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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDigÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanpa a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanpa e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abengoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.


Pe. Estevao Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Estevao Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaca
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
19
JULHO

1959

ERGUNTE
e

esponderemos

ANO ¡I
ÍNDICE

I. CIENCIA E RELIGIAO

■ 1) "A Religiáo nao seria mera expressáo de determinada


fase da cultura ?... express&o da ignorancia e da covardia do
homem primitivo, destinada portanto a desaparecer perante, a ci-
vüizacáo moderna ?" 267

2) "Que se entende por Esoterismo ?" 278

3) "Que dizer das fotografías do pensamento apregoadas por


Baraduc e outros médiuns do secuto passado ?" 278

II. DOGMÁTICA

4) "Será que os santos aparecerá realmente aos homens na


térra ? Como se poderia dar isso ?" 28S

5) "Poderíamos comunicar-nos com os morios ?" 286

6) "Que valor religioso tém os sonhos ? Poderío ser consi


derados sinais de Deus ?" 2SJ

ni. SAGRADA ESCRITURA

7) "Como se pode condenar a evocagao dos mortos, se Deus


mesmo permitiu a aparig&o de Samuel a Saúl -mediante a inter-
vencáo da pitonisa de Endor ?"

IV. MORAL

8) "Que dizer das chamadas 'farsas de V de abril' ? Terdo


origem supersticiosa ou paga ?" SOS

CORRESPONDENCIA MWDA S05

COM APROVAgAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano II — N' 19 —

I.

F. LIMA (Joáo Pessoa) : V>. , . m ^


\Wama9
1) «A Religiao nao seria mera expressao de'TleSSBSSá-*1
nada fase da cultura ? ... expressao da ignorancia e da covar-
dia do homem primitivo, destinada portante a desaparecer
perante a civilizacáo moderna ?»

Por «Religiao» costuma-se designar a atitude do homem que


entende entrar em relagdes com urna entidade superior a ele, entidade
da qual ésse homem se reconhece dependente.
Qual será a raiz de tal atitude? Nobreza ou covardia de ánimo?
E o que abaixo examinaremos, percorrendo primeiramente aleumas
teorías modernas sobre a origem do fenómeno religioso, para depois
considerarmos elementos da Jiistória e da Etnología que nos permi-
tirao formar um juizo sóBre o surto e o significado da Religiao.

1. Algumas opinioes modernas

Foi no século passado que os estudos de historia das ReligiSes


comecaram a se desenvolver. Um dos conceitos que entSo mais em
voga se achavam, era o de evolucao; seguindo, pois, a tendencia geral
da época, os estudiosos foram aplicando ao fenómeno religioso a tese
de que é algo de contingente e relativo, sujeito a surto e declínio
como qualquer outra modalidade da civilizacáo.
Como, por conseguinte, explicavam o aparecimento e a historia
das manifestagoes religiosas?
O fenómeno religioso, que envolve tres agentes — Deus o
individuo e a sociedade —, poderia ser explicado pela acao preponde
rante de cada um déles de per si. No século XIX, porém, o fator Deus,
por ultrapassar a órbita do sensivel, nao era considerado por muitos
estudiosos, que o tinham na conta de náo-cientifico. Só lhes restava
pois, explicar a religiao ou a partir do individuo e da sua psicología
ou a partir da sociedade e do seu poder criador. Ora justamente a
explicacao do primeiro tipo é o chamado Animismo (cujo principal
mentor é o inglés Burnett Tylor, tl917), ao passo que a do segundo
tipo é o Totemismo lapregoado por Emilio Durkheim, 11917). Velamos
sucessivamente cada urna destas duas teses.
a) O Animismo afirma que o homem no inicio da sua historia
era totalmente destituido de Religiao. Aos poucos, porém, observando
certos fenómenos de psicología (como o sonó, o sonho, a doenca etc)
foi concebendo a idéia de possuir em si um principio diferente do
corpo, ou seja, a alma. Em breve, atribuiu á alma sobrevivencia
após a morte do individuo; donde o culto dispensado aos morios.

— 267 —
Evoluindo ulteriormente, o homem passou a conceber todos os
demais seres como compostos de corpo e alma; conseqüentemente
comegou a crer que todos os fenómenos da natureza sao regidos por
almas (animl) superiores ao homem. Daí se originou o culto da
Natureza: agua, bosques, animáis, trováo, fogo, astros se tornaram
divindades reverentemente obsequiadas.
Devagar, isto é, á medida que o homem íoi aprimorando seus
conceitos filosóficos, ésse «animismo» se terá desembaragado de
suas formas grosseiras para finalmente dar lugar á mais pura
modalidade de Religiáo que é o monoteísmo...
Enquanto a escola de Tylor assim reciocinava, Durkheim percoiria
processo inverso.
b) O Totemismo, como o Animismo, parte do pressuposto de
que o homem é, por si mesmo, arreligioso. Mas, ao passo que, segundo
Tylor, o individuo projeta para fora de si as suas imaginagóes,
criando a Religiáo, na teoría de Durkheim a Religiáo vem a ser
criacáo da sociedade; é esta que a incute ao individuo, o qual no
caso se comporta passivamente, sendo iludido sem o saber.
Com efeito, segundo Durkheim, a sociedade é para os individuos
o que Deus é para os fiéis: realidade transcendente, onipresente,
benfazeja, á quai devemos tudo que somos, podemos e valemos. Essa
realidade se terá imposto ao homem primeiramente sob a forma
de um símbolo chamado tótem (1) — animal (salamandra, dragao...)
ou, mais raramente, vegetal (lirio, rosa, alguma planta medici
nal...) —, com o qual o individuo, memoro de determinada tribo,
se julga aparentado. O tótem é própriamente urna fórca impessoal
e anónima, participada por um grupo de seres afins; é superior e,
ao mesmo tempo, imánente a todos estes, á semelhanga da sociedade.
Desta forma se originou o culto do tótem (animal ou vegetal). Tal
terá sido a forma primitiva da Religiáo, imposta pela sociedade ao
individuo; como se vé, é o culto da sociedade mesma (correspondente
de certo modo ao culto da Humanidade apregcado por Augusto
Comte). Essa religiosidade primordial se terá desenvolvido, segundo
Durkheim, dando formas cada vez menos grosseiras, até chegar ao
monoteísmo.
As teses de Tylor e Durkheim foram cultivadas por outros estu
diosos do sáculo passado, os quais lhes deram múltiplos matizes.
Por exemplo, o inglés Lubbock, na sua obra «The Origin of Civili-
zation and the primitive Condition of Man» (1870), estabelecia a
seguinte linha evolutiva :

Ausencia originaria de

Fetichismo
(culto de objetos mais ou menos monstruosos
tidos como portadores de fórgas sobrenaturais)

(1) Tótem, totam, todaim, ndodcm... O termo provém da língua


dos indios Odjibwa (Algonquins), do Canadá meridional; significa
«parentesco, emblema de familia» ou também «espirito tutelar».

— 268 —
Totemismo

XamanJsmo (1)
(arte de dominar os poderes divinos)

Idolatría
(culto de elementos artificiáis divinizados)

Monoteísmo

As varias teorías congéneres as de Tylor e Durkheim constituiam


a expressáo de u'a mentalidade que penetrou profundamente os
homens do sáculo passado e de inicios do presente século: a Religiáo,
sob qualquer das suas modalidades, é expressáo da ignorancia de
espíritos traeos, que, nao sabendo explicar os fenómenos da natureza,
admitem a existencia de torgas superiores invisíveis; contudo chegara
para o género humano a hora de se libertar désse artificio covarde e
de tomar a atitude arreligiosa, a única condizente com a dignidade
do homem.
Augusto Comte (t 1857 K'-na Franca, e Ludwig Feuerbach (t 1872),
na Alemanha, tornaram-se famosos arautos dessa concepeáo. Em seu
«Cours de la Philosophie positive» (Paris 1830-1843), Comte procla-
mava a lei dos tres estados: o género humano, que comecara a sua
historia num estado teológico ou ficticio, passara pelo estado melafí-
sico ou abstrato, para entrar, a partir de 1842, no estado científico
ou positivo, estado que representaría finalmente a perfeicáo da cultura.
Faz-se mister averiguar o valor que possam ter tais explicacóes
do fenómeno religioso.

2. Os resultados de pesquisas recentes

Os estudos de Paleontología (pesquisa dos documentos


antigos) e Etnología (observacáo dos povos primitivos), vol-
tando-se com interésse para a questáo das origens da Religiáo,
chegaram a resultados assaz precisos, que procuraremos re
sumir abaixo em tres proposigóes.

- a) Rcligiúo, fenómeno típicamente humano.

A historia sugere a seguinte reflexáo.


O homem se preocupa com tudo que diz respeito a sua
subsistencia. Isto é bem compreensível ; todos os animáis,

(1) Shaman é palavra proveniente da língua dos tunguses


(estirpe de mongóis); significa «asceta», isto é, homem afeito á
disciplina das paix5es e ao dominio do espirito sobre o corpo.

— 269 —
mesmo os irracionais, o fazem. Menos compreensível, porém,
ou de todo incompreensível, é que no decorrer da historia ele
jamáis se tenha contentado apenas com o que vé e apalpa;
tende a subir ácima do meramente material, procurando en
trar em relagóes com algo de invisível e transcendente, me
diante o que se chama «Religiáo». Esta ascensáo, nenhum
animal irracional a faz, ao passo que o homem, desde as suas
primeiras manifestares na térra, a tem feito. É o que se
evidencia através de rápido percurso de dados da Pré-história
e da Etnología.

a) A Pré-história nao oferece numerosos vestigios de Religiáo;


ela apenas apresenta fósseis, que sao fragmentos inanimados do
corpo humano, ao passo que a Religiáo está essencialmente arraigada
na atividade psíquica do homem, atividade que nao fica necessária-
mente consignada em destrocos materiais. Contudo é-nos suficiente
mente comprovada a existencia de Religiáo na era das cavernas
mediante dois tipos de documentos: as sepulturas e as obras de arte.
As sepulturas da Pré-história atestam especial deferencia para
com os mortos: o cadáver era geralmente deitado na direcáo LO. e
acompanhado de múltiplos instrumentos que deviam servir ao def unto
na vida postuma. Acreditava-se, pois, na sobrevivencia da alma;
ora esta crenca está Intimamente associada á Religiáo, como ensinam
os psicólogos :
«A primeira conseqüéncia de tada idéia religiosa é a de fazer
temer a morte ou, ao menos, os mortos. Daf resulta que, desde que
as idéias religiosas se afirmam, as práticas funerarias se introduzem»
(G. de Mortillet, Le Préhistorique 1883).
Em confirmacjío disto, verifica-se que os animáis irracionais, os
quais nao tém Religiáo, também nao praticam a deferencia para com
os mortos; nem o mais industrioso désses viventes sepulta seus
defuntos.
De resto, o simples fato de que os antigos homens orientavam
os túmulos na diregáo do sol pode ser tomado como indicio de crenca
em Deus, pois o sol entre os povos primitivos é nao raro considerado
como «o ólho amável» do Ser Supremo.
Quanto á arte das cavernas pré-históricas, apresenta espécimes
de caráter nítidamente religioso: tais sao as chamadas «estatuetas
de Venus», a significar a Vida personificada;... recintos em que
nao há vestigios de habitagáo humana, mas onde se encontraran!
desenhos a lembrar certo ritual sagrado (tais recintos terSo sido
santuarios ou «celas» de culto).

b) Muito mals ricos do que os resultados da Paleontología, sao


os da Etnología, pois éste campo de observacáo oferece dados mais
vivos e variados do que os dos fósseis.
Com efeito, ainda hoje existem certos clás de selvagens que,
como Julgam os observadores, representam o primeiro género de
vida do homem sobre a térra: alguns, infra-civilizados como sSo, nem
sabem fazer uso do fogo nem construir habitacóes estávels, vivendo
conseqüentemente sob o abrigo de folhagens da floresta. Tais seriam:
os pigmeus da África central e ocidental, de SE da Asia (Malaca),
das Filipinas,

— 270 —
algumas tribos de aborigénes de SE da Australia (os tasmanianos,
extintos em 1877, pareciam representar o homem de Neanderthal),
algumas tribos de indios norte-americanos (algonquins e habi
tantes da California),
certos indios da Térra do Fogo (Yamanas ou Yaghas e Alakalufs),
algumas populac8es árticas do Estreito de Behring, esquimos
isolados a O. da Bala de Hudson.
Note-se bem: as manifestacSes culturáis désses povos, por muito
simples que sejam, se mostram táo afins entre si que levam a crer,
tenham ésses das em tempos remotos constituido urna única popula-
cáo, a qual se dispersou, conservando, porém, ñas mais desconexas
regidos do globo as idéias e práticas características do seu agrupa-
mente primitivo. Por conseguinte, ñas tribos ácima recenseadas
vamos encontrar as primeiras manifestacSes culturáis do homem,
anteriores mesmo á expansáo dos povos pela superficie do orbe.
E que atestam tais tribos no tocante á Religiáo?
No século passado Darwin empreendeu duas viagens de explora-
cao á Térra do Fogo: a sua primeira estada al durou de meados de
dezembro de 1832 a Janeiro de 1833, ao passo que a segunda se
estendeu de fins de maio de 1834 a 10 de junho do mesmo ano.
Após táo breves períodos de observagáo, o naturalista inglés voltava
á Europa anunciando que pela primeira vez na historia se podia
apontar um povo (os indios Yamanas) que absolutamente nao tinha
religiáo e que parecía representar a atitude mais espontánea do
homem. As afirmacóes de Darwin, dado o seu caráter ¡novador,
causaram sensagáo. Aos poucos, porém, verificou-se que o dentista
inglés nao podia ser, no caso, testemunha fidedigna: nao sómente
permanecerá exiguo tempo na Térra do Fogo, mas também (todo
ocupado com flora e fauna) nao voltara diretamente sua atencáo para
os aborígenes, cuja língua ele nem sequer conhecia.
Em conseqüéncia, de 1919 e 1924, dois etnólogos, Martín Gusinde
e Wilhelm Koppers, membros do Instituto de Etnología da Universidade
de Viena (Austria), fizeram novas viagens de estudos á Térra do
Fogo. Tendo aprendido a lingua dos aborígenes, procuraram ganhar-
-lhes a confianca e, por fim, puderam anunciar ao mundo que na
verdade, os Yamanas tém sua Religiáo,. professando um Deus
chamado Watauinewa (isto é, o Eterno, Antigo, Imutável). Deseo-
berta semelhante foi efetuada entre aborígenes da Australia Céntral
os Aruntas. Spencer e Gillen afirmaram que nao tinham religiáo: o
contrario, porém, foi minuciosamente comprovado por Strehlow.

Após estes casos sensacionais, corroborou-se entre os


etnólogos contemporáneos a tese antiga de que a crenga em
Deus é fenómeno universal, e fenómeno característicamente
humano, pois ele se verifica em todos os tipos humanos e nao
se realiza em vívente algum infra-humano.
Mas, posta esta conclusáo, surge ¡mediatamente nova
dúvida : nao será a Religiáo (fato universal) expressáo do
que há de mais baixo no homem, isto é, da ignorancia e da
covardia ?
É o que passamos a analisar, auscultando de novo a
historia.

— 271 —
b) Religiüo, fenómeno intimamente associado as realizacSes da
inteligencia e da cultura humanas.

1. Longe de se prender á ignorancia e a covardia, a


Religiáo tem sido sempre poderoso estímulo da cultura: veri-
fica-se que as grandes conquistas da civilizagáo no decorrer
dos sáculos foram empreendidas primariamente por interésses
religiosos. Para ilustrar isto, os geógrafos apontam longa serie
de instituicóes culturáis que a Religiáo inspirou ou, ao menos,
fomentou pujantemente:

a) A casa. O domicilio do homem difere do ninho ou do antro


do animal irracional nao só por sua complexidade, mas principal
mente por ser em seus primordios um santuario religioso. Com
efeito, o tipo característico da casa entre os romanos, por exemplo,
se deve ao culto do fogo sagrado, logo junto ao qual residiam os
deuses Lares e Penates; para deíender dos profanos o logo santo,
os homens construiram em torno déle um enquadramento, no qual
aos poucos conceberam a idéia de estabelecer sua própria residencia.
Algo de semelhante se deu entre os gregos, os quais diziam que o
íogo havia ensinado os homens a construir seu domicilio. O fogo
parece ter entrado ñas casas em geral primeiramente a título reli
gioso; só posteriormente íoi dentro de casa utilizado para fins
domésticos (aquecer, cozinhar,...); ainda há tribos antigás que
deixam a cozinha com o seu fogo íora de casa, só introduzindo no
domicilio o fogo de caráter religioso. — Numerosos sao os vestigios
de creneas religiosas na arquitetura e na localizacáo das casas, na
disposigáo de portas, janelas e pogos. entre os diversos povos.
b) As cidades. Também a formagáo e a configuracáo das
cidades foram fortemente inspiradas por motivos religiosos. Era
em torno de um templo ou de um recinto de culto que se ia aglo
merando a populacáo de urna regiáo, dando assim origem a urna
aldeia ou cidade; Enéias, por exemplo, fundou a cidade de Lavinium
levando para o santuario do mesmo nome os deuses de Troia; na
Idade Media era em torno de urna igreja situada no alto de urna
colina, ou em torno de um mosteiro, que freqüentemente se fundavam
,as cidades (tenham-se em vista os nomes compostos com moutier,
mosteiro: Romainmoutier, Moyenmoutier, Noirmoutier...; em alemáo,
Münster...)

Observe-se também que desde cedo se íoram constituindo cidades


entre os egipcios, os mesopotámios, os cretenses, porque a religiáo
lhes favorecía; julgavam que os deuses queriam cidades; as grandes
cidades gregas nasceram em periodo de efervescencia religiosa. Ao
contrario, os germanos, os celtas, os albaneses só tardíamente conhe-
ceram cidades, porque a sua ideología religiosa nao as fomentava;
foram nao raro estrangeiros que entre éles fundaram as cidades.
c) A agricultura* Foi também muito estimulada por concepedes
religiosas, que atribuiam a certas plantas um valor sagrado ou urna
funcao qualquer no culto. Tal foi o caso da figueira, que na India
traz o nome de ficus religiosa; os gregos diziam que o figo era
símbolo de iniciacao a melhor vida. A oliveira gozou de semelhante
estima. — O opio, ao contrario, sendo proibido pelo budismo e o
islamismo, é cultivado com estranha irregularidade no Oriente.

— 272 —
d) Os animáis. Também nao poucos animáis tém recebido vene-
ragao religiosa. Em varios casos a passagem do animal selvagem
para o estado de animal doméstico se fez mediante o estado de animal
sagrado. O elefante por exemplo, antes de ser animal doméstico, era
animal sagrado na india. No antigo Egito, os gatos sagrados ¿ram
numerosíssimos (descobriram-se milhares de mümias désse felino)-
]ulga-se com probabilidade que forana domesticados por constituirem
objeto de culto religioso. Outros animáis entraram no convivio do
homem, a fim de honrarem a Divindade pela sua beleza- assim
a Ibis, no Egito; o paváo, na India; o gamo, no Japáo.
o ,.e.). A industria. Nao menos profunda é a influencia benéfica da
Reugiáo no desenvolvimento da industria. A fabricacáo de laticínios
por exemplo está em grande parte a servico do culto no Oriente; nos
templos do Tibete centenas de lamparinas ardem dia e noite alimen
tadas por manteiga; os «lamas» tém o rosto, as pernas e as máos
untados com manteiga. A fabricagáo do papel e do livro tém dependido
muito das necessidades do culto é da piedade; o mesmo se dá com
os textis e a metalurgia.
í¡a- í} ?i c°mércio; Est£ claro que as aglomeragóes vultuosas de
fiéis motivadas pela religiáo acarretam intensificagáo benéfica do
comercio; as primeiras moedas eram objetos estimados por seu
caráter ritual ou seu valor religioso. A contabilidade dos bancos e
escritorios tem suas origens nos templos da Mesopotámia, onde os
sacerdotes movidos por respeito sagrado, faziam ¿inventario de
tudo que dizia respeito ao culto e a0 sustente do1 templo. •
g) Os transportes, as viás e as pontes devem grande parte do
seu incremento ao fervor religioso de peregrinos e missionários. Nao
raro a afluencia. a determinado santuario provocou a abertura de
estradas, assim como a multiplicagáo e o aperfeicoamento de veículos
— Em particular, as pontes tém sido obras de sacerdotes oü de
pessoas dedicadas a Deus. Com efeito, os romanos pagaos, por exemplo
julgando que os nos tinham algo de sagrado, reservavam. a constru
ir,?9,, P™££ a Um gruP° esPecial de sacerdotes. Entre os cristáos
da Idade Media, era a candade que levava os fiéis a formar contrarias
construtoras de pontes: havia os «Irmaos Pontífices», aos quais se
devem as pontes de Avinháo e do Espirito Santo, sobre o Ródano

^J' Por. fim, note-se outrossim que no surto das artes está em
geral a mspiragao rehgiosa; as primeiras pegas literarias das antigás
modernas civilizares sao documentos religiosos; costumam estar
redigidos em poesia, que é a forma literaria mais correspondente ao
entusiasmo sagrado (tenham-se em vista, por exemplo, as otaras de

f^X£e?$SJEF")-A pintura e a escultura nao sao


Em suma, registra-se o seguinte : sempre que nos é dado
observar as origens ou as fases iniciáis de determinada cultura
verificamos que as suas diversas manifestacóes estáo todas
indistintamente fundidas com a Religiáo; é no seio materno
da Religiáo que elas nascem e por muito tempo sao nutridas.
Donde se vé que considerar a Religiáo como algo de pré-
-lógico ou como produto da covardia do homem significa, de
certo modo, Janear urna nota de desprézo sobre a própria cul
tura humana, que nasceu no seio da Religiáo. Tal posicáo

— 273 —
equivale a impossível associacáo de contrastes ou a verda-
deiro absurdo.

Vém a propósito aqui as observac5es de famoso geógrafo contem


poráneo :
«A maioria dos homens atesta sobre a terxa a existencia do
sobrenatural; a especie humana, em graus diversos, mas de maneira
geral, é religiosa; esta, alias, vem a ser urna de suas características;
o «homo faber et sapiens» é também primordialmente um «nomo
religiosus». Por obra déle, a térra está impregnada de religiosidade.
A pujante tarefa cultural dos homens nao foi efetuada sómente em
vista da instalagáo da especie humana sobre o globo, mas parte
muitas vézes grandiosa désses esforcos foi empreendida mais ou
menos diretamente a íim de proclamar ou exaltar a existencia de
seres sobrenaturais ou sagrados...
A religiáo nos aparece como um dos grandes íatores que trans-
íormam a face da térra e, em qualquer caso, como o motivo de
atividades característicamente humanas... A semelhanga do homem,
o animal (irracional) lutou contra os elementos da natureza; mas
o que sómente o homem fez, foi dar vulto á idéia da Divindade
sobre a face do globo. A Geografía religiosa vem a ser a Geografía
mais específicamente humana...» (P. Defíontaines, Géographie et
Religions. Paris 1948, 8.12).

2. Ainda um fato multo interessante merece atencáo.

Na extrema ponta meridional da Térra do Fogo, vivem duas


tribos irmas de indios, que tém. sido recentemente estudadas pelos
etnólogos: os Alakalufs e os Yamanas.
Os Alakaluís estáo em franca decadencia, prestes a se extinguir:
em 1953 a tribo contava apenas 61 membros, minados por sífilis,
doencas pulmonares e alcolismo, de sorte que se julga que dentro
de dez ou quinze anos estaráo totalmente extintos. Ésses indios
vivem numa inatividade quase absoluta; o govérno chileno Ihes dá
vestes e comida, sem prover ao seu desenvolvimente físico e inteletual.
Com isto váo-se embrutecendo cada vez mais; suas facuidades
superiores — a inteligencia e a vontade — quase nao se exercitam:
as expedigóes de caga se tornam cada vez mais raras; de vez em
quando fabricam urna canoa, um anzol ou urna cesta... Ora a regressao
íisica e cultural repercute na religiosidade désses homens; é muito
depauperada; as antigás tradigoes estáo quase por completo esque-
cidas; o culto, que exigiría certo esfórco, já nao é praticado. Tem-se
a impressáo de que a religiáo que éles ainda hoje manifestam, é
um mínimo resquicio daquilo que outrora possuiam; a crenca que
néles mais firme permaneceu, é a crenca no Além, onde sobrevivem
os mortos. Tal estado de coisas parece atestar que, com o embruteci-
mento do homem e de suas faculdades superiores, se atenúa o senso
religioso; quando o homem deixa de viver plenamente como homem,
isto é, como ser inteligente e ativo, depaupera-se-lhe a religiosidade.
Estado de coisas diferente verifica-se na tribo dos Yamanas,
irmá da dos Alakalufs. Também os Yamanas estao em via de
extincáo por motivo de epidemias que os acometem. Mas, em oposicáo
aos Alakalufs, nutrem urna concepto dinámica da vida e urna
hocáo severa dos deveres do homem. Lutam ardorosamente pela

— 274 —
existencia cotidiana; um déles declaxou a um dos seus exploradores
recentes, o etnólogo austríaco Gusinde: «As coisas nao sao como
desecaríamos que fóssem. Os homens tém o dever de trabalhar sem
descuido... Nao há alegría sem esfdrco previo».
E qual seria o tipo de religiáo désses indios?
Já o citamos atrás. Acreditam num Ser Supremo, que nao come
nem bebe (é espirito, dir-se-ia em linguagem íilosófica) e que reslae
por cima da abobada celeste, além das estrélas; chamam-no Wataui-
newa ou também Hitapuan, «Nosso Pai», ou ainda «o Forte, o mais
Alto, o Habitante do Céu». É o tutor dos bons costumes e da iustica;
a doenca e a morte sao manifestagóes do seu desagrado. O melhor
meio de atrair a sua benevolencia é viver dignamente, ou seja respei-
tando as tradigSes moráis da tribo.
Certamente estas crengas nao lhes íoram incutidas pelos cristáos,
pois fazem questáo de as distinguir de idéias novas que lhes transmi-
tiram os missionários; o nome de Deus está ligado a antigás formas
rituais e a cerimónias de origem evidentemente local; o vocabulario
religioso consta de termos arcaicos da língua désses indios...

Éste fenómeno bem mostra que a Religiáo, longe de ser


produto do homem «pré-lógico» ou bruto, é expressáo da in
teligencia ; desde que esta se manifesté, é religiosa ; por sua
vez, a Religiáo excita e desenvolve as faculdades superiores
do homem; quando estas^degeneram, também a Religiáo defi-
nha (as observares aqui'consignadas se devem a quem pas-
sou cinco anos de estudos na Térra do Fogo, de íá voltando
em 1953 : J. Emperaire, Les nómades de la mer. Paris Galli-
mard, collection «L'espéce humaine», 1955).
Demos agora um passo a mais.
Visto que a Religiáo é manifestado típica do homem,
pergunta-se : nao teráo sido o fetichismo e o politeísmo as
primeiras afirmacóes religiosas da historia, de modo que só
aos poucos os povos chegaram a professar o monoteísmo,
como ensinavam os autores evolucionistas do sáculo passado ?
Tenha a palavra a tal respeito a ciencia dos nossos dias.

c) O monoteísmo oh crenca num Deus único e pessoal, forma


primordial da Keligiáo.

Tal conclusáo decorre da observacáo dos povos recensea-


dos ás págs. 270/1 déste fascículo, povos tidos como represen
tantes, ainda hoje subsistentes, da primeira fase da cultura
humana.
1. Contrariamente ás teorías do séc. XIX, verifica-se
que essas tribos professam a crenga num só Deus bom, Autor
de tudo e todos, a quem os homens devem obediencia e pres-
tagáo de contas dos seus atos. Esta assergáo está hoje em
dia assentada sobre denso material colhido pelos exploradores.

— 275 —
A título de exemplo, seja recordado o caso dos Yamanas breve
mente descrito ás págs. 274-5 déste fascículo.
i Ttn!jf"se ?,m yista «utrossim a tribo dos pigmeus Efés, estudada
pelo etnólogo Paulo Schebesta, o qual relata um diálogo seu com dois
dos anclaos do clá:
«Quem íéz o que nos cerca?», perguntou o europeu.
Calaram-se os aborígenes. Mas o explorador continuou-
«Porque oferecemos as primeiras frutas a Toré?>
A nova pergunta foi suficiente para provocar a manifestacáo. de
proposicñes multo caras áquela gente. Respondeu um dos interpelados:
«Tudo pertence a Toré. Toré tudo fez. Toré fez as árvores Fez
Pucopuco (o ancestral da tribo); Toré vé tudo; Toré nos vé; ouve
o que dizemos. Ele sabe de todo o mal que se comete; castiga os
culpados, e até mesmo os magos, pois Toré fez também os magos»
A seguir, o velho falou do poder de Taré sobre o raio, a morte
as almas etc. Cf. P. Schebesta, Die Bambuti, die Zwerge vom
Congo. 2.933 •
Outro episodio' significativo é narrado por M. Briault, que passou
qumze anos entre os negros Pamués, habitantes do Gabáo francés
(África). Estes aborígenes cultuam um Deus só, denominado Nzame
(da raiz bantu mba, que significa «fazer, arrumar, plasmar»). Deus
assim aparece, na espiritualidade daquela gente, como o Grande
Artífice, do qual dizem os seus devotos: «É aquéle que nos fez
nosso Pai».
Um dia Briault sugeriu a um grupo de maiorais da térra a idéia
de existirem dois deuses supremos; responderam, porém, decidida
mente:
«Dois deuses iguais, isso é coisa impossivel; fariam a guerra um
ao outro, e o mundo estaría destrocado».
Há aqui auténtica sabedoria em vestes muito simples: os con-
ceitos de dois deuses iguais pugnam um contra o outro excluindo-se
iriutuamente.
«Deus terá í¡m? Morrerá um dia?»
— «E quem colocarias em seu lugar?»
Esta resposta equivale a dizer que Deus é o Ser absolutamente
necessano.
Os selvagens acrescentavam: «Nzame nao é um homem como
nos». E como explicavam isto? Ardua questáo, sem dúvida.. Afirma-
vam sentir a presenga de Nzame em toda a parte, embora ele
permanega invisivel; comparavam-no ao ar, sem o qual nenhum ser
pode viver, o qual (ar), porém, nao tem figura sensivel. Asseguravam
também que Deus é soberanamente poderoso e bom, nao podendo
ser constrangido por encantamentos nem conjuragóes mágicas Merece
respeito e piedade. Cf. M. Briault, Polythéisme et fétichisme
París 1928.
Encontram-se em grau variável entre essas tribos primitivas
elementos de magia e supersticáo; parecem, porém, importados de
outros povos, seus vizinhos mais adiantados, com os quais os infra-
-civilizados tém que entrar em contato, para se prover dé fogo
(quando necessário) ou para realizar certo comercio. Verifica-se,
contudo, que, quanto mais rude e fechada em si é determinada tribo,
tanto mais pura e simples é a sua religiao, permanecendo fiel ao
monoteísmo.

2. As observagóes até aqui propostas sugerem mais esta


conclusáo : foi com o progresso da cultura que o homem co-

— 276 —
meeou a deturpar o seu monoteísmo inicial, caindo nos tipos
de religiáo grosseiros que os evolucionistas julgavam ante
riores á crenca num só Deus.

Entende-se bem tal roteiro da historia das religioes. A medida


que se desenvolve a dvilizagáo, o homem entra em contato com a
natureza e seus misterios; percebe a sua dependencia frente aos
grandes íatores da prosperidade e da desgraca; o sol, a lúa a térra
fecunda, a chuva, o trováo, etc. Dal surge-lhe a tentacáo de transferir
para estas criaturas o conceito de Deus, o qual é entáo esfacelado.
Mais aínda: para explicar a diversificacao da religiáo inicial,
levar-se-á em conta o seguinte. Todo homem traz em si duas aspira-
g5es espontáneas: a de saber e a de poder ou dominar. Ora a religiáo
primitiva era muito simples, ensinando ao homem apenas o essencial
a respeito de Deus e da vida moral; em conseqüéncia, o desejo de
saber ou de explicar os misterios levou muitos dos antigos a tentar
suprir, com o bom senso ou com a fantasía, as lacunas deixadas pela
sua crenca religiosa; assim tiveram origem os mitos, historias fan-
tasistas concernentes á Divindade e aos homens, ñas quais o conceito
de Deus é geralmente rebaixado. — Outros Individuos, impelidos pela
ambigáo ou pelo desejo inato de dominar, comecaram a explorar a
Religiáo (fator certamente poderoso) para obter prestigio junto aos
seus semelhantes; apresentaram-se como detentares de segredos
(fórmulas e artes) capazes de forcar a Divindade a intervir em favor
dos homens. Tais sao os magos, que, como se vé, também derrogam
aos conceitos de Deus e ReligTáo, pois pretendem colocar a Divindade
a servico do homem.
Recolhendo-se os dados propostos na presente explanagáo, pode-se
reconstituir a evolucáo da cultura humana e dos fenómenos religiosos
conforme o quadro publicado em «P. R.» 13/1959, qu. 1.

Em conclusáo, dir-se-á: a Religiáo, longe de ser artificio


convencional, é táo espontánea quanto espontáneo é o brado
do homem em demanda de um termo que nao aprésente
lacuna nem deficiencia : o Absoluto.
E nao poderia ser váo ésse brado ?... vá a Religiáo ?
Tenha-se em mente a agulha magnética de urna bússola:
agita-se irrequieta em torno do seu eixo até encontrar o norte.
E porque gira ? Porque na realidade há fora déla um polo
que a atrai e a impede de repousar enquanto nao se dirija
para ele. Assim também há fora da alma humana um polo
que a atrai incessantemente; provoca nela avidez e sede,
garantindo-lhe, porém, repouso e paz, desde que se dirija para
Ele mediante fiel observancia religiosa.

«Através de todas as suas aberragfies, o espirito humano sempre


se orientou para a Divindade. Houve quem de tempo em tempo
tentasse imprimir-lhe a direcáo oposta. Contudo ele sempre protestou
e retomou, logo que o p&de, a sua orientacSo habitual. O espirito
humano, á semelhanca da agulha magnética, poderia dizer-nos no
caso: 'Tal é a minha natureza!'» (A. Réville Prolégoménes de
l'histoire des Religions 90).

— 277 —
" L. H. A. (Sao Paulo) :

2) «Que se entende por 'Esoterismo' ?»

«EL CRACK» (Poloni) :

3) «Que dizer das fotografías do pensamento apregoa-


das por Baraduc e outros médiuns do século passado ?»

«Esoterismo» é a denominaeáo dada ao sistema que re


serva suas doutrinas e práticas «aos de dentro» (esóteroi, em
grego), ou seja, a iniciados ou adeptos rigorosamente selecio-
nados. Distingue-se do «Exoterismo», sistema que comunica
suas proposicóes «aos de fora» (exóteroi) ou ao grande
público. Conseqüentemente o esoterismo também é chamado
ocultismo, termo proposto e defendido por Papus (tl922).
Na verdade, o esoterismo ou ocultismo abrange hoje em dia
diversas modalidades ou escolas (a Cabala, a Gnose, a Astro-
logia, a Teosofía, a Rosa-Cruz, correntes espiritas e macóni-
cas...), as quais professam um fundo comum de doutrinas
secretas ; essas doutrinas, conforme os esotéricos, se devem
a «revelagóes sobrenaturais» e destinam-se (á semelhanca da
dinamite) a produzir efeitos maravilhosos, dando ao homem
o poder sobre si mesmo, sobre a natureza e sobre os aconte-
cimentos futuros. Ora, justamente porque o vulgo seria capaz
de fazer mau uso de táo valiosos conhecimentos, os esotéricos
dizem só os manifestar a pessoas rigorosamente provadas,
recorrendo, além do mais, a fórmulas simbólicas e obscuras.
Mais precisamente, os esotéricos alegam que as ciencias
própriamente ditas estudam os fenómenos visíveis e experi
mentáis, enquanto éles pretendem analisar o conjunto de
energías invisíveis da natureza, de Deus e do homem, adqui-
rindo um conhecimento muito mais profundo de tudo que nos
cerca. Conseqüentemente os ocultistas julgam possuir em
plenitude a verdade que as ciencias, e também as religióes,
só esfaceladamente atingem.
Abaixo trataremos sucessivamente do histórico, das prin
cipáis doutrinas e, por fim, do significado do esoterismo.

1. O histórico do esoterismo

Pode-se dizer que o esoterismo, como tendencia do homem a


cultivar doutrinas e práticas secretas, sempre existiu. As civilizagoes
niais antigás (da India, da Mesopotámia, do Egito...) apresentam
seus documentos de caráter ocultista. No decorrer dos séculos, crencas
e ritos désse género se foram avolumando em conseqUéncia de

— 278 —
combinac6es com teses da filosofía grega assim como da literatura
judaica e crista (ou seja, com a Biblia Sagrada).
Durante a Idade Media, o ocultismo tomou aspecto bem marcante
na chamada Cabala (cf. «P. R.» 10/1958, qu. 12); contudo no ambiente
da Europa crista era geralmente repudiado por parecer maquinagao
do demonio. Do séc. XV em diante, ou seja, com o surto do «Huma
nismo», o esoterismo tomou nova importancia; a tendencia dos renas-
centistas a cultivar os valores antigos fez que mais e mais apreciassem
as proposic5es secretas do ocultismo, tidas como ensinamentos de
veneráveis civilizagdes orientáis. Desde fins da Idade Media apare-
ceram no cenário dos eruditos alguns vultos que procuravam
combinar entre si ciencia e religiáo (ou mística) a fim de dar a
exphcacáo mais cabal possível aos misterios do mundo: tais eram
por exemplo, Cornélio Agripa (1486-1536), autor da «Filosofia oculta»
o qual reatou a tradicáo de Pitágoras e Platáo instruidos pelos «adivi-
nhos de Ménfis»; Paracelso (1493-1541), que, junto com a fama de
«saber tudo», obteve a gloria de haver descoberto o «segrédo da vida»
(por isto o seu nome originario Filipe Teofrastes Bombart foi mudado
para Aureolo Paracelso, o divino personagem); o sapateiro Jacob
Boehme (1575-1625), o marqués Claudio de S. Martinho (1743-1803),
o conde de S. Germano, José Balsamo, também chamado Cagliostro,
no séc. XVHI; particularmente famoso tornou-se Fabre d'Olivet (1767-
-1825), que na sua obra «La langue hébraique restituée» pretendeu
reconstituir as origens da linguagem, reconstruir o edificio do
idioma hebraico primitivo, e, mediante códices encontrados nos san
tuarios do Egito, penetrar^.,6 sentido profundo da cosmogonía de
Moisés (Génesis c. 1).
Finalmente é tido como pai do ocultismo contemporáneo um
certo Elifaz Levi, cujo nome verdadeiro era Alphonse-Louis Constant
(1810-1875), sacerdote apóstata (algumas fotografías o apresentam
sobre o leito de morte, trazendo um grande crucifixo sobre o peito).
Merecem aínda especial mengáo Estanislau de Guaita (1860-1899),
historiador do esoterismo, e Gérard Encausse (tl922), dito «Papus»,
que procurou exprimir os ensinamentos do ocultismo em linguagem
científica moderna.
Atualmente no Brasil o ocultismo existe em múltiplas entidades
«científico-religiosas» de caráter secreto ou semi-secreto (instituigóes
espiritas, rosa-crucianas, teosóficas, magónicas, astrológicas caba
listas, etc.).
Após estas ligeiras observagóes de historia, faz-se mister consi-
derarmos

2. Os principáis ensinamentos do ocultismo

O ocultismo, sob as variadas tonalidades que tomou no decorrer


da sua historia, apresenta estrutura doutrinária bem característica,
a qual pretende fornecer a chave de todos os problemas. No esoteris
mo, dir-nos-iara os seus adeptos, unem-se as teses e antiteses de
todos os sistemas filosóficos e religiosos, dando urna síntese técnica
mente chamada «mátese». Podemos agrupar sob tres grandes títulos
as principáis proposigfies ocultistas.

1. Monismo ou unidade fundamental: «O que existe,


existe na unidade considerada como principio, e volta á uni
dade considerada como fim. Um está em um, isto é, tudo está

— 279
em tudo». Estas afirmagóes de Elifaz Levi signifícam que
todos os seres visíyeis e invisíveis constituem uma única rea-
lidade, que se esmiuga e fragmenta no mundo, tomando múl
tiplos aspectos parciais.
Disto decorre ¡mediatamente que nao existe um Deus
distinto do mundo. O Deus de que fala o esoterismo, é o
eterno «Vir a ser», substancia da qual tudo procede por ema-
nagáo e á qual tudo volta: tal substancia toma no Ocidente
moderno o nome de Luz, correspondendo ao Akasa dos hindus,
ao Aor dos hebreus, ao Fluido que fala de Zoroastro, ao Te-
lesma de Hermes, ao Azoth dos alquimistas, á Fórca psíquica
de Crookes...
Ulterior conseqüéncia do monismo é que a materia sen-
sivel, revestindo diversas aparéncias, pode ser convertida de
u'a modalidade para outra. Daí, entre os ocultistas, o cultivo
da Alquimia ou da arte que tenta transformar os diversos
metáis em ouro, metal perfeito. Os metáis, alias, sao seres
vivos, ensinam os esotéricos ; os metáis inferiores se acham
numa fase de desenvolvimento incompleto, que pode ser le
vado a termo consumado; basta, para isto, encontrar um
fermento adequado ou a «pedra filosofal», que leve á matu-
ridade a natureza dos corpos. Os alquimistas tinham suas
receitas secretas para obter a pedra filosofal, mediante a qual,
diziam, era muito fácil conseguir a transmutagáo dos metáis
imperfeitos.
Da proposágáo de que só há uma substancia no mundo,
deduz-se outrossim que só há uma doenga do corpo humano e
só um remedio; o organismo constituí um só todo, cujas partes
sao solidarias entre si. Por isto, ao mesmo tempo que pro-
curayam a pedra filosofal, os alquimistas iam ao encalgo do
«elixir da longa vida» ou do «ouro potável», que assegurasse
ao corpo humano a imortalidade. Outros ocultistas, á frente
dos quais está Paracelso, visam dominar o organismo e curar-
-lhe as doengas mediante influencia sobre o pensamento do
enfermo (os esotéricos em geral consideram o pensamento
como uma das mais poderosas fórgas do universo). O pensa
mento do homem condensa em si tudo que há de divino e de
humano no mundo; por conseguinte, dirigir o pensamento de
alguém e canalizar as suas energías vem a ser, para o ocultista,
o mesmo que dominar o corpo inteiro dessa pessoa.
2. O homem, miniatura do universo. Dentro do conjunto
dos seres visíveis, toca lugar de especial realce ao homem,
pois éste é tido como compendio e análogo do grande mundo,
ou como Microcosmos dentro do Macrocosmos; existe, pois,"
estrita correlagáo entre cada elemento do homem e o seu

— 280 —
análogo no universo ; ou melhor : o homem contém em si
todas as energías dos seres inferiores ; reciprocamente cada
animal irracional nao é senáo a materializacáo de uma energia
latente no homem ; conseqüentemente éste pode apresentar
em si as reacóes típicas do trigo, da abelha, da formiga, do
boi, etc.
Conforme os" mestres ocultistas, o homem se compóe de
tres partes essenciais: o espirito (elemento espiritual), o corpo
(elemento material), o mediador ou corpo astral, perispírito,
ectoplasma, por yézes também chamado alma (elemento fluí-
dico), que participa tanto da natureza do corpo como da do
espirito. Désses tres elementos, o que mais interessa aos eso
téricos é o terceiro ou o corpo astral, pois, o corpo material,
éles o entregam ao estudo dos anatomistas, ao passo que o
espirito é o objeto das especulares da psicólogos e filósofos.
O corpo astral desempenha funcóes de máxima importancia;
com efeito, compóe-se de luz, em parte, fixa e, em parte, volátil
(fluido magnético); emite conseqüentemente irradiacóes, que
criam em torno do individuo uma atmosfera própria ou «aura
astral», a qual é o prolongamento ou até mesmo a duplicata
da pessoa ; essa aura pgde ser de simpatía, afinidade, ou de
antipatía, repulsa, para com outros individuos ; aos olhos dos
iniciados, que gozam de sentidos mais apurados, a aura se
torna perceptível ou colorida. Tal fluido magnético permite a
cada sujeito agir á distancia, movendo corpos ou influenciando
fenómenos que aos olhos do vulgo parecem ou meras coinci
dencias ou milagres ; em geral é gracas as propriedades do
corpo astral (principalmente ao magnetismo) que os ocultistas
asseveram tomar conhecimento de coisas passadas e futuras,
experimentar sentimentos e pressentímentos alheios, inter
pretar sonhos, passar pelo éxtase profético, etc.

Segundo alguns esotéricos, o espaco está povoado de u'a multidSo


de seres, pois todos os nossos pensamentos e desejos emitem uma
imagem de si, a qual passa a vaguear nos ares; caso algum désses
seres erráticos venha a pousar no cerebro de alguém, diz-se que esta
pessoa recebeu uma sugestáo, uma inspiracáo boa ou má...; tal
idéia entáo «está no ar» (sem metáfora), sendo capaz de afetar simul
táneamente muitos cerebros...

3. O visível, manifestacao do invisível. Aínda como con-


seqüéncia de que só há uma substancia, o ocultista ensina
que todos os seres materiais sao representacóes dos imateriais.
Isto nao quer dizer que as coisas visíveis sejam meros sinais
das invisíyeis, mas, sim, que a realidade visível é a própria
■'realidade invisível contemplada sob outro aspecto ; essa única
realidade é materia para os sentidos físicos e é espirito para

— 281 —
os sentidos astrais. Por conseguinte tudo que se vé, há de ser
considerado como símbolo do que nao se vé, e na escola
esotérica todo conhecimento profundo se obterá por via do
simbolismo.

A tese de que entre o símbolo e o objeto simbolizado há equiva


lencia explica o valor que o ocultismo atribuí, por exemplo, aos
nomes: estes nao designam apenas os respectivos objetos nomeados,
mas participam da esséncia dos mesmos; assim os caracteres hebraicos
que compSem o nome Yaveh indicam, por seu número e sua forma, a
natureza mesma de Deus; lendo de tras para diante algum nome
sagrado, o leitor fica conhecendo o poder maléfico oposto ao poder
benéfico nomeado.

As mesmas premissas elucidam outrossim o aprego que


o esoterismo consagra as imagens : nao raro se véem nos am
bientes ocultistas estranhas figuras, em que a silhueta de um
homem ou de membros humanos aparece enquadrada dentro
de triángulos e círculos, serpentes, cruzes, espadas, flechas,
caracteres hebraicos, números, etc.; tais símbolos sao tidos
como principios de beneficios ou maleficios para o sujeito que
éles acompanham. Visto que toda imagem é algo do objeto
que ela representa, diz-nos o ocultista que agir sobre ela é
agir sobre o próprio objeto representado ; daí a arte esotérica
de maltratar urna imagem (ou até a escrita) de urna pessoa
para danificar a própria pessoa odiada ; acontece por vézes
que o poder representativo da imagem é reforcado pela inser-
cáo, nessa figura, de cábelos, ponías de unha ou de algum
outro objeto que tenha pertencido ao sujeito hostilizado.

A analogía vigente entre os seres é, alias, o único fundamento


sobre o qual se apoiam muitas afirmagóes dos ocultistas; baseados
nela, afirmam, por exemplo, que a cruz de Cristo já era conhecida
na India desde tdda a antigüidade e que a inscrigáo INRI designava
os quatro elementos primordiais da natureza, segundo o vocabulario
dos orientáis: Iam = água; Nour = fogo; Ruach = ar; Iabeshah =
= térra. Por motivo semelhante, ou seja, em vista da analogia, os
esotéricos identificam os símbolos dos quatro Evangelistas (o boi,
atribuido a S. Lucas; o leáo, a S. Marcos; a águia, a S. Joáo; o homem,
a S. Mateus) com as quatro características da esfinge e, por conse
guinte, do ocultismo egipcio: a esfinge tem, sim, flancos de touro,
garras de leáo, asas de águia, e cabeca de homem. O boi seria, na
ideología do esoterismo, o símbolo do temperamento linfático, cuja
nota típica é calar-se; o leáo seria o símbolo do temperamento
sanguíneo, cuja acáo própria é ousar; a águia seria o símbolo do
temperamento nervoso, que se traduz pelo «querer»; por fim, a
cabeca humana seria o símbolo do raciocinio, que domina os impulsos
instintivos e se manifesta pelo saber. Pois bem, dizem os esotéricos,
estas atitudes (calar-se. ousar, querer, saber) sao quatro exigencias
básicas do ocultismo, como os quatro Evangelhos sao quatro livros
fundamentáis do Cristianismo...

— 282 —
Após a exposicáo sumaria das principáis doutrinas, passemos
ímalmente a

3. Üm juízo sobre o ocultismo

1. O esoterismo é essencialmente monista ou panteísta


Ora em «P.R.» 7/1957, qu. 1 foi demonstrado que tal posicáó
filosófica se opóe totalmente á sá razáo, vindo a ser simples-
mente absurda ou ilógica. É o que desacredita radicalmente
o esoterismo perante a inteligencia humana. A respeito das
modalidades do ocultismo, veja-se «P.R.» 10/1958 qu 12
(Cabala); 16/1959, qu. 2 (Astrologia); 17/1959, qu. 1 (Teo
sofía); 2/1958, qu. 1 (Rosa-Cruz); 3/1958, qu. 3 (Antro-
posofia).
2. Em particular, quanto á existencia do carpo astral
ou do perispírito, um elemento que nao seja própriamente
nem corpo nem espirito, mas participe da natureza de ambos,
é inconcebível; o corpo ou a materia (ainda que fluida) é
algo de quantitativo, tendo suas partes justapostas, seu peso
e suas notas sensiveis, ao passo que o espirito vem a ser justa
mente a contradicáo (náo/sómente o contrario) dessas nota3;
ora entre dois térmos~*'contraditórios (constar de partesí
peso,... e nao constar de partes, peso... i nao há meio-térmo,
ensina a Lógica. Por conseguinte, todo ser é simplesmente ou
corpo ou espirito.
Ademáis os progressos da ciencia contemporánea leva-
ram os estudiosos a explorar os fenómenos chamados «psi-
-gama» e «psi-kapa», fenómenos que supoem na alma humana
faculdades de conhecer objetos á distancia, independentemente
das categorías de tempo e espago ; cf. «P.R.» 13/1959, qu. 8,
onde se encontra um relato sobre o fenómeno «psi-gama*í
também chamado «percepcáo extra-sensorial». As novas pes
quisas levam a admitir na mesrna alma que é sede dos sen
tidos externos e internos até hoje conhecidos, a existencia de
nova faculdade de conhecimento, cujo funcionamento ainda
nao é de todo claro, mas que nada tem a ver com alguma
duplicata do espirito, ectoplasma ou perispírito. A ciencia
moderna dispensa por completo o postulado ilógico do pe
rispírito.
Mas, dir-se-á, como julgar as pretensas fotografías do
pensamento e do ectoplasma ?
As principáis experiencias feitas no sentido de fotografar
o perispírito ou o fluido vital se devem a autores do século
passado, como Papus, Reichenbach, Luys, o coronel de Rochas,
Narkiewiez-Iodko, Baraduc...; estes experimentadores apre-
sentaram ao mundo urna serie de placas fotográficas e de

— 283 —
teorías explicativas, que foram submetidas a exame princi
palmente por Adrien Guébhard, professor agregado de Física
na Faculdade de Medicina de París, e por Guilherme de Fon-
tenay, vice-presidente da Sociedade Universal de Estudos Psí
quicos. Os resultados do inquérito, criteriosamente levado a
éfeito, foram totalmente contrarios á teoría do perispírito:
verificou-se que parte das figuras ou fotografías era produto
de astuta mistificagáo dos respectivos operadores; outra parte
devia-se a erros de técnica fotográfica : sim, alguns sinais
(manchas brancas ou escuras em forma de nuvens, de pontos
ou de estrélas, faixas luminosas simétricas e náo-simétricas)
impressos ñas chapas fotográficas eram tidos como vestigios
do perispírito, quando na verdade deviam ser explicados como
efeitos de meras reagóes físico-químicas nao previstas ou da
intervencáo de causas mecánicas estranhas ao processo e nao
previamente removidas (Guébhard, por exemplo, averigüou
ao menos urna dezena de causas meramente físicas capazos
de produzir auréolas sobre chapas fotográficas ; também lem-
brou que se podem obter raias negras muito regulares e simé
tricas sobre urna chapa fotográfica desde que essa chapa,
durante o processo de revelagáo, seja molhada antes de ser
imergida na solugáo devida).

Tenha-se em vista a ampia documentag&o publicada a respeito por


E. N. Santini, Photographie des effluves humains. París, Mendel;
M. J. Bossavy, Les Photographies des prétendus Eífluves humains.
Le Mans 1900.
A. Guébhard, Le Vrai Fluide vital, em «Revue scientifique» de
15/2/1898; Sur les prétendus enregistrements photographiques du
Fluide vital em «Vie scientifique», nos. 106. 108, 110 de 1897; Photo
graphie sans lumiére 1898.
G. de Fontenay, La Photographie et l'étude des Phénoménes
Psychiques. París 1912.

Os defensores do perispírito protestaram contra os resul


tados obtidos por seus contraditores. O fato, porém, é que de
entáo por diante filósofos e dentistas deixaram de falar de
«fotografías do ectoplasma» ; nao se citam mais casos congé
neres ; o tema carece de valor científico.
3. O ocultismo afirma as suas proposigóes sem apresen-
tar os respectivos argumentos ; baseia-se, antes, sobre a ana-
logia que deve unir todos os elementos, visíveis e invisíveis,
entre si.
Que dizer désse modo de persuadir ?
Impóe-se reconhecer que compara$áo nao é razao, ana
logía nao é lógica; semelhanga extrínseca nao pode ser to
mada, sem mais, como sinal de afinidade intrínseca.

— 284 —
Em particular, o íato de que a cruz tenha sido estimada lora
do Cristianismo como simbolo de salvacáo, está longe de significar
dependencia da concepgáo crista em relacáo as íilosofias heterogéneas;
sabc-se que o aprego tributado pelos cristáos á cruz se deve a um íato
histórico bem determinado (a condenacáo de Jesús ao patíbulo da
ignominia), íato éste que certamente é independente das idéias
orientáis concernentes ao simbolismo da cruz.
Quanto á analogía estabelecida entre a inscricáo INRI e os
quatro elementos fundamentáis do universo, é totalmente arbitraria,
pois que INRI supóe a expressáo latina «lesus Nazarenus Rex
Iudaeorum* (Jesús de Nazaré, Rei dos Judeus), ao passo que os
vocábulos designativos dos quatro elementos do mundo seriam, no
caso, derivados da nomenclatura oriental. — Tal modo de fazer
derivacóes etimológicas é tao arbitrario quanto o que usava o humo
rista trances Touchatout no século passado; queria éste autor, por
exemplo, atribuir a origem do nome «automedonte» (automédon, em
francés), cocheiro, á invencáo (ocorrida nos inicios do séc. XIX) do
cabriolé, carro leve de duas rodas puxado por um cávalo, cujo
cocheiro ocupava a extremidade posterior da carrocería. Na verdadé,
«Automedonte» é nome proveniente da mitología grega, onde designava
o personagem condutor do carro de Aquiles...; passou a significar
todo e qualquer cocheiro, sem a pretensa relacáo etimológica com os
cabriolés!
A distribuicao dos quatro símbolos (homem, leao, boi e águia)
pelos quatro Evangelistas nao é, de modo nenhum, proposta pela
S. Escritura; deve-se exclusivamente á exegese que de Ezequiel
ele Apocalipse 4,6-8/ íizeram os escritores cristáo dos
primeiros séculos. Seria váo, por conseguinte, na base dessa inter-
pretacáo periférica (embora hoje inveterada entre os cristáos) querer
deduzir alguma afinidade entre os Evangelhos e a esfinge esotérica
do Egito.

Para dar as suas doutrinas a autoridade que o raciocinio


nao lhes confere, os esotéricos apelam para fontes de saber
antiqüissimas, como seriam os arquivos dos sacerdotes ou dos
sabios da China, da India, do Egito, etc. Em váo, porém. A
ninguém é dado abordar essas pretensas fontes, a fim de ave
riguar o seu valor histórico.
Em última análise, após reflexáo serena, o estudioso pa
rece obrigado a afirmar que o gigantesco edificio do ocultismo
nao se deriva de algum manancial objetivo de sabedoria, mas
constituí urna das mais espontaneas projecóes da fantasía
humana. Com efeito, todo homem tem consciéncia de ignorar,
e ignorar muita coisa ; nao obstante, possui inelutável sede de
saber ou de devassar os misterios da natureza que o cercam
(donde vem o mundo ? Para onde tende ? Como dominaremos
os elementos do universo ?, etc.). Nao podendo penetrar nes-
ses arcanos únicamente pela fórga do raciocinio, o homem
se senté naturalmente tentado a forjar a chave que lhe abra
os segredos do mundo; dá entáo livre curso á imaginagáo e,
mediante esta, concebe um amalgama de teorias incapazes de
resistir a serio exame da razáo ; na falta de lógica, é a ana-

— 285 —
logia ou a semelhanca periférica dos seres que o guia. Tal ati-
tude pseudo-filosófica poderá ser, em boa parte e de maneira
talvez inconsciente, inspirada pela megalomania que afeta o
homem ambicioso; sem dúvida, parece enaltecer-se aquéle
que, conforme os seus dizeres, foi julgado digno (pelos deuses
ou por seres invisíveis) de gozar de urna ciencia nao fran
queada ao vulgo. Colocado entáo diante dos seus textos sa
grados— «os mais antigos que existam no mundo !■...»—, o
esotérico os folheia e disseca, conta as respectivas letras e
as soma, observa e compara as formas dos caracteres, etc.,
esperando que dessa trituragáo do texto jorre a grande luz
que ilumine as trevas onde está submerso o mundo. Tal arte
ou «febre», em que a imaginacáo tem papel preponderante,
apaixona o individuo, o qual depois de certo tirocinio já se
acha «embriagado», nao aceitando em absoluto o controle da
razáo que um amigo lhe venha a oferecer. Nao é, pois, em
váo que os grandes mestres do ocultismo admoestam o jovem
discípulo a cingir os rins e fortalecer o coracáo antes de co
locar o pé na térra fatal (no setor do esoterismo); muitos, com
efeito, foram encontrar nessa térra a demencia ou o suicidio.
É, alias, assim que desmoronam os mais imponentes edifi
cios fundados sobre os sonhos da megalomania humana. Sem
dúvida, existem profundos misterios na natureza; seja, porém,
o homem sobrio em relagáo a éles e nao pretenda afirmar, a
respeito, aquilo que o Autor da natureza, Deus, nao lhe tenha
revelado!

II. DOGMÁTICA

EVANGÉLICO (Guapimirim):

4) «Será que os santos aparecem realmente aos homens


na térra ? Como se poderia dar isso ?»

L. F. S. (Rio de Janeiro) :

5) «Podaríamos comunicar-nos com os morios ?»

Abordaremos primeiramente a questáo da realidade das aparicóes,


para depois averiguar as maneiras como se possam dar. Os principios
enunciados se aplicaráo á questáo da comunicacao com os mortos.

1. Aparigóes t realidade ou alucinaeao ?

1. Por aparicSo entende-se, em linguagem teológica, toda mani-


festacSo sensível de urna pessoa ou de um objeto cuja presenca, ñas
circunstancias em que ela se verifica, nao poderia ser explicada pelas

— 286 —
leis comuns da natureza. Dado, por exemplo, que Deus, um anjo ou
urna alma de deíunto se mostrem sob sinais sensiveis tem-se o que
se chama urna aparicao.

2. A possibilidade de tais fenómenos está incluida den


tro da possibilidade do milagre. Ora nao há dúvida de que
o Autor da natureza, Deus, pode, por si ou por alguma criatura,
abrir excecóes as leis que £le mesmo impós aos elementos,
desde que, para tanto, naja motivo proporcionalmente impor
tante ; por conseguinte, Deus poderá de modo especial mani
festar sua presenga aos homens na térra, usando de algum
sinal que impressione os sentidos ; poderá outrossim permitir
que um espirito criado se revele de maneira sensível. Está
claro que essas intervengóes extraordinarias, longe de se rea
lizar a capricho, obedeceráo sempre a um plano sabio tra
gado pela Divina Providencia.
E qual seria a finalidade proporcionalmente importante
em vista da qual o Senhor permitiría aparigóes ?
Tal finalidade há de ser a santificagáo dos homens, a qual
é inseparável da gloria de Deus. No decorrer da historia, o
Senhor, levando em conta a debilidade da mente humana
frente á verdade, dignoú-se periódicamente corroborar a sua
Palavra mediante testemunhos sensiveis. Até hoje é de crer
que'o Criador, mediante tais sinais, queira despertar nos tibios
a chama da fé e avivar nos justos o ardor da caridade ; um
acontecimento impressionante, um choque psicológico podem
provocar a mudanga de vida de urna criatura (tais foram,
sim, os casos de Sao Paulo, Sao Joáo Gualberto, Sao Norberto
e outros justos).
Como se entende, as aparigóes constituiráo sempre um
dom extraordinario, que a Providencia de Deus nao está obri-
gada a conceder nem mesmo aos seus mais íntimos amigos ;
por conseguinte nao sao dispensadas segundo leis que de an-
temáo se possam estabelecer, nem sao o efeito do desejo das
criaturas, por mais piedosas que sejam estas ; muito menos,
o efeito de artes e preces semelhantes as que se efetuam em
sessóes espiritas. Trata-se de gragas excecionais e contingentes.
Repitamo-lo: Deus nao realiza milagre sem motivo grave, pro
porcional á excegáo que tal milagre significa na ordem da
natureza.
3. Quanto á rcalidade das aparigóes, distingamos entre
as que a Sagrada Escritura mesma consigna, e as que os do
cumentos extra-bíblicos referem.
As aparigóes bíblicas foram fatos reais de que dá teste-
munho o próprio Deus, Autor principal das Escrituras; por

— 287 —
isto impóem-se á fé de todos os cristáos, desde que sejam incu-
tidas pelo texto bíblico auténticamente interpretado (neste
ponto é preciso chamar a atencáo para o estilo e as modali
dades de expressáo da S. Escritura; nem tudo que, á pri-
meira leitura da página sagrada, parece ser milagre ou apa-
ricáo milagrosa, há de ser entendido como tal; daí a ressalva:
impóem-se á fé as aparicóes que o texto bíblico, interpretado
segundo os criterios do respectivo genero literario, nos con
signa) .

Dentre as aparicóes bíblicas, merecem destaque as do Senhor a


Abraáo na Mesopotámia (cf. Gen 12,1-3), em Siquém (cí. Gen 12,7);
a Moisés, na sarca ardente (cf. Éx 3,2), no Sinai (cí. Éx 19,3). Foram
visitados por um anjo; Tobías ( cf. Tob 5,5-12,22) Balaáo (cf. Núm
22,22), Josué (cf. Jos 5,13), Gedeáo (cf. Jz 6,11), Elias (cf. 3 Rs 19,5-7;
4 Rs 1,3)...; no Novo Testamento o anjo Gabriel trouxe solene
mensagem a Zacarías (cf. Le 1,8-22) e a Maria Ssma. (cf. Le 1,26-38);
os anjos anunciaram aos pastores o nascimento do Salvador (cf. Le
2,8-15)...
Quanto a aparicóes de mortos na Biblia, sao relativamente raras:
á parte o caso de Samuel (de que trata a questáo 7 déste fascículo),
lé-se que o Sumo Sacerdote Onias e o Profeta Jeremías se mostraram
em sonho a Judas Macabeu (cf. 2 Mac 15,11-16); Moisés apareceu
sdbre o Tabor (cf. Mt 17,3); após a ressurreigáo do Senhor, muitos
defuntos sairam de seus túmulos e se manifestaran! em Jerusalém
(cí. Mt 27,52s).

No tocante as aparicoes nao-bíblicas, deve-se observar o


seguinte: com a morte do último dos Apostólos (Sao Joáo,
cérea de 100), encerrou-se a revelacáo pública, ou seja, a co-
municacáo de verdades divinas que se impóem á fé de todos
os homens. De entáo por diante, a Igreja admite aparigóes e
revelacóes particulares. É, porém, muito cautelosa ao exami-
ná-las. Ela sabe que freqüentemente as propaladas aparicoes
nao sao senáo o resultado de disposigóes doentias, excitacáo
prolongada do cerebro, grande cansaco inteletual, extenuacáo
devida a jejuns exagerados dos «videntes», etc.

Já que nao raro nos processos de canonizacáo ocorre a narrativa de


visaes, o Papa Bento XIV (1740-1758) estipulou normas precisas a
fim de se distinguirem verdadeiras e falsas aparicóes. Em geral, os
canonistas do sáculo passado eram propensos a nao admitir, para
comprovar aparigóes, o testemunho de menores, mulheres e pessoas
sdbre cuja veracidade ou boa fé pudesse pairar suspeita.
A título de curiosidade, citamos aqui o teólogo beneditino Schram,
que em 1848 estabeleceu urna lista de dezenove criterios mediante
os quais julgava poder discernir as falsas aparicóes; segundo tal
autor, nao merecería crédito o visionario que
íósse orgulhoso, — desejasse ter visóes, — estivesse possesso do
demonio, — íósse dado ao delirio, — possuisse temperamento melan
cólico, — fósse novato na vida espiritual, fósse marcadamente pobre,
rico, jovem ou anciáo, — fósse do sexo feminino, — propalasse com

_ 288 —
íacilidade as suas visSes... (cf. Institutiones theologiaé mysticae.
Paris 1848). . •
Sem diíiculdade percebe-se que alguns déstes criterios carecem
de valor. Como quer que seja, a lista ácima ao menos atesta quao
pouco os teólogos sao inclinados a admitir visoes e revelagóes
particulares.

Hoje em dia qualquer narrativa de aparigáo sobrenatural


é analisada á luz dos tres seguintes criterios:
a) o criterio histórico: compulsam-se documentos e
ouvem-se testemunhas a fim de se ter certeza de que realmente
aconteceu algum fato que mereca especial atencáo (remova-se
a possibilidade de embuste ou exploragáo) ;
b) o criterio psicológico: examina m-se as condigóes in-
telectuais, moráis e psíquicas da pessoa ou das pessoas «agra
ciadas», a fim de se verificar se algum elemento doentio ou
alucinatório nao entrou em causa ;
c) o criterio teológico; estudam-se as afirmagóes e as
atitudes religiosas do «vidente» para se averiguar se o fenó
meno extraordinario foi provocado por Deus ou pelo espirito
diabólico.
Em numerosos casos a autoridade da Igreja abstém-se
de pronunciar algum juízo sobre tal ou tal pretensa aparigáo;
limita-se apenas a nao condenar a respectiva narrativa e esti
mular de maneira geral a piedade dos fiéis (veja-se o exemplo
do santuario de Loreto em «P.R.» 12/1958, qu. 9).-
Contudo, apesar do rigor aplicado nos respectivos exames,
a S. Igreja reconhece (nao, porém, como dogmas de fé uni
versal) casos de aparigáo, permitindo sejam públicamente evo
cados até mesmo na Liturgia: tenham-se em vista, por exem
plo, as manifestagóes do Senhor em Paray-le-Monial, as da
Virgem Ssma. em La Salette, Lourdes, Fátima; a de S. Miguel
Arcanjo no monte Gargano (Sicilia). Além disto, é costume
afirmar-se que S. Catarina de Sena, S. Teresa de Ávila, o
Sto. Cura d'Ars, S. Gema Galgani e outros justos foram agra
ciados com o dom de visóes sobrenaturais.

Seja licito frisar: tais aparic,5es, ainda que reconhecidas (e até


solenizadas na Liturgia) pela autoridade da Igreja, nao se impOem
obrigatóriamente á íé dos cristaos, pois ficam fora do depósito da
revelagáo pública e universal; a Igreja nao consideraría herético o
discípulo que nao as aceitasse. Está claro que seria um feito de
temeridade e soberba negar sem razáo suficiente a realidade de
tais fenómenos (pois, além de gozar da assisténcia geral do Espirito
Santo, mesmo quando nao define verdades de fé, a Igreja nSo costuma
tomar posicOes afoitas); contudo toca a todo individuo o direito de
examinar as narrativas de aparicSes á luz das regras da prudencia
e da critica histórica.

289 —
Parece ainda importante acentuar que, mesmo quando
publicadas com o «Imprimatur» ou a licenga de um bispo, as
narrativas de visees e revelagóes particulares nao represen-
tam necesariamente o pensamento comum da Igreja; o
«Imprimatur» apenas significa que a respectiva obra a rigor
nada contém contra a fé e a moral cristas; disto, porém, nao
se segué que o magisterio da Igreja intencione recomendar
positivamente as idéias ai expressas. Compete ao leitor, em
tais casos, exercer um certo discernimento a fim de nutrir
a sua fé e a sua vida cristas ñas fontes mais ricas e puras
do depósito sagrado.

Para concluir as consideracóes ácima, vai aqui citado um trecho


do último pronunciamento da S. Igreja a respeito de aparicSes: tra-
ta-se de urna carta de Monsenhor (hoje Cardeal) Ottaviani, Pró-
-Secretário do Santo Olido, publicada em fevereiro de 1951, carta
em que se lé o seguinte:
«Nao nos acusem de sermos adversarios do sobrenatural, se nos
propomos agora acautelar os fiéis contra as afirmacdes nao compro-
vadas de pretensos acontecimentos sobrenaturais que em nossos dias
pululam em toda a parte e ameacam Janear o discrédito sdbre o
verdadeiro milagre... Há cinqüenta anos atrás, quem imaginaria que
a Igreja hoje deveria alertar seus íilhos e mesmo sacerdotes contra
narradores de vis8es, de pretensos milagres, numa palavra: contra
todos ésses fatos tidos como preternaturais, os quais de um conti
nente a outro, de um país a outro (pode-se dizer: em toda parte),
atraem e excitam as multidóes...?
Já há anos que verificamos a recrudescencia da paixáo popular
em relacáo ao maravilhoso, mesmo no plano religioso. Multidóes de
fiéis váo ter aos lugares de presumidas aparigdes ou de pretensos
milagres, e ao mesmo tempo abandonam as igrejas, os sacramentos,
os sermñes...
A Igreja certamente nao intenciona por na sombra os prodigios
realizados por Deus. Ela apenas quer chamar a atencáo dos fiéis
para aquilo que vem de Deus e aquilo que, nao vindo de Deus, pode
vir do nosso adversario, que é também o adversario de Deus.
Ela é inimiga do falso milagre...»

2. Como se dao as aparigóes ?

Procuremos agora explicar como o Senhor Deus e os


saritos se possam manifestar aos moríais.
Devemos logo distinguir entre as aparigóes de Deus, dos
anjos e dos santos que ainda nao ressuscitaram (sao espirites
nao unidos a corpos) e as aparicóes de Cristo, Maria Ssma.,
Henoque e Elias..., que se acham em corpo e alma na gloria
do céu.
1) Quanto aos espirites puros, está claro que a sua
substancia imaterial nao age diretamente sdbre os sentidos
dos homens, que sao facilidades orgánicas e materiais ; um

— 290 —
espirito, por nao ter tamanho nem cor..., é totalmente ina-
cessível aos nossos sentidos. Positivamente
a) julgam bons teólogos que a imagem sensível de um
homem, de urna donzela ou de um jovem mancebo... que
Deus ou criaturas espirituais suscitam nos videntes, se deve
a um agente intermediario corpóreo de que tais espíritos
puros se servem para impressionar os sentidos dos moríais;
Deus tem, sim, o poder de mover a materia a fím de que ela
produza tal efeito no órgáo visual de individuos humanos; o
mesmo Senhor pode outrossim permitir que os anjos e santos
provoquem semelhantes efeitos.

A figura assim suscitada apresenta os tragos mais aptos para


evocar no respectivo vidente a Iembranca de Deus ou de tal anjo,
de tal justo... Sao tragos contingentes; podem variar segundo a
idade. a cultura, a nacionalidade dos videntes (o Espirito Santo, por
exemplo, apareceu ora sob a forma de pomba. ora sob a forma de
linguas de fogo); tais figuras sensíveis tém apenas o papel de
lembrar atributos característicos dos seres espirituais que elas
representam.

b) A maioria dos -teólogos, porém, prefere dizer que os


espíritos puros geralmente nao recorrem a algum agente inter
mediario colocado diante dos videntes, mas produzem ¡media
tamente nos sentidos (nos olhos, principalmente) dos moríais
tal ou tal imagem que lembra Deus ou determinado anjo ou
santo... Essa agáo imediata já é suficiente para manifestar a
presenga (ou para caracterizar a aparigáo) do Senhor ou de
tal espirito puro.
2) Quanto a Cristo e aos santos que se acham em corpo
e alma na gloria, poderiam manifestar aos homens seu corpo
transfigurado. Foi, alias, o que se deu quando Jesús apareceu
aos Apostólos após a ressurreigáo e a S. Paulo depois da As-
censáo. Elias no Tabor deve ter aparecido em seu próprio
corpo.

Em vista, porém, da diversidade de figuras que Cristo e


a Virgem Ssma. revelam ñas suas aparigóes (tenham-se em
conta as imagens do S. Coragáo de Jesús, do Menino Jesús
de Praga, os tipos marianos de Fátima, Lourdes, La Sa-
lette, etc.), admite-se mais comumente que nao sao própria-
mente os corpos de Cristo e de María que se manifestam ;
julga-se que estes sao apenas evocados por urna das duas
vias (a ou b) referidas atrás, sob o n* 1.

A titulo de ilustragao, transcrevemos aqui as palavras com que o


famoso teólogo A. Tanquerey explica as aparigóes ocorrentes segundo
a modalidade a) anteriormente descrita;

— 291 —
«As vis6es sensiveis ou corpóreas, também chamadas aparigOes,
sao aquelas em que os sentidos percebem urna realidade objetiva
por si invisivel ao homem. Nao é necessário que o objeto percebido
seja um corpo de carne e ossos; basta seja urna forma sensível ou
luminosa. Por conseguinte, admite-se geralmente, com S. Tomaz,
que Nosso Senhor, depois da sua Ascensáo, nao apareceu pessoalmente
senáo em casos muito raros; Ele em geral só aparece sob urna forma
sensivel que nao é seu verdadeiro corpo... O que dizemos de Nosso
Senhor, aplica-se á Ssma. Virgem; portante, quando ela apareceu
em Lourdes, seu corpo permanecía no céu, e no lugar da aparigáo só
havia urna forma sensivel que a representava. É o que explica como
ela aparega ora sob urna forma, ora sob outra» (Précis de Théologie
ascétique et mystique II. Paris 1924, 934).
S. Tomaz (S. Teol., Supl. qu. 69, a. 3) admite que as almas dos
defuntos, quer estejam no céu, quer estejam no purgatorio, quer no
inferno, possam por certo tempo, em virtude de especial disposigáo
da Providencia, sair do seu estado próprio para se manifestar na
térra. Adverte, porém, o S. Doutor: ao passo que os justos conseguem
isto todas as vézes que o pedem a Deus, os reprobos só com raridade
aparecem neste mundo. Em todo e qualquer caso, a finalidade dessas
aparigóes é algo de nobre: os santos, diz S. Tomaz, vém exortar e
estimular os seus irmáos peregrinos na térra; as almas do purga
torio vém pedir sufragios, e os reprobos, por designio de Deus,
vém admoestar os viventes e incutir-lhes temor salutar.
Citamos estas consideragBes únicamente á guisa de ilustragáo, pois
versam em torno de objetos que em grande parte escapam á algada
do nosso conhecimento; em tal setor só nos é possível fazer conjeturas,
abstendo-nos de afirmagSes categóricas.
O mesmo Doutor Angélico se refere em particular as aparig5es
de Cristo na Eucaristía sob a forma de crianga ou de carne viva.
Assevera que em tais casos os videntes contemplaram urna imagem
formada milagrosamente sobre as especies sacramentáis (sobre as
aparéncias do pao, por exemplo) ou formada diretamente na retina
dos videntes (cf. S. Teol. III 76, 8); como quer que fósse (e isto
é importante), a formagáo dessa imagem se devia a urna intervengáo
extraordinaria do Senhor Deus e constituía um auténtico sinal de
Cristo para avivar a fé dos videntes.
S * »

A guisa de Apéndice, parece oportuna urna palavra sobre o


famoso «Museu das almas do purgatorio» de Roma. Foi instalado
nao pelas autoridades oficiáis da Igreja, mas pelo Pe. Vítor Jouet,
sacerdote da CongregagSo do Sagrado Coragáo e fundador da revista
«Le Purgatoire» em 1900. Apresenta urna colegáo de objetos de todo
original: livros de oragSes (como o de Margarida Dammerle, de
Erlingen) e míssais, nos quais as almas do purgatorio teriam gravado
marcas de fogo; pedagos de paño portadores de semelhantes vestigios
(assim há a camisa de José Leleux, da cidade de Mons, que traz as
marcas de dedos incandescentes datadas de 21 de Janeiro de 1789;
o manto militar de urna sentinela italiana que em urna noite de
1932 montava guarda no Panteao ao monumento do rei assassínado
Humberto I; o espectro do defunto teria pousado sua máo chamejante
sobre urna das espáduas do soldado, após haver entregue a éste
u'a mensagem para Vítor Emanuel III), tabuinhas, encostos de
madeira marcados a fogo, etc. Encontram-se nesse museu outrossim
silhuetas de máos inteiras. nao deformadas, com os dedos abertos;...
urna cruz tragada com muito esmero pela ponta de um dedo indicador

— 292 —
incandescente... (noticias colhidas na obra do Pe. Réginald-Omez:
Peut-on communiquer avec les morts? Paris 1955).
Difícil seria definir a origem désses sinais. Dever-se-áo a um
fenómeno ou acídente de índole meramente natural? Seráo, antes,
o produto de alguma arte ilusoria praticada de boa fé ou... de má fé?
Seriam, ao contrario, verdadeiros efeitos sobrenaturais provocados
por algum espirito bom (ou mau) com a permissao de Deus? —
Tais questoes e suas respectivas respostas nao tém grande importan
cia, pois a ideología e o programa de santificacáo do cristáo (coisas
estas de máximo valor) nao dependem de tais fenómenos; estes sáa
totalmente contingentes no Cristianismo.
Dado, porém, que se admita a origem preternatural das mencio
nadas marcas, tomar-se-á a cautela de nao dizer que foram produzidas
pelo fogo do purgatorio. Éste nao é elemento semelhante ao fogo
da térra, capaz de queimar os objetos mataríais ¡ livros, panos,
madeira, etc. (alguns teólogos chegam a chamá-lo «fogo espiritual»).
Os referidos vestigios das almas, caso sejam auténticos, dever-se-áo
á lntervencáo de Deus. que terá suscitado (ou terá permitido que
alguma alma do purgatorio suscitasse), em dadas circunstancias, um
elemento capaz de queimar os objetos assinalados, deixando néles
a respectiva marca, talvez como símbolo do estado em que acham
as almas do purgatorio.
Dado que se comprove ou se torne plausível alguma mensagem
de alma do purgatorio neste mundo, nao será necessário admitir que
tal alma se tenha tornado"''presente na térra; Deus em sua miseri
cordia pode ter produzido um fenómeno maravilhoso que, para os
respectivos espectadores, terá sido a expressáo da dita mensagem
(em geral, estas mensagens consistem em pedidos de preces pelos
defuntos).
Em qualquer caso, mesmo que n3o se possa definir a índole de
urna presumida mensagem de alma do purgatorio, as pessoas inte-
ressadas poderao sempre responder sufragando as almas por suas
preces e pelo S. Sacrificio da Missa; tais sufragios jamáis seráo
infrutuosos.

Apesar de toda a reserva de que usa a S. Igreja em se tratando


de apregoadas aparigoes de almas do purgatorio, seria temerario negar
globalmente toda e qualquer manifestacao désses espíritos. Na vida
de alguns santos, cujos escritos após severo exame canónico foram
tidos como fidedignos, léem-se episodios de tal género, dos quais, a
título de ilustracáo, vai aqui citado o que S. Margarida Maria Alacoque
(t 1690) narra em sua Autobiografía :
«Estando eu diante do Ssmo. Sacramento, no dia da festa do
mesmo, urna pessoa toda recoberta de fogo, de repente se me
apresentou. G mísero estado em que, conforme me declarou, ela se
achava no purgatorio, féz-me derramar abundantes lágrimas. Disse-
-me que era a alma do religioso beneditino que ouvira minha confissáo
outrora' e me mandara receber a S. Comunhao. Em recompensa
disto, Deus lhe permitirá dirigir-se a mim para que eu lhe propor-
cionasse alivio em suas penas. Pediu-me tudo que eu pudesse fazer
e sofrer durante tres meses... Por fim, ao cabo dos tres meses, vi-o
cheio de alegría e de gloria; ia gozar da felicidade eterna e, agrade-
cendo-me, disse-me que me tomaría em tutela na presenca de Deus»
(S. Margarida Maria Alacoque, Vie écrite par elle-méme 1920, 98).

— 293 —
LAURO (Sao Paulo) :

6) «Que valor religioso tém os sonhos ? Poderáo ser


considerados sinais de Deas ?»

Os sonhos representan! a atividade do subconsciente da alma,


atividade que se exerce por Hvre combinacao de impressñes e
recordagóes, enquanto a consciéncia psíquica do individuo está ligada
ou obnubilada pelo sonó. Nos sonhos o papel preponderante cabe aos
sentidos internos (principalmente á fantasía e á memoria), nao ficando
excluidas, porém, as funcSes da inteligencia e da vontade.
Veremos abaixo algo sdbre a génese dos sonhos, para podermos
avaliar devidamente o seu valor e significado.

1. A génese dos sonhos

1. O primeiro autor que tenha empreendido o estudo


científico dos sonhos, é o escossés Cullen : em 1776 introduziu
no vocabulario da medicina o termo neurose em substituigáo
a vapores, palavra que significava certos estados psicopato-
lógicos nao acompanhados de febre nem de lesáo orgánica
notoria.
2. No século passado, Hildebrant em 1875 chamou a
atengáo para a provocagáo de sonhos mediante agentes sono
ros : verificava, por exemplo, que o toque de um despertador
percebido em estado de sonó podia apresentar-se em sonho á
pessoa adormecida como se fósse o badalar de um sino ou o
fragor de urna pilha de pratos que se precipitam por térra.
Mais recentemente, Foucault (1906), Stepanon (1915) e S.
De Sanctis averiguaran! que os sonhos também podem ser
provocados por palavras proferidas em voz baixa aos ouvidos
da pessoa adormecida, de modo a nao a despertar; obtiveram
o mesmo efeito, projetando imprevistamente jatos de luz sobre
as pálpebras ou cercando a pessoa adormecida de certos
aromas. Das suas experiencias algumas conclusóes puderam
ser deduzidas: há agentes externos aptos a estimular sonhos,
e sonhos de significado correspondente ao de tais agentes;
um mesmo elemento, porém, pode induzir sonhos de temas
diversos. Contudo o fator preponderante na elaboragáo de um
sonho parece ser a associagáo de impressóes e recordagóes
colhidas no passado, seja próximo, seja remoto; os agentes
externos aplicados durante o sonó mesmo tém apenas fungao
adventicia, podendo introduzir no enredo do sonho urna idéia
estranha que desvie o fio da historia.
3. Sigismundo Freud (t 1939) apresentou ás geragóes
modernas sua teoría própria sobre o tema. Para o médico
austríaco, os sonhos seriam a manifestagáo de complexos afe
tivos e instintos eróticos que a censura da consciéncia impe

— 294 —
á tona sob a forma de símbolos, quando o estado de sonó debi
lita os poderes de controle da consciéncia. Por conseguinte o
conteúdo de todo sonho, ainda que pareca indecifrável, traduz
diria de se manifestarem em estado de vigilia, mas que viriam
idéias latentes ; essas idéias latentes sao expressas em lin
guagem figurada, linguagem figurada, porém, cujo expressio-
nismo pode ser proficuamente apreendido e estudiado. - •
Conforme Freud, quatro sao as leis que regem ésse expressio-
nismo dos sonhos:
a lei da condensaba», segundo a qual idéias numerosas vém a
ser simultáneamente representadas por poucos símbolos;
a lei da deslocacao, pela qual os aíetos que em estado de vigilia
se concentram sotare determinado objeto, em estado de sonó se
aplicam a urna imagem mais ou menos conexa com tal objeto;
a lei da drainatizacáo, em conseqüéncia da qual as idéias abstraías
sao representadas por figuras concretas e até certo ponto teatrais,
á semelhanca do que se dá na linguagem oral: assim urna pessoa
que se ache em estado de dúvida aparece em sonho colocada diante
de urna encruzilhada de estradas ;
a lei da simbolizacSo: os conceitos que nao ousariamos exprimir
em estado de vigilia, sao manifestados em sonho sob a tutela de
símbolos, dos quais os mais famosos sao: a casa, representacáo do
corpo humano, principalmente feminino; a madeira, emblema de
mSe; a agua, significativa' do nascimento, etc.

Procurando avaliar a teoría de Freud, reconhecer-se-lhe-á


um fundo de verdade: no sonho é certo que o subconsciente
se expande com maior liberdade do que em estado de vigilia,
podendo destarte as representacóes oníricas servir de indicio
manifestativo das tendencias íntimas e do caráter de urna pes
soa ; contudo o catálogo de símbolos estabelecido por Freud,
assim como a respectiva interpretacáo, nao se impóem com
evidencia, parecendo inspirados por criterios assaz arbitrarios.
Além disto, nao se poderia reduzir toda a vida consciente e
inconsciente do individuo ao jógo de afetos eróticos, como se
o comportamento do homem fósse o mero produto de instintos
sexuais ; o pansexualismo freudiano tem sido repetidamente
condenado tanto por autoridades médicas como pela moral
crista. Por último, a teoría de Freud nao leva em devida conta
o influxo, hoje em día muito reconhecido, dos agentes sensíveis
e extrínsecos sobre a elaboracáo e o curso dos sonhos. — A
respeito de Freud e da psicanálise, cf. «P.R.» 8/1958, qu. 1.
Eis algumas nocóes de ciencias necessárias e suficientes
para procuráronos agora definir

2. O valor religioso dos sonhos

1. As imagens que o homem vé em sonho sempre cha-


maram a atencáo dos povos, dado o seu colorido por vézes

— 295 —
muito vivo e impressionante. Em conseqüéncia, desde os tem-
pos mais remotos até nossos días existiram, e existem, pessoas
altamente reverenciadas por serem tidas como auténticos in
térpretes do significado dos sonhos. Como se compreende, essa
arte aparece geralmente associada a crengas religiosas, de
modo que os sonhos ainda hoje sád freqüentemente conside
rados como sinais da Divindade ou de espirites do Além aos
homens.

Os antigos chineses afirmavam que es sonhos eram visitas que


as almas faziam urnas ás outras, após terem deixado o respectivo
corpo humano.
Na Caldéia, a explicagáo dos sonhos era tida como elevada ciencia,
reservada a iniciados, mediante a qual se podía predizer aos homens
o bem e o mal que os aguardavam.
Os egipcios consideravam os sonhos quais «mensageiros miste
riosos da deusa Isis», que destarte dirigía aos mortais seus bons
conselhos e suas admoestagSes.
Na Grecia a interpretagao dos sonhos constituía urna ciencia
própria chamada «Onirocritia». Os gregos tinham seus santuarios
em que os homens desejosos de obter sonhos proíéticos passavam
a noite.
Galeno(t201 d. O, o grande médico romano, predizia hemor
ragias nasais aos doentes que lhe afirmavam haver sonhado com
peixes vermelhos. Muita gente pernoitava nos templos dedicados ás
Divindades médicas (Hércules, Apolo. Esculapio), recebendo em sonhos
a indicacáo dos remedios que deviam usar; contudo, já que ésses
sonhos eram geralmente coníusos, achava-se nos mesmos templos, á
disposigáo dos doentes, certo número de intérpretes, que procuravam
dar a genuína explicacáo das «receitas».
Havia, de resto, na antigüidade catálogos para a interpretagao
onirica intitulados «Chaves dos sonhos». Déstes mencionamos aquí
alguns tópicos, cujo valor é meramente ilustrativo, nao filosófico :
Aguia: ver em sonho urna águia a voar é bom presagio; sinal
de morte, porém, se cai sobre a cabega do sonhador.
Arco-Iris: visto do lado do Oriente, sinal de felicidade para os
pobres; do lado do Ocidente, sorte boa para os ricos.
Dinheiro achado significa aborrecimentos e perdas. Dinheiro
perdido indica bons negocios; ver quantidade de moedinhas é sinal de
riqueza; sonhar, porém, com moedas de ouro prenuncia miseria.
Banho em agua clara é presagio de boa saúde; em agua turva,
morte de parentes e amigos.
Cogumelos, sinal de vida longa e boa saúde.
Canto. Um homem que canta; esperanga. U'a mulher que canta:
pranto e gemidos.
Gato, traicáo. Gato a miar, funerais.
Cábelos arrancados, perda de amigos ou de dinheiro.
Papagsio implica indiscrigáo, revelagóes de segrédo.
Batos, inimigos ocultos.
Rosas, prazeres.
Cabega branca anuncia alegría. Cabega raspada, fraude e embuste.
Cabega recoberta de densa cabeleira, dignidades. Cabeca cortada,
doencas.
Jógo bem sucedido indica perda de amigos.
Espélho é símbolo de traigáo.

— 296 —
No decorrer da historia universal apontam-se, mesmo entre os
homens mais ilustres, alguns que tiveram sua íé nos sonhos. Assim
o general romano Marco Bruto (séc. I a. C.) tomou como presagio
de má sorte o fantasma ameagador que lhe apareceu na véspera
da batalha de Filipes; Benjamim Franklin (tl790), o célebre esta
dista e cientista norte-americano, acreditava nos sonhos, tomando-os
como advertencias do céu.
Doutro lado, nao faltaram eminentes vozes de protesto contra a
supersticao dos sonhos, vozes provocadas, sem duvida, pelos abusos
de nao poucos exploradores e charlatáes populares.
Aristóteles (t322 a. O, por exemplo, o maior filósoío da Grecia,
escreveu o tratado «Adivinhacáo pelo sonho», asseverando nao ser
nem verídico nem possivel que a divindade envié sonhos proféticos;
o filósofo zombava dos que se davam a tal crendice, mostrando que
o sonho nao é senáo a projegáo das impress6es colhidas pelo sujeito
em estado de vigilia e avolumadas por obra da fantasia. Dizia ainda
que, se alguns vaticinios obtidos em sonhos se cumprem, isto se
deve a coincidencias, das quais nao se poderia deduzir alguma conclu-
sáo positiva, pois, para tanto, seria preciso abstrair do fato de que
inúmeros sonhos «proféticos» nao se cumprem.
Plinio o Velho, naturalista romano (t 79 d. O, abracava o
mesmo parecer, embora se mostrasse dado a certas crendices e admi-
tisse historias de mortos redivivos sobre a térra; asseverava que em
sua época só as massas ignorantes acreditavam em sonhos e só
os charlatáes ousavam praticar a interpretacáo onírica.

Que dizer de táo ampio e variado testemunho da historia


sobre o significado religioso dos sonhos ?
Em primeiro lugar, chamar-se-á a atengao para a explí
cita condenagáo que o próprio Deus na Escritura Sagrada for
mula sobre os adivinhadores de sonhos, equiparándoos aos
magos e necromantes: Lev 19,26 ; Dt 13,2-4 ; 18,10-12. Nos
tempos da decadencia religiosa em Israel (séc. VII/VI a. C.),
multiplicavam-se falsos profetas, que diziam haver recebido
em sonho auténticas comunicagóes do céu ; o Senhor, porém,
nao deixava de acautelar os seus fiéis contra tais ilusóes :

«Ouco o que dizem ésses profetas, que em meu nome proíerem


falsos oráculos, afirmando: "Tive um sonho, tive um sonho!'...
Ésses profetas julgam que poderáo fazer esquecer o meu nome ao
meu povo mediante os sonhos que contam uns aos outros?» (Jer
23,25-27).

Ao lado destas admoestagóes negativas, porém, faz-se


mister reconhecer os varios episodios bíblicos em que o Senhor
Deus se serviu de sonhos para revelar seus designios aos
homens ; tal se deu, por exemplo, na vida do Patriarca José
do Egito (cf. Gen 37,5-11; 40,5-22; 41,1-36) ; na do profeta
Daniel (cf. Dan 2,4-7); na de Sao José, esposo de María (cf.
Mt 1,20-24; 2,13. 19. 22). Veja-se igualmente Gen 20,3s ;
28,12s ; 31,lls. 24 ; Jz 7,13s ; 1 Sam 28,6 ; 1 Rs 3,5 ; Jó 33,15.
Além do mais, os sonhos parecem ter sido o meio pelo qual

— 297 —
freqüentemente o Senhor comunicava seus oráculos aos pro
fetas de Israel (cf. Núm 12,5).
Como se entenderá que o Senhor tenha dessa forma cbn-
corrido para dar autoridade á crenga no valor dos sonhos ?
O Senhor, nos episodios bíblicos citados, comunicando«se
por meio de sonhos, correspondía a urna expectativa muito
espontánea entre os judeus e orientáis. Estes eram, por sua
índole e suas tradigóes, propensos a se deixar guiar por ima-
ginagóes noturnas. Ora o Senhor dignou-se atender a tal ex
pectativa, pois a pedagogía divina toma o homem como ele é
e costuma falar-lhe segundo a linguagem e o expressionismo
do próprio homem, tratando apenas de remover erro ou con-
fusáo doutrinária. A Biblia, conseqüentemente, ao relatar epi
sodios de sonhos inspirados, faz questáo de remover qualquer
crenga supersticiosa; dá claramente a ver que o Senhor nao
se comprometeu a falar habitualmente por sonhos e que por
isto nao se podem estabelecer regras fixas para se interpre-
tarem tais fenómenos. Com efeito, nao há, conforme a Escri
tura, intérpretes profissionais ou técnicos dos sonhos, como
os havia entre os babilonios (cf. Dan 2,2 ; 4,3 ; 5,15) e os
egipcios (cf. Gen 41,8) ; ao contrario, a explicagáo dos sonhos
se deve a esporádico dom de Deus e compete a quem, como
o Patriarca José e o Profeta Daniel, possui o espirito de Deus:

«Disseram o copeiro e o padeiro do Faraó: Tivemos um sonho


e aqui nao se acha quem nó-lo explique'. Respondeu-lhes José: 'Entáo
nao é a Deus que toca interpretar? Nar.rai-me, por favor, o vosso
sonho'» (Gen 40,8).
«Daniel respondeu em presenga do reí e disse: 'O misterio que
o rei deseja compreender, nem os sabios, nem os magos, nem os
encantadores, nem os astrólogos o poderao elucidar. Há, porém, no
céu um Deus que desvenda os misterios e quer comunicar ao rei
Nabucodonosor o que deve acontecer na sucessáo dos tempos»
(Dan 2,27s).

Por conseguinte, váo seria apelar para os sonhos relata


dos pela Biblia, a fim de se atribuir a todo e qualquer sonho
autoridade divina. Nao há dúvida, Deus pode continuar aínda
em nossos dias a se comunicar por meio de representagóes
noturnas. Nao seria licito, porém, supor de antemáo que o
Senhor o tenha feito ou o fará em tal ou tal caso ; ao con
trario, será preciso indicar, em cada episodio, os sinais carac
terísticos da intervengáo de Deus na elaboragáo do sonho que
se quer tomar como vaticinio (via de regra, as intervengóes
extraordinarias de Deus tém que ser provadas, nao podem ser
pressupostas). Ora ésses sinais característicos ou essas pro-
vas irrefragáveis difícilmente se podem obter...; nao é de

— 298 —
crer que o Altíssimo recorra muitas vézes a sonhos para ma
nifestar seus designios as criaturas.
3. A quanto acabamos de dizer, porém, sera necessário
acrescentar a seguinte observagáo : os modernos conhecimen-
tos de ciencia já permitem, melhor do que na antigüidade,
perceber as causas ou os agentes provocadores de sonhos ; a
humanidade contemporánea está mais a par das leis que regem
os fenómenos conscientes e subconscientes. Por conseguinte,
os médicos e psicólogos estáo até certo ponto capacitados
para definir auténticamente o significado de um sonho e para
prever conseqüéncias ou acontecimentos futuros implicados em
tal fenómeno (quem conhece as causas de um sonho, poderá
predizer com maior ou menor seguranga outros efeitos que
essas causas desencadearáo em tempo oportuno). Essa técnica
recorre exclusivamente a criterios de ciencia, nao pretendendo
valer-se de receitas ou revelagóes religiosas ; por isto é rao-
ralmente lícita.
Assim íala-se, em medicina, de equivalentes oníricos dos acessos
nervosos e de sonhos precursores e mensageiros de doencas: Pascal,
por exemplo, o filósofo francés (tl662Í, sonhou certa vez que ídra
estrangulado por urna lita, e dois dias depois viu-se acometido por
urna «angina pectoris»; Aínaldo de Villanon sonhou haver sido
mordido em um dos seus pés, e no dia seguinte viu desenvolver-se
um abcesso em tal membro. Eram as causas de tais perturbagOes
patológicas que, já existentes no organismo dos respectivos individuos,
se manifestavam antecipadamente por meio de sonhos, provocando,
por pressáo do sangue ou de outro modo, a formacáo de imagens
correspondentes na fantasía dos futuros doentes.
Os recentes estudos do fenómeno psi-gama ou da percepcáo extra-
-sensorial tém possibilitado a explicacáo natural de fatos que até
época recente eram tidos como sobrenaturais ou religiosos.
A interpretacáo científica dos sonhos (deixando-se de parte t6da
supersticáo ou o emprégo de criterios falsamente religiosos) pode ser
clínicamente útil para curar certas neuroses. Requer-se, porém, que
o intérprete seja pessoa de idoneidade moral insuspetta.
No tocante aos vaticinios que os antigos autores pagaos e a
moderna literatura nao-católica referem ter obtido por sonhos, adml-
tir-se-á a acao de facuidades naturais latentes na alma (telepatía,
telestesía, percepgáo extra-sensorial) ou, mais raramente, a inter-
vengáo do demonio ou a do próprio Deus.

DX SAGRADA ESCRITURA
B. C. L. (Morros) :
7) «Como se pode condenar a evocacjío dos mortos, se
Deus mesmo permitiu a aparigáo de Samuel a Saúl mediante
a intervencao da pitonisa de Endor ?»

Antes do mais, convém recordar o episodio de 1 Sam


28,4-25, a que alude a pergunta, para depois procurarmos a
sua genuína interpretagáo.

— 299 —
1. O reí de Israel, Saúl, certa vez em guerra, vendo
diante de si o acampamento armado dos filisteus, sentiu-se
receioso e consultou o Senhor sobre o que havia de fazer. Nao
tendo obtido resposta, resolveu recorrer a urna pitonisa ou
adivinha, que em seu nome evocasse o espirito de Samuel,
antigo conselheiro de Saúl. Mudou, pois, de trajes a fim de
nao ser reconhecido como rei, e á noite foi ter com a adivinha,
rogando-lhe fizesse a evocagáo; a mulher, porém, a principio
recusou-se, lembrando que o rei (o próprio Saúl) proibira se
veramente o exercício de tal arte. Tendo, contudo, insistido,
Saúl conseguiu que a pitonisa executasse seu ritual. Apareceu
entáo (como diz o texto hebraico) um elohim, isto é, um ser
de extraordinaria majestade, envolvido em um manto, o qual
subia do seio da térra (os judeus julgavam que os morios
habitavam o cheol, isto é, as regióes subterráneas ;. cf. Is
14,9s ; Ez 32,18). Ao vé-lo, a mulher prorrompeu em um grito
de espanto ; Saúl, que nao o contemplava, compreendeu entáo
tratar-se do vulto de Samuel; prostrou-se, e perguntou o que
havia de fazer diante da ameaga filistéia. O ex-conselheiro
respondeu-lhe que Saúl, na qualidade de rei, fóra definitivar
mente reprovado por Deus (cf. 1 Sam 15,28) e que, em con-
seqüéncia, no dia seguinte ele e seus filhos estariam com Sa
muel no cheol. Tendo ouvido isto, o monarca se encheu de
temor; depois que a pitonisa e os dois servos do rei o recon-
fortaram, Saúl voltou para seu acampamento e, de fato, pere-
ceu em breve sob os golpes dos filisteus.
2. Que pensar de tal aparigáo ?
Tres sao as interpretacóes que desde a antigüidade os
comentadores propóem:
a) a aparigáo e a resposta de Samuel nao seriam mais
do que produto da arte fraudulenta da pitonisa; esta teña
conseguido engañar Saúl, dando-lhe a crer que realmente o
defunto evocado aparecerá. — Tal explicagáo, porém, embora
patrocinada por S. Jerónimo, é pouco provável, pois o texto
sagrado refere que a pitonisa mesma se espantou ao verificar
o efeito de suas artes...
b) Outra sentenga diz que a pretensa aparigáo de Sa
muel era efeito direto do demonio. Éste haveria provocado
a manifestagáo de urna imagem ou de sinal sensivel que pa-
recia corresponder ao vulto de Samuel, e teria feito a pitonisa
falar em nome do defunto. — Tal opiniáo, embora mais pro
vável do que a anterior, nao satisfaz plenamente, pois o fenó
meno tem o caráter de admoestagáo dirigida a Saúl para o
incitar ao bem e á penitencia, finalidade esta que o Maligno
nao visa. Resta, pois, dizer que

— 300 —
c) de fato, o espirito de Samuel, por permissáo de Deus,
apareceu a Saúl. É o que insinúa o texto de Eclo 46,23 :

«Depois de se ter adormecido (morrido), Samuel profetizou e


revelou ao rei seu íim; e fez sair da térra a sua voz em profecía
para apagar a impiedade do seu povo».

Urna vez admitida esta sentenga, impóem-se algumas


observagóes:
As artes e o ritual praticados pela pitonisa nao foram em
absoluto a causa da aparigáo do espirito de Saúl. O fato de
que a necromante se tenha surpreendido com o efeito da evo-
cagáo, significa que algo de extraordinario, mesmo para ela,
acabava de se verificar; tal mulher nao estava acostumada
a obter aparigóes reais de defuntos; nem soube identificar o
vulto que ela via subir da térra ; foi, antes, Saúl quem reco-
nheceu tratar-se de Samuel.
Nao há, na verdade, ritual algum que nos ponha infalivel-
mente em contato com os defuntos, pois nao temos meios na-
turais para nos comunicar com aqueles que nao podemos
apreender com os sentidos (visáo, audicáo...), nem o Senhor
Deus nos revelou alguifiá fórmula que nos dé certamente o
intercambio com os defuntos ; estáo subtraídos ao alcance
da nossa jurisdigáo ou da nossa influencia natural... Toda
comunicagáo com os mortos depende, por conseguinte, mera
mente do beneplácito divino, beneplácito que é gratuito e nao
se associa necessáriamente a alguma arte humana. Quando
o cristáo se dirige aos santos, supóe-se que o Senhor benévo
lamente revele a ésses justos o conteúdo das preces que lhes
sao dirigidas. Tal suposigáo tem sobejo fundamento na expe
riencia cotidiana.
Por conseguinte, o Senhor quis fazer da visita do rei á
adivinha a ocasiio para permitir que o espirito de Samuel
íespondesse ao quesito de Saúl. A finalidade de tal permissáo
é indicada pelas circunstancias do caso: o Senhor desejava
admoestar o rei á penitencia ao menos no fim de sua vida e,
para fazé-lo de maneira que mais impressionasse o monarca,
consentiu em que a exortagáo tivesse lugar em meio a circuns
tancias táo extraordinarias; Saúl, profundamente abalado
pela visáo, se deixaria mais fácilmente mover ao bem...
O fato de que Samuel realmente apareceu a Saúl nao
significa que Deus se digne permitir fenómenos análogos todas
as vézes que os homens os pretendem provocar mediante ri-
tuais e artes. Ao contrario, a evocagáo dos mortos é prática
formalmente proibida pela palavra do Senhor:

— 301 —
«Se alguém se dirigir aos que evocam os esplritos e aos adivinhos,
para se entregar as suas práticas, voltarei minha face contra ésse
homem e o afastarei do meu povo» (Lev 20,6).
«Todo homem ou toda mulher que evocar os espiritos ou se der
á adivinhacao, será punido de morte; lapidá-lo-áo; seu sangue recairá
sobre éles» (Lev 20,27).

De resto, o próprio Saúl é diretamente censurado na Sa


grada Escritura por haver evocado o espirito de Samuel:

«Saúl... se tornara culpado diante do Senhor... porque interro


gara e consultara os que evocam os mortos» (1 Crón 10,13).

Donde se vé que, se o Senhor se dignou permitir a res-


posta de Samuel, nao o fez para aprovar ou confirmar a prá-
tica da necromanda, mas, antes, a fim de usar de gratuita
misericordia para com o rei Saúl, que em determinada situa-
gáo de sua vida precisava de ser mais veementemente impres-
sionado.

IV. MORAL

ÚLTIMA HORA (Rio de Janeiro.) :

8) «Que dizer das chamadas 'farsas de 1? de abril' ?


Teráo origem supersticiosa ou paga ?»

O costume de recorrer a artimanhas engañadoras no dia 1° de


de abril nao é antigo: parece ter tido origem no séc. XVI na Franca,
donde se propagou pelo mundo ocidental. Os franceses designam essa
praxe pela expressáo «donner un poisson d'avril> (dar um peixe de
abril); os alemáes falam comumente de «Aprilschicken», isto é, de
um envió, urna remessa ou um presente de abril, ao passo que os
ingleses costumam referir-se á zombaria do «april-fool» ou do «tolo
de abril:».

1. Qual terá sido o motivo inspirador désse costume


popular ?
As opinióes propostas pelos historiadores nao dissipam
por completo as sombras que pairam sobre o assunto. Na
Franca mesma, térra de origem da praxe, eis as principáis
explicagóes aventadas:
a) Outrora a estagáo da pesca em alguns países se abría
a 1" de abril. O peixe, porém, nesse dia inaugural do período
costumava ser muito escasso, de sorte que sómente os homens
simplórios acreditavam na pescaría de 1« de abril. Em remi
niscencia déste fato, ter-se-ia introduzido na sociedade o cos
tume de «dar peixes de abril», isto é, de oferecer presentes
ilusorios ou langar falsas noticias a 1* de abril.

— 302 —
b) Outros autores apelam para o seguinte tópico : o
rei Carlos IX da Franca, achando-se no castelo de Ronsillon
(Dauphiné) no ano de 1564, decretou que doravante come-
garia a I9 de Janeiro o ano civil que até entáo tivera inicio a
1* de abril. Em conseqüéncia, os presentes e votos de felici
dades de Ano Novo foram deslocados para o mes de Janeiro.
Muitos cidadáos, porém, lamentavam a troca ; para estes
entáo (dizem os mencionados autores) certos concidadáos
irónicos reservaram presentes simulados e mensagens enga
ñadoras que a 1» de abril os «consolassem» em sua amar
gura !... O uso ter-se-á generalizado com o decorrer dos
tempos. — Mais ainda : já que, conforme os astrólogos, no
mes de abril o sol deixa o signo zodiacal dos Peixes, conjetu-
ra-se que, por éste motivo, os homens foram dando a tais
presentes ilusorios o nome, ainda hoje usual, de «peixes de
abril».
c) Urna terceira teoría se baseia no fato de que o rei
Luis XIII (1610-1643), da Franga, detinha como prisioneiro
no castelo de Nancy um príncipe da Lorena. Éste, porém, con-
seguiu fugir do cárcere a^l' de abril, atravessando a nado o
rio Meurthe. Em conseqüéncia, os lorenos teráo espalhado o
rumor de que haviam entregue um «peixe» á guarda dos
franceses. E, para solenizar sarcásticamente o acontecimento,
teráo introduzido na sociedade o costume de dar presentes
«que escapam (como peixe)» ou presentes ficticios, no dia
V> de abril. — Esta explicagáo, porém, carece de probabilidade,
pois a praxe de gracejar a I9 de abril é comprovadamente
anterior ao reinado de Luis XIII.
d) Há, por fim, quem recorra á historia da Paixáo de
Cristo... Com efeito ; julga-se que o Senhor Jesús padeceu
no inicio de abril (a data mais provável da morte do Salvador
seria a de 7 de abril do ano 30). Ora, justamente por ocasiáo
do seu padecimento, Jesús foi enviado de um tribunal para
outro, ou seja, de Ana a Caifaz, de Caifaz a Pilatos, de Pilatos
a Herodes, de Herodes a Pilatos, sofrendo através dessas peri
pecias o insulto e a burla tanto das autoridades como do
poviléu. Na Idade Media, táo doloroso processo era reprodu-
zido em autos e misterios que visavam a edificacáo popular.
No séc. XVI, porém, os cidadáos haveriam tomado a liberdade
de gracejar irreverentemente, infligindo ao próximo um «jógo
de empurra» (ou um tratamento insincero, zombeteiro) seme-
lhante ao que recaiu sobre Jesús. Tal costume equivaleria, por
conseguinte, a revoltante abuso das veneráveis cenas da Paixáo
do Senhor. — Dentro desta hipótese, julgam alguns historia
dores, a expressáo «peixe de abril», usual em francés, nao

— 303 —
seria senáo a deturpagáo de «paixáo de abril» (passion
d'avril = poisson d'avril). O historiador Quitard, porém, julga
que, longe de ser deturpagáo, o apelativo «peixe» foi escolhido
intencionalmente, no caso, para designar de modo velado o
Cristo (ninguém ousaria, como se compreende, nomear explí
citamente o Senhor Jesús por ocasiáo de táo indignas brinca-
deiras) ; a escolha terá sido sugerida pelo fato de que o peixe
é realmente antigo símbolo de Cristo, pois a palavra ichthys
(peixe, em grego) se compóe das letras iniciáis dos cinco vocá-
bulos gregos seguintes : Jesous Christós, Theou Yiós Sotér =
= Jesús Cristo, de Deus, Filho, Salvador (em ordem direta :
Jesús Cristo, Filho de Deus, Salvador).
É a esta quarta explicagáo que os autores franceses mais
verossimilhanga atribuem. É também a que os escritores de
outras nagóes geralmente apresentam como a mais provável.
Alguns déstes, porém, langam aínda urna quinta hipótese:
os gracejos de 1" de abril seriam a reminiscencia de antigos
festejos pagaos, talvez de origem celta, celebrados outrora
no inicio da primavera.
Váo seria prolongar as conjeturas sobre o assunto. Faz-se
mister, ao menos por ora, renunciar á plena clareza neste setor.

2. A historia registra algumas famosas brincadeiras de 1* de


abril.
Tal é, por exemplo, a que se verificou na Inglaterra em 1846.
A 31 de marco déste ano, o jornal Evening Star anunciava aos seus
leitores grandiosa exposicáo de asnos a ser inaugurada no dia seguinte
num pavilháo de agricultura de Islington. Na manhá, pois, de 1' de
abril, notável multidáo de interessados se reuniu no local indicado;
teve, porém, de verificar que os asnos expostos á burla dos expertos
nao eram senáo éles mesmos, os simplórios amadores...
Os autores consignam outrossim certas pilhérias de 1* de abril
clássicas nos diversos setores da atividade humana, isto é, ñas
casernas, ñas lojas de comercio, ñas oficinas, etc. Parece que no
século passado cidadáos finórios se compraziam em mandar os
ingenuos e as criangas á procura («certamente bem sucedida» a 1»
de abril) de «urna corda para ligar o vento» ou de «um bastáo que so
tivesse urna ponta» ou de «urna onga de espirito era garrafa» ou de
«um lucio (peixe) sem espinhas»... (nao há dúvida, tais gracejos
já nao encontrariam ambiente no nosso século XX).

3. As práticas zombeteiras de 1" de abril, qualquer que


seja a sua origem, nao deixam de constituir urna ofensa á
moral crista, pois se reduzem á mistificagáo engañadora. Ver-
dade é que a gravidade de tais abusos é atenuada pelas cir^
cunstáncias da respectiva data : a 1* de abril, todos os cidadáos
tém de certo modo a obrigagáo de estar de sóbre-aviso, ou
seja, acautelados contra as decepcóes de que a credulidade

— 304 —
pode ser vitima; dado, portanto, que alguém eaia mima
armadilha de I* de abril, isto se deverá talvez nao exclusiva
mente á malicia do autor da fraude, mas em parte á impru
dencia da própria vitima.

CORRESPONDENCIA MIÚDA

J. M. (Curitiba): A béngáo da igreja da Pampulha em Belo Hori


zonte causou estranheza, visto que outrora fóra declarada .impropria
para o culto divino, dado o seu estilo fortemente futurista. V.S. per-
gunta como se explica a mudanga de atitude da autoridad© eclesiástica.
— Nao há dúvida, a arte religiosa obedece a suas normas próprias.
A finalidade de toda arte é exprimir de maneira fina e graciosa reali
dades profundas, das quais o artista tem urna intuicáo genial. É claro
cntáo que os traaos da produgáo artística deveráo transmitir ao observa
dor o "espirito", isto é, o significado cultural ou filosófico do objeto
representado ; em particular, se se trata de objeto religioso, o artefato
deverá fazer transparecer o senso de Deus, suscitando nos fiéis urna
atitude de reverencia e piedade. Em conseqüéncia déste principio, rejei-
tam-so as representagóes de objetos religiosos que tendum a nivelar o
religioso com o profano, exaltando os traeos humanos de urna figura a
ponto de encobrir o valor sacral. da rr.esma. Ora parece que a arte mo
derna está arriscada a cair nesfé defeito, pois muitas vézes é executada
segundo modos de ver muito pessoais ou, até mesmo, demasiado fantasistas;
pouco respeita certas normas tradicionais que parecem necessárias pava
garantir a fungáo educativa e cultural da arte (ao menos no setoi1
religioso). O artista moderno, usando de tragos muito estilizados, assim
como pode melhor realgar o essencial no objeto representado, pode tam-
bém ctiricaturá-lo.
Era éste defeito de desfigurar que se apontava na igreja da Pam
pulha. ..
Dito isto, consideremos outro fator importante jio caso : em toda
apreciagáo de arte entra sempre em jógo um elemento pessoal ou subje
tivo. Com efeito, o objeto de arte se define, segundo os filósofos : "aquilo
que agrada, quando contemplado (quod visum plaeet)". Ora sabemos
que os gostos pessoais variam — legítimamente — de individuo para
individuo ; sabemos também que pessoas diversas podem aplicar criterios
diversos para julgar, guiando-se pelas circunstancias próprias de deter
minada época ou localidade. É o que explica que o atual e digno Prelado
metropolitano de Belo Horizonte haja tomado, 'rente á igreja da Pam
pulha, atitude diferente da do seu antecessor.
Efetivamente, o ambiente da Pampulha se transformou após 1941,
data da construgáo da igreja : o cassino que existia no local, foi con
vertido em Museu de Arte Moderna ; além disto, numerosas familias
foram fixar residencia ñas imediagóes do lago, provocando a necessidade
de se prover á respectiva assisténcia religiosa. Diante disto, a Curia
Metropolitana de Belo Horizonte julgou haver atualmente razóes di
conveniencia pastoral para aproveitar a igreja já construida na Pam
pulha ; estimou outrossim que o estilo da dita igreja ainda é capaz de
exprimir urna intuigáo religiosa condizente com a fé católica. Eis porque,
tendo em vista o proveito espiritual da populagáo da Pampulha, o Sr.
Arcebispo Dom Rezende Costa houve por bem abrir recentemente ao
culto sagrado o mesmo templo que, em época anterior, podia ficar fe-

— 305 —
chado sem detrimento para o povo de Deus. S. Excia., ao comunicar ao
público a sua decisáo, fez questáo de realzar que, há quinze anos atrás,
quando seu venerando antecessor recusou benzer a igreja, ele mesmo,
Dom Costa, nao teria procedido de modo diferente. Circunstancias diver
sas, porém, possibilitam — até exigem — atitudes diversas !
HUMBERTO (Belo Horizonte) :
1) O bom amigo lamenta que o texto bíblico da Vulgata latina em
Gen 3,15 dé a ler: "Ipsa conteret caput tuum. — Ela há de te esmagar
a cabe;a", quando o original hebraico apresenta um pronome masculino:
Ele há de te esmagar..." ; o hebraico, portante, refere-se aqui ao re-
bento ou á descendencia da mulher, nao á mulher ou a María SSma.
Nao obstante, a Igreja conserva o pronome feminino do texto da Vul
gata e o ilustra por meio de estatuas da Virgem a esmagar a serpente !
— Para julgar devidamentc o problema, fixemos rápidamente o
sentido de Gen 3,15.
Após a alianza pecaminosa de Eva com a serpente no paraíso, o
Senhor prometeu desfazer o pacto, estabelecendo inimizade ^entre a
serpente e sua linhagem, de um lado ; a mulher e sua descendencia, do
outro lado.
Quem sao propiciamente ésses antagonistas ?
No contexto de Gen 3, a serpente significa evidentemente o- demo
nio. Por conseguinte, a linhagem da serpente vem a ser todos aqueles
— homens e anjos maus — que se filiam ao Maligno, deixando-se in
fluenciar por ele, para constituir o que S. Agostinho chama "a Cidade
do Diabo".
A ésse partido se opóem a mulher e sua linhagem... A mulher
(determinada por artigo, no texto hebraico), se se considera o con-)
texto de Gen 3, é Eva, pois sómente esta fazia parte da cena do paraíso
(em todo o cap. 3 do Gen, a mulher é sempre Eva ; cf. w. 1.2.4.6.12.
13.16.17.20.21) ; Eva, por sua penitencia, seria, para o futuro, anta
gonista do demonio. A posteridade da mulher inimiga do Maligno sao
conseqüentemente todos os homens bons, os que repelem as influencias
do demonio, constituindo "a Cidade de Deus".
É esta a interpretac.5o literal do texto. Ulterior reflexáo, porém,
leva a descobrir no mesmo um sentido aínda mais profundo : nem Eva-
nem os homens bons que déla descendem, realizaram e realizam, sem
restricto, inimizade com o demonio, pois tanto a primeira mulher como
o comum dos seus descendentes pecaram e pecam, apesar de suas in-
tengóes virtuosas. Apenas um homem e u'a mulher foram sempre alheioü
ao Maligno, pois jamáis conheceram a mancha de pecado, nem original
nem atual : Cristo e Maria SSma. Em vista disto, conclui-se : no sentido
literal imediato, o vaticinio de Gen 3,15 se refere a Eva e a todos os
justos; no sentido pleno, porém, alude a Cristo c sua MSe SSma. A
profecía se cumpriu por excelencia no Redentor e em Maria ; ela se
cumpre, em sentido menos perfeito, em Eva e em todos os homens bons,
os quais sustentaram e sustentam a.juta contra o Maligno, em virtude
da pugna vitoriosa que Cristo e Maria sustentaram.
Os tradutores antigos do texto hebraico 'enveredaram por mais de
urna interpretagáo : assim o texto grego dos LXX traz o pronome
autos, masculino, em vez de auto (neutro que correspondería a sperma,
descendencia); donde se vé que os tradutores gregos apontavam direta-
mente um varáo, o Messias, como Esmagador da serpente. A tradugáo
latina anterior a S. Jerónimo e o próprio S. Jerónimo (t 420) em sua
obra "Quaestiones hebraicae" usaram o pronome masculino ipse, segundo

— 306 —
a praxe dos LXX ; em numerosos manuscritos da Vulgata latina, porém,
entrou a forma feminina ipsa, que prevaleceu, insinuando a pessoa de
María SSma.
Esta última tradugáo é inadequada, mesrro errada, do ponto de
vista filológico. Nao contém, porém, erro teológico, podendo até ser expli
cada plausivelmente á luz da Teologia : de fato María, junto com seu
Divino Filho (embora subordinadamente a Éste), esmagou grandiosa
mente a cabega da serpente, preservada corno foi do pecado original
(naja vista a explanagáo do sentido literal ¡mediato e do sentido pleno
ácima proposta). Por isto é que o texto da Vulgata foi sendo transmi
tido tal como o confeccionou o tradutor ; a Santa Igreja o respeitou,
pois nao contém heresia ; nunca, porém, definiu ser essa tradugáo a
expressáo auténtica do teor hebraico. Nota-se até que as tradugóes cató
licas modernas da Biblia fazem ressaltar o pronome masculino Ele em
Gen 3,15.
Compreende-se outrossim que os artistas latinos, leudo o Génesis
na tradugáo da Vulgata, o tenham .ilustrado, representando a Virgem
a esmagar a cabega da serpente. A Sta. Igreja também aceitou esta
expressáo da fé crista, pois ela é genuína, contanto que nao se afirme
ser a expressáo da letra de Gen 3,15. É esta a razáo de ser da praxe
atual dos católicos.
Acontece, porém, que, consciente de que a tradugáo da Vulgata,
embora nao contenha heresia, é afetada de imperfeigóes filológicas, a
Igreja pensa em publicar nova tradugáo latina da Biblia Sagrada, tra
dugáo que corresponda fielmente ao texto original. Já saiu mesmo nova
tradugáo latina do Salterio-ordenada por Pío XII.
Como se vé, a questáo nao versa em torno de erro teológico, mas
em torno de urna falha lingüística, que os antigos tradutores cometeram
de boa fé e que os modernos váo removendo com clareza.
2) Quanto á autenticidade e ao sentido de Mt 16,17-19 (primado
de Pedro), veja "P.R." 13/1959, qu. 2. Como reconhecem os críticos
em geral, essa passagem nao falta em manuscrito alguna dos Evangelhos
nem ñas tradugóes e citacdes do texto sagrado feitas na antigüidadc.
Se o texto tivesse sido interpolado, haveria sido interpolado, sim, nos
tres Evangelhos sinóticos, e no mesmo contexto, quando na verdade ele
só aparece em S. Mateus (cf. Me 8,28-39 e Le 9,20-27) ; o silencio, pois,
de Me e Le é sinal da autenticidade do texto.
Ademáis, dado o apego dos antigos cristáos á tradigáo, teria sido
impossível dar autoridade a um texto que houvesse sido tardíamente
inserido ñas Escrituras.
V. S. (Belo Horizonte) :
1) A dúvida de V.S. se relaciona também com o texto de Mt 16,18.
V.S. leu que dezessete Padres da Igreja interpretam a expressáo "esta
pedra" como se designasse a pessoa de S. Pedro, ao passo que quarenta
e quatro optam por outra explicagáo. E pergunta : que pensar disto ?
— Sem dificuldade, pode-se verificar que tal estatística é assaz
precaria. Os Padres mencionados, ao tratar o texto de Mt 16,18, nem
sempre o faziam visando a rriesma finalidade : enquanto alguns quiserain
deduzir das palavras de Cristo as respectivas conseqüéncias dogmáticas
e, por isto, interpretaran! lógicamente o texto como sendo alusivo á
pessoa de Pedro, outros apenas infcencionaram as conseqüéncias moráis
e ascéticas do versículo citado. Com efeito, os Padres, abordando a pas
sagem de Mt em suas pregagóes ao povo, diante de taljpúblicp^inuitas
vézes focalizavam apenas o aspecto prático, aplicá^l^S-yida espiritual,

— 307 —
do 3. Evangelho. Donde se concluí que, quando alguin escritor antigo
silencia a interpretacáo petrina de Mt 16,18, nao é licito supor sim-
plesmente que a tenha recusado. Esta reflexáo póe em evidencia quao
pouco significativa é a estatística ácima. Deve-se, ao contrario, reconhc-
cer que, «quando os Padres tratam explícitamente da Jexegese de
Mt 16,18, concordam em aplicar tal texto ("esta pedra") a pessoa de
S Pedro" (cf. Buzy, Évangile selon St. Matthieu 216, em "La Sainte
Bible" de Pirot-Clamer IX. Paris 1946).
2) Em um dos próximos números de "P.R." responderemos a
questáo referente a denominasao presbiteriana.
GARCÍA (Mariana): A respeito do inferno, veja "P.R." 3/1957, qu. 5.
M C (Santa Catarina): Sobre o arrebatamento de Elias aos céus,
cf "p'r'" 2/1957, qu. 9. A propósito de Elias e S. Joáo Batista, veja
"P R " 3/1957 qu. 8. A Sagrada Escritura nao ensina que Elias vol-
tar'á a térra no fim dos tempos ; nao se poderia firmar tal hipotese no
texto de Apc 11 ; cf. E. Bettencourt, A vida que comesa com a morte,

Se o caro amigo nos comunicasse o seu enderéso, poderíamos res-


ponder-lhe mais explícitamente.
BELMIRO (Sao Paulo): Sobre a distribuido do cálice consagrado
aos fiéis cf. "P.R." 9/1958, qu. 6. Trata-se de uso que, tendo estado
em vigor até o séc. XII, foi abrogado na cristandade ocidental por mo
tivo de reverencia para com a S. Eucaristía, que fácilmente m sendo
profanada. Os fiéis que comungam da hostia consagrada apenas, rece-
bem o corpo e o sangue do Senhor, como mandou Jesús.

Temos diante dos olhos varias outras perguntas, ás quais nos pro
pomos responder, em parte, nos próximos números de 'P.R._; em
parte responderíamos por carta, se nos f6sse conhecida a diregao dos
estimados consulentes. Por falta de enderecos, vemo-nos pesarosamente
.impossibilitados de entrar em contato com mais de um dos nossos dis
tintos interlocutores.

D. ESTÉVAO BETTENCOURT O. S. B.

* BIBLIOTECA CEHIRúL %

«PERGUNTE E RESPONDEREBIOS»

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