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ILICITUDE

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10.1 CONCEITO

A segunda característica do crime é denominada, pela maior parte de nossos


doutrinadores, de antijuridicidade. É preferível denominá-la, com ASSIS TOLEDO,
ilicitude, expressão mais correta, para refletir a relação de antagonismo entre o fato
típico e todo o ordenamento jurídico, como queria HANS WELZEL.

Utilizar a expressão antijuridicidade é inadmissível nos tempos modernos, pelo


menos entre os estudiosos do Direito, uma vez que não se pode imaginar um fato ser,
ao mesmo tempo, jurídico e antijurídico1. É de toda obviedade: um crime é, sempre, um
fato capaz de alterar ou modificar as relações entre as pessoas, criando direitos e
obrigações. É um fato do qual resultam conseqüências de natureza jurídica para certo
número de pessoas.

É, de conseqüência, um fato da vida que tem relevância e interesse para o


Direito. É, assim dizer, um fato jurídico.

A expressão antijuridicidade remete à prévia locução: antijurídico. Anti é


prefixo que significa o contrário, contra, oposto, logo, antijurídico só poderia querer
significar o fato “contrário ou contra o jurídico”, ou “oposto ao jurídico”. O crime é um
fato contra o direito e não contra o jurídico; por isso, melhor, por mais apuradas
tecnicamente, as expressões ilícito e ilicitude.

10.1.1 Ilicitude formal e ilicitude material

VON LISZT distinguia uma ilicitude formal de outra material, dizendo que seria
formalmente ilícita a conduta humana que violasse a norma penal, e substancialmente
ilícito o comportamento humano que ferisse o interesse social tutelado pela própria

1 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 160.
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

norma.

Do ponto de vista formal, portanto, a ilicitude seria a simples contradição entre o fato
realizado pelo agente e a norma penal incriminadora.

No entanto, sabe-se, a norma penal está contida no tipo. Em matar alguém está
contida a ordem: não matar, de sorte que contrariar a norma penal incriminadora é
adequar-se ao tipo.

De conseqüência, o conceito formal de ilicitude é o mesmo conceito de


tipicidade, pois contrariar a norma incriminadora é adequar-se ao tipo. Em outras
palavras, adequar-se à descrição da conduta proibida é contrariar a vontade da norma
incriminadora. Ou então: ilicitude formal é a tipicidade.

De uma óptica material, a ilicitude é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico


protegido pela norma penal. Por isso, segundo DAMÁSIO E. DE JESUS,

“não existe a ilicitude formal. Existe um comportamento típico que pode ou


não ser ilícito em face do juízo de valor. Em suma, a antijuridicidade é sempre
material, constituindo a lesão de um interesse penalmente protegido”2.

Determinado comportamento será ilícito quando for a causa da lesão a um bem


jurídico, quando atingi-lo, atacá-lo, ou, pelo menos, colocá-lo em situação de perigo.
Essas situações são proibidas pelo Direito, cujo fim é proteger o bem jurídico. Se ocorre
lesão ou perigo de lesão, o fato é proibido, é ilícito. A ilicitude será, sempre, uma
valoração acerca do caráter lesivo da conduta humana3. Será ilícito apenas o fato lesivo
ou expositivo a perigo do bem jurídico. Nesse sentido, a razão está com DAMÁSIO ao
afirmar que não existe a ilicitude formal.

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, entretanto, entende que a distinção entre ilicitude


formal e ilicitude material é perfeitamente dispensável e apresenta uma concepção
unitária, afirmando que

“ilicitude é a relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta


humana voluntária e o ordenamento jurídico, de modo a causar lesão ou
expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado”4.

É dizer: ilicitude é a contradição entre um fato típico e a ordem jurídica, que


lesa ou expõe a perigo o bem jurídico penalmente protegido. Esse conceito, que engloba

2 Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 310.

3 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.
4 Op. cit. p. 163.
Ilicitude - 3

o aspecto formal e o substancial, parece, responde melhor aos interesses do estudioso


do Direito, pois diz, com mais clareza, o que é a ilicitude, enquanto característica, ou
nota essencial, do crime.

Com efeito, quando se diz que a ilicitude é tão-somente a lesão do bem jurídico,
faz-se referência à ilicitude como conceito válido para todo e qualquer dos ramos do
direito, ao passo que, ao se acrescentar a relação de colidência entre o fato e a norma
incriminadora, a referência será exclusivamente à ilicitude penal.

10.1.2 Ilicitude e injusto

As expressões ilicitude, ou antijuridicidade, e injusto são comumente utilizadas


pelos operadores do Direito Penal, como se fossem sinônimas. É preciso, entretanto,
cuidado com elas.

A ilicitude é uma qualidade do fato típico, a de contrariar a ordem jurídica,


lesionando um bem protegido, ou colocando-o em perigo de lesão. É um “predicado da
ação, o atributo com que se qualifica uma ação para denotar que é contrária ao
ordenamento jurídico”5.

A expressão injusto é um substantivo utilizado para “denominar a própria ação


já qualificada como6” ilícita. Em outras palavras: ilicitude é a qualidade de um fato
típico ser proibido pela ordem jurídica, e injusto é o fato típico ilícito. O injusto – fato
típico já considerado ilícito – contém a quantidade, que é a tipicidade, e a qualidade,
que é a ilicitude.

Por essa razão, diz-se que os crimes de lesão corporal e de homicídio são,
igualmente, ilícitos. Um é tão ilícito quanto o outro. O homicídio não é mais nem
menos proibido que a lesão corporal, nem que o aborto, nem que o estupro. São
igualmente proibidos, pois constituem, todos, lesões a bens jurídicos. A qualidade de
ser ilícito é a mesma para todos os crimes. Todos são, na mesma intensidade, ilícitos,
proibidos, contrários ao Direito, lesivos aos bens jurídicos, ou expositivos a perigo de
lesão.

Por outro lado, não se pode dizer que o homicídio é tão injusto quanto o furto.
Aquele é muito mais injusto que uma simples subtração de coisa alheia móvel, porque

5 CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988. p.

86.
6 Idem.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

ali a quantidade da lesão é muito maior do que no furto.

No homicídio, o bem é mais importante, a lesão é mais grave do que num delito
menor, contra um bem menor, o patrimônio, e com uma conduta menos grave, sem
violência à pessoa. Por isso, a pena para o homicídio é maior que a pena cominada para
o furto, como o é para o estupro, para a lesão corporal.

Quanto maior o injusto, maior a necessidade de reprová-lo, censurá-lo, responder-


lhe com uma sanção mais severa.

10.1.3 Caráter objetivo da ilicitude

A ilicitude é puramente objetiva, independendo das condições pessoais do agente,


de sua capacidade de responder pelo que fez.

Como já se disse, e não é demais repetir, a ilicitude é resolvida num juízo de valor
acerca da lesividade do bem jurídico.

Houve lesão, houve perigo de lesão ao bem protegido? Se a resposta é positiva, há


ilicitude. Se negativa, não há ilicitude. Se não há lesão, o fato é permitido, e não
interessa ao Direito Penal, cuja missão é tutelar os bens jurídicos mais importantes,
protegendo-os das lesões ou ameaças mais graves de lesões.

Não importa seja o agente do fato incapaz de entender seu gesto, ou


absolutamente incapaz de se autogovernar. Mesmo que seja um menor de 18 anos, seu
comportamento, se lesivo de um bem jurídico, é e será ilícito, pois que a ilicitude existe
por si só, não estando vinculada às qualidades ou condições pessoais do sujeito ativo do
fato.

De conseqüência, os incapazes do ponto de vista penal podem cometer fatos


típicos e ilícitos. Sua incapacidade penal implicará outra conseqüência, adiante
analisada.

10.2 EXCLUSÃO DA ILICITUDE

Acontecendo um fato, e sendo ele típico, ao operador do direito é indispensável


saber se o mesmo é ou não ilícito.

Se for ilícito, continuará em seu estudo, para verificar se houve, efetivamente, um


crime. Se, apesar de típico, não tiver causado lesão a um bem jurídico protegido pelo
Direito Penal, não tiver sido ilícito, proibido pelo ordenamento jurídico, estará diante
de um fato permitido, não diante de um crime.
Ilicitude - 5

Já vimos como descobrir se um fato da vida é, ou não, típico. Agora, o momento é


o de verificar como se faz para saber se o fato típico é ou não ilícito.

Uma das funções do tipo é ser indiciário da ilicitude, dela portador, o que significa
dizer que o tipo traz, em seu interior, a ilicitude, a proibição. É de toda obviedade. No
tipo matar alguém, está inserida a proibição de matar. Se alguém mata outrem, tem-se
a idéia, a princípio, de que tal comportamento é proibido, é ilícito, pois, ao realizar a
figura descrita no tipo, infringiu a norma proibitiva nele contida, implicitamente.

A conclusão a que se chega é: toda vez que houver um fato típico, deve-se dizer:
este fato é, a princípio, ilícito, proibido.

Conquanto o Direito Penal não seja exclusivamente o conjunto de normas penais


incriminadoras, mas contém outras normas, as permissivas justificantes – as que
tornam lícitas condutas definidas como crime –, é preciso, então, verificar se o fato
típico examinado foi ou não cometido numa situação que se ajuste a uma das normas
penais permissivas justificantes.

Se o fato tiver sido cometido ao amparo de uma dessas normas permissivas, então
a ilicitude que vinha com o tipo, com a tipicidade, fica afastada, pela incidência da
norma de justificação, que realiza a tarefa de afastar, do tipo, a ilicitude que ele portava.

O Direito, atendendo à vontade da sociedade, em certas e especialíssimas


circunstâncias, permite ao homem voltar seu comportamento contra bens que, em
situações normais, são protegidos. Considera justo o ataque aos mesmos, pois, em
circunstâncias de anormalidade, deixam de estar sob a proteção do Direito; por isso,
excepcionalmente, podem ser atacados.

Essas normas permissivas justificantes são chamadas de causas de exclusão da


ilicitude, também conhecidas por causas de justificação, justificativas, excludentes,
eximentes, descriminantes, ou excludentes de ilicitude, antigamente denominadas
excludentes de criminalidade.

Se dado fato típico tiver sido praticado numa situação em que também se amolde a
uma das chamadas causas de exclusão da ilicitude, terá havido um fato típico lícito,
justificado.

Um fato típico lícito, ou justificado, é o que se ajusta a um tipo legal de crime, mas
que, por realizar todos os pressupostos de uma norma penal permissiva justificante, e
por orientar-se para esse fim, é permitido pelo Direito.

É indispensável que o fato típico preencha todos os requisitos estabelecidos na


norma penal permissiva justificante, para que seja justificado.
6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

O Código Penal contém várias normas penais que excluem a ilicitude dos fatos
típicos. Na parte geral, há quatro dessas causas, e na parte especial estão inseridas
outras eximentes.

No âmbito deste volume, que é o da Parte Geral do Código Penal, são abordadas,
exclusivamente, as causas de justificação nela inseridas, que se encontram no art. 23,
assim:

“Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II


– em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no
exercício regular de direito.”

E o que é legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever


legal? Quais seus requisitos indispensáveis? Quando se pode afirmar que alguém age no
exercício regular de um direito?

10.3 ESTADO DE NECESSIDADE

10.3.1 Breve histórico e conceito

Já em Roma, havia preceitos que impediam a punição daquele que realizasse


um comportamento proibido numa situação de extrema necessidade, como o do
capitão do navio que, numa circunstância de grande perigo, jogava a carga ao mar. No
Direito Canônico e durante a Idade Média, o estado de necessidade era reconhecido,
não sendo punida a prática do chamado furto famélico – realizado para saciar a fome –
e até mesmo a do canibalismo – matar o outro para alimentar-se de seu corpo.

GALDINO SIQUEIRA, autor dessas notas históricas, dá notícia do caso

“do capitão Thomaz Dundley e de seu imediato Edwin Stephens, julgados pelo
júri de Exeter, na Inglaterra, os quais, em conseqüência do naufrágio do yacht
La Mignonnette, lançados em uma pequena barca, decidiram, depois de dezoito
dias de atrozes sofrimentos, matar o grumete Parker, seu companheiro, para
beber-lhe o sangue e comer-lhe a carne”7.

No Brasil, já o Código Criminal de 1830 considerava o agente em estado de


necessidade se o fato tivesse sido realizado para evitar um mal maior, estabelecendo,
como requisitos, a certeza do mal que se queria evitar, a falta absoluta de outro meio
menos prejudicial e a probabilidade da eficácia do meio empregado. Era o estado de
necessidade uma causa de justificação, quando o mal resultasse das forças da natureza,

7 SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Konfino, 1950. p. 339.
Ilicitude - 7

e, se resultante de ação humana, o estado de necessidade excluiria a culpabilidade. O


Código do Império repetiu a fórmula anterior.

Havendo situação de perigo para um bem jurídico, poderia alguém, com o fim
de salvá-lo do perigo de lesão, voltar-se contra outro bem jurídico, destruindo-o,
danificando-o, sacrificando-o. Essa é a situação de estado de necessidade. No caso dos
náufragos, na barcaça, depois de 18 dias, famintos, encontravam-se os três numa
situação de perigo para suas próprias vidas. A saída encontrada foi o sacrifício de uma
vida, para a salvação de duas.

O conceito mais simples e objetivo do estado de necessidade é o formulado por


DAMÁSIO E. DE JESUS:

“uma situação de perigo atual de interesses protegidos pelo Direito, em que o


agente, para salvar um bem próprio ou de terceiro, não tem outro meio senão
o de lesar o interesse de outrem”8.

Discute-se se um Direito Penal ético deve continuar considerando o estado de


necessidade uma causa de justificação, de exclusão de ilicitude. A propósito, são as
seguintes as palavras de GIUSEPPE BETTIOL:

“Realmente, se há um ponto de atrito entre o Direito Penal e a moral, este


é fornecido precisamente pelo estado de necessidade. Afirmar que o estado de
necessidade não conhece lei, pelo que se tem direito, para salvar-se a si ou a
outrem, de lesar bens de terceiros, é, sob aspecto moral, uma verdadeira
heresia, ao menos no que tange ao bem da vida. Um terceiro inocente não
pode jamais ser sacrificado para salvar outra pessoa. O indivíduo é pessoa,
isto é, valor, fim, nunca meio. A moral, por seu lado, obriga muitas vezes ao
sacrifício de si próprio para salvar terceiro. Nem se pode afiançar que se trata
apenas de moral heróica, já que não existe uma moral para os heróis e uma
para os pusilânimes: existe tão-só a moral, uma lei que de modo cogente
obriga todas as consciências indistintamente. É característica intrínseca de
uma norma moral que sua observância imponha verdadeiros sacrifícios, posto
que uma moral sem obrigações nem sanções pode ser o ideal de indivíduos
desmiolados, que pensam apenas no proveito próprio e subordinam ao útil
qualquer exigência que Deus tenha agasalhado no coração do homem.”9

8 Direito penal. Op. cit. p. 322.

9 Op. cit. p. 433.


8 – Direito Penal – Ney Moura Teles

As observações do grande penalista italiano são, em verdade, coerentes, não sendo


muito ético justificar-se o sacrifício da vida de um inocente, ainda que para salvar a de
outro.

Todavia, há uma questão que se sobrepõe a esse fundo ético do Direito Penal.
Quando os homens se organizaram e construíram o Estado, conferiram-lhe o poder-
dever de proteger os bens jurídicos dos ataques e das situações de perigo. O indivíduo
organizado em sociedade sabe que seus interesses estão protegidos pelo Estado. Essa
proteção do Estado, por sua vez, como é sabido, não é infalível, porque o Estado não é
onisciente e onipresente. Nem sempre, portanto, pode proteger certos bens,
especialmente quando eles entram em rota de colisão ou em choque com outros,
instalando-se o perigo para dois ou mais deles, de modo que, ainda que o Estado
estivesse presente, não poderia, fisicamente, salvar os dois bens.

Basta pensar a situação da gestante cuja gravidez é de alto risco. Então, em dado
momento, sua vida entra em choque com a vida do produto da concepção, de tal modo
que os médicos chegam à inexorável conclusão de que a única maneira de preservar a
vida da gestante é sacrificando a vida do feto, interrompendo a gravidez. Essa é uma
situação que bem mostra a impossibilidade de o Estado proteger os dois bens jurídicos.
Se se quiser discutir, do ponto de vista ético, deve-se chegar a uma de duas conclusões:
salva-se a mãe ou salva-se o feto, porque ninguém pode admitir, em nome de uma ética
absurda, que o caso deva ser deixado às mãos da natureza, ou de Deus, com o possível e
bem provável sacrifício de ambos, mãe e filho.

Nunca se há de olvidar que, apesar do fundo ético que o preside, no qual se


inspira, o Direito Penal tem como missão essencial, como finalidade precípua, a
proteção dos bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves.

Quando numa situação em que um bem jurídico está na iminência de sofrer uma
lesão, pela presença atual de um perigo, e não podendo o Direito proteger tal bem, deve
permitir que seja sacrificado outro bem, de valor menor ou relativamente igual, ainda
que de um inocente, desde que não haja outra saída.

Deve, portanto, o estado de necessidade continuar entre as causas de exclusão da


ilicitude, porque o comportamento daquele que realizar todos os seus pressupostos não
será lesivo do outro bem, que, naquelas circunstâncias, perderá a proteção do Direito,
que estará protegendo apenas o bem que vai ser salvo pelo agente.

Em conclusão, se dois bens estiverem em perigo de lesão, um deles pode ser


sacrificado se o Direito não puder salvar os dois.
Ilicitude - 9

10.3.2 Requisitos

Para que o agente possa ter seu comportamento justificado pela norma do art.
23, I, do Código Penal, deve realizar todos os pressupostos, objetivos e subjetivos, do
estado de necessidade, que estão definidos no art. 24:

“Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato, para salvar de perigo


atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito
próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1º.
Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o
perigo.”

Com base nessa norma explicativa, são extraídos os requisitos dessa excludente.

10.3.2.1 Perigo atual

Perigo é um trecho da realidade, a situação concreta que antecede a lesão, que


reúne as condições indispensáveis à produção do resultado, perceptíveis pelo sujeito.

É o soltar-se do cão bravo e sua vinda em direção ao agente ou à terceira pessoa. É


o incêndio que irrompe na mata, em direção à casa onde as crianças se encontram
brincando. É a verificação, pelo médico, da altíssima probabilidade, a quase certeza da
morte da gestante, se não for provocado o abortamento. É o balançar da árvore, em
situação que antecede sua queda sobre diversos objetos. São situações em que o sujeito
vê a indiscutível probabilidade da ocorrência do resultado.

O perigo deve ser concreto, e não apenas abstrato, uma simples representação
psíquica, mas uma probabilidade real.

Para justificar a prática de um fato típico, é indispensável que haja um perigo


atual, que ele esteja acontecendo. O perigo deve existir no momento imediatamente
anterior ao instante em que o agente vai realizar a conduta. Não pode ser um perigo
passado, tampouco um perigo futuro, ainda que iminente. Perigo passado não é mais
perigo. O bem jurídico já terá sido lesionado.

Iminente é o que, não sendo atual, está prestes a ocorrer. Para legitimar a ação
do sujeito em estado de necessidade, ele só pode realizar a conduta quando o perigo se
tornar atual, não lhe sendo autorizado comportar-se enquanto o perigo é, apenas,
iminente.

A lei foi clara, ao dizer que só justifica a excludente se o perigo for atual,
diferentemente do que faz quando trata da legítima defesa – analisada a seguir – em
10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

que, expressamente, permite a reação às agressões atuais ou iminentes. Interpretando


sistematicamente, deve-se concluir que, se fosse intenção da lei justificar o estado de
necessidade quando o perigo fosse iminente, ela expressamente o diria.

E é assim que se deve interpretar. Tome-se o exemplo dos perdidos na selva, ou


na cordilheira dos Andes, ou na caverna, famintos, sem víveres, enquanto o tempo
passa. Em que momento estariam autorizados a sacrificar a vida de um dos
semelhantes, para que os demais pudessem alimentar-se do corpo humano? Quando o
perigo de morrerem por inanição torna-se atual ou quando esse perigo é, apenas,
iminente?

Há diferença, tênue, é verdade, mas real, concreta, perceptível, plenamente


existente. Como visto anteriormente, o estado de necessidade só pode ser aceito como
justificante da conduta típica, à medida que se destinar à proteção do bem jurídico,
visto que, do ponto de vista ético, não se pode considerá-lo positivo.

O perigo é um trecho da realidade, a situação que antecede a lesão. O ponto, ou


o momento, desse trecho mais próximo da lesão é o perigo atual. O perigo iminente é o
que vem antes do perigo atual. O perigo futuro é o que vem bem antes do iminente.

Enquanto se vive o estágio do perigo futuro e o do perigo iminente, a


possibilidade de que a lesão seja evitada, por ação externa, é muito maior do que
quando se atinge o momento do perigo atual. À medida que se aproxima da lesão, a
possibilidade de evitá-la é, cada vez, menor.

Só é possível justificar a lesão de um bem, para salvar outro, quando se estiver


no estágio mais próximo da lesão, que é o perigo atual, pois que, quando se estiver no
estágio da iminência, ainda existirá probabilidade concreta de não se alcançar a
atualidade do perigo.

Por exemplo, nos Andes, enquanto a fome não constitui um perigo atual de
morte por inanição, ainda resta uma probabilidade real, concreta, de que os salvadores
cheguem com alimentos e medidas para salvar os perdidos.

A ação típica será justificável quando se estiver às portas da lesão, quando o


perigo de sua ocorrência for atual, presente, acontecendo, não dependendo de mais
nada para se transformar na lesão.

Se o perigo é apenas iminente, que não se tornou atual, concreto, não aconteceu
presentemente, não é, por isso mesmo, de molde a autorizar o sacrifício de um bem.

Só há estado de necessidade quando o perigo for real, efetivo, atual.


Ilicitude - 11

10.3.2.2 Qualquer direito, próprio ou de terceiro

Pode agir em estado de necessidade aquele que sacrifica um interesse, para salvar
um direito próprio ou alheio, de quem quer que seja. Todos os bens jurídicos que
estiverem em situação de perigo atual podem ser salvos sob o estado de necessidade: a
vida, a liberdade, o patrimônio, a integridade corporal, a saúde, a família.

Independentemente da vontade do titular do direito, ele poderá ser salvo por


qualquer pessoa, desde que esteja em perigo atual de lesão.

Há estado de necessidade próprio – em que o agente atua para salvar um bem


próprio – e estado de necessidade de terceiro quando a conduta destina-se a
salvaguardar o interesse de outra pessoa.

10.3.2.3 Perigo não causado dolosamente pelo sujeito

O agente só pode invocar o estado de necessidade se a situação de perigo não


tiver sido causada, dolosamente, por ele. Isso significa que a pessoa que tiver dado
causa à instalação do perigo concreto não pode sacrificar outro bem, para salvar o bem
jurídico ameaçado pelo perigo que ele mesmo, dolosamente, causou.

Se Cláudio, dolosamente, ateou fogo no cinema, durante a exibição do filme,


causando enorme pânico entre os presentes, não pode, para livrar-se da multidão que
lhe impede a saída, dizer que está em estado de necessidade quando se põe a agredir,
atropelar, causar lesões corporais em terceiras pessoas. É verdade que o faz para salvar
sua vida, ou saúde, ou integridade corporal, de um perigo atual; todavia, tendo sido o
causador, com dolo, da situação de perigo, não pode invocar a excludente.

Se o perigo tiver sido causado por Cláudio culposamente, por negligência, por
um descuido ao jogar fora o resto de um cigarro que fumara, sem qualquer intenção de
causar aquela situação perigosa, aí, sim, se necessitar agredir ou lesionar alguém, na
luta para fugir do fogo, agirá em estado de necessidade, presentes, é evidente, todos os
demais requisitos.

10.3.2.4 Ausência do dever legal de enfrentar o perigo

Se o agente tiver, por lei, o dever de enfrentar o perigo, se for uma daquelas
pessoas cuja atividade é, por sua própria natureza, perigosa, e que, por isso, a lei a
obriga a enfrentar situações de perigo, não poderá, por essa razão, alegar o estado de
necessidade.
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Os policiais, civis e militares, têm como atividade normal prender agentes de fatos
típicos, ou condenados pela prática de crimes, perseguindo-os, indo a busca de provas,
enfim, realizando diversas tarefas perigosas e, em vários momentos de suas vidas,
encontram-se em situações que podem caracterizar os pressupostos do estado de
necessidade: perigo atual para bens jurídicos não provocados dolosamente por eles.

O mesmo acontece com o soldado do corpo de bombeiros, cuja atividade principal


é enfrentar incêndios. A enfermeira, o médico, o sanitarista, que devem entrar em
contato com pessoas acometidas de doenças contagiosas, epidemias, o funcionário
público que deve fiscalizar instituições que cuidam da saúde, enfim, há uma categoria
grande de pessoas que estão, por força de lei, obrigadas a enfrentar situações de perigo.

Tais pessoas não podem alegar estado de necessidade, diante de momentos de


perigo. Seu dever é o de não causar lesão a nenhum bem jurídico, num estado daqueles,
pois escolheram uma atividade naturalmente perigosa e estão, ou devem estar, em seu
dia-a-dia, preparadas para enfrentar situações como apresentadas.

Essas pessoas estão obrigadas a enfrentar o perigo apenas quando em serviço. O


policial, durante suas férias, o enfermeiro, quando está em outro hospital, visitando um
amigo, são, nessas circunstâncias, simples cidadãos e aí não têm o dever de enfrentar o
perigo.

Como bem alerta DAMÁSIO E. DE JESUS10, não se pode confundir o dever legal de
enfrentar o perigo com o dever legal ou jurídico de impedir o resultado. Uma coisa é o
dever de enfrentar o perigo, de que trata o § 1º do art. 24, a outra é o de impedir o
resultado, referido no art. 13, § 2º.

O dever de agir para impedir o resultado é tema da tipicidade dos crimes


omissivos impróprios. O dever de enfrentar o perigo é norma que impede a exclusão da
ilicitude por estado de necessidade.

Quando a lei diz que determinadas pessoas, diante de situações de perigo para
bens alheios, têm o dever de agir para impedir a ocorrência de resultados lesivos, quer,
simplesmente, afirmar uma obrigação para elas, pois que, se não agirem, responderão
pelo resultado. Têm o dever de realizar um comportamento positivo, para que o
resultado não ocorra. Omitindo-se, respondem pelo resultado, seu comportamento é
típico.

É certo, todavia, que aquelas pessoas – os garantes – só estão obrigadas a agir com

10 Direito penal. Op. cit. p. 327.


Ilicitude - 13

vistas a impedir a ocorrência do resultado se puderem fazê-lo, conforme a lição: a


omissão é não fazer algo devido e possível. É evidente que o pai tem o dever de agir
para impedir que o filho se afogue se ele, pai, souber nadar. Se não souber nadar,
apesar de ter o dever de agir para impedir resultados lesivos para bens de seu filho, não
estará obrigado a atirar-se no lago, porque não lhe é possível fazê-lo, sem risco pessoal.
Aliás, atirando-se, não só não salvará o filho, como também poderá morrer afogado.
Não é isso que o Direito quer. Apesar do dever de agir para impedir o resultado, pode
alguém não estar em condições de fazê-lo.

Outra coisa é o dever de enfrentar o perigo. Aqui, fala-se da impossibilidade de


justificar o comportamento do sujeito que, diante de uma situação de perigo para um
bem jurídico, e tendo, por lei, o dever de enfrentá-lo, não o faz, preferindo sacrificar
outro bem para salvar o ameaçado.

Estes, e somente estes, é que não podem invocar o estado de necessidade.

10.3.2.5 Inevitabilidade do sacrifício do outro bem

Para que haja estado de necessidade, é indispensável que o sacrifício do bem


jurídico alheio seja a única maneira de salvar o bem em perigo. Se houver outra
solução, qualquer outra possibilidade, inclusive fugir do perigo, chamar alguém, evitá-
lo, de qualquer outra forma, sem o sacrifício do bem jurídico, enfim, se existir outra
saída, qualquer que seja, deve ser trilhada, e, se o agente não o fez, preferindo sacrificar
um interesse alheio, aí não haverá estado de necessidade.

É o caso do indivíduo perdido na floresta há alguns dias, sem ter-se alimentado


como de costume, por não haver arroz, feijão, carne, fogão, tempero, frutas etc. Está
faminto e, então, resolve entrar na casa alheia e de lá subtrair alimentos, sem que os
donos, aí presentes, percebam. É claro este não é um furto em estado de necessidade,
apesar da situação de perigo atual – fome – não provocada dolosamente pelo perdido.
Porque ele poderia ter-se apresentado aos moradores, solicitado a refeição para lhe
matar a fome. Não era o furto a única saída. A lesão ao patrimônio alheio não era
inevitável. Bem poderia ele ter evitado a ação típica, pedindo, comprando e prometendo
pagar pelo alimento com seu trabalho; poderia, de alguma outra forma, evitar a
conduta típica.

10.3.2.6 Inexigibilidade do sacrifício do bem em perigo

O estado de necessidade não é uma autorização para o homem lesar todo e


14 – Direito Penal – Ney Moura Teles

qualquer bem jurídico, com o objetivo de salvar outro bem, próprio ou de terceiro. Se o
automóvel do homem está em perigo, em situação tal que a única maneira de evitar
uma colisão com um poste é desviar e atingir uma pessoa que transita, não se pode
sacrificar a vida humana para salvar o veículo.

Os bens em colisão devem guardar, entre si, certa proporcionalidade de valor. O


bem a ser sacrificado não pode ser muito mais importante que o bem a ser salvo. Não se
admite sacrificar uma vida humana para salvar a vida de um animal de estimação. Nem
salvar um bem material, por exemplo, uma jóia, ainda que de astronômico valor
monetário, sacrificando a vida de um mendigo.

A integridade corporal ou a saúde do Presidente da República não vale mais do


que a vida de um recém-nascido abandonado, de quem não se sabe quem é o pai e a
mãe, daí por que não está em estado de necessidade aquele que, para preservar o Chefe
da Nação de uma lesão corporal, acaba por matar um bebê qualquer, sem pai, nem
mãe.

Quando se trata de estado de necessidade, nunca se deve perder de vista que a


finalidade desse instituto é a proteção do bem jurídico.

De conseqüência, só se pode admiti-lo quando o bem sacrificado seja, no máximo,


de valor aproximadamente igual ao bem preservado, nunca de valor a ele
consideravelmente superior. O Direito Penal jamais poderia justificar a lesão de um
interesse muitíssimo importante para salvar outro, de menor valor, sob pena de deixar
de ser o protetor dos bens jurídicos.

É claro que essa relação de proporcionalidade não pode ser colocada em esquemas
rígidos, de peso ou medida, absolutos ou exatos. Não se trata de pesar ou de medir, em
quilogramas ou metros. Os bens da vida, especialmente os colocados sob a proteção do
Direito, nem sempre podem ser mensurados, aquilatados, com precisão milimétrica, ou
com aparelhos de precisão, que não foram e, certamente, jamais serão inventados.

Por outro lado, aquele que, diante da situação de perigo para o bem, próprio ou
alheio, que deseja protegê-lo, vendo-se na necessidade de agir, não está em condições
de medir, pesar, com precisão, e decidir sobre qual dos bens é o mais importante, qual
vale mais. O que o Direito exige é razoável proporcionalidade entre os bens em conflito,
para justificar o sacrifício de um deles, mesmo que um pouco mais valorado, executado
para a salvação do outro, mesmo que um pouco menos valioso.

10.3.2.7 Causa de diminuição da pena


Ilicitude - 15

Dispõe o § 2º do art. 24 que, “embora seja razoável exigir-se o sacrifício do Direito


ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”. Cuidou a lei de determinar
a diminuição da resposta penal ao agente que, numa situação de perigo para um
interesse juridicamente protegido, para salvá-lo de lesão, acabou por sacrificar um
interesse jurídico de importância bastante superior. Nas circunstâncias, deveria ter
permitido fosse sacrificado o bem, próprio ou de terceiro, uma vez que o bem que com
aquele colidiu era de maior valor. Apesar disso, a lei manda seja ele reprovado com
pena menor, tendo em vista a presença da situação de perigo para o bem salvo.

10.3.2.8 Elemento subjetivo

Não basta que a conduta do sujeito tenha se realizado sob a égide de todos os
elementos objetivos, anteriormente descritos. Não é suficiente que tenha havido perigo
atual para um bem próprio ou alheio, não causado dolosamente pelo sujeito, que não
tinha o dever legal de enfrentar o perigo. Nem que a lesão seja a única saída para salvar
o bem, que era mais valioso que o bem sacrificado.

É preciso algo mais, que o agente tenha agido com a consciência de que a situação
de perigo era concreta e que a única saída era o sacrifício do outro bem, e, mais, com
vontade de salvar o bem ameaçado.

Só haverá estado de necessidade, que exclui a ilicitude do fato, justificando-o,


quando o agente tiver se comportado com consciência da realidade fática e com
vontade de atuar conforme o direito, sacrificando um bem com o único fim de salvar
outro. Sem essa consciência e sem essa vontade, ainda que todos os requisitos objetivos
restem comprovados, não se pode falar tenha havido fato lícito, por estado de
necessidade.

10.4 LEGÍTIMA DEFESA

10.4.1 Dados históricos e fundamento

“Tão visceralmente ligada à pessoa se manifesta a defesa, isto é, a


faculdade de repelir, pela força, o ataque, no momento em que se produz, que
CÍCERO, na sua oração – Pro Milone, a reputa um direito natural, derivado da
necessidade – non scripta sed nata lex, proposição verdadeira, se
considerarmos o substratum fisiológico e psicológico da defesa, como reação
do instinto de conservação que brota e se desenvolve independente de qualquer
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles

regulamentação.”11

Já no Direito Romano, verifica-se a presença da legítima defesa, autorizada para a


proteção da vida, da integridade física e da liberdade sexual, diante, em certos casos,
até mesmo do justo receio de ataque.

No Direito Germânico, a legítima defesa é a evolução do direito de vingança e da


privação da paz.

O Direito Canônico considera-a uma necessidade escusável, à qual corresponderia


algumas penitências; todavia, se se tratasse de legítima defesa de terceiro, era mais que
um direito, um verdadeiro dever.

Na Idade Média, o âmbito de seu alcance é alargado para alcançar também a


proteção dos bens patrimoniais.

São várias as teorias que buscam explicar o fundamento da legítima defesa, a razão
de o direito justificar a prática de um fato típico, considerando-a lícita, apesar da
violação da norma penal incriminadora. Importa falar de algumas.

Uma primeira teoria fundamenta-a com base no instinto de conservação inerente


ao ser humano, que, diante de uma agressão, teria o direito de proteger-se do ataque
porque negá-lo seria negar a própria necessidade de conservação da espécie. Seria um
direito natural, próprio do homem, e o legislador apenas o ratifica. Essas idéias não
servem para fundamentar a legítima defesa, seja porque a autorizaria para repelir toda
e qualquer agressão – ainda que lícita e apenas para as agressões à vida ou à
integridade física, deixando os demais direitos sem proteção. Admitindo-se esse
fundamento, aquele que acaba de cometer um fato definido como crime e vai ser preso
em flagrante delito poderia repelir a ação do policial que vai prendê-lo.

Outra teoria, a da “colisão de direitos”, cunhada por VON BURI, afirma que,
quando dois direitos entram em conflito, de modo que um não pode subsistir sem o
sacrifício de outro, o Estado permite o sacrifício do menos importante, que é o do
agressor, exatamente em razão da agressão. HUNGRIA a combateu:

“Ora, não há direitos mais ou menos importantes senão do ponto de vista


de seu objeto ou conteúdo. É um puro artifício dizer-se que o fato da agressão
diminui a importância do direito do agressor em face do direito do agredido-
defensor.”12

11 SIQUEIRA, Galdino. Op. cit. p. 305-306.

12 Comentários ao código penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 1, t. 2, p. 280.


Ilicitude - 17

O grande penalista brasileiro abraça a chamada teoria da ausência de injuricidade


da ação defensiva, da doutrina alemã, que afirma ser a defesa privada coincidente com
o fim do Direito: a incolumidade dos bens ou interesses por ele protegidos, pois que
realiza a vontade primária da lei, colaborando na manutenção da ordem jurídica. Por
isso, é legítima, excluindo a ilicitude do fato.

Fala-se também na devolução, pelo Estado, ao indivíduo, do direito de ele mesmo,


por seus próprios meios e por sua própria força, proteger o bem jurídico da agressão
injusta. Ao praticá-la contra um bem jurídico, o agressor perde a proteção do Direito,
daí por que a repulsa legítima, ainda que provoque um resultado, não constitui
nenhuma lesão ao bem jurídico do agressor.

A legítima defesa é um direito do indivíduo por essas duas razões: primeiro porque
é a realização da vontade do Direito, a proteção do bem jurídico, e, ao mesmo tempo,
porque, na ausência do Estado para cumprir seu dever de tutelar o interesse
injustamente agredido, deve devolver ao indivíduo esse poder de proteger o bem
atacado.

É, portanto, direito de todo homem, diante de uma agressão, poder realizar, por
sua conta, o fim do direito. Diferentemente do estado de necessidade, em que o
sacrifício do outro bem deve ser inevitável, na legítima defesa o agredido não está
obrigado a fugir, a propósito do que merece ser transcrito o seguinte trecho de um
julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relatado pelo Des. ADRIANO MARREY:

“Não estaria o réu realmente obrigado a fugir, para evitar ato legítimo de
defesa, que poupasse o agressor violento o incômodo conseqüente. Lembra
Nelson Hungria ser ‘de todo indiferente à legítima defesa a possibilidade de
fuga do agredido. A lei não pode exigir que se leia pela cartilha dos covardes e
pusilânimes. Nem mesmo há ressalvar o chamado commodus discessus, isto é,
o afastamento discreto, fácil, não indecoroso. Ainda quando tal conduta
traduza generosidade para com o agressor ou simples prudência do agredido,
há abdicação em face da injustiça e contribuição para maior audácia ou
prepotência do agressor. Embora não seja um dever jurídico, a legítima defesa
é um dever moral ou político que, a nenhum pretexto, deve deixar de ser
estimulado pelo direito positivo’ (v. Comentários ao código penal, 5. ed.,
Forense, vol. 1, /292). Outrossim, acentuou o mesmo mestre penalista, é
inexigível a vexatória ou infamante renúncia à defesa de um direito.”13

13 Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, nº 31, p. 328.


18 – Direito Penal – Ney Moura Teles

10.4.2 Conceito e requisitos

O conceito de legítima defesa há de ser extraído da norma explicativa do art. 25


do Código Penal, que estabelece seus requisitos:

“Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários,


repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Legítima defesa é a repulsa a uma agressão injusta, atual ou iminente, a


qualquer direito, próprio ou alheio, por meio do uso moderado dos meios necessários.

Seus requisitos são: agressão injusta, atual ou iminente, a qualquer direito, e


repulsa com a utilização dos meios necessários, usados moderadamente, além, é claro,
do elemento subjetivo: consciência e vontade.

10.4.2.1 Agressão injusta

O primeiro requisito da legítima defesa é que ela se dirija contra uma agressão.
Agressão é um comportamento humano dirigido à lesão de um bem jurídico. É um
ataque humano a um interesse juridicamente protegido.

Não é toda e qualquer agressão que autoriza a resposta legítima, mas apenas as
injustas. É que podem ocorrer agressões lícitas, autorizadas pelo Direito, como a
praticada pelo policial que prende alguém em flagrante-delito ou mediante ordem
judicial. Ao fazê-lo, estará agredindo a liberdade do que está sendo preso, a qual, por
ser uma agressão justa, lícita, não pode ser repelida licitamente. Quem assim fizer não
estará em legítima defesa.

Igualmente lícita é a agressão da pessoa que se defende, em legítima defesa, contra


o que a agrediu. Este não pode repelir a defesa promovida por quem está em legítima
defesa, pois nesse caso estará repelindo uma agressão justa. O agressor inicial não pode
repelir a agressão praticada em legítima defesa.

O comportamento do pai que aplica algumas palmadas no filho menor,


corrigindo-o, é uma agressão que, igualmente, não é injusta, posto que socialmente
aceita e adequada, de conseqüência, atípica, sem qualquer ilicitude.

A agressão que possibilita a legítima defesa deve ser injusta, ilícita, não devendo
ser necessariamente um ilícito penal. Há de ser, isso sim, um comportamento
objetivamente proibido pelo Direito. Assim, constitui agressão injusta a praticada por
Ilicitude - 19

um doente mental, absolutamente incapaz de compreender a ilicitude de seu gesto.

A agressão não necessita ser praticada com violência real, pois não se exige que ela
constitua uma violência física contra o bem jurídico. Agressões verbais, à honra das
pessoas, ensejam repulsa legítima, bem assim as praticadas com astúcia contra o
patrimônio.

10.4.2.2 Agressão atual ou iminente

A agressão injusta deve ser atual ou iminente. Deve estar acontecendo ou prestes a
acontecer. Não se podem repelir licitamente agressões já passadas, nem se antecipar
repelindo as que ainda não aconteceram, nem estão prestes a ocorrer, mas se situam
ainda no futuro, e, como tal, são apenas expectativas de agressão, meras representações
espirituais do que não é concreto, de algo inexistente.

Não é legítima a defesa contra agressão passada, porque já não há necessidade de


proteger o bem jurídico, que já terá sido lesionado. Se o Direito a admitisse, estaria
legitimando a vingança.

Não o será também se não passar de uma ameaça, ainda que idônea, de agressão.
Se João afirma que vai matar a Pedro, amanhã pela manhã, não está este autorizado a
antecipar-se e reagir legitimamente. Só é admitida a reação quando o bem jurídico já
está sendo agredido ou quando estiver prestes a sofrer a lesão. Quando houver perigo
concreto de lesão, não quando este perigo é apenas uma suposição, distante ainda no
tempo, de modo que pode sequer instalar-se. Se há uma ameaça de agressão, o agressor
terá realizado um fato típico, o do art. 147 do Código Penal, podendo a vítima acionar o
Estado, que, então, deverá intervir, realizando o Direito, dando proteção ao bem
jurídico.

A agressão que autoriza a defesa lícita deve ser atual ou iminente. Atual porque já
se terá iniciado o ataque ao bem jurídico, que já sofre uma violação proibida. Por isso,
pode ser repelida, seja para que se interrompa, seja para que não se intensifique mais
ainda.

Iminente é a lesão que vai acontecer imediatamente. Não pode o Direito exigir do
agredido que espere a agressão concretizar-se, podendo impedi-la no momento
antecedente de sua instalação concreta. É a situação de perigo concreto de lesão, em
que estão reunidas todas as condições indispensáveis à produção do resultado.
Determinar ao agente que espere a agressão tornar-se atual pode tornar inócua a
autorização para a defesa. Se o agressor leva a mão à cintura para dela tirar o revólver
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles

com o qual vai disparar contra alguém, não pode o Direito exigir do defendente esperar
que a arma esteja na mão do agressor, engatilhada, apontada, para, só então, poder
repelir a agressão.

10.4.2.3 Qualquer direito, próprio ou de terceiro

É legítima a repulsa praticada contra agressão injusta, atual ou iminente, a todo


e qualquer direito. Qualquer direito, do próprio agente ou de outra pessoa – sofrendo
ou se encontrando na iminência de sofrer qualquer ataque –, pode ser defendido.

A vida, a integridade corporal, a liberdade, o patrimônio, a honra, enfim, todos


os direitos, todos os bens jurídicos, podendo ser agredidos, devem ser defendidos.
Certa feita sustentou-se, no plenário do Tribunal do Júri, a legítima defesa do direito de
os filhos terem consigo sua mãe, que fora raptada do lar, por pessoas que, após,
mantinham-na em cárcere privado, indo o marido a busca de libertá-la, quando, para
conseguir seu objetivo, acabou por atirar contra um dos que a encarceravam. É claro
que estava agindo em legítima defesa da liberdade da mulher, mas, ao mesmo tempo,
em defesa do direito dos filhos menores que clamavam e sofriam pela ausência da mãe.

Polêmica é a questão do homicídio cometido pelo marido que encontra a mulher


praticando relações sexuais com outra pessoa e acaba por matá-la ou a ambos, e depois
vem invocar a legítima defesa, para ver seu comportamento considerado lícito.

Na hipótese, a alegação é a de que estava a defender sua honra pessoal, agredida


pelo comportamento da esposa adúltera.

Honra é o conjunto dos atributos morais, intelectuais e físicos do indivíduo, e,


ainda que se saiba que honra subjetiva é “o sentimento de cada um a respeito de seus
atributos”14, não se pode admitir que o comportamento da mulher adúltera constitua
uma agressão ao sentimento pessoal do agente acerca de sua moral.

Primeiro porque a conduta dela não se volta, não se dirige, contra a honra do
marido, nem é essa, na quase totalidade dos casos, a intenção da mulher casada,
quando se relaciona sexualmente com outro homem.

Segundo porque não basta que ele, marido, sinta-se ultrajado; é necessário que
tenha havido comportamento alheio que atinja sua honra subjetiva. Se o sentimento
por ele experimentado é o da traição, da violação do dever de fidelidade, então não é a
honra que está sendo agredida, mas o direito à fidelidade. Se o sentimento do marido é

14 JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte especial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 177.
Ilicitude - 21

o do desprezo, também não é a honra a atingida. Se é o desrespeito a sua


masculinidade, trata-se de um sentimento inaceitável, pois que a atitude da mulher não
revela, por si só, essa predisposição. Além do que, sentimentos como esse
simplesmente mascaram concepções inadmissíveis de superioridade de um dos sexos.

Só poderá existir, em hipóteses que tais, agressão à honra subjetiva do marido,


se, após ou durante o estado de flagrância do adultério da mulher, o marido vem a ser
agredido em sua honra, verbal ou gestualmente, por um dos dois, caso em que, é
evidente, configura-se a agressão a sua honra.

Não basta, todavia, que tenha existido agressão, pois é preciso ver se o meio
necessário para repeli-la seria o disparo de uma arma de fogo, contra um ou contra
ambos, o que será abordado no próximo item.

Os tribunais têm enfrentado o problema, com decisões em ambos os sentidos,


valendo transcrever trechos de três delas.

O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão prolatado pelo juiz


MELO FREIRE, assim decidiu:

“Vindo a surpreender o outro cônjuge em circunstâncias que sejam de


desconfiar, a reação física do que se julga traído pode, às vezes, ser explicada.
Não é um endosso ao que é de costume verbalizar como machismo; muitas das
vezes são as mulheres que, na ira sagrada, deixam fundas marcas no marido e
amante, surpreendidos em situações que não deixam muito espaço à dúvida.
Pode ser que a vítima não estivesse a viabilizar o adultério; mas não deixa de
ser objetivamente ofensivo ao lar, no seu ambiente cultural, ser a mulher
encontrada no carro de outro homem. O comportamento do réu não se
desaveio do que ocorre normalmente com os homens de seu padrão cultural.”15

Do Tribunal de Justiça de São Paulo, sendo Relator o Desembargador LUIZ


BETANHO, uma decisão que dá guarida à agressão à honra do marido:

“É entendimento fortemente arraigado no povo que o adultério da mulher


fere a honra do marido. Não há negar que julgados dos tribunais têm
admitido a legítima defesa da honra quando o cônjuge ultrajado mata o outro
cônjuge ou seu parceiro. De modo que se mostra mais prudente aceitar, em
tese, a legítima defesa da honra em tal hipótese e verificar se, no caso

15 FRANCO, Alberto Silva et. al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1995. p. 273.


22 – Direito Penal – Ney Moura Teles

concreto, os requisitos legais encontram-se presentes.”16

Do mesmo Tribunal paulista, relatada pelo Desembargador DÍNIO GARCIA,


decisão no sentido contrário:

“A chamada legítima defesa da honra, que se invoca em benefício dos


maridos que delinqüem ao surpreender a esposa em flagrante adultério, é
figura que destoa gritantemente dos princípios fundamentais do nosso Direito
Penal positivo. Nem cabe invocar, em favor desses infratores, a doutrina da
não exigibilidade de outra conduta, à qual, na própria Alemanha, hoje se
atribui valor meramente histórico (cf. Maurach, Deutsches Strafrecht, Allg.
Teil, p. 338). Menos ainda se admitirá o apelo às causas supralegais de
justificação dos germânicos, em que é fundamental a ocorrência de sacrifício
de um valor menor, em prol de um bem jurídico mais alto (cf. Mezger,
Strafrecht Ein Lehrbuch, 3. ed., § 32; Schonke-Schroeder, Strafgesesetzbuch, 8.
ed., p. 270 e ss; Welzel, Deutsche Scragrecht, 5. ed., p. 150 e ss). Pois na
pretensa legítima defesa da honra o que ocorre é o sacrifício do bem supremo
– vida – em face de meros preconceitos vigentes em algumas camadas sociais.
Afinal, é patente que, no adultério, perpetrado pela mulher, esta é que se
desonra, não o marido.”17

Esta última decisão é a que melhor atende aos interesses do direito. A honra do
marido traído não é agredida pela traição. Esse pensamento, aliás, é cultivado apenas
nas camadas médias da sociedade, posto que, tanto na mais elevada, quanto na mais
subalterna, esses sentimentos simplesmente não existem.

Pode, sim, terceira pessoa ofender o traído, chamando-o de corno, e esta


pessoa, sim, estará, desde que com real intenção de ofender, agredindo a honra do
marido, permitido a ele, por isso, repelir tal agressão, porque injusta, com o uso
moderado dos meios necessários.

Finalmente, no âmbito ainda dos direitos que podem ser defendidos, importa
ressaltar que o defendente pode reagir a qualquer agressão, mesmo àquela dirigida a
um bem de outra pessoa, inclusive da pessoa jurídica. Há assim a legítima defesa
própria, quando o bem defendido é do sujeito, e a legítima defesa de terceiro, quando o
bem agredido tem outra pessoa como titular.

16 Revista dos Tribunais, nº 660, p. 313.

17 Bol. TJSP 6/287 (In: FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 274).
Ilicitude - 23

10.4.2.4 Uso dos meios necessários

Só é legítima a repulsa praticada com a utilização dos meios necessários para


fazer cessar, ou impedir que ocorra, a agressão injusta, atual ou iminente, a qualquer
direito, próprio ou de terceiro.

A necessidade dos meios é das questões mais interessantes do Direito Penal. O


meio utilizado deve ser o necessário para impedir a agressão iminente de concretizar-
se, atualizar-se, ou para fazer cessar a agressão atual. Nem mais do que o necessário,
nem menos, pois aí não haveria defesa eficiente.

Para se dizer que o agente utilizou o meio necessário, é preciso, em primeiro


lugar, verificar quais eram os que se encontravam a sua disposição no momento da
agressão. Um meio pode ser mais do que suficiente, todavia, pode acontecer de não
haver outro, naquelas circunstâncias, na medida exata da suficiência, à disposição do
agente.

A lição de MANZINI, colhida em Nelson Hungria, é clara:

“Para medir a adequação ou demasia da defesa, não se deve fazer o


confronto entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser
sensivelmente superior ao primeiro, sem que por isso fique excluída a
justificativa. O confronto deve ser feito entre os meios defensivos que o
agredido tinha a sua disposição e os meios empregados. Se estes eram os
únicos que in concreto tornavam possível a repulsa da violência de outrem,
não haverá excesso, por maior que seja o mal sofrido pelo agressor.” 18

Uma arma de fogo pode ser o meio necessário para obstar uma agressão
praticada com os próprios punhos. Um sujeito franzino, raquítico, que tenha uma arma
de fogo à sua disposição, agredido a murros por um lutador de artes marciais, deve
utilizar o revólver como o meio necessário para se defender, ainda que junto dele exista
um porrete, ou uma barra de ferro. Tais instrumentos, nas mãos do frágil cidadão,
podem, a toda evidência, ser aquém do necessário para impedir a agressão do exímio
lutador.

Se o sujeito tem a seu dispor vários instrumentos, ou pode utilizar-se de vários


meios contra a agressão, deve, é evidente, escolher aquele que, com eficiência, resulte
no menor dano ao agressor.

O direito, todavia, não obriga uma apreciação com a exatidão da Matemática,

18 Op. cit. p. 297.


24 – Direito Penal – Ney Moura Teles

pois que não se pode exigir daquele que, agredido injustamente, reage cálculos
milimétricos sobre a necessidade dos meios.

A lição de NELSON HUNGRIA não pode ser esquecida:

“A apreciação deve ser feita objetivamente, mas sempre, de caso em caso,


segundo um critério de relatividade ou um cálculo aproximativo. Não se trata
de pesagem em balança de farmácia, mas de uma aferição ajustada às
condições de fato do caso vertente. Não se pode exigir uma perfeita equação
entre o quantum da reação e a intensidade da agressão, desde que o necessário
meio empregado tinha de acarretar, por si mesmo, inevitavelmente, o
rompimento da dita equação.”19

Por isso, ao apreciar o caso concreto, o julgador deve, após verificar quais eram
os meios disponíveis, considerar necessário o que tiver sido utilizado, desde que
inexistente outro menos gravoso para o fim de impedir ou fazer cessar a agressão, não
se preocupando com a exata proporção entre ataque e defesa. Até porque esta, em face
da emoção que alcança o homem agredido injustamente, pode ultrapassar, dentro dos
limites da razoabilidade, aquilo que seria o necessário.

Para os que entendem que o marido traído tem sua honra agredida pela mulher
adúltera, caberia a indagação: o meio necessário para fazer cessar a agressão é a morte
da mulher? Matando-a, é claro, a agressão deixa de existir, mas, induvidosamente, a
morte da adúltera é muito, mas muito mesmo, além do necessário.

A infidelidade conjugal é a violação de um dos deveres do matrimônio, que, no


Brasil, é dissolúvel pelo divórcio. Não é um bem que mereça proteção extremada do
Direito. Diante da violação de um dos deveres conjugais, nasce, para o outro cônjuge, o
direito à separação judicial, e é esse o meio necessário para fazer cessar a situação de
adultério, com as conseqüências civis previstas na lei. Por isso, admitindo-se haver, no
flagrante de adultério, agressão à honra do marido, o meio para fazer cessá-la não pode,
jamais, ser a morte da mulher ou do amante, e tampouco de ambos.

10.4.2.5 Moderação na utilização dos meios necessários

Não basta que o agente escolha o meio necessário, é indispensável que o utilize
com moderação, sem exageros, sem excessos.

Muitas vezes, o agente, diante de uma agressão atual injusta, utiliza-se do meio

19 Op. cit. p. 298.


Ilicitude - 25

necessário, mas não o faz moderadamente. Por exemplo, após cessada a agressão,
continua com seu comportamento anterior, agredindo o ex-agressor, quando já não
existe agressão. Dessa forma, não se pode falar esteja ele repelindo agressão, pois não
se repele o que já não existe. Nesse caso, a ação não é mais legítima, não podendo ser
excluída a ilicitude da conduta.

Esse é outro requisito que enseja muitas discussões. Aqui, como na escolha dos
meios, não se pode fazer uma análise rigorosamente matemática, com afirmações do
tipo: bastava um tiro e o agente deu dois. Ou três golpes e ele chegou a um quarto,
desnecessário.

A primeira observação é aquela de que o agredido injustamente não está em


condições de medir, com precisão, a intensidade ou a extensão da defesa que realizará,
nem pode correr o risco de, por excesso de cuidado, não conseguir evitar ou
interromper a agressão, sofrendo o ataque injusto.

Em seguida, novamente, o julgador haverá de examinar o caso concreto e ter em


mente que o objetivo da legítima defesa é impedir que a agressão iminente se concretize
ou interromper a agressão atual. Em ambas as hipóteses, o comportamento do agressor
deve ser analisado, pois o defendente está autorizado a utilizar-se do meio até o quanto
e até quando seja imprescindível para alcançar seu objetivo.

Nessa operação, todas as circunstâncias que envolvem o fato são essenciais para
a conclusão da análise. Local, tempo, condições pessoais, especialmente compleição
física, de ambos os sujeitos, antecedentes do fato, a natureza do bem agredido, tudo
deve ser observado para que se consiga verificar certa proporcionalidade entre o ataque
e a defesa.

Essa proporcionalidade, todavia, não é matemática, mas a reação deve ser


relativamente, razoavelmente, proporcional ao ataque. Se o agressor, munido de faca,
caminha na direção do defendente, com nítida intenção de feri-lo, pode este, armado de
revólver, disparar sua arma uma, duas, quantas vezes forem necessárias para impedir
que o outro chegue próximo de si, de modo a poder atingi-lo com a faca. Enquanto a
agressão não estiver evitada, o meio necessário pode continuar sendo utilizado. Não
importa quantos disparos, quantos golpes sejam desferidos, importa, sim, saber se,
enquanto eram perpetrados, permanecia a iminência ou a atualidade da agressão.

10.4.2.6 Consciência e vontade de agir conforme o direito

Em toda e qualquer causa de justificação, seja ela da parte geral, seja da parte
26 – Direito Penal – Ney Moura Teles

especial, um dos requisitos indispensáveis é o elemento subjetivo: a consciência e a


vontade de agir conforme o Direito.

O Direito não justifica o comportamento do sujeito que se aproveita de uma


situação objetiva de legítima defesa para alcançar um fim proibido, a morte de alguém.

Tome-se o exemplo: Jorge deseja matar Alfredo, que costuma beber em certo
bar, onde, normalmente, entra em atrito com freqüentadores, chegando,
invariavelmente, às vias de fato. Então, Jorge dirige-se ao referido bar, postando-se a
certa distância de Alfredo e aguardando que ele, como faz costumeiramente, se
desentenda com outra pessoa. Não muito tempo decorre e começa uma discussão entre
Alfredo e Marcos, provocada pelo primeiro, a qual evolui para um desforço físico,
iniciado por Alfredo que, em dado momento, inesperadamente, toma de uma cadeira
de madeira, levanta-a e vai, com ela, atingir a cabeça de Marcos, instante em que Jorge
saca de sua arma e dispara um único tiro, que acerta o braço, atravessando-o e
atingindo, em seguida, o peito esquerdo de Alfredo que, em virtude do único ferimento,
vem a morrer.

Observando o fato, pode-se concluir que Alfredo estava prestes a realizar uma
agressão injusta, contra a pessoa de Marcos, podendo inclusive matá-lo com o golpe no
crânio, com instrumento contundente. Jorge, vendo-a, usa do meio necessário e o faz
moderadamente, disparando um único tiro, aliás, atingindo o braço, o que revelaria sua
intenção de defender a integridade corporal ou a vida do terceiro. Estaria, assim, a
princípio, configurada a legítima defesa de terceiro, porquanto realizados todos os
pressupostos objetivos da excludente.

Todavia, Jorge tinha a intenção deliberada de matar Alfredo, não de defender


Marcos, tendo-se aproveitado de uma situação objetiva, para vir depois alegar legítima
defesa. Não agiu de acordo com o Direito, pois não agiu com o intuito de defender a
vida de terceira pessoa, mas com vontade exclusiva de matar. Faltou-lhe a vontade de
realizar a causa de justificação. Não há legítima defesa nessa hipótese. É claro que a
prova dessa situação é difícil, mas não é impossível. O que interessa é que, para se
configurar a excludente de ilicitude, o agente deve agir com consciência e vontade de
defender o bem jurídico.

Não podia ser diferente. Só é lícita a conduta que realiza o fim do Direito, a
proteção do bem jurídico. Só é justa a destruição de uma vida quando seu destruidor se
tiver comportado com consciência de que realizava o fim da norma jurídica e com
vontade de proteger, repelindo a agressão a outro bem jurídico. Nunca se poderia
legitimar um comportamento previamente imbuído da vontade clara e indiscutível de
destruir um interesse juridicamente tutelado.
Ilicitude - 27

10.4.3 Questões diversas sobre a legítima defesa

10.4.3.1 Embriaguez do defendente

Questão interessante é saber se uma pessoa embriagada pode atuar em legítima


defesa. Há posições jurisprudenciais divergentes. Umas entendem plenamente possível
ao ébrio agir sob o pálio do Direito, ao passo que outras, por considerarem que lhe
faltaria consciência, e também vontade, entendem que não pode realizar qualquer
comportamento justificado.

A solução não é simples e exige reflexão. Se o defendente está completamente


embriagado, de sorte que lhe falta a consciência, então pode não ter havido sequer
conduta, por faltar um requisito indispensável, que é a vontade de movimentar-se ou
abster-se de um movimento. Logo, o fato será atípico, e não se analisa a ilicitude, pois,
se atípico, é um indiferente penal. Se há inconsciência, falta conduta, e, sem conduta,
não há fato típico.

Se, todavia, há consciência, ainda que mínima, e, também, vontade de agir, ou


de se omitir, não se pode falar que não tenha ele, igualmente, desejado repelir a
agressão e atuar conforme o Direito.

Concluindo-se que o ébrio realizou um fato típico, é porque tinha consciência e


vontade de agir, e, da mesma forma, realizaram-se os pressupostos objetivos da
excludente, poderá ter, igualmente, realizado o subjetivo, isto é, ter agido com
consciência e vontade de defender-se, a não ser que se tenha aproveitado da situação
objetiva para agredir o bem jurídico, como no exemplo dado no item anterior.

10.4.3.2 Embriaguez do agressor

A embriaguez do agressor deve ser analisada com cuidado. É que a agressão


deve ser idônea, e não pode ser confundida com simples provocação. Geralmente, os
muito ébrios não têm condições de realizar agressões, mas limitam-se a provocar as
pessoas. A defesa só é justa quando houver uma agressão e, como tal, idônea, concreta,
ainda que apenas iminente.

Nada impede, contudo, venha uma pessoa embriagada a encetar agressão


injusta, a justificar repulsa legítima.

10.4.3.3 Legítima defesa e estado de necessidade

Entre a legítima defesa e o estado de necessidade, algumas diferenças devem ser


28 – Direito Penal – Ney Moura Teles

ressaltadas. No estado de necessidade, o pressuposto é a colisão de interesses jurídicos,


de modo que um – qualquer deles – pode ser sacrificado. Trata-se de uma situação de
perigo atual para o bem jurídico.

Na legítima defesa, deve existir agressão, ataque ao bem jurídico, ainda que
iminente, de modo que pode ser repelida pelo defendente. Só o bem do agredido será
preservado.

No estado de necessidade, o perigo pode resultar de um comportamento


humano, de um ataque de um animal, ou de um fenômeno da natureza, uma
inundação, por exemplo, e o sujeito pode dirigir seu comportamento contra qualquer
bem, de qualquer pessoa.

Já na legítima defesa, a agressão deve partir, necessariamente, de um ser


humano, e a reação do defendente deve ser dirigida exclusivamente contra o agressor,
não contra um terceiro.

Finalmente, de se lembrar que na legítima defesa a agressão deve ser injusta, ao


passo que, no estado de necessidade, a situação de perigo pode ser criada licitamente
por uma pessoa; daí que é plenamente possível a existência de duas pessoas,
simultaneamente, em estado de necessidade, podendo, cada uma delas, dirigir sua
conduta contra a outra, como no exemplo clássico dos dois náufragos na tábua de
salvação. Vença o mais forte, mais hábil, ou mais inteligente, o que sobreviver.
Qualquer deles que matar o outro, para salvar-se, estará em estado de necessidade e
terá agido conforme o Direito.

Diferentemente, é impossível a existência de duas pessoas, uma contra a outra,


em legítima defesa recíproca, porque só uma das agressões será justa. A agressão
contra a agressão justa será injusta, não será legítima.

10.4.3.4 Legítima defesa e erro na execução

Se alguém, diante de uma agressão injusta e atual, a bem próprio ou de terceiro,


promover sua repulsa com o uso moderado dos meios necessários, mas, ao fazê-lo,
atingir, todavia, outra pessoa que não a do agressor, terá agido em legítima defesa?

A resposta deve ser afirmativa. O erro na execução não altera seu


comportamento, não elimina a agressão, nem a necessidade dos meios utilizados em
sua repulsa, nem a moderação com que foram utilizados.

Nos casos de erro na execução, ou de obtenção de resultado diferente do visado


pelo agente, têm aplicação as regras dos arts. 73 e 74 do Código Penal, que serão objeto
Ilicitude - 29

de estudo no Capítulo 17 deste manual.

Na hipótese, houve apenas e tão-somente um acidente, que não retira a licitude


da conduta, pois ela foi realizada com a consciência dos fatos e com o fim de realizar a
vontade do Direito, protegendo o bem jurídico agredido injustamente.

10.4.3.5 Ofendículos

Ofendículos são obstáculos ou engenhos utilizados pelas pessoas com vistas na


defesa da propriedade e da posse. Assim, os cacos de vidro sobre os muros, as lanças
pontiagudas nas cercas, sua eletrificação, a presença de cães de guarda, que se
destinam a reagir, em caso de agressão à propriedade, ferindo o agressor.

Alguns doutrinadores consideram que, ao fazê-lo, o sujeito está no exercício


regular do direito de proteger sua propriedade, ao passo que outros consideram tratar-
se o fato de verdadeira legítima defesa preordenada.

O correto é dizer que, quando da instalação e da preparação dos mecanismos de


defesa, o proprietário age no exercício regular do direito de propriedade.

Se o mecanismo funciona, repelindo uma agressão injusta do que tenta invadir a


propriedade, trata-se, à evidência, de legítima defesa, desde que os demais requisitos
sejam observados.

O mecanismo deve conter reação não além da necessária para repelir a invasão,
por exemplo, a corrente da cerca eletrificada não pode ser de voltagem excessiva, mas
apenas dentro do suficiente para imobilizar ou repelir um homem normal.

Além disso, deve o defendente cercar-se de cuidados para prevenir inocentes,


crianças e até amigos e parentes, que devem ser alertados para os perigos da defesa
preordenada.

Os excessos e a negligência na construção e no funcionamento dos ofendículos


descaracterizam a legitimidade da defesa.

10.5 ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL E


EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO

As outras duas causas de exclusão da ilicitude previstas na parte geral do Código


Penal são o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito (art.
23). São situações distintas, apesar de terem a norma jurídica como fonte de sua
30 – Direito Penal – Ney Moura Teles

existência.

10.5.1 Estrito cumprimento do dever legal

Sempre que alguém estiver cumprindo, estritamente, um dever imposto pela lei,
só poderá estar realizando um comportamento lícito, uma vez que a lei não impõe a
ninguém a realização de uma conduta proibida. Seria um absurdo imaginar que, ao
cumprir, estritamente, uma obrigação emanada da lei, a pessoa pudesse estar
realizando algo proibido, algo contra a lei.

O comportamento realizado nos estritos limites do comando legal não pode, em


nenhuma hipótese, ser lesivo de qualquer bem jurídico.

Esta excludente, em verdade, é absolutamente desnecessária, mas, como informa


MIRABETE, “é prevista expressamente para que se evite qualquer dúvida quanto à sua
aplicação, definindo-se na lei os termos exatos de sua caracterização”20.

A justificativa alcança os funcionários públicos e os agentes – inclusive o


particular em exercício de cargo ou função pública, ainda que temporariamente – do
poder público encarregados de executar um mandamento da lei.

São exemplos de ações típicas permitidas por essa causa de justificação a prisão em
flagrante efetuada pelo policial e a danificação do patrimônio executada pelo oficial de
justiça em cumprimento de um mandado demolitório expedido pela autoridade
judiciária competente, com a observância das formalidades processuais.

Os requisitos para a presença da excludente são os traçados na norma jurídica


que impõe ao agente o dever de realizar o comportamento, os quais deverão ser
observados integralmente, e mais o elemento subjetivo, qual seja, o conhecimento de
fato, de que está agindo em cumprimento de um dever e, evidentemente, a vontade de
fazê-lo. Ultrapassados os limites da norma reguladora do mandamento legal, não
haverá excludente.

Exemplo: o juiz de determinada vara cível, nos autos de uma ação de


manutenção de posse, determina a demolição de uma cerca de arame edificada pelo
turbador da posse, numa extensão de 600 metros. Munido do respectivo mandado, o
oficial de justiça – inimigo pessoal do turbador – dirige-se ao local da turbação e lá
promove a demolição de 800 metros de cerca, cortando os fios do arame e destruindo os
postes.

20 Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. v. 1, p. 180.


Ilicitude - 31

Na hipótese, o funcionário da justiça exorbitou de seu dever que era de,


exclusivamente, demolir 600 metros de cerca, e nada mais que isso. Não tinha o dever
de cortar os fios do arame, nem de destruir os postes. Não cumpriu, assim, estritamente
seu dever legal; por isso, não agiu licitamente.

10.5.2 Exercício regular de direito

Esta causa de justificação guarda profunda semelhança com a anterior, pois que
o fundamento é basicamente o mesmo: aquele que estiver exercendo regularmente um
direito não pode, ao mesmo tempo, estar realizando uma conduta proibida pelo Direito,
pois, se assim fora, não seria coerente o ordenamento jurídico.

A diferença é que no estrito cumprimento do dever legal trata-se de um dever


legal, e aqui de um direito, uma faculdade conferida pela ordem jurídica ao indivíduo.

É certo que os requisitos para a presença da justificativa serão os estabelecidos


nas normas jurídicas que criam o respectivo direito e mais o elemento subjetivo, a
consciência e a vontade de agir conforme o Direito.

Exemplo clássico de fato típico cometido no exercício regular de Direito: a


prisão em flagrante efetuada pelo particular. Como é sabido, a autoridade policial tem o
dever de prender quem estiver em flagrante delito, e o particular tem o direito de fazê-
lo (Código de Processo Penal, art. 301 – Qualquer do povo poderá e as autoridades
policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante
delito).

Outro exemplo é a defesa da posse dos bens imóveis, estabelecida no § 1º do art.


1.210 do Código Civil brasileiro:

“O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se ou restituir-se por sua própria


força, contanto que o faça logo; os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além
do indispensável à manutenção ou restituição da posse.”

Aquele que possuir um imóvel, independentemente de ser seu proprietário, tem


o direito de defendê-lo contra invasões, desde que a reação seja imediata, realizada
imediatamente, e com a prática apenas dos atos indispensáveis à obtenção de sua
manutenção no imóvel ou de sua restituição. Se o invasor ingressa no imóvel, pode dele
ser expulso. Se constrói, as edificações podem ser destruídas.

A norma do art. 1.210, § 1º, do Código Civil estabelece requisitos para o


exercício desse direito: resposta imediata e necessidade dos atos de desforço ou de
defesa. O agente não pode ultrapassar os limites do exercício do direito, sob pena de
32 – Direito Penal – Ney Moura Teles

restar descaracterizada a eximente.

Alguns doutrinadores ensinam que os casos de violência esportiva e


intervenções médicas e cirúrgicas constituem situações em que há, igualmente,
exercício regular de direito. As lesões praticadas pelo médico ou pelo boxeador,
porquanto atividades lícitas, admitidas e, inclusive, reguladas pelo ordenamento
jurídico, desde que não constituam excessos, seriam lícitas porque cometidas no
exercício regular de um direito.

Outros autores incluem, entre o exercício regular de direito, as atitudes


corretivas dos pais para com os filhos, o castigo correcional.

Essas situações, bem assim a do soldado que, na guerra, mata o inimigo, e a do


carrasco que executa o sentenciado, no país que consagra a pena capital, não
constituem sequer fatos típicos, uma vez que são aceitos e adequados socialmente.

Não há tipicidade em tais fatos, excluída que resta pela incidência do Princípio
da Adequação Social. É claro que, havendo negligência ou imperícia do médico, excesso
do esportista, que viola as regras do esporte, dolosa ou culposamente, em vez de
corretivo, tortura por parte do pai, nesses casos, o princípio não incide, eis que as
condutas não foram adequadas nem são aceitas.

A considerar tais condutas típicas, tornar-se-ia necessária a instauração de


inquérito policial toda vez que o pai corrigisse o filho, o médico realizasse intervenção
cirúrgica, houvesse uma luta de boxe, para, ao depois, na melhor das hipóteses, o órgão
do Ministério Público pedir o arquivamento do inquérito policial.

10.6 CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

Apesar de não integrar uma norma penal permissiva justificante, discute-se


acerca de o consentimento do ofendido poder ou não excluir a ilicitude de certos fatos
típicos.

Para responder à indagação, é preciso ver duas questões básicas. Quanto ao


consentimento da vítima, há duas espécies de tipos legais de crime: aqueles que
contêm, como elemento, o dissenso do ofendido e aqueles em que essa divergência não
é elementar. Segunda: há duas espécies de bens jurídicos: os disponíveis e os
indisponíveis.

Com base nessas duas constatações, pode-se chegar a uma conclusão acerca do
consentimento do ofendido.
Ilicitude - 33

10.6.1 Consentimento como excludente da tipicidade

Nos tipos legais de crime em que o dissenso do ofendido constitui um de seus


elementos, o consentimento exclui a tipicidade.

O tipo legal de estupro, do art. 213, contém, como elementar, tácita, a falta do
consentimento da ofendida, seu dissenso, de modo que só se configura o estupro
quando a vítima não consente, opõe-se, rejeita a conjunção carnal.

O mesmo se diga no delito da violação de domicílio, do art. 150, em que o


dissenso é expresso: “contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito”. Só se
realiza o delito de violação do domicílio quando o agente entra ou permanece na casa
contra a vontade, tácita ou expressa, do morador.

Se o ofendido consente, não se pode falar que o tipo se realizou, que o fato se
ajustou ao tipo. Se a mulher consente na conjunção carnal, não há estupro. Se o dono
consente no ingresso ou na permanência do sujeito em sua casa, não houve violação do
domicílio.

Então, nos tipos em que o dissenso for um dos elementos do tipo, diante do
consentimento, não há tipicidade. Nesses casos, não se aperfeiçoa a primeira
característica do crime. Não havendo tipicidade, o fato não interessa ao Direito Penal.
Diz-se, portanto, que nos tipos em que o dissenso, o não-consentimento, é elementar, o
consentimento é excludente da tipicidade.

10.6.2 Consentimento como excludente da ilicitude

Nos demais tipos, em que o dissenso não é elementar, como no homicídio, no


roubo, na calúnia, na violação do direito do autor, o consentimento do ofendido poderá
excluir a ilicitude se presentes duas condições indispensáveis: (a) a disponibilidade do
bem jurídico; (b) a capacidade de consentir do ofendido.

Se o bem é disponível, se estiver contido na esfera de disponibilidade de seu


titular, este poderá renunciar à tutela jurídica. Se não, trata-se de um bem de interesse
geral da sociedade e do próprio Estado, do qual não pode seu titular livremente dispor,
alienar, dar, renunciar. Assim é, por exemplo, com a vida.

Dessa forma, ainda que o doente esteja em estado terminal, atravessando


sofrimento indizível e vivendo dores insuportáveis, não pode, todavia, dispor de sua
vida, pelo que, aquele que matá-lo, atendendo a sua súplica e por ele autorizado,
34 – Direito Penal – Ney Moura Teles

cometerá fato típico de homicídio não justificado. A eutanásia é um fato ilícito.


Tratando-se de um homicídio cometido por motivo de relevante valor moral, seu agente
terá sua pena diminuída, como manda o § 1º do art. 121.

Já a honra é um bem disponível, de modo que o ofendido pode, simplesmente,


ignorar a ofensa contra ele dirigida, deixando de promover a ação penal. Não terá
havido crime, em face do consentimento tácito do ofendido, que torna a conduta lícita.

Só vale o consentimento dado por quem tenha capacidade de consentir, no


Direito Penal brasileiro aquele que tiver mais de 14 anos de idade.

Importante questão é saber se o médico que realiza cirurgia para mudar o sexo
do indivíduo, com o consentimento deste, comete crime de lesão corporal grave. Muitos
dizem que o indivíduo não poderia consentir na realização da cirurgia, posto que sua
natureza estaria sendo contrariada.

A condição sexual do indivíduo não é uma situação imutável, como se pode


pensar. Não é interesse da coletividade. Não é um bem indisponível. Os indivíduos,
machos ou fêmeas, podem ter, por intervenção cirúrgica, modificadas certas
características fenotípicas, sem que isso signifique qualquer prejuízo para quem quer
que seja. Vive-se já no século XXI, em que as distâncias não existem, o homem já foi à
Lua e voltou, a informática consegue feitos inimagináveis há menos de um século. O
avanço tecnológico é desconcertante. As mudanças no pensamento, nos costumes, nas
relações entre as pessoas alcançam situações jamais pensadas. A liberdade de agir, de
atuar, desde que não cause prejuízos ou lesões aos interesses alheios, há, sempre, de ser
preservada.

Ser homossexual, querer extirpar o órgão genital e no lugar construir algo


parecido com o órgão do sexo oposto não pode, por si só, causar qualquer lesão a
qualquer bem jurídico.

O que deve importar, para o Direito, é o bem da sociedade e dos indivíduos. Se a


renúncia a uma tutela não implica qualquer prejuízo para quem quer que seja, o bem
em questão é disponível e, portanto, sua excisão, alteração, modificação, não pode
significar qualquer lesão, pelo que se trata de comportamento lícito o do médico que,
atendendo à vontade do indivíduo, modifica-lhe os órgãos genitais.

10.7 EXCESSO NAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE

As causas de exclusão da ilicitude, como se viu, estão definidas em normas


penais permissivas que fixam seus requisitos, estabelecendo limites objetivos, dentro
Ilicitude - 35

dos quais a conduta do agente deve realizar-se.

Na legítima defesa, a reação deve ser com o meio necessário, o qual deve ser
usado com moderação.

No estado de necessidade, o bem sacrificado deve guardar certa e razoável


proporção com o bem salvo.

O exercício de direito deve ser regular, dentro dos limites estabelecidos pela
norma autorizadora, e o dever legal deve ser cumprido estritamente, sem excessos.

Por isso, prevendo a possibilidade concreta de o agente ultrapassar os limites


das justificativas, o parágrafo único do art. 23 do Código Penal expressamente
esclarece: “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso
doloso ou culposo”.

A lei, pois, prevendo as várias hipóteses de ultrapassagem dos limites por ela
fixados para considerar lícita a conduta típica, determina que, nessas hipóteses, a causa
de justificação descaracteriza-se, devendo o agente ser punido conforme tenha excedido
dolosa ou culposamente.

10.7.1 Excesso doloso

O excesso será doloso quando o sujeito, com plena consciência dos limites da
eximente, conhecendo até que ponto ou em que medida podia atuar, ultrapassa aqueles
limites com vontade.

Assim ocorre com o agredido injustamente que, podendo repelir a agressão com
um ferimento no agressor, tendo disso total consciência, resolve, deliberadamente,
matá-lo. Nesse caso, usa de meio além do necessário, o que descaracteriza a legítima
defesa, respondendo por homicídio doloso.

O mesmo se diga do indivíduo que, perdido há dias numa região desabitada,


encontra uma casa fechada, invade-a e, após subtrair alimento e saciar a fome,
continua, consciente e voluntariamente, subtraindo outros alimentos. Terá excedido os
limites do estado de necessidade, já que a continuidade da subtração já não se destina a
salvar sua vida de perigo, então já inexistente.

O policial ou o particular que efetua a prisão em flagrante não pode ir além do


indispensável a suprimir a liberdade de movimentos do preso, não podendo espancá-lo,
torturá-lo, nem humilhá-lo ou mantê-lo em situação que não se harmonize com sua
condição humana. Agindo assim, intencionalmente, estará ultrapassando, dolosamente,
os limites da justificativa, que resta, por isso, descaracterizada.
36 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Excedendo, dolosamente, os limites da justificativa, esta não se aperfeiçoa,


mantida a ilicitude do fato.

10.7.2 Excesso culposo

É culposo o excesso que deriva da inobservância do dever de cuidado objetivo e


que será punível se o resultado decorrente da conduta estiver definido na lei como fato
culposo.

O sujeito, diante de uma agressão injusta, por descuido, escolhe um meio além
do necessário, ou utiliza o meio necessário imoderadamente, sem ter a intenção de
ultrapassar os limites da eximente. É o caso do sujeito que avalia indevidamente a
gravidade da agressão sofrida, ou não atenta para o poder da reação que vai
empreender, não medindo suas forças, ou o potencial lesivo do meio utilizado. Em vez
de disparar uma vez, o que seria suficiente, dispara duas ou três, não com a vontade
deliberada de vingar-se, nem por ódio do agressor, mas porque, desatento, descuidado,
não verificou a desnecessidade do segundo disparo.

Ultrapassando o limite da justificativa por negligência, e disso resultando a


lesão de um bem jurídico, o sujeito que se encontrava inicialmente em legítima defesa
responderá pelo tipo culposo, se previsto em lei.

10.7.3 Excesso de legítima defesa intensivo e extensivo

É na legítima defesa que o excesso adquire grande importância. Diz-se que o


excesso é intensivo quando o agente utiliza um meio com potencial lesivo além do
necessário ou utiliza o meio necessário com desproporcionalidade em relação à
agressão.

Será extensivo o excesso quando a repulsa continua após cessada a agressão,


quando a defesa prolonga-se além da atualidade da agressão.

No excesso intensivo, diante dos pressupostos da legítima defesa, o sujeito


ultrapassa seus limites e, por isso, responderá. Tendo havido excesso intensivo, incidirá
a atenuante da pena prevista no art. 65, III, c, última parte, do Código Penal.

No excesso extensivo, o sujeito, inicialmente em legítima defesa, reage


licitamente, e, quando já não há agressão, quando já não há a presença do pressuposto
fático indispensável, agride o outro. Esse comportamento é autonomamente ilícito. É
outro fato.
Ilicitude - 37

Se o agente, repelindo a agressão injusta praticada contra si com arma de fogo,


dispara um tiro de revólver, caindo o agressor ferido e perdendo, na queda, a arma, já
não pode o defendente continuar atirando. Até o primeiro tiro, seu comportamento é
lícito, pois usou do meio necessário, moderadamente. Se continuar disparando e matar
o outro, terá cometido homicídio doloso. Já não havia agressão, e por isso nem se pode
falar em excesso de legítima defesa, pois esta se tinha exaurido no momento do
primeiro disparo.

10.7.4 Excesso acidental

Se o excesso não for doloso, nem culposo, será acidental e, como tal, não será
punível, mantida a justificativa, em sua plenitude. Nunca é demais lembrar que só são
puníveis condutas realizadas dolosa ou culposamente.

Um sujeito diante de uma agressão injusta, com arma de fogo, tem, próximo de
si, uma arma automática. Incontinenti, toma-a, aponta-a em direção ao agressor e
preme uma única vez a tecla do gatilho, sendo, entretanto, lançados contra a vítima 15
projéteis que a atingem, matando-a.

Houve, à evidência, excesso, pois o meio necessário foi usado sem moderação. O
sujeito, entretanto, não agiu com vontade de exceder-se, e tampouco foi negligente, até
porque premiu a tecla do gatilho uma única vez. Não se pode falar em imperícia, pois
não se tratava de um policial, ou atirador, mas de um homem comum. Esse excesso não
derivou nem de dolo, nem de culpa. Foi um acidente. Era inevitável. Não é punível, e o
sujeito agiu em legítima defesa.

10.7.5 Excesso exculpante

O excesso intensivo de legítima defesa derivado de medo, ou perturbação


psicológica, será estudado no Capítulo 11, “Culpabilidade”.

10.8 CONCLUSÃO

Dado um fato típico, é preciso verificar se é ilícito. Não ocorrendo qualquer


causa de justificação, uma excludente de ilicitude, ter-se-á que o fato é típico e ilícito.

Sendo típico e ilícito, há ilícito penal. Não, ainda, o crime, posto que, para este
se aperfeiçoar, é preciso que seja, além disso, culpável. Assim, falta o exame da terceira
característica do crime: a culpabilidade.

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