio, ilícito, proibido.
Se o fato tiver sido cometido ao amparo de uma dessas normas permissivas, então
a ilicitude que vinha com o tipo, com a tipicidade, fica afastada, pela incidência da
norma de justificação, que realiza a tarefa de afastar, do tipo, a ilicitude que ele portava.
Se dado fato típico tiver sido praticado numa situação em que também se amolde a
uma das chamadas causas de exclusão da ilicitude, terá havido um fato típico lícito,
justificado.
Um fato típico lícito, ou justificado, é o que se ajusta a um tipo legal de crime, mas
que, por realizar todos os pressupostos de uma norma penal permissiva justificante, e
por orientar-se para esse fim, é permitido pelo Direito.
O Código Penal contém várias normas penais que excluem a ilicitude dos fatos
típicos. Na parte geral, há quatro dessas causas, e na parte especial estão inseridas
outras eximentes.
No âmbito deste volume, que é o da Parte Geral do Código Penal, são abordadas,
exclusivamente, as causas de justificação nela inseridas, que se encontram no art. 23,
assim:
“do capitão Thomaz Dundley e de seu imediato Edwin Stephens, julgados pelo
júri de Exeter, na Inglaterra, os quais, em conseqüência do naufrágio do yacht
La Mignonnette, lançados em uma pequena barca, decidiram, depois de dezoito
dias de atrozes sofrimentos, matar o grumete Parker, seu companheiro, para
beber-lhe o sangue e comer-lhe a carne”7.
7 SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. p. 339.
Ilicitude - 7
Havendo situação de perigo para um bem jurídico, poderia alguém, com o fim
de salvá-lo do perigo de lesão, voltar-se contra outro bem jurídico, destruindo-o,
danificando-o, sacrificando-o. Essa é a situação de estado de necessidade. No caso dos
náufragos, na barcaça, depois de 18 dias, famintos, encontravam-se os três numa
situação de perigo para suas próprias vidas. A saída encontrada foi o sacrifício de uma
vida, para a salvação de duas.
Todavia, há uma questão que se sobrepõe a esse fundo ético do Direito Penal.
Quando os homens se organizaram e construíram o Estado, conferiram-lhe o poder-
dever de proteger os bens jurídicos dos ataques e das situações de perigo. O indivíduo
organizado em sociedade sabe que seus interesses estão protegidos pelo Estado. Essa
proteção do Estado, por sua vez, como é sabido, não é infalível, porque o Estado não é
onisciente e onipresente. Nem sempre, portanto, pode proteger certos bens,
especialmente quando eles entram em rota de colisão ou em choque com outros,
instalando-se o perigo para dois ou mais deles, de modo que, ainda que o Estado
estivesse presente, não poderia, fisicamente, salvar os dois bens.
Basta pensar a situação da gestante cuja gravidez é de alto risco. Então, em dado
momento, sua vida entra em choque com a vida do produto da concepção, de tal modo
que os médicos chegam à inexorável conclusão de que a única maneira de preservar a
vida da gestante é sacrificando a vida do feto, interrompendo a gravidez. Essa é uma
situação que bem mostra a impossibilidade de o Estado proteger os dois bens jurídicos.
Se se quiser discutir, do ponto de vista ético, deve-se chegar a uma de duas conclusões:
salva-se a mãe ou salva-se o feto, porque ninguém pode admitir, em nome de uma ética
absurda, que o caso deva ser deixado às mãos da natureza, ou de Deus, com o possível e
bem provável sacrifício de ambos, mãe e filho.
Quando numa situação em que um bem jurídico está na iminência de sofrer uma
lesão, pela presença atual de um perigo, e não podendo o Direito proteger tal bem, deve
permitir que seja sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda
que de um inocente, desde que não haja outra saída.
10.3.2 Requisitos
Para que o agente possa ter seu comportamento justificado pela norma do art.
23, I, do Código Penal, deve realizar todos os pressupostos, objetivos e subjetivos, do
estado de necessidade, que estão definidos no art. 24:
Com base nessa norma explicativa, são extraídos os requisitos dessa excludente.
O perigo deve ser concreto, e não apenas abstrato, uma simples representação
psíquica, mas uma probabilidade real.
Iminente é o que, não sendo atual, está prestes a ocorrer. Para legitimar a ação
do sujeito em estado de necessidade, ele só pode realizar a conduta quando o perigo se
tornar atual, não lhe sendo autorizado comportar-se enquanto o perigo é, apenas,
iminente.
A lei foi clara, ao dizer que só justifica a excludente se o perigo for atual,
diferentemente do que faz quando trata da legítima defesa – analisada a seguir – em
10 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Por exemplo, nos Andes, enquanto a fome não constitui um perigo atual de
morte por inanição, ainda resta uma probabilidade real, concreta, de que os salvadores
cheguem com alimentos e medidas para salvar os perdidos.
Se o perigo é apenas iminente, que não se tornou atual, concreto, não aconteceu
presentemente, não é, por isso mesmo, de molde a autorizar o sacrifício de um bem.
Pode agir em estado de necessidade aquele que sacrifica um interesse, para salvar
um direito próprio ou alheio, de quem quer que seja. Todos os bens jurídicos que
estiverem em situação de perigo atual podem ser salvos sob o estado de necessidade: a
vida, a liberdade, o patrimônio, a integridade corporal, a saúde, a família.
Se o perigo tiver sido causado por Cláudio culposamente, por negligência, por
um descuido ao jogar fora o resto de um cigarro que fumara, sem qualquer intenção de
causar aquela situação perigosa, aí, sim, se necessitar agredir ou lesionar alguém, na
luta para fugir do fogo, agirá em estado de necessidade, presentes, é evidente, todos os
demais requisitos.
Se o agente tiver, por lei, o dever de enfrentar o perigo, se for uma daquelas
pessoas cuja atividade é, por sua própria natureza, perigosa, e que, por isso, a lei a
obriga a enfrentar situações de perigo, não poderá, por essa razão, alegar o estado de
necessidade.
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Os policiais, civis e militares, têm como atividade normal prender agentes de fatos
típicos, ou condenados pela prática de crimes, perseguindo-os, indo a busca de provas,
enfim, realizando diversas tarefas perigosas e, em vários momentos de suas vidas,
encontram-se em situações que podem caracterizar os pressupostos do estado de
necessidade: perigo atual para bens jurídicos não provocados dolosamente por eles.
Como bem alerta DAMÁSIO E. DE JESUS10, não se pode confundir o dever legal de
enfrentar o perigo com o dever legal ou jurídico de impedir o resultado. Uma coisa é o
dever de enfrentar o perigo, de que trata o § 1º do art. 24, a outra é o de impedir o
resultado, referido no art. 13, § 2º.
Quando a lei diz que determinadas pessoas, diante de situações de perigo para
bens alheios, têm o dever de agir para impedir a ocorrência de resultados lesivos, quer,
simplesmente, afirmar uma obrigação para elas, pois que, se não agirem, responderão
pelo resultado. Têm o dever de realizar um comportamento positivo, para que o
resultado não ocorra. Omitindo-se, respondem pelo resultado, seu comportamento é
típico.
É certo, todavia, que aquelas pessoas – os garantes – só estão obrigadas a agir com
qualquer bem jurídico, com o objetivo de salvar outro bem, próprio ou de terceiro. Se o
automóvel do homem está em perigo, em situação tal que a única maneira de evitar
uma colisão com um poste é desviar e atingir uma pessoa que transita, não se pode
sacrificar a vida humana para salvar o veículo.
É claro que essa relação de proporcionalidade não pode ser colocada em esquemas
rígidos, de peso ou medida, absolutos ou exatos. Não se trata de pesar ou de medir, em
quilogramas ou metros. Os bens da vida, especialmente os colocados sob a proteção do
Direito, nem sempre podem ser mensurados, aquilatados, com precisão milimétrica, ou
com aparelhos de precisão, que não foram e, certamente, jamais serão inventados.
Por outro lado, aquele que, diante da situação de perigo para o bem, próprio ou
alheio, que deseja protegê-lo, vendo-se na necessidade de agir, não está em condições
de medir, pesar, com precisão, e decidir sobre qual dos bens é o mais importante, qual
vale mais. O que o Direito exige é razoável proporcionalidade entre os bens em conflito,
para justificar o sacrifício de um deles, mesmo que um pouco mais valorado, executado
para a salvação do outro, mesmo que um pouco menos valioso.
Não basta que a conduta do sujeito tenha se realizado sob a égide de todos os
elementos objetivos, anteriormente descritos. Não é suficiente que tenha havido perigo
atual para um bem próprio ou alheio, não causado dolosamente pelo sujeito, que não
tinha o dever legal de enfrentar o perigo. Nem que a lesão seja a única saída para salvar
o bem, que era mais valioso que o bem sacrificado.
É preciso algo mais, que o agente tenha agido com a consciência de que a situação
de perigo era concreta e que a única saída era o sacrifício do outro bem, e, mais, com
vontade de salvar o bem ameaçado.
regulamentação.”11
São várias as teorias que buscam explicar o fundamento da legítima defesa, a razão
de o direito justificar a prática de um fato típico, considerando-a lícita, apesar da
violação da norma penal incriminadora. Importa falar de algumas.
Outra teoria, a da “colisão de direitos”, cunhada por VON BURI, afirma que,
quando dois direitos entram em conflito, de modo que um não pode subsistir sem o
sacrifício de outro, o Estado permite o sacrifício do menos importante, que é o do
agressor, exatamente em razão da agressão. HUNGRIA a combateu:
A legítima defesa é um direito do indivíduo por essas duas razões: primeiro porque
é a realização da vontade do Direito, a proteção do bem jurídico, e, ao mesmo tempo,
porque, na ausência do Estado para cumprir seu dever de tutelar o interesse
injustamente agredido, deve devolver ao indivíduo esse poder de proteger o bem
atacado.
É, portanto, direito de todo homem, diante de uma agressão, poder realizar, por
sua conta, o fim do direito. Diferentemente do estado de necessidade, em que o
sacrifício do outro bem deve ser inevitável, na legítima defesa o agredido não está
obrigado a fugir, a propósito do que merece ser transcrito o seguinte trecho de um
julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatado pelo Des. ADRIANO MARREY:
“Não estaria o réu realmente obrigado a fugir, para evitar ato legítimo de
defesa, que poupasse o agressor violento o incômodo conseqüente. Lembra
Nelson Hungria ser ‘de todo indiferente à legítima defesa a possibilidade de
fuga do agredido. A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e
pusilânimes. Nem mesmo há ressalvar o chamado commodus discessus, isto é,
o afastamento discreto, fácil, não indecoroso. Ainda quando tal conduta
traduza generosidade para com o agressor ou simples prudência do agredido,
há abdicação em face da injustiça e contribuição para maior audácia ou
prepotência do agressor. Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa
é um dever moral ou político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser
estimulado pelo direito positivo’ (v. Comentários ao código penal, 5. ed.,
Forense, vol. 1, /292). Outrossim, acentuou o mesmo mestre penalista, é
inexigível a vexatória ou infamante renúncia à defesa de um direito.”13
O primeiro requisito da legítima defesa é que ela se dirija contra uma agressão.
Agressão é um comportamento humano dirigido à lesão de um bem jurídico. É um
ataque humano a um interesse juridicamente protegido.
Não é toda e qualquer agressão que autoriza a resposta legítima, mas apenas as
injustas. É que podem ocorrer agressões lícitas, autorizadas pelo Direito, como a
praticada pelo policial que prende alguém em flagrante-delito ou mediante ordem
judicial. Ao fazê-lo, estará agredindo a liberdade do que está sendo preso, a qual, por
ser uma agressão justa, lícita, não pode ser repelida licitamente. Quem assim fizer não
estará em legítima defesa.
A agressão que possibilita a legítima defesa deve ser injusta, ilícita, não devendo
ser necessariamente um ilícito penal. Há de ser, isso sim, um comportamento
objetivamente proibido pelo Direito. Assim, constitui agressão injusta a praticada por
Ilicitude - 19
A agressão não necessita ser praticada com violência real, pois não se exige que ela
constitua uma violência física contra o bem jurídico. Agressões verbais, à honra das
pessoas, ensejam repulsa legítima, bem assim as praticadas com astúcia contra o
patrimônio.
A agressão injusta deve ser atual ou iminente. Deve estar acontecendo ou prestes a
acontecer. Não se podem repelir licitamente agressões já passadas, nem se antecipar
repelindo as que ainda não aconteceram, nem estão prestes a ocorrer, mas se situam
ainda no futuro, e, como tal, são apenas expectativas de agressão, meras representações
espirituais do que não é concreto, de algo inexistente.
Não o será também se não passar de uma ameaça, ainda que idônea, de agressão.
Se João afirma que vai matar a Pedro, amanhã pela manhã, não está este autorizado a
antecipar-se e reagir legitimamente. Só é admitida a reação quando o bem jurídico já
está sendo agredido ou quando estiver prestes a sofrer a lesão. Quando houver perigo
concreto de lesão, não quando este perigo é apenas uma suposição, distante ainda no
tempo, de modo que pode sequer instalar-se. Se há uma ameaça de agressão, o agressor
terá realizado um fato típico, o do art. 147 do Código Penal, podendo a vítima acionar o
Estado, que, então, deverá intervir, realizando o Direito, dando proteção ao bem
jurídico.
A agressão que autoriza a defesa lícita deve ser atual ou iminente. Atual porque já
se terá iniciado o ataque ao bem jurídico, que já sofre uma violação proibida. Por isso,
pode ser repelida, seja para que se interrompa, seja para que não se intensifique mais
ainda.
Iminente é a lesão que vai acontecer imediatamente. Não pode o Direito exigir do
agredido que espere a agressão concretizar-se, podendo impedi-la no momento
antecedente de sua instalação concreta. É a situação de perigo concreto de lesão, em
que estão reunidas todas as condições indispensáveis à produção do resultado.
Determinar ao agente que espere a agressão tornar-se atual pode tornar inócua a
autorização para a defesa. Se o agressor leva a mão à cintura para dela tirar o revólver
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles
com o qual vai disparar contra alguém, não pode o Direito exigir do defendente esperar
que a arma esteja na mão do agressor, engatilhada, apontada, para, só então, poder
repelir a agressão.
Primeiro porque a conduta dela não se volta, não se dirige, contra a honra do
marido, nem é essa, na quase totalidade dos casos, a intenção da mulher casada,
quando se relaciona sexualmente com outro homem.
Segundo porque não basta que ele, marido, sinta-se ultrajado; é necessário que
tenha havido comportamento alheio que atinja sua honra subjetiva. Se o sentimento
por ele experimentado é o da traição, da violação do dever de fidelidade, então não é a
honra que está sendo agredida, mas o direito à fidelidade. Se o sentimento do marido é
14 JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte especial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 177.
Ilicitude - 21
Não basta, todavia, que tenha existido agressão, pois é preciso ver se o meio
necessário para repeli-la seria o disparo de uma arma de fogo, contra um ou contra
ambos, o que será abordado no próximo item.
15 FRANCO, Alberto Silva et. al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo:
Esta última decisão é a que melhor atende aos interesses do direito. A honra do
marido traído não é agredida pela traição. Esse pensamento, aliás, é cultivado apenas
nas camadas médias da sociedade, posto que, tanto na mais elevada, quanto na mais
subalterna, esses sentimentos simplesmente não existem.
Finalmente, no âmbito ainda dos direitos que podem ser defendidos, importa
ressaltar que o defendente pode reagir a qualquer agressão, mesmo àquela dirigida a
um bem de outra pessoa, inclusive da pessoa jurídica. Há assim a legítima defesa
própria, quando o bem defendido é do sujeito, e a legítima defesa de terceiro, quando o
bem agredido tem outra pessoa como titular.
17 Bol. TJSP 6/287 (In: FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 274).
Ilicitude - 23
Uma arma de fogo pode ser o meio necessário para obstar uma agressão
praticada com os próprios punhos. Um sujeito franzino, raquítico, que tenha uma arma
de fogo à sua disposição, agredido a murros por um lutador de artes marciais, deve
utilizar o revólver como o meio necessário para se defender, ainda que junto dele exista
um porrete, ou uma barra de ferro. Tais instrumentos, nas mãos do frágil cidadão,
podem, a toda evidência, ser aquém do necessário para impedir a agressão do exímio
lutador.
pois que não se pode exigir daquele que, agredido injustamente, reage cálculos
milimétricos sobre a necessidade dos meios.
Por isso, ao apreciar o caso concreto, o julgador deve, após verificar quais eram
os meios disponíveis, considerar necessário o que tiver sido utilizado, desde que
inexistente outro menos gravoso para o fim de impedir ou fazer cessar a agressão, não
se preocupando com a exata proporção entre ataque e defesa. Até porque esta, em face
da emoção que alcança o homem agredido injustamente, pode ultrapassar, dentro dos
limites da razoabilidade, aquilo que seria o necessário.
Para os que entendem que o marido traído tem sua honra agredida pela mulher
adúltera, caberia a indagação: o meio necessário para fazer cessar a agressão é a morte
da mulher? Matando-a, é claro, a agressão deixa de existir, mas, induvidosamente, a
morte da adúltera é muito, mas muito mesmo, além do necessário.
Não basta que o agente escolha o meio necessário, é indispensável que o utilize
com moderação, sem exageros, sem excessos.
Muitas vezes, o agente, diante de uma agressão atual injusta, utiliza-se do meio
necessário, mas não o faz moderadamente. Por exemplo, após cessada a agressão,
continua com seu comportamento anterior, agredindo o ex-agressor, quando já não
existe agressão. Dessa forma, não se pode falar esteja ele repelindo agressão, pois não
se repele o que já não existe. Nesse caso, a ação não é mais legítima, não podendo ser
excluída a ilicitude da conduta.
Esse é outro requisito que enseja muitas discussões. Aqui, como na escolha dos
meios, não se pode fazer uma análise rigorosamente matemática, com afirmações do
tipo: bastava um tiro e o agente deu dois. Ou três golpes e ele chegou a um quarto,
desnecessário.
Nessa operação, todas as circunstâncias que envolvem o fato são essenciais para
a conclusão da análise. Local, tempo, condições pessoais, especialmente compleição
física, de ambos os sujeitos, antecedentes do fato, a natureza do bem agredido, tudo
deve ser observado para que se consiga verificar certa proporcionalidade entre o ataque
e a defesa.
Em toda e qualquer causa de justificação, seja ela da parte geral, seja da parte
26 – Direito Penal – Ney Moura Teles
Tome-se o exemplo: Jorge deseja matar Alfredo, que costuma beber em certo
bar, onde, normalmente, entra em atrito com freqüentadores, chegando,
invariavelmente, às vias de fato. Então, Jorge dirige-se ao referido bar, postando-se a
certa distância de Alfredo e aguardando que ele, como faz costumeiramente, se
desentenda com outra pessoa. Não muito tempo decorre e começa uma discussão entre
Alfredo e Marcos, provocada pelo primeiro, a qual evolui para um desforço físico,
iniciado por Alfredo que, em dado momento, inesperadamente, toma de uma cadeira
de madeira, levanta-a e vai, com ela, atingir a cabeça de Marcos, instante em que Jorge
saca de sua arma e dispara um único tiro, que acerta o braço, atravessando-o e
atingindo, em seguida, o peito esquerdo de Alfredo que, em virtude do único ferimento,
vem a morrer.
Observando o fato, pode-se concluir que Alfredo estava prestes a realizar uma
agressão injusta, contra a pessoa de Marcos, podendo inclusive matá-lo com o golpe no
crânio, com instrumento contundente. Jorge, vendo-a, usa do meio necessário e o faz
moderadamente, disparando um único tiro, aliás, atingindo o braço, o que revelaria sua
intenção de defender a integridade corporal ou a vida do terceiro. Estaria, assim, a
princípio, configurada a legítima defesa de terceiro, porquanto realizados todos os
pressupostos objetivos da excludente.
Não podia ser diferente. Só é lícita a conduta que realiza o fim do Direito, a
proteção do bem jurídico. Só é justa a destruição de uma vida quando seu destruidor se
tiver comportado com consciência de que realizava o fim da norma jurídica e com
vontade de proteger, repelindo a agressão a outro bem jurídico. Nunca se poderia
legitimar um comportamento previamente imbuído da vontade clara e indiscutível de
destruir um interesse juridicamente tutelado.
Ilicitude - 27
Na legítima defesa, deve existir agressão, ataque ao bem jurídico, ainda que
iminente, de modo que pode ser repelida pelo defendente. Só o bem do agredido será
preservado.
10.4.3.5 Ofendículos
O mecanismo deve conter reação não além da necessária para repelir a invasão,
por exemplo, a corrente da cerca eletrificada não pode ser de voltagem excessiva, mas
apenas dentro do suficiente para imobilizar ou repelir um homem normal.
existência.
Sempre que alguém estiver cumprindo, estritamente, um dever imposto pela lei,
só poderá estar realizando um comportamento lícito, uma vez que a lei não impõe a
ninguém a realização de uma conduta proibida. Seria um absurdo imaginar que, ao
cumprir, estritamente, uma obrigação emanada da lei, a pessoa pudesse estar
realizando algo proibido, algo contra a lei.
São exemplos de ações típicas permitidas por essa causa de justificação a prisão em
flagrante efetuada pelo policial e a danificação do patrimônio executada pelo oficial de
justiça em cumprimento de um mandado demolitório expedido pela autoridade
judiciária competente, com a observância das formalidades processuais.
Esta causa de justificação guarda profunda semelhança com a anterior, pois que
o fundamento é basicamente o mesmo: aquele que estiver exercendo regularmente um
direito não pode, ao mesmo tempo, estar realizando uma conduta proibida pelo Direito,
pois, se assim fora, não seria coerente o ordenamento jurídico.
Não há tipicidade em tais fatos, excluída que resta pela incidência do Princípio
da Adequação Social. É claro que, havendo negligência ou imperícia do médico, excesso
do esportista, que viola as regras do esporte, dolosa ou culposamente, em vez de
corretivo, tortura por parte do pai, nesses casos, o princípio não incide, eis que as
condutas não foram adequadas nem são aceitas.
Com base nessas duas constatações, pode-se chegar a uma conclusão acerca do
consentimento do ofendido.
Ilicitude - 33
O tipo legal de estupro, do art. 213, contém, como elementar, tácita, a falta do
consentimento da ofendida, seu dissenso, de modo que só se configura o estupro
quando a vítima não consente, opõe-se, rejeita a conjunção carnal.
Se o ofendido consente, não se pode falar que o tipo se realizou, que o fato se
ajustou ao tipo. Se a mulher consente na conjunção carnal, não há estupro. Se o dono
consente no ingresso ou na permanência do sujeito em sua casa, não houve violação do
domicílio.
Então, nos tipos em que o dissenso for um dos elementos do tipo, diante do
consentimento, não há tipicidade. Nesses casos, não se aperfeiçoa a primeira
característica do crime. Não havendo tipicidade, o fato não interessa ao Direito Penal.
Diz-se, portanto, que nos tipos em que o dissenso, o não-consentimento, é elementar, o
consentimento é excludente da tipicidade.
Importante questão é saber se o médico que realiza cirurgia para mudar o sexo
do indivíduo, com o consentimento deste, comete crime de lesão corporal grave. Muitos
dizem que o indivíduo não poderia consentir na realização da cirurgia, posto que sua
natureza estaria sendo contrariada.
Na legítima defesa, a reação deve ser com o meio necessário, o qual deve ser
usado com moderação.
O exercício de direito deve ser regular, dentro dos limites estabelecidos pela
norma autorizadora, e o dever legal deve ser cumprido estritamente, sem excessos.
A lei, pois, prevendo as várias hipóteses de ultrapassagem dos limites por ela
fixados para considerar lícita a conduta típica, determina que, nessas hipóteses, a causa
de justificação descaracteriza-se, devendo o agente ser punido conforme tenha excedido
dolosa ou culposamente.
O excesso será doloso quando o sujeito, com plena consciência dos limites da
eximente, conhecendo até que ponto ou em que medida podia atuar, ultrapassa aqueles
limites com vontade.
Assim ocorre com o agredido injustamente que, podendo repelir a agressão com
um ferimento no agressor, tendo disso total consciência, resolve, deliberadamente,
matá-lo. Nesse caso, usa de meio além do necessário, o que descaracteriza a legítima
defesa, respondendo por homicídio doloso.
O sujeito, diante de uma agressão injusta, por descuido, escolhe um meio além
do necessário, ou utiliza o meio necessário imoderadamente, sem ter a intenção de
ultrapassar os limites da eximente. É o caso do sujeito que avalia indevidamente a
gravidade da agressão sofrida, ou não atenta para o poder da reação que vai
empreender, não medindo suas forças, ou o potencial lesivo do meio utilizado. Em vez
de disparar uma vez, o que seria suficiente, dispara duas ou três, não com a vontade
deliberada de vingar-se, nem por ódio do agressor, mas porque, desatento, descuidado,
não verificou a desnecessidade do segundo disparo.
Se o excesso não for doloso, nem culposo, será acidental e, como tal, não será
punível, mantida a justificativa, em sua plenitude. Nunca é demais lembrar que só são
puníveis condutas realizadas dolosa ou culposamente.
Um sujeito diante de uma agressão injusta, com arma de fogo, tem, próximo de
si, uma arma automática. Incontinenti, toma-a, aponta-a em direção ao agressor e
preme uma única vez a tecla do gatilho, sendo, entretanto, lançados contra a vítima 15
projéteis que a atingem, matando-a.
Houve, à evidência, excesso, pois o meio necessário foi usado sem moderação. O
sujeito, entretanto, não agiu com vontade de exceder-se, e tampouco foi negligente, até
porque premiu a tecla do gatilho uma única vez. Não se pode falar em imperícia, pois
não se tratava de um policial, ou atirador, mas de um homem comum. Esse excesso não
derivou nem de dolo, nem de culpa. Foi um acidente. Era inevitável. Não é punível, e o
sujeito agiu em legítima defesa.
10.8 CONCLUSÃO
Sendo típico e ilícito, há ilícito penal. Não, ainda, o crime, posto que, para este
se aperfeiçoar, é preciso que seja, além disso, culpável. Assim, falta o exame da terceira
característica do crime: a culpabilidade.