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A Ciociara
Alberto Moravia
1
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar
o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-
lo em nosso grupo.
CAPÍTULO I
2
Espécie de rolo, feito de trapo, usado para equilibrar pesos à cabeça, correspondente à nossa rodilha ou sogra.
A casinha tinha duas janelas que davam para o saguão e outras duas para a
rua; eram quatro divisões ao todo, pequeninas e baixas, mas eu mobiliei-as bem:
alguns móveis compramo-los em Campo di Fiori e outros deu-nos a minha família. O
quarto era todo novo, com o leito conjugal de ferro pintado a imitar madeira, a
caxeira enfeitada com ramos e grinaldas; na sala pus um lindo sofá de madeira com
torcidos e estofo de flores estampadas, duas cadeiras com o mesmo estofo e os
mesmos tórridos, uma mesa redonda para as refeições e um guarda louça para os
pratos, todos de porcelana fina, com um vivo de ouro e no fundo um desenho de flor
e fruta.
O meu marido descia de manhã direto para a loja e eu arrumava a casa.
Esfregava, varria, dava lustro, sacudia o pó, limpava todos os cantos, todos os
objetos; depois a casa ficava mesmo um espelho, e das janelas, com cortinas
brancas, vinha uma paz tranqüila e doce, e eu olhava para os quartos e vendo-os
tão arrumados limpos e brilhantes, com todas as coisas no seu lugar, entrava-me
não sei que alegria no coração. Ah! Como é bom ter casa nossa, onde ninguém
entra e que ninguém conhece, e passar a vida a limpá-la e a arrumá-la! Acabadas as
limpezas, vestia-me, penteava-me com cuidado pegava no cabaz e ia ao mercado
fazer compras. O mercado era mesmo ali a poucos passos, e eu andava por entre
as bancadas, mais de uma hora, não tanto para comprar, porque grande parte das
coisas tinha-as na loja, mas para ver. Andava e olhava para tudo: a fruta, os
legumes, a carne, o peixe, os ovos; entendia daquilo e gostava de calcular os preços
e os lucros, avaliar a qualidade, descobrir as trapaças e os truques dos vendedores.
Gostava também de discutir, tomar o peso às coisas, deixá-las, depois discutir outra
vez e por fim não comprar nada. Alguns vendedores faziam-me a sorte, dando-me a
entender que me ofereceriam isto e aquilo se lhes desse troco; mas eu respondia-
lhes de tal maneira que compreendiam logo que não estavam a falar com quem
julgavam.
Sempre fui orgulhosa e não é preciso muito para me subir o sangue à cabeça;
então vejo tudo vermelho e é uma sorte que as mulheres não usem facas na
algibeira, como os homens, porque, de outro modo, seria até capaz de matar. A um
vendedor que me aborrecia mais do que os outros e insistia em fazer-me propostas,
obrigando-me a aceitar-lhe presentes, corri um dia atrás dele com um grande
alfinete na mão; por sorte intervieram os guardas, senão espetava-lhe no lombo.
Bem, voltava para casa contente e, depois de pôr na água a ferver para o
caldo os temperos, alguns ossos e um bocadinho de ramo, fui imediatamente para a
loja. Também ali era feliz. Vendíamos um pouco de tudo, massa, arroz, legumes
secos, vinho, azeite, conservas, e eu estava atrás do balcão como uma rainha, os
braços nus até o cotovelo e o meu medalhão com o camafeu ao peito: recebia as
encomendas dos clientes, pesava, fazia rapidamente as contas com o lápis num
bocado de papel pardo, embrulhava-as, entregava-as. Meu marido, esse era mais
lento. Por falar no meu marido, esquecia-me de dizer que era já quase velho quando
nos casamos e houve até quem dissesse que o fiz por interesse; é verdade que
nunca estive doida por ele, mas, tão certo como Deus estar no Céu, sempre lhe fui
fiel, se bem que ele o não fosse. Tinha lá as suas manias, o pobrezinho, e a principal
era a de agradar às mulheres, o que não correspondia à verdade. Era gordo, mas
não uma gordura sã, com olhos negros, raiados de sangue, e faces pálidas com
pequenas manchas como migalhas de tabaco.
Bilioso, concentrado, grosseiro, ai de quem o contrariasse. Ausentáva-se
continuamente da loja e eu sabia que ia encontrar-se com qualquer mulher, mas
quase podia jurar que nenhuma lhe dava atenção senão a troco de dinheiro. Com
dinheiro, sabe-se, tudo se consegue, até mesmo que uma noiva levante a saia. Eu
percebia logo quando as coisas lhe corriam bem, porque então mostrava-se quase
alegre e gentil. Quando, ao contrário, não conseguia nada, ficava sombrio,
respondia-me mal e algumas vezes até me batia. Mas um dia disse-lhe:
“Vai lá para essas perdidas quando quiseres, mas não me toques, senão
deixo-te e volto para a minha casa.”
Eu não queria ter amantes, embora, como já disse, muitos homens andassem
atrás de mim; toda a minha paixão a pus na casa, na loja e, depois de ser mãe, na
minha filha. Com o amor não me importava, ou, antes, provavelmente por só ter
conhecido o meu marido, tão velho e feio, quase me enganava. Queria apenas viver
tranqüila e que me não faltasse nada. De resto, uma mulher deve ser fiel, aconteça o
que acontecer, mesmo quando o marido, como era o caso, não o é.
O meu marido, com os anos, deixou de encontrar mulheres que lhe dessem
atenção, nem por dinheiro o queriam, e tornou-se insuportável. Há muito tempo que
não fazíamos vida de casados, mas de repente, talvez à falta de melhor, apaixonou-
se de novo por mim e quis me ter à viva força, não simplesmente, como marido e
mulher, mas como as marafonas com os amantes, tentando, com certas manobras,
obrigar-me ao que nunca me agradou e nuca quis, nem mesmo quando vim para
Roma, casada de fresco, e me sentia tão feliz que cheguei quase a imaginar que
estava apaixonada por ele.
Disse-lhe que me deixasse em paz, e ele, a primeira vez, bateu-me,
fazendo-me até saltar o sangue pelo nariz; depois, vendo que eu estava mesmo
resolvida a não ceder, deixou de me importunar, mas passou a odiar-me e a
perseguir-me de todas as maneiras. Eu suportava tudo pacientemente, mas no
fundo também o odiava e não podia vê-lo. Até disse ao padre, em confissão: “Isto
um dia acaba mal”, e o padre, como verdadeiro padre, aconselhou-me a ter
paciência e a dedicar os meus sofrimentos à Virgem. Entretanto, arranjei uma
rapariga para me ajudar, uma certa Bice, de quinze anos, cujos pais ma tinham
confiado, pois era ainda quase criança, e ele começou a arrastar-lhe a asa quando
me via ocupada com os clientes, abandonava a loja, galgava os degraus a quatro e
quatro, ia à cozinha e deitava-se a ela como um lobo. Desta vez impus-me e
disse-lhe que deixasse a Bice em paz, mas, como ele insistisse em atormentá-la,
mandei-a embora. Por causa disto, o meu marido passou a odiar-me ainda mais e
foi então que começou a chamar-me labrega:
“A labrega já voltou?... Onde está a labrega?”
Em suma, era bem pesada a minha cruz, e, quando ele adoeceu a sério, devo
confessar, quase senti alívio. Tratei-o, no entanto, com todo o carinho, como se deve
tratar um marido doente, e todos sabem que nem quis saber mais da loja, só para
estar ao pé dele; até perdi o sono. Finalmente morreu e senti-me de novo quase
feliz. Tinha a loja e a casa, tinha a minha filha, que era um anjo, e na verdade não
desejava mais nada da vida.
Foram aqueles os anos mais felizes que vivi: 1940, 1941, 1942, 1943. É
verdade que havia a guerra, mas eu de guerra não percebia nada, e, como só tinha
aquela filha, não me preocupava que houvesse guerra ou não. Que se matassem
uns aos outros, com aviões, carros blindados, bombas, a mim não me importava,
bastava-me a loja e a casa para ser feliz, como de fato era. De resto, sabia pouco de
guerra, pois, embora saiba fazer contas e até assinar o meu nome num postal
ilustrado, para falar verdade, não sei ler lá muito bem e nos jornais só lia a crônica
dos crimes, ou, antes, mandava-a ler a Rosetta. Para mim, alemães, ingleses,
americanos, russos, como diz o provérbio, caça, caça, que é tudo a mesma raça.
Aos militares que apareciam na loja e diziam: venceremos além, iremos acolá,
faremos isto e mais aquilo, eu respondia: para mim tudo corre bem enquanto correr
bem o negócio. E o negócio corria realmente bem, embora houvesse aquele
inconveniente das senhas e Rosetta e eu passássemos todo o dia de tesoura na
mão, como se fôssemos costureiras, e não comerciantes. O negócio corria bem
porque eu era esperta e no peso conseguia ganhar sempre alguma coisa e também
porque, como havia racionamento, fazíamos as duas um pouco de mercado negro.
De tempos a tempos, Rosetta e eu fechávamos a loja e íamos à minha aldeia ou a
qualquer outra localidade mais próxima. Levávamos duas grandes malas de fibra,
vazias, e trazíamo-las para casa cheias de tudo: farinha, presunto, ovos, batatas.
Com os fiscais não havia complicações porque eles também tinham fome, e assim
cheguei a vender mais coisas às escondidas do que às claras. Mas a um desses
tipos meteu-se-lhe na cabeça aproveitar-se das circunstâncias. Um dia disse que me
denunciava se eu não lhe desse trela. Respondi-lhe, muito calma:
“Está bem... vai logo a minha casa.”
Ele ficou vermelho como se lhe tivesse dado um sopapo e foi-se embora sem
dizer nada. À hora combinada apareceu, mandei-o entrar pela cozinha, abri uma
gaveta, agarrei numa faca e apontei-lhe logo ao pescoço, dizendo:
“Tu denuncias-me, mas eu primeiro mato-te.”
Assustou-se e disse-me à pressa que eu era maluca, pois aquilo não passara
duma brincadeira. E acrescentou:
“Não és como as outras mulheres? Não te agradam os homens?”
Respondi-lhe:
“Vai perguntar isso às outras... eu sou viúva, tenho a minha loja e não penso
em nada mais... para mim o amor não existe, lembra-te disto, para teu governo.”
Ele não acreditou logo e durante algum tempo continuou a arrastar-me a asa,
mas respeitosamente. E eu tinha dito a pura verdade. O amor, depois do nascimento
de Rosetta, nunca mais me interessou, e talvez nem mesmo antes. Sou assim, não
suporto que alguém me ponha as mãos em cima. Se os meus pais, a seu tempo,
não tivessem combinado o meu casamento, creio que estaria ainda hoje como a
minha mãe me deitou ao mundo.
Mas a minha aparência engana, porque agrado aos homens, e, embora seja
baixa e com os anos alargasse um pouco, tenho a cara lisa, sem uma ruga, os olhos
negros e os dentes brancos. Naquele período, que, como disse, foi o mais feliz da
minha vida, perdi a conta aos homens que me propuseram casamento. Mas eu
sabia que a loja e a casa é que os seduzia, mesmo àqueles que diziam amar-me a
sério. Talvez nem eles próprios soubessem que assim era e se iludissem sobre os
seus sentimentos; mas eu julgava por mim e pensava:
“Eu trocaria qualquer homem pela loja e pela casa... Porque hão de ser eles
diferentes?... Somos todos feitos da mesma massa.”
Se ao menos fossem, não digo ricos, remediados; mas não, eram uns
pobretanas, e via-se a uma légua de distância que tinham necessidade de se
amparar. A um de Nápoles, agente da segurança pública, que mais do que qualquer
outro fazia de apaixonado e procurava conquistar-me com adulações, enchendo-me
de cumprimentos e chamando-me até, à maneira napolitana, “Dona Cesira”,
disse-lhe francamente:
“Vejamos: se eu não tivesse a loja e a casa, vinhas dizer-me essas coisas?”
Aquele ao menos foi sincero, Respondeu a rir:
“Mas como tens a casa e a loja...”
Também é verdade que foi sincero porque lhe tirei todas as esperanças.
Entretanto, a guerra prosseguia, mas a mim não me interessava, e quando,
na rádio, depois das cançonetas, liam o comunicado, dizia a Rosetta:
“Fecha, fecha essa telefonia, que se matem à vontade uns aos outros, esses
filhos duma m... não quero ouvi-los; o que nos interessa a guerra?... Eles fazem-na
sem se importarem nada com a pobre gente que tem de ir para lá... portanto, nós,
que somos a pobre gente, estamos no direito de não nos importarmos também.”
Por outro lado, devo confessá-lo, a guerra favorecia-me: vendia cada vez
mais no mercado negro, com preços ao meu gosto, e cada vez menos na loja, com
preços fixados pelo Governo. Quando começaram os bombardeamentos a Nápoles
e a outras cidades, muita gente dizia-me:
“Fujamos, se não matam-nos a todos.”
Eu respondia:
“A Roma não vêm, porque em Roma está o papa... e, se me vou embora,
quem cuida da loja?”
Também os meus pais me escreveram da aldeia, convidando-me a ir para lá,
mas recusei. Rosetta e eu íamos cada vez mais freqüentemente ao campo e
trazíamos nas malas tudo o que encontrávamos: no campo havia abundância de
mantimentos, os camponeses não queriam vendê-los ao Governo, que pagava
pouco, e esperavam por nós, os do mercado negro, que pagávamos preços altos.
Além do que metíamos nas malas, trazíamos muitas outras coisas; lembro-me que
uma vez voltei a Roma com alguns quilos de salsichas enroladas em volta da
cintura, debaixo da saia, e até parecia grávida. Rosetta escondia os ovos no seio e,
quando os tirava, estavam tão quentes como se acabassem de sair da galinha.
Estas viagens, porém, eram longas e perigosas; uma vez, para os lados de
Frosinone, um avião metralhou o comboio e estivemos parados em pleno campo;
disse a Rosetta que descesse e se escondesse em qualquer fosso, mas eu não
desci porque tinha as malas cheias e no compartimento havia algumas caras pouco
tranqüilizadoras e uma mala depressa se rouba. Estendi-me no chão, entre os
assentos, com as almofadas em cima do corpo e da cabeça, e Rosetta desceu com
os outros e escondeu-se num fosso. O avião, depois de nos metralhar a primeira
vez, deu uma volta no céu e voltou à carga, voando baixo por cima do comboio
parado, com um barulho infernal dos motores e o tique-tique continuo das
metralhadoras, como granizo. Passou, afastou-se e tudo ficou em silêncio.
Finalmente, os passageiros voltaram ao compartimento e o comboio partiu, Daquela
vez até me mostraram as balas, compridas como um dedo; uns diziam que eram
americanas, outros afirmavam que eram alemãs.
Eu disse a Rosetta:
“Temos de ganhar para o enxoval e para o dote. Os soldados voltam da
guerra, não é verdade? E na guerra estão sempre a disparar contra eles, procurando
matá-los de todas as formas... Pois bem, nós também havemos de voltar a salvo
destas viagens.”
Rosetta não respondia, ou então dizia-me que iria aonde eu fosse. Tinha um
feitio meigo, diferente do meu, e Deus sabe que, se alguma vez houve um anjo na
Terra, ela era mesmo um anjo. Eu dizia-lhe constantemente:
“Pede a Deus que a guerra dure ainda alguns anos... porque então não só
terás um bom enxoval e um bom dote, mas serás rica.”
Ela não respondia, ou suspirava, e por fim soube que o namorado andava na
guerra e ela tinha medo que o matassem. Escreviam-se, ele estava nessa altura na
Iugoslávia; pedi informações e vim a saber que era um bom rapaz de Pontecorvo,
onde os pais tinham umas territas; estudava para guarda-livros e interrompera os
estudos por causa da guerra, mas contava retomá-los quando a guerra acabasse.
Então, disse a Rosetta:
“O principal é que ele volte... do resto encarrego-me eu.”
Rosetta abraçou-me, muito feliz. E eu podia de fato dizer, nessa altura. “do
resto encarrego-me eu”: tinha a casa, tinha a loja, tinha dinheiro guardado, e as
guerras, já se sabe, um dia tem de acabar e tudo volta aos seus lugares. Rosetta até
me deu a ler a última carta do noivo e lembro-me sobretudo duma frase: “Aqui temos
uma vida muito dura. Estes eslavos não querem submeter-se e estamos sempre em
estado de alerta.” Eu não sabia nada da Iugoslávia, mas mesmo assim disse a
Rosetta:
“Que diabo fomos nós fazer a esse país? Não podíamos ficar na nossa casa?
Eles não querem submeter-se e tem razão, digo-te eu.”
Em 1943 fiz um negócio importante: consegui trazer uma dezena de
presuntos de Sermoneta para Roma. Arranjei maneira de chegar a acordo com o
dono duma camioneta que transportava cimento, ele meteu os presuntos debaixo
dos sacos e assim chegaram sãos e salvos e eu ganhei bastante dinheiro, pois toda
a gente os queria. Foi talvez por causa dos presuntos que nem dei conta do que
estava a suceder. Ao voltar de Sermoneta disseram-me que Mussolini tinha fugido e
que a guerra ia acabar. Eu respondi:
“Para mim, Mussolini ou Badoglio ou outro qualquer, pouco me importa,
contanto que se faça negócio.”
Com Mussolini, de resto, nunca me importei, achava-o antipático, por causa
dos olhos ameaçadores e daquela boca que nunca se calava; aliás sempre pensei
que as coisas lhe começassem a correr mal, desde o dia em que se meteu com a
Petacci, pois o amor faz perder a cabeça aos homens velhos e Mussolini já era avô
quando conheceu aquela rapariga. A única vantagem dessa noite de 25 de Julho foi
terem posto a saque um armazém da Intendência, na Via Garibaldi. Fui lá, como
muitos outros, e levei para casa, à cabeça, um queijo parmesão. Mas havia ali de
tudo e não ficou nada para amostra. Um vizinho meu levou para casa, num carrinho,
o fogão de sala, de terracota, que estava no gabinete do administrador.
Durante aquele verão fizeram-se bons negócios, toda a gente tinha medo e
amontoava em casa coisas e mais coisas e nunca lhe pareciam bastante. Havia
mais gêneros nas adegas e despensas do que nas lojas. Lembro-me que um dia
levei um presunto a uma senhora, para os lados da Via Veneto. Morava num lindo
palácio. Um criado de libré abriu-me a porta, eu levava o presunto na mala do
costume, e a senhora, muito bonita e perfumada, com tantas jóias que até parecia
Nossa Senhora, veio ao meu encontro na antecâmara, e atrás dela o marido,
baixinho e gordo, e quase me beijou, tal era a sua gratidão, dizendo-me:
“Querida... oh! querida... venha por aqui, faça favor... entre, entre.”
Eu segui-a por um corredor e a senhora abriu a porta da despensa: havia ali
de tudo, mais do que numa mercearia. Era uma divisão sem janelas, com prateleiras
de alto a baixo, sobre as quais se alinhavam todas as qualidades de gêneros: aqui,
uma fila de caixas grandes, das de quilo, de sardinhas em azeite; ali, outras
conservas finas, americanas ou inglesas; mais além, pacotes de massa, sacos de
farinha e de feijão, frascos de doce e, pelo menos, uma dezena de presuntos e
paios. Eu disse-lhe:
“Minha senhora, tem aqui que comer para dez anos.”
Mas ela respondeu:
“Nunca se sabe.”
Pôs o presunto ao lado dos outros, o marido pagou-me ali mesmo e,
enquanto tirava o dinheiro da carteira, as mãos tremiam-lhe de alegria e não fazia
senão repetir:
“Quando tiver coisas boas, lembre-se de nós... estamos dispostos a pagar
vinte e até trinta por cento mais do que os outros.”
Em suma, toda a gente queria coisas de comer e pagava qualquer preço sem
hesitar; por isso nem pensei em guardar para mim fosse o que fosse, pois me
habituara a considerar o dinheiro a coisa mais preciosa; mas o dinheiro não se come
e, quando a escassez chegou, não tinha absolutamente nada. Na loja, as prateleiras
estavam vazias, não restavam senão alguns pacotes de massa e umas caixas de
sardinha de má qualidade. Tinha, sim, uns cobres amealhados em casa, e não no
banco, por precaução, pois dizia-se que o Governo queria fechar os bancos e ficar
com as economias dos pobres; mas agora o dinheiro já ninguém o queria e, além
disso, não me agradava nada, depois de o ter ganho no mercado negro, ir gastá-lo
no mesmo mercado, onde os preços quase atingiam as estrelas.
Entretanto, tinham voltado os alemães e os fascistas e uma manhã, ao passar
na Praça Colonna, vi a grande bandeira negra dos fascistas a flutuar no balcão do
palácio de Mussolini e toda a praça cheia de homens com camisas negras, armados
até aos dentes. Os que tinham feito todo aquele barulho na noite de 25 de Julho
fugiam agora rente aos muros, como ratos quando aparece o gato. Eu disse a
Rosetta:
“Oxalá uns ou outros vençam rapidamente a guerra, a ver se podemos comer
seja o que for.”
Estávamos no mês de setembro e uma manhã disseram-me que havia uma
distribuição de ovos para os lados da Via della Vite. Fui lá e vi de fato dois
caminhões cheios de ovos. Mas não distribuíam nada e um alemão de calções e em
mangas de camisa, com uma espingarda-metralhadora a tiracolo, vigiava a
descarga. Juntaram-se muitas pessoas em volta a ver descarregar os ovos sem
dizerem nada, mas de olhos esgazeados, como se estivessem cheias de fome, e na
verdade estavam.
Via-se que o alemão tinha medo que o agredissem, pois não fazia outra coisa
senão voltar-se para todos os lados, a mão na espingarda-metralhadora, dando
saltos como uma rã na margem dum pântano. Era novo, gordo e branco, muito
vermelho por causa do sol, com queimaduras nas coxas e nos braços como se
tivesse passado o dia à beira-mar. A multidão, vendo que não distribuíam os ovos,
começou e murmurar, primeiro baixinho, depois cada vez mais alto, e o alemão, que
estava cheio de medo, via-se a uma légua de distância, pegou na espingarda e
apontou-a para nós, dizendo:
“Embora, embora, embora!”
Então perdi a cabeça, naquela manhã não tinha comido nada e estava com
fome, e gritei-lhe:
“Dá-nos os ovos, que nós vamo-nos embora!”
Ele repetiu:
“Embora, embora”, apontando-me a espingarda; fiz um gesto, a indicar que
tinha fome, levando a mão à boca.
Mas ele não se deu por entendido e de repente pôs-me o cano da espingarda
mesmo sobre o estômago, com tal força que me magoou. Foi tanta a minha raiva
que gritei:
“Fizeram mal em mandar embora Mussolini... estava-se melhor no tempo
dele... desde que vocês vieram, não há que comer.”
Não sei porquê, a estas palavras toda a gente começou a rir e alguns
chamaram-me “labrega”, tal qual como o meu marido; um disse-me:
“Em Sgurgola não se lêem jornais?”
Respondi enfurecida:
“Sou de Vallecorsa, e não de Sgurgola... além disso, não te conheço e não
falo contigo.”
Mas os outros continuavam a rir e até o alemão parecia querer rir também.
Entretanto iam descarregando os ovos, em caixas abertas, muito brancos e indos, e
levavam-nos para dentro do armazém. Então, gritei:
“Ah! malandros, queremos os ovos, compreendem... queremos os ovos!”
Da multidão saiu um polícia e ordenou-me:
“Vai-te embora, que é melhor...”
Respondi-lhe:
“Já comeste hoje? Eu ainda não.”
Ele então deu-me uma bofetada e empurrou-me para o meio da turba.
Palavra que até tive vontade de o matar; e debatia-me, dizendo-lhe tudo o que me
vinha à cabeça; mas em volta empurravam-me para me afastarem dali e por fim tive
de me ir embora mesmo. Na balbúrdia, até perdi o lenço. Fui para casa e disse a
Rosetta:
“Se não sairmos daqui a tempo, acabamos por morrer de fome.”
Ela pôs-se a chorar e murmurou:
“Mamã, tenho tanto medo!”.
Senti-me mal, porque até esse momento Rosetta nunca se lamentara e mais
de uma vez me tinha encorajado com a sua tranqüilidade. Disse-lhe:
“Pateta, porque tens medo?”
Ela respondeu:
“Dizem que vêm com aviões e matam-nos a todos... parece que têm um
plano: primeiro destroem as linhas férreas os comboios e depois, quando Roma
estiver isolada e não houver mais nada que comer e ninguém puder fugir para o
campo, matam-nos a todos com os bombardeamentos... Oh! mamãe, tenho tanto
medo... e Gino não me escreve há mais de um mês e não sei nada dele!...”
Tentei consolá-la, dizendo-lhe as coisas do costume, que eu já não sabia se
eram verdades: que em Roma estava o papa, que os alemães iam ganhar depressa
a guerra, que não havia razão para ter medo. Mas ela continuava a soluçar. Por fim
apertei-a nos braços e embalei-a como quando tinha dois anos. Enquanto a
acariciava e ela chorava e repetia:
“Tenho tanto medo, mamã!”, pensava que ela não se parecia comigo, pois
não tenho medo de nada nem de ninguém.
Mesmo fisicamente, não havia entre nós grandes parecenças: Rosetta tinha
uma cara de borreguinha, olhos grandes, de expressão doce e quase ardente, o
nariz fino arqueado um pouco para o lábio e uma boca bonita e carnuda ligeiramente
proeminente em relação ao queixo fugidio, tal como o das ovelhas. Os seus cabelos
lembravam a lã dos cordeiros, dum louro-escuro, muito espessos e encaracolados, e
a pele era branca, delicada, salpicada de sardas, ao passo que eu tenho os cabelos
negros e a carnação morena, como queimada do sol. Finalmente, para acalmá-la,
disse-lhe:
“Todos pensam que a chegada dos ingleses é uma questão de dias e, quando
vierem, acaba a escassez... entretanto, sabes o que vamos fazer? Vamos para junto
dos teus avós, para a aldeia, enquanto a guerra não acaba. Há lá que comer,
feijões, ovos, porcos. No campo encontra-se sempre qualquer coisa.”
Ela perguntou então:
“E a casa?”
Respondi:
“Minha filha, também já pensei nisso... arrendo-a a Giovanni... arrendo-a é
uma maneira de dizer... quando voltarmos, ele entrega-nos a casa tal qual... A loja,
fecho-a, tanto mais que não tem nada dentro e durante algum tempo não haverá que
vender.”
É bom saber-se que Giovanni era comerciante de carvão e lenha e fora amigo
do meu marido. Era um homenzarrão, calvo, de cara vermelha, bigodes eriçados e
olhos meigos. Em vida do meu marido tinham sido companheiros, à noite, na
taberna, com outros negociantes do bairro. Vestia habitualmente fatos largos e
amarrotados e trazia sempre metade dum charuto apagado entre os dentes, debaixo
dos bigodes; nunca o vi sem um canhenho e um lápis na mão, pois andava
constantemente a fazer contas e a tomar notas e apontamentos. As suas maneiras
eram, como os seus olhos, doces, afetuosas, familiares, e, quando Rosetta era
pequena, perguntava sempre que me via:
“Como está a boneca?... O que faz a boneca?”
Direi ainda... mas não estou bem certa, porque há coisas que acontecem e
depois se duvida que tenham sucedido, principalmente se as pessoas, como neste
caso, não falam mais no assunto e se comportam como se nada se tivesse passado.
Giovanni, ainda em vida do meu marido, subiu um dia a minha casa, não me lembro
a que pretexto; eu estava junto do fogão a cozinhar e ele sentou-se e começou a
falar disto daquilo e por fim, do meu marido. Eu Julgava que eram amigos, e por isso
pode imaginar-se a minha surpresa quando, de repente, o ouvi perguntar:
“Mas dize-me lá, Cesira, como consegues aturar esse malandro?”
Disse assim mesmo, “malandro", e eu nem queria acreditar no que ouvia e
voltei-me para ele: estava sentado tranqüilamente, o charuto apagado ao canto da
boca. Acrescentou:
“Já não se agüenta em pé e qualquer dia morre...mas antes, à força de andar
metido com prostitutas, ainda te pega alguma doença ruim."
Respondi:
“Quero lá saber do que faz o meu marido!... Quando entra em casa, já tarde,
mete se na cama, eu volto-me para o outro lado, e boa noite.”
Então ele disse ou pareceu-me ouvir:
“Mas tu ainda és nova; queres ir para freira? És nova e precisas dum homem
que te queira bem.”
Eu tornei-lhe:
“Que te importa? Não preciso de homens e, mesmo que precisasse, que
tinhas tu com isso?”
Nesta altura ele levantou-se, parece-me que estou a vê-lo, veio ao pé de mim
e pegou me no queixo, dizendo:
“Com vocês, mulheres, é preciso falar sempre pão pão, queijo queijo... Eu
estou aqui, não vês? Nunca pensaste em mim?”
Já passaram tantos anos e as minhas recordações baralham-se neste ponto.
Mas estou quase certa de que me fez propostas de amor e lembro-me de lhe ter
respondido:
“Não te envergonhas? Vicenzo é teu amigo.”
Ele retorquiu:
“Qual amigo! Não sou amigo de ninguém.”
E em seguida, posso jurá-lo, disse-me que, se quisesse ser dele, me dava
dinheiro. Abriu a carteira e, ali mesmo, na mesa da cozinha, começou a pôr, uma a
uma, muitas notas, enquanto me fitava e repetia:
“Mais ainda? Ou basta?”
Quando lhe disse, sem me zangar, que desaparecesse, guardou as notas e
saiu. Tudo isto sucedeu com certeza, porque não o podia ter inventado, mas no dia
seguinte ele não disse uma palavra sobre o assunto, nem nos outros dias, nem
nunca mais. A sua atitude para comigo voltou a ser o que sempre fora, simples e
afetuosa, de tal maneira que comecei a perguntar a mim mesma se acaso não teria
sonhado que ele chamara malandro ao meu marido e me fizera propostas de amor e
pusera dinheiro em cima da mesa da cozinha. Com o decorrer dos anos, essa
sensação de que tudo fora um sonho prevaleceu no meu espírito. Mas, ao mesmo
tempo, não sei porquê, tinha a impressão de que Giovanni era o único homem que
gostava de mim a valer, só pelo que eu era, não pelo que possuía, e o único
também que me poderia valer numa ocasião de apuro.
Por isso fui ter com Giovanni: encontrei-o na sua cave negra, cheia de molhos
de lenha e sacos de carvão, únicas mercadorias que havia em Roma naquela altura.
Disse-lhe o que queria e ele ouviu-me em silêncio, piscando os olhos e mordiscando
o charuto meio apagado. Por fim, anuiu:
“Está bem... olharei pela loja e pela casa enquanto estiveres fora... É uma
maçada, especialmente nos tempos que correm... nem sei mesmo porque o faço...
admitamos que seja por aquela boa alma...”
Estas palavras soaram-me mal, pois parecia-me estar ainda a ouvi-lo: “Como
consegues aturar esse malandro?” E mais uma vez me custava a acreditar no que
ouvia. De repente escapou-me:
“Espero que o faças também por mim.”
Não sei porque o disse, talvez por estar convencida de que ele me queria
bem e de que sentiria prazer, naquele momento difícil, de o ouvir afirmar que o fazia
também por mim. Ele olhou-me um instante, tirou o charuto da boca e pousou o na
beira da mesa. Depois foi até a porta da cave, subiu os degraus, fechou-a, pos a
tranca, correu o ferrolho, e ficamos completamente às escuras.
Compreendi logo tudo, fiquei sem poder respirar, o coração batia-me
apressado, mas não posso dizer que aquilo me desagradava: sentia-me, sim,
perturbada. Imagino que a culpa foi das circunstâncias: Roma inteira em desordem,
a carestia, o medo, o desespero de deixar a loja e a casa e a sensação de não ter
um homem ao meu lado, como todas as outras mulheres, que naquele momento me
ajudasse e desse coragem. A verdade é que, pela primeira vez na minha vida,
enquanto Giovanni, no escuro, caminhava ao meu encontro, senti o corpo
quebrar-se-me, tornar-se fraco, vencido; e, quando chegou ao pé de mim, sempre
no escuro, e me tomou nos braços, o meu primeiro impulso foi apertar-me contra ele
e unir a minha à sua boca, arquejante. Ele empurrou-me para cima duns sacos de
carvão e ali me entreguei, sentindo que era a primeira vez que me dava
verdadeiramente a um homem: e, embora os sacos fossem duros, experimentei uma
sensação de alívio e de conforto: quando tudo acabou e ele se afastou de mim,
fiquei ainda um bom bocado estendida em cima dos sacos, tonta e feliz; quase me
parecia ter voltado à juventude, ao tempo em que cheguei a Roma com o meu
marido, sonhando experimentar uma sensação semelhante e, ao contrário, passara
a ter nojo dos homens e do amor. Por fim, ele perguntou-me no escuro se eu queria
falar do nosso negócio; levantei-me e disse-lhe que sim, então acendeu uma
lamparina e, à sua luz fraca, vi-o sentado à mesa, como antes, como se nada
tivesse acontecido, o charuto entre os dentes, os olhos semicerrados. E disse-lhe,
aproximando-me:
“Jura-me que nunca contarás a ninguém o que se passou hoje... Jura!”
Giovanni sorriu e respondeu:
“Não sei a que te referes... Não te compreendo... Vieste falar-me a respeito da
casa e da loja, não é verdade?”
De novo tive a impressão de ter sonhado e, se não fosse o vestido em
desalinho e as mascarras de carvão bem visíveis, por me ter rebolado em cima dos
sacos, na verdade podia pensar que nada acontecera. Balbuciei, desconcertada:
“Sim, tens razão... vim por causa da casa e da loja.”
Ele então pegou numa folha de papel, escreveu uma declaração na qual eu
dizia que lhe alugava a casa e a loja por um ano e mandou-me assinar. Depois
meteu a folha de papel numa gaveta. Foi abrir a porta e disse:
“Estamos entendidos... hoje vou lá a casa fazer o inventário e amanhã vou
buscá-las e acompanho-as à estação.”
Estava ao pé da porta e, quando passei em frente para sair, deu-me uma
palmada no rabo, sorridente, como se dissesse:
“Estamos entendidos também neste negócio...”
Pensei comigo mesma que já não tinha o direito de protestar, deixara de ser
uma mulher honesta, e admiti que isto também era um efeito da guerra e da
carestia; uma mulher honesta, em certa altura, sente que lhe dão assim uma
palmada e não pode dizer nada, precisamente porque já não é honesta...
Voltei para casa e comecei logo a fazer os preparativos da partida.
Desagradava-me, confrangia-me o coração ter de deixar aquela casa onde passara
os últimos vinte anos, sem nunca me afastar dela, a não ser para as viagens do
mercado negro. Estava convencida, é certo, que os Ingleses chegariam dum
momento para o outro, dai a uma semana ou duas, e preparava-me para uma
ausência de um mês apenas; mas, ao mesmo tempo, tinha não sei que
pressentimento não só duma ausência maior, mas também de que o futuro me
reservava qualquer tristeza. Nunca me importara com a política e não sabia nada
dos fascistas, Ingleses, Russos ou Americanos: todavia, à força de ouvir falar de
tudo isso à minha volta, não digo que compreendesse já alguma coisa, porque, para
falar verdade, não compreendia patavina, mas percebia que não andava nada de
bom no ar para a pobre gente como nós. Era como no campo quando o céu se põe
negro à aproximação da tempestade, as folhas das árvores se voltam todas para o
mesmo lado, as ovelhas se encostam umas às outras e, embora no pino de verão,
sopra um vento frio rente à terra, não se sabe de onde. Tinha medo, mas não sabia
de que, e apertava-me o coração ao pensar que ia deixar a minha casa e a minha
loja, como se soubesse ao certo que não as tornaria a ver. Disse, porém, a Rosetta:
“Não leves muita roupa, pois não estaremos lá mais de duas semanas e ainda
faz calor.”
De fato, estávamos em meados de setembro e fazia bastante calor, mais do
que nos outros anos. Assim, enchemos duas pequenas malas de fibra com roupas
leves e metemos nelas somente dois casacos de malha, para o caso de fazer frio.
Eu, querendo consolar-me da partida, descrevia constantemente a Rosetta o
acolhimento que os meus pais nos fariam lá na aldeia:
“Verás, vão encher-nos de comida até mais não podermos... engordaremos e
descansaremos... no campo não existem todas estas coisas que tornam difícil a vida
em Roma... estaremos bem, dormiremos bem, e sobretudo comeremos melhor...
verás: têm porco, farinha, fruta, vinho... Vai ser uma vida regalada.”
Mas a Rosetta esta perspectiva parecia que não bastava para a alegrar,
pensava no noivo, que estava na Iugoslávia e há um mês não dava notícias. Eu
sabia que ela se levantava cedo todas as manhãs e ia à igreja rezar por ele, para
que não lho matassem e voltasse e pudessem casar.
Querendo mostrar que a compreendia, disse-lhe, abraçando-a e beijando-a:
“Querida filha, tranqüiliza-te, Nossa Senhora vê-te e ouve-te e não permitirá
que te suceda nenhum mal.”
Entretanto, continuava os preparativos da abalada e agora, passado o
momento das apreensões, parecia-me que nunca mais chegava a hora de partir.
Talvez porque nos últimos tempos, com os alarmes aéreos, a falta de comida, a
idéia de partir e tantas outras coisas, a vida para mim já não era vida, até nem tinha
vontade de limpar a casa, eu que habitualmente me punha de joelhos no chão para
lhe dar brilho e não parava de esfregar enquanto tinha fôlego, tornando-a luzidia
como um espelho. Parecia-me que a vida se desconjuntara, como uma caixa que cai
dum carro e se desfaz, espalhando tudo o que contém na rua. Se pensava no que
acontecera com o Giovanni, sobretudo na palmada que ele me dera, sentia-me
desconjuntada como a vida e capaz de fazer não sei o quê. Até de roubar ou de
matar, porque perdera o respeito por mim mesma e já não era o que fora antes.
Consolava-me pensando em Rosetta, que. Ao menos, tinha a mãe para a proteger.
Ela seria aquilo que eu já não era. Ah! Na verdade, a vida é feita de hábitos e até a
honestidade é um hábito também; e, assim que se muda de hábitos, a vida torna-se
um inferno, somos diabos à solta, sem respeito por nós próprios nem pelos outros.
Rosetta estava preocupada com o seu gato, um lindo gato pardo que
encontrara na rua ainda pequenino e criara com todo o carinho: à noite dormia com
ela na cama e de dia seguia-a para toda a parte como um cãozinho. Disse-lhe que o
confiasse à porteira do prédio ao lado e respondeu-me que assim faria. Agora
estava sentada no quarto, aos pés da cama, sobre a qual se encontrava a mala de
viagem, já fechada, com o gato nos joelhos, e acariciava-o devagarinho. O gato,
coitado. Não adivinhando que a dona o ia abandonar, fazia ronrom de olhos
fechados. Tive pena, vi que ela sofria, e disse-lhe
“Querida filha... deixa passar este mau bocado, que depois tudo entrará nos
eixos... a guerra acaba, volta a abundância, tu casas-te, viverás com o teu marido e
serás feliz.”
Precisamente nesse momento, como para me dar resposta, soou a sirene de
alarme, aquele ruído maldito que me parecia trazer mau agouro e me confrangia
sempre o coração. Então possuiu-me não sei que raiva, abri a janela que dava para
o saguão, levantei o punho para o céu e gritei:
“Que morras e nem a alma se te aproveite e mais quem te mandou cá vir!”
Rosetta, que não se mexera, observou:
“Mamã, porque te zangas tanto? Disseste agora mesmo que tudo há de voltar
ao seu lugar..."
Por amor daquele anjo, acalmei-me, embora com esforço, e respondi:
“Sim, mas entretanto temos de sair da nossa casa e quem sabe o que
sucederá mais ainda...”
Naquele dia sofri as penas do inferno. Parecia-me que já não era eu. Ora
pensava no que tinha sucedido com Giovanni, que me entregara a ele como
qualquer reles mulher da rua, completamente vestida, em cima dos sacos de carvão,
e dava-me vontade de morder as mãos de raiva: ora olhava em volta, para a casa
que fora minha durante vinte anos e que tinha agora de deixar, e sentia-me
desesperada. Na cozinha, o lume estava apagado; no quarto, onde eu dormia com
Rosetta no leito conjugal, os lençóis estavam revolvidos, em desordem; e não sentia
forças para fazer a cama, na qual sabia que não havia de dormir tão cedo, nem para
acender o fogão, que no dia seguinte já não seria meu e onde não tornaria a
cozinhar.
Comemos, na mesa sem toalha, pão e sardinhas; de vez em quando olhava
para Rosetta, muito triste, e sentia um nó na garganta, cheia de pena e de medo por
ela, pensando que tivera pouca sorte em nascer e viver nos tempos que corriam. Por
volta das duas horas deitamo-nos na cama por fazer e dormimos um pouco; ou,
melhor, Rosetta adormeceu, muito aconchegada a mim, e eu fiquei de olhos abertos,
pensando todo o tempo em Giovanni, nos sacos de carvão e na palmada que ele me
dera, na casa e na loja que ia deixar. Finalmente bateram à porta; furtei-me com
todo o cuidado ao peso de Rosetta adormecida e fui abrir. Era Giovanni, sorridente,
de charuto na boca. Nem o deixei respirar:
“Ouve”, disse-lhe, furiosa, “o que aconteceu, aconteceu, e não sou mais o que
era antes, concordo, e tens razão para me tratar como uma prostituta... mas se me
dás outra palmada como esta manhã, mato-te, tão certo como Deus existir... depois
vou para a prisão, mas nesta altura pode ser até que se esteja lá bem, e vou de boa
vontade.”
Ele apenas arqueou um pouco as sobrancelhas, surpreendido, mas não disse
nada. Passou à antecâmara, pronunciando baixinho:
“Então vamos lá fazer o inventário.”
Fui ao quarto e peguei numa folha de papel em que mandara escrever a
Rosetta tudo quanto tinha em casa e na loja. Ali discriminara até os mais pequenos
objetos, não porque desconfiasse de Giovanni, mas porque é mais seguro não
confiar em ninguém. Assim, antes de começar o inventário, disse-lhe, muito séria:
“Olha que tudo isto foi ganho com o meu suor e o do meu marido, em vinte
anos de trabalho... toma cuidado, guarda tudo bem, lembra-te que um prego é um
prego, e aqui dentro não deve faltar nada quando eu voltar.”
Ele sorriu e respondeu:
“Está descansada, encontrarás cá os pregos todos”.
Comecei pelo quarto. Tinha feito duas cópias desta lista: uma entreguei-a a
ele e outra a Rosetta e eu ia indicando os objetos. Mostrei-lhe a cama, para duas
pessoas, de ferro pintado a imitar madeira, tão bonita, com todos os veios a
conhecerem-se, que qualquer um julgaria ser de nogueira. Levantei a coberta e
mostrei-lhe que tinha dois colchões, um de crina e outro de lã. Abri o armário e
contei as colchas, os lençóis e toda a roupa branca. Abri as mesinhas de cabeceira
e mostrei-lhe os bacios de porcelana, com flores vermelhas e azuis. Depois
enumerei os móveis: uma cômoda com tampo de mármore branco, um espelho oval
com moldura dourada, quatro cadeiras, uma cama, duas mesinhas de cabeceira, um
guarda-vestidos com espelho nos dois batentes. Apontei todas as ninharias: uma
redoma de vidro com um ramo de flores de cera que pareciam mesmo verdadeiras,
prenda de casamento da minha madrinha; uma caixa de porcelana para amêndoas;
duas estatuetas que representavam uma pastorinha e um pastorinho; uma almofada
de veludo azul para alfinetes; uma caixa de música de Sorrento que, quando se
abria, tocava uma ariazinha e tinha na tampa um embutido representando o Vesúvio;
duas garrafas para água e os respectivos copos de vidro gravado e maciço; uma
jarra de porcelana colorida, em forma de tulipa, com três penas de pavão muito
bonitas em vez de flores; dois quadros a cores, um com a Nossa Senhora e o
Menino e outro com uma cena de teatro, um mouro e uma mulher loura, que me
tinham dito ser duma ópera chamada Otelo, que era também o nome do mouro. Do
quarto passei à sala de jantar que servia igualmente de sala de visitas e onde tinha a
máquina de costura. Aqui quis que ele tocasse na mesa redonda, de nogueira
escura, com um centro bordado e uma jarra de flores igual à do quarto e quatro
cadeiras em volta, forradas de veludo verde; depois abri o guarda-louça e contei
peça por peça todo o serviço de porcelana com flores e grinaldas, muito bonito, para
seis pessoas, que talvez tivesse servido apenas umas duas vezes em toda a minha
vida. Nessa altura adverti-o:
“Olha que quero tanto a este serviço como à luz dos meus olhos... se o
partires, verás...”
Ele respondeu a sorrir:
“Está descansada.”
Continuando o inventário, mostrei-lhe todos os outros objetos: dois quadros
de flores, a máquina de costura, o aparelho de rádio, o sofá estofado com as duas
poltronas, a licoreira, de vidro cor-de-rosa e azul, com seis cálices, algumas caixas
para bolos, um bonito leque que estava pendurado na parede, de várias cores, com
uma vista de Veneza. Depois passamos à cozinha e aqui contei, peça por peça, todo
o trem de cozinha, panelas de alumínio e de cobre, faqueiro de aço inoxidável, e
mostrei-lhe que não faltava nada, nem o forno, nem a máquina de esmagar batatas,
nem o armariozinho das vassouras, nem o caixote do lixo. Em suma, viu tudo; a
seguir descemos à loja. Aqui o inventário foi mais rápido porque, fora as prateleiras,
o balcão e algumas cadeiras, não ficara nada, tudo se tinha vendido, fora uma
limpeza geral nos últimos meses de penúria. Finalmente voltamos para cima. Então
suspirei, desanimada:
“Para que serve este inventário?... Sinto que não voltarei mais.”
Giovanni, que se sentara e fumava, abanou a cabeça e respondeu:
“Os ingleses chegam daqui a quinze dias, até os fascistas o dizem... vais para
férias duas semanas e voltas e faremos uma bela festa quando chegares... Que
dizes a isto?”
Giovanni, depois destas palavras, ainda acrescentou muitas outras para nos
consolar e quase o conseguiu; assim, quando se foi embora, ficamos mais animadas
e ele, desta vez, embora estivéssemos sozinhos na antecâmara, não repetiu a
palmada, contentou-se em fazer-me uma caricia na face, como costumava fazer
muitas vezes em vida do meu marido, e eu fiquei lhe grata e quase me pareceu, na
verdade, que nada se passara entre nós e continuava a ser a mesma que sempre
fora.
O resto do dia passei-o a ultimar os preparativos. Primeiro que tudo, fiz um
grande embrulho da comida para a viagem: um salame, caixas de conserva de
sardinha e de atum e um bocado de pão. Para o meu pai e a minha mãe fiz um
embrulho à parte: para o meu pai, um fato do meu marido, quase novo, que ele
mandara fazer pouco antes de morrer e me pedira que lho vestisse quando fosse
para a cova; mas eu, no último momento, pensei que era um pecado estragar assim
um fato tão bom de lã azul e embrulhei-o num lençol velho. Meu pai tinha quase a
mesma estatura que o meu marido e ao fato juntei também os sapatos, Já usados,
mas ainda em bom estado. Para a minha mãe, decidi levar-lhe um xale e uma saia.
Meti no pacote tudo o que me restava de salsicharia e de mercearia, alguns quilos
de açúcar e de café, conservas e dois salames. Pus estas coisas numa terceira
mala, de modo que tínhamos agora três malas, mais um saco em que pus duas
almofadas, para o caso de sermos obrigadas a dormir no comboio. Toda a gente me
dizia que os comboios levavam dois dias a chegar a Nápoles e nós íamos
precisamente até meio caminho entre Roma e Nápoles; por isso pensei que estas
precauções não eram demasiadas.
À noite sentamo-nos à mesa, mas desta vez cozinhara alguma coisa para não
entristecer ainda mais; mal tínhamos começado, soou o alarme e vi que Rosetta se
tornava pálida de medo, toda ela tremia; compreendi que, depois de resistir tanto
tempo, agora já não podia mais, tinha os nervos num feixe.
Resignei-me a deixar a ceia e descemos para a cave, precaução aliás inútil,
porque, se caísse alguma bomba, a nossa casa, velha como era, ficava feita em pó
e nós enterrados debaixo dela. Mesmo assim, lá fomos para o abrigo, onde já
estavam todos os inquilinos do prédio, e aí passamos três quartos de hora, sentadas
nos bancos, no escuro. Todos falavam da chegada dos Ingleses como de coisa
certa, daí a poucos dias. Tinham desembarcado em Salerno, que fica ao pé de
Nápoles, e de Nápoles a Roma não levavam talvez uma semana, mesmo a andar
devagar, porque os alemães e os fascistas fugiam agora como lebres e não
paravam senão nos Alpes. Alguns, porém, diziam que os Alemães se preparavam
para defender Roma, pois Mussolini continuava na cidade e não se importava nada
que ela ficasse reduzida a escombros, contanto que os Ingleses lá não entrassem.
Eu ouvia estas coisas e pensava que fazia bem em ir-me embora. Rosetta
achegava-se muito a mim e eu compreendia que ela agora estava cheia de medo e
só sossegara quando saíssemos de Roma. Em certa altura, alguém atirou:
“Vê bem o que dizem? Que vão lançar pára-quedistas e que eles entram nas
casas e fazem coisas do arco-da-velha.”
“O quê?”
“Bem, primeiro pilham o que encontrarem, depois atiram-se às mulheres.”
Então eu disse:
“Sempre quero ver se algum tem a coragem de me tocar.”
No escuro a voz dum tal Proietti, um padeiro, homem estúpido como não
havia outro e de língua comprida, com quem nunca simpatizei proferiu, numa risada
“A ti talvez não te toquem, porque já és velha, mas à tua filha, não digo nada.”
Respondi:
“Vê lá como fala... eu tenho trinta e cinco anos, pois casei com dezesseis, e
há ainda quem queira casar comigo, se não tornei a casar, foi porque não quis.”
“Sim”, respondeu ele, “a raposa e as uvas.”
Eu disse então, furiosa:
“É melhor que penses na cabra da tua mulher... ela já agora tos põe e não
estão cá os pára-quedistas... imagina o que não será depois...”
Julgava que a mulher estivesse na aldeia, eles eram de Sutri e tinha-a visto
partir uns dias antes; no entanto, por coincidência, ela estava também no abrigo e eu
não a vira por causa do escuro. Mas ouvi-a imediatamente berrar:
“Cabra és tu, bêbecia, velhaca, desgraçada!”
E senti que ela agarrava Rosetta pelos cabelos, julgando que era eu, e
Rosetta gritava e a outra batia-lhe, Então, sempre no escuro, atirei-me a ela e
rolamos as duas pelo chão, dando pancadas e arrancando os cabelos uma à outra,
enquanto todos gritavam e Rosetta chorava, rezava e chamava por mim. Acabaram
por separar-nos sempre no escuro, e creio que também aos pacificadores coube
alguma lambada porque, de repente, quando nos separaram, tocou a sirene do fim
do alarme e alguém acendeu a luz estávamos uma em frente da outra,
desgrenhadas e arquejantes, presas pelos braços e os que nos agarravam, um tinha
a cara arranhada e os outros os cabelos em desalinho, Rosetta soluçava a um
canto.
Naquela noite, depois desta cena deitamo-nos muito cedo, sem sequer
acabarmos a ceia, que ficou em cima da mesa e na manhã seguinte ainda lá estava.
Na cama, Rosetta aninhou-se a mim, como quando era pequenina e como há muito
tempo já não fazia. Perguntei-lhe:
“O quê, ainda tens medo?”
Ela respondeu:
“Não, não tenho medo mas é verdade, mamã, que os pára-quedistas fazem
aquilo às mulheres?”
E eu:
“Não dês ouvidos a esse parvo, não sabe o que diz.”
“Mas é verdade?” insistiu ela.
E eu:
“Não, não é verdade, e de resto, nós partimos amanhã, vamos para o campo
e lá não acontece nada, está tranqüila”.
Rosetta ficou calada um momento, depois disse:
“Mas, para que possamos voltar para casa, quem deve ganhar, os alemães
ou os ingleses?”.
Esta pergunta deixou me atrapalhada, porque, como já disse, não lia jornais
e, além disso, nunca me interessou saber como ia a guerra Respondi:
“Não sei o que combinaram, sei só que são todos uns filhos da mãe, ingleses
e alemães, e que fazem a guerra sem perguntarem nada a nós, os pobres, todavias
sabes o que te digo? Precisamos que qualquer deles vença a sério e que a guerra
acabe... alemães ou ingleses, não importa, contanto que um seja o mais forte.”
Mas ela insistiu:
“Todos dizem que os alemães são maus... mas o que fazem, mamã?”
Então, respondi:
“O que fazem? Em vez de estarem na terra deles, vieram para cá
aborrecer-nos... por isso os olhamos de mau modo.”
“Mas para onde vamos”, perguntou ela, “estão lá os alemães ou os ingleses?”
Eu não sabia que responder e disse:
“Lá não há alemães nem ingleses... há campos, vacas, camponeses e está-se
bem... agora dorme.”
Rosetta não disse mais nada, aninhou-se a mim e pareceu-me que acabou
por adormecer.
Que noite aquela! Eu acordava a todo o momento e creio que Rosetta
também não pregou olho, embora fingisse dormir para não me inquietar. Às vezes
julgava-me acordada e estava a dormir e a sonhar que acordava, outras vezes
supunha-me a dormir e, ao contrário, estava acordada e o cansaço e o nervosismo
iludiam-me. Jesus no horto, na noite em que Judas o foi prender, não sofreu tanto
como eu naquela noite. Apertava-se-me o coração ao pensar que ia deixar a casa
onde vivera tantos anos e receava que metralhassem o comboio durante a viagem,
ou então que deixasse de haver comboios, pois dizia-se que dum dia para o outro
Roma ficaria isolada. Pensava também em Rosetta e na verdadeira desgraça que
era para mim já não ter marido, porque duas mulheres sozinhas no mundo. Sem um
homem a guiá-las e a protegê-las, são, em certo sentido, como duas cegas que
caminham sem ver e sem saber onde se encontram.
Uma vez, não sei que horas eram, ouvi tiros na rua; já estava habituada
àquilo, disparavam todas as noites, parecia que andavam a atirar ao alvo, mas
Rosetta acordou e perguntou:
“O que é, mamã?”
Respondi:
“Nada, nada... são esses filhos da mãe que se divertem a dar tiros... não se
matarem eles uns aos outros...”
Outra vez passou uma fila de caminhões, mesmo rente à casa, e todo o
prédio tremia; os caminhões não acabavam de passar: quando parecia que era o
último, logo outro rodava com um barulho de ensurdecer. Eu abraçava Rosetta, que
tinha a cabeça sobre o meu peito, e, de repente, talvez por isso, lembrei-me de
quando ela era pequenina e lhe dava de mamar; eu tinha os peitos sempre cheios
de leite, como todas as camponesas da Ciociaria, que somos conhecidas como as
melhores amas do Lácio, e ela sugava todo aquele leite e ficava cada dia mais
bonita, era mesmo uma flor, até as pessoas paravam na rua para a ver, e disse de
mim para mim que teria sido talvez melhor ela não ter nascido do que viver num
mundo de ansiedades, perigos e medo. Mas depois refleti que essas idéias só se
tem à noite e é pecado pensar em tais coisas. E no escuro fiz o sinal da cruz e
encomendei-me a Jesus e à Virgem. Ouvi cantar um galo na casa ao lado, onde
morava uma família que tinha uma capoeira na frente, e pensei que não tardaria a
nascer o dia. Julgo que então adormeci.
Acordei sobressaltada com a campainha da porta, que tocava e tornava a
tocar, como se alguém estivesse a tocá-la há bastante tempo. Levantei-me no
escuro e fui abrir. Era Giovanni. Entrou, dizendo:
“Eia, que sono, estou a tocar há uma hora.”
Eu estava em camisa; ainda hoje tenho o peito rijo, bem direito, sem
necessidade de o amparar, e naquela altura era ainda mais belo, os seios fortes e
firmes, os bicos salientes, como se quisessem por força fazer-se notar por baixo da
camisa. Vi que ele me olhava o peito e que os seus olhos ardiam sob as
sobrancelhas, como dois carvões em brasa debaixo das cinzas. Compreendi que
estava prestes a atirar-se a mim e disse-lhe, de súbito, dando uns passos atrás:
“Não, Giovanni, não... para mim não existes mais e deves esquecer o que
sucedeu... se não fosses casado, casava contigo... mas és casado e entre nós não
deve haver mais nada.”
Ele não disse sim nem não, mas via-se que se esforçava por dominar-se. Por
fim lá o conseguiu, dizendo, numa voz natural:
“Tens razão... esperemos que aquele estafermo da minha mulher morra
durante a guerra... assim, quando voltares, estarei viúvo e casamos... morre por aí
tanta gente boa com os bombardeamentos, porque não há-de ela morrer?”
E eu mais uma vez fiquei apalermada; ao ouvir-lhe tal coisa, quase não queria
acreditar no que ouvia, tal como quando ele chamara malandro ao meu marido, pois
até então julgava-os muito amigos, por assim dizer inseparáveis. Conhecia a mulher
de Giovanni e sempre supus que ele gostasse dela, ou pelo menos lhe tivesse
afeição, pois estavam casados há muitos anos e tinham três filhos; no entanto, eis
que o ouvia falar dela com ódio, desejando-lhe até a morte, e pela maneira como
falava, dava bem a entender que a odiava há muito tempo e não sentia por ela
senão ódio, mesmo que alguma vez lhe tivesse manifestado outro sentimento. Para
falar verdade, quase me assustou pensar que um homem pudesse ser amigo de
outro e marido duma mulher durante tantos anos e depois lhes chamasse, com
tamanha frieza e perversidade, malandro a ele e estafermo a ela. Mas não disse
nada disso a Giovanni, que entretanto fora para a cozinha, onde o ouvia a gracejar
com Rosetta, também já levantada:
“Verás que voltam as duas mais gordas; para vocês será essa a única
conseqüência da guerra... Lá no campo há queijos, ovos, cordeiros... vão comer do
bom e do melhor.”
Estava tudo pronto; levei as três malas e o saco com os embrulhos para a
entrada; Giovanni pegou em duas malas, eu peguei no saco e Rosetta na mala
menor. Os dois foram descendo as escadas enquanto eu fingia demorar-me a fechar
a porta; logo que os vi dar a volta para descerem outro lance, entrei de novo em
casa, fui ao quarto, levantei um tijolo do pavimento e tirei o dinheiro que lá tinha
escondido. Era uma soma importante para aquele tempo, toda em notas de mil e
não quis tirá-la na presença de Rosetta, porque com o dinheiro todos os cuidados
são poucos e uma inocente pode cometer a imprudência de dizer o que não deve, e
em questões de dinheiro não devemos confiar em ninguém. Levantei a saia e meti
as notas dentro dum saquinho de pano que tinha feito de propósito. Depois fui juntar
me a Giovanni e a Rosetta na rua.
À porta estava uma carroça, pois Giovanni não quis servir-se do caminhão do
carvão, com medo que lho requisitassem. Giovanni ajudou-nos a subir e depois
subiu também. A carroça partiu e eu não pude deixar de voltar-me para trás e olhar
pela última vez a minha casa e a minha loja, pois tinha o mau pressentimento de que
nunca mais as tornaria a ver. Ainda não era dia, mas já não era noite, e na semi-
obscuridade do alvorecer vi a minha case, que fazia esquina, com as janelas todas
fechadas, e, no rés-do-chão, a loja com os taipais corridos. Em frente havia outra
casa, também de esquina, que tinha no segundo andar, num nicho, um medalhão
com a imagem da Virgem circundada de raios de ouro e uma lamparina
continuamente acesa. Pensei que aquela luzinha que ardia até em tempo de guerra,
até em tempo de fome, era um pouco como a minha esperança de voltar e senti-me
um tanto confortada essa esperança continuaria a aquecer-me quando estivesse
longe. Na claridade cinzenta, a esquina da rua dir-se-ia um palco de teatro vazio,
depois de os atores o terem abandonado: via-se que eram casas de gente pobre.
Pequenos casebres, em suma, um pouco inclinadas, como que para se apoiarem
umas às outras, e um pouco esfoladas, especialmente no rés-do-chão, por causa do
roçar de carroças e automóveis, mesmo ao lado da minha loja ficava a carvoaria de
Giovanni e em volta da porta estava tudo negro como a boca dum forno: àquela hora
todo esse negrume, não sei porquê, me pareceu imensamente triste... e lembrei-me
que durante o dia, nos bons tempos, essa rua estava sempre cheia de gente,
pessoas que passavam, mulheres sentadas em cadeiras de palhinha na soleira das
portas, gatos vagabundeando na calçada, garotos a correr e a saltar à corda, jovens
a caminho das oficinas ou entrando na taberna, sempre alegres. Pensando em tudo
isto, senti despedaçar-se-me o coração e percebi que aquelas casas e aquele sítio
me eram queridos, talvez porque tivesse passado ali quase toda a vida: quando os
vira pela primeira vez, era ainda rapariga e agora era uma mulher feita, com uma
filha já crescida. Disse a Rosetta:
“Não olhas para a nossa casa não olhas para a loja?”
Ela respondeu:
“Mamã, sossega, tu própria me disseste que voltamos daqui a poucas
semanas”. Suspirei e não disse mais nada. A carroça dirigiu se para o Tibre e então
voltei-me para olhar.
Já as ruas estavam desertas e o ar cinzento do amanhecer dava a idéia do
vapor da barrela quando a roupa está muito suja. No chão, o orvalho fazia brilhar o
empedrado, que dir-se-ia de ferro. Não passava ninguém, somente os cães: vi cinco
ou seis, feios, esfomeados e sujos, a farejar os cantos e a alçar a perna contra as
paredes, donde pendiam, rasgados, os manifestos coloridos que incitavam à guerra.
Passamos o Tibre na Ponte Garibaldi, percorremos a Via Arenula, atravessamos a
Praça da Argentina e a Praça de Veneza. Na sacada do palácio de Mussolini pendia
a mesma bandeira negra que tinha visto dias antes na Praça Coionna e dois
fascistas armados estavam postados ao lado da porta, A praça deserta parecia
major do que o costume. Primeiro não vi o lascio de ouro na bandeira negra,
pareceu-me mesmo uma bandeira de luto, tanto mais que não havia vento e pendia
no mastro como aqueles crepes que se põem nas portas quando morre alguém no
prédio.
Depois, lá vi o lascio de ouro, emblema de Mussolini, por entre as cobras da
bandeira. Perguntei a Giovanni:
“Mas Mussolini voltou?”
Ele fumava a ponta dum charuto e respondeu com ênfase:
“Voltou e esperamos que para sempre.”
Fiquei de boca aberta, pois sabia que não simpatizava nada com Mussolini;
mas ele estava constantemente a causar-me surpresas e por isso nunca podia
prever o que lhe passava pela cabeça.
Mas logo senti uma pequena cotovelada e vi que me piscava o olho na
direção do cocheiro, como quem queria dizer que aquelas palavras eram apenas
para o outro ouvir. Pareceu-me um exagero, o cocheiro era um pobre velho, via-lhe
os cabelos brancos a aparecer em todo o lado por baixo do boné, parecia mesmo o
meu avô, decerto não era espião, mas não disse nada.
Seguimos pela Via Nacional e o ar já estava menos cinzento: no cimo da
Torre de Nero via-se até uma faixa luminosa de sol. Mas, quando chegamos à
estação e entramos. Lá dentro era como se ainda fosse noite, com todas as
lâmpadas acesas por causa da escuridão. A estação estava apinhada de gente, a
maior parte gente pobre como nós, com os seus embrulhos, mas havia também
muitos soldados alemães, carregados de armas e mochilas, de pé, uns junto dos
outros, nos cantos mais escusos. Giovanni foi comprar os bilhetes e deixou nos ali,
com a bagagem, no meio da estação, Enquanto esperávamos, soou de repente um
enorme banzé e vimos aparecer uma dezena de motociclistas, todos vestidos de
negro, como os diabos do Inferno. Depois da bandeira negra da Praça de Veneza,
aqueles motociclistas, vestidos também de negro, inspiraram-me tal indignação que
pensei: “Mas porque negro, porquê todo este negro? Estes filhos duma cabra, com a
sua maldita cor, acabam por nos deitar mau olhado.” Os motociclistas pararam as
motos, encostaram nas às colunas da entrada e postaram-se aos lados da porta, a
cara meio tapada pelos capacetes de couro negro e as mãos nas pistolas que
traziam nos cinturões. Nesse momento faltou-me a respiração, tive medo, o coração
começou a bater-me apressado, pensei que aqueles motociclistas negros tinham
vindo ali e guardavam as saídas para prender toda a gente, como muitas vezes
sucedia, metendo depois as pessoas em caminhões, para nunca mais se saber
delas. Olhei em volta, à procura duma saída por onde pudesse escapar. Foi então
que vi aproximar-se um grupo de homens, enquanto outros gritavam:
“Deixem passar! Deixem passar!”
Compreendi que aqueles motociclistas estavam ali por causa da chegada de
alguma personagem importante. Não a cheguei a ver, com toda aquela multidão não
se podia ver nada, mas logo a seguir tornei a ouvir o barulho das malditas
motocicletas e concluí que iam atrás do automóvel da tal personagem.
Giovanni veio buscar-nos, com os bilhetes na mão, dizendo-nos que eram
para Fondi: daí, atravessando a montanha, poderíamos atingir a aldeia. Entramos na
gare, dirigimo-nos para o comboio. Ali já havia sol, os seus raios alongavam se no
pavimento e parecia o sol que se vê nas salas dos hospitais e nos pátios das
prisões. Não se via ninguém e o comboio, muito comprido, dir-se-ia vazio. Mas,
quando subimos e começamos a andar nos corredores, verifiquei que estava
completamente cheio de soldados alemães, todos armados, as mochilas às costas,
os capacetes enterrados até aos olhos, as espingardas entre as pernas. Havia não
sei quantos, passávamos de um compartimento para outro e víamos sempre oito
soldados alemães, com toda a sua tralha, parados e mudos como se tivessem
recebido ordem para não se mexerem nem falarem. Finalmente, numa carruagem
de terceira, encontramos italianos. Estavam amontoados nos corredores e nos
compartimentos, como animais levados para o açougue e que não importa instalar
comodamente, pois daí a pouco vão morrer; também eles, como os alemães, não
diziam nada e não se mexiam: mas compreendia-se que a sua imobilidade e o seu
silêncio eram devidos ao cansaço e ao desespero, ao passo que os alemães
estavam prontos a saltar do comboio e a combater imediatamente. Disse a Rosetta:
“Verás que teremos de fazer toda a viagem em pé.”
De fato, depois de andarmos não sei quanto tempo, com aquele sol que
entrava pelos vidros sujos e já abrasava as carruagens, conseguimos arrumar as
malas no corredor e ali nos acomodamos como pudemos. Giovanni, que nos
acompanhava, disse nos nesse momento:
“Bem, vou deixá-las, daqui a pouco o comboio parte.”
Mas um fulano qualquer, vestido de preto e sentado em cima duma mala,
rebateu-o, taciturno, sem levantar os olhos:
“Daqui a pouco, é uma maneira de falar... estamos à espera já há três
horas...”
Por fim, Giovanni despediu-se, beijou Rosetta nas duas faces e a mim ao
canto da boca; talvez quisesse beijar-me mesmo na boca, mas eu voltei a cara a
tempo. Logo que Giovanni partiu, sentamo-nos em cima das malas, eu na mais alta
e Rosetta na mais baixa, com a cabeça apoiada nos meus joelhos. Rosetta, depois
de estarmos assim meia hora, sem falar, perguntou:
“Mama, quando partimos?”
Eu respondi:
“Minha filha, sei tanto como tu.”
E fiquei ali quieta com Rosetta agachada aos meus pés, nem sei quanto
tempo. As pessoas no corredor dormitavam e suspiravam, o sol queimava e lá fora,
no cais, não se ouvia um único rumor. Os alemães estavam muito calados, dir-se-ia
que nem estavam ali. Mas, de repente, no compartimento ao lado, começaram a
cantar. Não se pode dizer que cantassem mal, vozes baixas e roucas, mas afinadas,
porém eu, que ouvira tantas vezes cantar alegremente os nossos soldados, como
sempre fazem quando viajam juntos, enchi-me de tristeza porque cantavam na
língua deles qualquer coisa que me parecia muito triste. Era um canto arrastado e
lento e fiquei com a impressão de que não tinham grande vontade de andar na
guerra. Por isso, disse àquele homem vestido de negro que ia ao meu lado:
“A guerra também não lhes agrada... no fim de contas, são homens como os
outros... ouve como cantam com tristeza.”
Mas ele resmungou:
“Não entendes nada disto... é o hino deles... é como a nossa marcha real.”
Em seguida, passado um momento de silêncio:
“A verdadeira tristeza temo-la nós, os Italianos.”
Finalmente, o comboio pôs-se em movimento, sem um apito, sem um toque
de corneta, sem barulho nenhum, como por acaso. Queria encomendar-me uma
última vez à Virgem, para que nos protegesse, a mim e a Rosetta, de todos os
perigos com que iríamos deparar. Mas veio-me um sono tão grande que não tive
forças. Pensei somente: “Estes filhos duma cabra...” E não sabia se pensava nos
alemães, ou nos ingleses, ou nos fascistas, ou nos italianos... Talvez um pouco em
todos eles. E assim adormeci.
Capítulo II
3
Por ingleses, subentenda-se Aliados, pois era assim que os Italianos geralmente designavam os Aliados na
última guerra.
ciganos. Assim, deixam-nos tranqüilos, já podem dormir em paz e trabalhar. Sim, foi
mesmo a Providência que mandou cá hoje esses fascistas.”
Em suma, ela parecia decidida a sacrificar Rosetta. E eu, por meu lado,
estava decidida a ir-me embora naquela mesma noite. Comemos os quatro, como
de costume: nós as duas, Concetta e Vincenzo; os filhos tinham ido a Fondi. Assim
que chegamos à cabana de feno, disse a Rosetta: “Não julgues que estou de acordo
com Concetta. Fingi, porque com gente desta nunca fiando... Agora vamos fazer as
malas e, mal desponte o dia, saímos daqui.”
“Mas para onde vamos, mamã?”, perguntou ela numa voz chorosa.
“O que é preciso é sair desta casa de malfeitores. Vamos para onde
pudermos.”
“Mas para onde?”
Pensara já tantas vezes nesta fuga que tinha as minhas idéias. Respondi:
“Para junto dos teus avós não podemos ir, pois a aldeia foi evacuada e sabe
Deus onde estão a esta hora. Primeiro que tudo, vamos a casa de Tommasino: é
bom homem, pedimos-lhe conselho. Disse-me muitas vezes que o irmão está na
montanha e está lá bem, com toda a família. Há-de saber dar qualquer indicação.
Não tenhas medo, estás ao pé da tua mãe, que te quer bem, e temos uns patacos,
que são os melhores amigos e os únicos em quem podemos confiar. Havemos de
encontrar algum sítio para onde ir.”
Em resumo, tranqüilize-a; ela também conhecia Tommasino, meio irmão de
Festa, o proprietário da herdade cultivada por Vincenzo. Este Tommasino era
comerciante e, embora quase morresse todos os dias de medo, não se decidia a ir
juntar-se aos parentes, na montanha, por amor ao mercado negro, pois negociava e
vendia de tudo. Morava num casebre ao fundo da planície, no sopé dos montes. E
ganhava bom dinheiro, arriscando a vida e continuando a negociar apesar dos
bombardeamentos, das prepotências dos fascistas e das requisições dos Alemães.
Mas, toda a gente sabe, por dinheiro até os covardes se tornam corajosos:
Tommasino pertencia a esse número.
Assim, à luz duma candeia, metemos dentro das malas as poucas coisas que
tínhamos tirado de lá quando chegamos e depois, vestidas como estávamos,
deitamo-nos em cima do feno e dormimos talvez umas quatro horas. Rosetta, claro,
de boa vontade dormiria, era jovem e tinha o sono pesado; podia até vir a banda de
música da aldeia e pôr-se a tocar ao pé dos seus ouvidos, que não acordava. Mas
eu, mais velha, tinha o sono leve, e desde que fugíramos, por causa das
preocupações e do nervosismo, dormia pouco. Quando os galos começaram a
cantar, era ainda noite, mas a alvorada já estava próxima e os galos sabem-no bem;
primeiro mais ao longe, ao fundo da planície, depois mais perto, e por fim mesmo ao
lado, na capoeira de Vincenzo. Levantei-me do feno e comecei a sacudir Rosetta.
Digo “comecei” porque ela não queria acordar, repetindo, com voz chorosa: “O que
é, o que é?”, como se tivesse esquecido que estávamos em Fondi, em casa de
Concetta, e se julgasse ainda em Roma, na nossa casa, onde nunca nos
levantávamos antes das sete. Finalmente acordou, muito queixosa, e disse-lhe:
“Preferias talvez dormir até ao meio-dia e ser acordada por um homem de
camisa negra?”
Antes de sair da cabana assomei à porta e olhei para a eira: viam-se no chão
os figos espalhados a secar, uma cadeira na qual Concetta estivera sentada, um
cesto cheio de milho, a parede cor-de-rosa da casa, toda esfolada e enegrecida,
mas não se via ninguém. Então, eu e Rosetta pusemos as males à cabeça, tal como
tínhamos feito ao chegarmos à estação de Monte San Biagio, saímos da cabana e
corremos rapidamente para o fiea de carreiro que atravessava os laranjais.
Eu sabia o caminho e, uma vez na estrada principal, tomei a direção das
montanhas que ficam ao norte da planície de Fondi. Nascia o dia. Lembrei-me da
outra alvorada, quando fugira de Roma, e pensei: “Quem sabe quantas outras como
esta verei ainda antes de voltar para case?” Uma luz cinzenta e falsa espalhava-se
por todo o campo; no céu, dum branco incerto, uma e outra estrela, aqui e além a
brilhar, como se não estivesse para nascer o dia, mas sim parecia começar outra
noite, menos negra do que a primeira; a geada cobria as árvores, tristes e imóveis, e
o cascalho da estrada ali muito frio, gelava-me os pés descalços. Havia um silêncio,
mas já não como o silêncio noturno: distinguiam-se os estalidos secos, adejos e
rumores; lentamente, o campo acordava.
Eu caminhava adiante de Rosetta e olhava para as montanhas que se
erguiam em volta, tendo por fundo o céu; eram montanhas nuas, com uma ou outra
mancha acastanhada aqui e além; pareciam desertas. Mas, como sou montanhesa,
sabia que, uma vez lá em cima, encontraríamos terra cultivada, bosques, matos,
cabanas, casas, camponeses e fugitivos. E imaginava o que iria suceder-nos nessas
montanhas, augurando que a sorte nos seria mais favorável e encontraríamos boa
gente, e não criminosos como Concetta e a família. Sobretudo esperava estar lá
pouco tempo e desejava que os ingleses chegassem depressa para poder voltar a
Roma, para a minha casa e para a minha loja. Entretanto, o sol erguia-se no
horizonte, por trás da orla dos montes, e os cumes e o céu em volta começaram a
ungir-se de vermelho. Já não havia mais estrelas no céu, que se tornara azul-pálido;
o sol brilhou de repente, claro como ouro, no fundo dos olivais, por entre os ramos
escuros, e os seus raios espreguiçaram-se na estrada, e, embora fossem ainda
fracos e hesitantes, pareceu-me imediatamente que debaixo dos meus pés o saibro
já não estava tão frio.
Reconfortada com esse sol, disse a Rosetta:
“Quem diria que há guerra; no campo nunca se percebe que há guerra.”
Rosetta nem teve tempo de responder; dos lados do mar surgiu um avião a
uma velocidade incrível: primeiro apenas lhe senti o ronco medonho, sempre a
crescer, depois vi-o descer do céu, em direção a nós, de focinho para baixo. Só tive
tempo de agarrar Rosetta por um braço e deitar-me com ela para além da beira da
estrada, num campo de milho onde caímos de bruços no meio das espigas; o avião,
voando baixo, passou-nos por cima com um barulho de enlouquecer, raivoso;
parecia mesmo estar enfurecido conosco; depois chegou até a curve da estrada,
voltou atrás, empinou-se de repente sobre uma fila de choupos e por fim afastou-se,
voando a meia encosta: parecia uma mosca a mover-se diante do sol.
Eu estava de bruços, com em Rosetta achegada a mim, e olhava para a
estrada, onde ficara a mala pequena, que Rosetta deixara cair no chão quando a
puxei. No momento em que o avião passava vi erguerem-se umas pequeninas
nuvens de pó que dir-se-ia correrem em direção aos montes juntamente com ele.
Quando tudo sossegou, saí do campo de milho, fui olhar e vi a mala esburacada em
vários sítios. Na estrada havia nas muitas balas do comprimento do meu dedo
mínimo. Assim, não havia dúvidas: aquele avião tinha disparado mesmo contra nós,
pois dali não havia mais ninguém. Pensei: “Malditos sejam!” e senti em mim um ódio
feroz contra a guerra: aquele aviador não nos conhecia, talvez fosse um bom rapaz
da idade de Rosetta, e, só porque estávamos em guerra, quisera matar-nos, por
simples capricho, tal como um caçador que anda no mato à caça com o seu cão e
atira ao acaso para uma árvore, pensando: “Talvez mate alguma coisa, nem que
seja um pássaro.” Sim, nós éramos apenas dois pássaros, a servir de alvos a um
caçador vadio, que depois, se os pássaros caem mortos, os deixa no mesmo sítio,
pois não lhe servem para nada.
“Mamã”, disse Rosetta, passado pouco tempo, enquanto caminhávamos,
“disseste que no campo não havia guerra e no entanto aquele tentou matar-nos.”
Respondi:
“Minha filha, enganei-me. A guerra está em toda a parte, tanto no campo,
como na cidade.”
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
4
Espécie de musgo.
Michele riu, retorquindo:
“Não era um elogio aqui há algum tempo... mas hoje é... hoje os que lêem,
escrevem e vivem na cidade, os senhores, são os verdadeiros ignorantes, os
verdadeiros incultos, os verdadeiros selvagens... com eles não há nada a fazer...
mas com vocês, os camponeses, pode começar-se do princípio.”
Eu não compreendia bem o que ele queria dizer e insisti:
“O que significa isso de começar do princípio?”
E ele:
“Bem, fazer deles homens novos.”
Exclamei:
“Vê-se logo que não conheces os camponeses, meu caro... com os
camponeses não há nada a fazer... o que julgas que são? Mais atrasados não há
outros. São exatamente o contrário de homens novos... já eram camponeses antes
de haver gente na cidade. São camponeses e continuarão a sê-lo sempre...”
Michele abanou a cabeça com compaixão e não disse nada. E eu tive a
impressão de que ele via os camponeses como eles não eram nem nunca seriam;
ou, antes, que, por motivos particulares, os via como desejava que eles fossem, e
não como eram na realidade.
Michele só falava bem dos camponeses e dos operários; mas, a meu ver, não
conhecia uns nem outros. Um dia disse-lhe:
“Michele, falas dos operários, mas não os conheces.”
Ele perguntou-me:
“E tu, conhece-los?”
Respondi:
“Compreende-se que os conheça, iam muitos à minha loja, moram ali perto.”
“Que espécie de operários?”
“Oh! artífices, funileiros, pedreiros, eletricistas, carpinteiros... gente que
trabalha... de tudo um pouco...”
“E como te parece que sejam os operários?”, perguntou ele nesta altura, com
ar trocista, preparado para ouvir asneiras. Respondi-lhe:
“Meu caro, não sei como são... para mim essas diferenças não existem... são
homens como os outros... há bons e maus... uns preguiçosos, outros
trabalhadores... alguns gostam das suas mulheres, outros andam atrás das
prostitutas... alguns bebem, outros jogam... Em suma, há de tudo, como em toda a
parte, como entre os burgueses, os camponeses, os funcionários e todos os mais.”
Ele disse então:
“Talvez tenhas razão... olhas para eles como homens iguais aos outros e
assim devia ser... Se todos os vissem como tu, isto é, como homens iguais aos
outros, e os tratassem em conformidade, não sucederiam certas coisas e talvez não
estivéssemos cá em cima em Santa Eufêmia.”
Eu perguntei:
“Então como os vêem?”
E ele:
“Não simplesmente como homens, mas apenas como operários.”
“E tu como os vês?”
“Eu também os vejo só como operários.”
“Então”, disse-lhe, “também tens culpa de estarmos cá em cima... Bem
entendido, estou a repetir o que disseste, embora não compreenda porque os
consideras apenas como operários, e não como homens iguais aos outros.”
E ele:
“Compreende-me, Cesira... É certo que só os considero como operários...
mas é necessário ver porquê...Para alguns é cômodo considerá-los assim para os
explorar melhor... quanto a mim, é cômodo, mas para os defender.”
“Em suma”, disse-lhe de repente, “és um subversivo.”
Michele ficou desconcertado e perguntou:
“Porque dizes isso?”
Volvi:
“Ouvi-o dizer a um sargento da polícia que ia à minha loja... estes subversivos
provocam a agitação entre os operários.”
Michele respondeu, passado um momento:
“Pois admitamos que eu seja um subversivo.”
Eu insisti:
“Mas já fizeste agitação entre os operários?”
Ele encolheu os ombros e declarou por fim, de má vontade, que não tinha
feito. Disse-lhe então:
“Vês que não os conheces?”
Desta vez não me respondeu. Apesar destas conversas difíceis, que nem
sempre compreendíamos, Rosetta e eu preferíamos a sua companhia à dos outros
homens que estavam lá em cima. Ele era o mais delicado e, além disso, o único que
não pensava no negócio e no dinheiro, e isso tornava-o menos aborrecido do que os
outros, porque o negócio e o dinheiro são certamente coisas importantes, mas ouvir
falar sempre no mesmo acaba por causar uma sensação opressiva. Filippo e os
outros refugiados não falavam senão nisso, isto é, do que vendiam e do que
compravam, dos preços e dos lucros, de quanto as coisas custavam antes da guerra
e de quanto custariam depois. Quando não falavam de negócios, jogavam as cartas:
reunidos na pequena habitação de Filippo, sentados no chão, de pernas cruzadas,
encostados aos sacos de farinha e de feijão, o chapéu na cabeça e o cigarro na
boca, numa atmosfera empestada de mau cheiro e de fumo, ali passavam horas e
horas a bater as cartas, com gritos e vociferações que parecia que se matavam. Em
volta dos quatro que jogavam havia sempre, pelo menos, outros quatro que
olhavam, como sucede nas tabernas de aldeia. Eu, que nunca suportei o jogo, não
compreendia como eles podiam passar dias inteiros naquela jogatina, com umas
cartas porcas e sebentas, em que já nem se conheciam as figuras, tão sujas
estavam. Mas era ainda pior quando, em vez de falarem de negócios ou de jogarem,
Filippo e os companheiros se punham a conversar. Eu sou uma ignorante e não
entendo senão da minha loja e do campo, mas percebia perfeitamente que aqueles
homens com barba, adultos, quando não falavam do comércio, só diziam asneiras. E
isto tornava-se para mim ainda mais evidente porque estabelecia o confronto com
Michele, que não era ignorante como eles, e o que dizia, embora muitas vezes não o
compreendesse, percebia que eram coisas acertadas. Estes homens, repito,
raciocinavam como estúpidos, ou, pior, como animais, se os animais pudessem
raciocinar: quando não diziam tolices, diziam coisas que ofendiam pela crueza e
brutalidade. Lembro-me, por exemplo, dum certo Antônio que era padeiro, homem
franzino, muito trigueiro, com um defeito numa vista: tinha um olho menor do que o
outro e sempre a abrir e a fechar, como se tivesse lá dentro uma palhinha.
Um dia, não sei como, quatro ou cinco refugiados, entre eles esse Antônio,
estavam a falar da guerra e do que nessas alturas se fez e acontece, todos sentados
nas pedras do socalco; Rosetta e eu escutávamos. Este Antônio estivera na guerra
da Líbia quando tinha vinte anos e gostava de falar dessa guerra, pois fora para ele
muito importante: entre outras coisas, perdera lá o olho. Em certa altura, Rosetta e
eu ouvimo-lo dizer:
“Mataram três dos nossos... mas matar é dizer pouco... tinham-lhes tirado os
olhos, cortado a língua, arrancado as unhas... Então decidimos exercer represálias...
de manhã cedo fomos a uma das aldeias, queimamos as cabanas e matamos todos
os homens, mulheres e crianças... às raparigas, a filha duma cabra, enfiamos-lhes
as baionetas pela barriga acima e atiramo-las para o monte... ficaram sem vontade
de fazer mais atrocidades.”
Nesta altura, um deles tossiu um pouco, a avisar que nós as duas estávamos
presentes, pois Antônio talvez não nos visse, encobertas atrás de uma árvore. Ouvi
Antônio desculpar-se, dizendo:
“Bem, na guerra sucede isto e ainda pior.”
Corri atrás de Rosetta, que se afastara dali imediatamente. Caminhava de
cabeça baixa; por fim parou e vi-lhe os olhos marejados de lágrimas. Estava
extremamente pálida. Perguntei-lhe o que tinha. Respondeu-me:
“Ouviste o que disse o Antônio...”
Também não encontrei nada melhor pare lhe dizer:
“Na guerra, infelizmente, sucedem estas e outras coisas, minha filha.”
Ela ficou calada um momento e depois proferiu, como se falasse consigo
mesma:
“Hei-de preferir sempre estar entre os que morrem a estar entre os que
matam.”
Desde esse dia afastamo-nos ainda mais do grupo dos refugiados, porque
Rosetta não queria de maneira nenhuma encontrar-se com Antônio nem falar-lhe.
Com Michele, também Rosetta só estava de acordo até certo ponto; no
capítulo da religião, o desacordo entre os dois era absoluto. Michele detestava
particularmente os fascistas, como já disse, e logo a seguir os padres; e não se
percebia bem se odiava mais uns do que outros; muitas vezes, a brincar, ele dizia
que fascistas e padres eram uma e a mesma coisa, a única diferença é que os
fascistas tinham cortado a sotaina, transformando-a em camisa negra, enquanto os
padres a conservavam inteira até os pés. A mim, as suas fúrias contra a religião, ou,
melhor, contra os padres, não me aqueciam nem arrefeciam: pensei sempre que
nestas coisas cada um deve regular-se por si e como melhor lhe parece; sou
religiosa, sim, mas não ao ponto de querer impor a minha religião aos outros. Além
disso, dei conta de que Michele, apesar de toda a sua aspereza, no fundo não era
ruim; algumas vezes cheguei mesmo a pensar que ele dizia mal dos padres, não por
os odiar como padres, mas porque lhe desagradava que não se comportassem
como, em seu entender, os ministros da religião deviam comportar-se. Em
conclusão, provavelmente era religioso, mas ao mesmo tempo um desiludido. Às
vezes, são as pessoas como Michele, no fundo mais exigentes do que os outros,
que atacam com maior severidade os padres, justamente por causa da sua
desilusão. Mas Rosetta era de uma espécie diferente da minha; acreditava na
religião e queria que os outros também acreditassem; não podia suportar que
falassem mal dela, mesmo quando, como no caso de Michele, o faziam de boa fé e
sem verdadeira maldade. Assim, logo ao princípio, mal lhe ouviu a primeira fúria
contra os padres, advertiu-o claramente:
“Se queres continuar a ver-nos, Michele, tens de acabar com esses
discursos.”
Eu esperava que ele insistisse ou se zangasse, como era costume quando o
contradiziam. Ao contrário, com grande assombro meu, não protestou, não disse
nada; limitou-se a observar, passado um momento:
“Há alguns anos atrás, eu era como tu... pensava até a sério em ser padre...
depois, isso passou-me.”
Fiquei pasmada com esta inesperada informação: nunca, mas mesmo nunca,
me podia ter passado pela idéia que ele tivesse alimentado semelhante intenção.
Perguntei:
“Mas, a sério, querias ser padre?”
Ele respondeu:
“Sim... podes perguntá-lo a meu pai, se não acreditas.”
“E então porque renunciaste?”
“Bem, era uma criança, e dei conta de que não tinha vocação. Ou melhor”,
acrescentou com um sorriso, “senti que a tinha e precisamente por isso é que não
devia sê-lo.”
Rosetta desta vez não disse nada e a conversa findou ali. Entretanto, as
coisas mudaram, lentamente, e não para melhor. Depois de tantos boatos
contraditórios, chegou-nos por fim uma notícia certa: uma divisão alemã estava
acampada na planície de Fondi e a frente de batalha fixava-se no rio Garigliano. Isto
queria dizer que os Ingleses não avançavam e que os Alemães, por seu lado, se
preparavam para passar o Inverno conosco. Quem chegava do vale dizia que havia
soldados alemães por todos os lados, a maior parte escondidos nos pomares de
laranjeiras, com os seus carros blindados e as suas tendas cobertas de manchas
verdes, azuis e amarelas, mimetizadas, como diziam. Mas, para nós, tais falas não
passavam de boatos; ninguém vira ainda os Alemães, digo ninguém dos que
estavam lá em cima, pois nenhum alemão subira a Santa Eufêmia. Depois
aconteceu qualquer coisa que nos pôs em contacto com os Alemães e nos fez
compreender que raça de gente é essa. Conto-o porque desde esse dia pode
dizer-se que as coisas mudaram; e, de certo modo, foi então que a guerra apareceu
lá em cima pela primeira vez, para nunca mais se ir embora.
Entre os refugiados que jogavam as cartas com Filippo havia um alfaiate
chamado Severino, o mais novo de todos, um homem pequeno e magro, de cara
amarela e bigode preto e que parecia estar sempre a dar piscadelas de olho de
entendimento; este hábito vinha-lhe do seu ofício, pois, enquanto cosia na loja,
agachado numa cadeira, tinha sempre um olho meio fechado e outro aberto.
Severino fugira de Fondi, como os outros, logo após os primeiros bombardeamentos
e estava alojado numa casota pouco distante da nossa, com uma filha e a mulher,
pequena e modesta como ele. Severino era o mais inquieto de todos os que
estavam lá em cima porque, durante a guerra, aplicara todo o seu dinheiro numa
quantidade de fazendas inglesas e italianas e escondera-as num lugar seguro, mas
na realidade não tão seguro que não estivesse sempre em ânsias pelo destino do
seu pequeno patrimônio. Severino, no entanto, passava da ansiedade à esperança,
quando não pensava no presente, nos Alemães, nos fascistas, na guerra e nos
bombardeamentos, e falava do futuro. Para quem queria ouvi-lo, expunha um plano
que, em sua opinião, mal acabasse a guerra, o tornaria riquíssimo. Esse plano
consistia em aproveitar o período, talvez seis meses, talvez um ano, entre o fim da
guerra e o regresso à normalidade. Nesses seis meses, ou nesse ano, faltaria tudo,
porque não estariam regularizados os transportes, as trocas e o comércio, e na
Itália, ocupada pelos militares, os negócios seriam difíceis, para não dizer
impossíveis. Então, durante esses seis meses ou esse ano, Severino meteria as
suas fazendas num caminhão, iria para Roma e ai, peça por peça, com os preços
mais altos do que as estrelas, devido à escassez, ficaria rico, vendendo a retalho as
fazendas que comprara por junto. Era um plano acertado, como se vê, e
demonstrava que Severino, talvez o único entre todos os que estavam lá em cima,
compreendera bem o mecanismo dos preços, que iam subindo à medida que as
coisas faltavam e os Alemães, os Aliados e os Italianos emitiam papel-moeda sem
nenhum valor. Era um plano acertado, repito, mas infelizmente os planos acertados
são sempre aqueles que não vingam, sobretudo em tempo de guerra.
Resumindo, numa daquelas manhãs chegou da planície, todo ofegante, um
rapazinho que fora empregado de Severino; ainda antes de atingir o socalco, gritou
lá de baixo para o alfaiate, que, muito nervoso, o esperava na beira do muro:
“Severino, roubaram-te tudo... descobriram o esconderijo e roubaram-te os
tecidos.”
Eu estava ao pé dele e vi-o vacilar ao ouvir aquelas palavras, como se
alguém, à traição, lhe tivesse batido com um pau na cabeça. O rapaz, entretanto,
chegou ao socalco; ele agarrou-o pelo peitilho da camisa, muito aflito, balbuciando,
de olhos esbugalhados:
“Não pode ser... que dizes tu?... Os tecidos?... Os meus tecidos?...
Roubados? Não pode ser... E quem os roubou?”
“Eu sei lá ...”, respondeu o rapaz.
Todos os refugiados tinham acorrido e estavam em volta dele. Severino fazia
gestos de louco, revirava os olhos, deitava as mãos à cabeça e arrancava os
cabelos; Filippo procurava acalmá-lo, dizendo:
“Não te excites... pode ser apenas boato.”
“Qual boato”, volveu ingenuamente o rapaz, “vi eu, com os meus olhos, a
parede esburacada e o esconderijo vazio.”
Severino, ao ouvir isto, fez um gesto de desespero com a mão no ar, como se
quisesse invocar o auxílio do Céu; depois lançou-se em correria pela vertente abaixo
e desapareceu. Ficamos todos muito impressionados com esta cena: queria ela
dizer que a guerra não só continuava, como até piorava, pois já não havia
consciência e, se agora roubavam, qualquer dia começariam a matar. Alguém disse
a Filippo, que, mais do que os outros, esbracejava a comentar o sucedido e
censurava Severino por não ter tomado suficientes precauções:
“Tu escondeste as tuas coisas na parede do teu meeiro, toma cuidado, não te
aconteça o mesmo.”
Lembrei-me das conversas de Concetta e Vincenzo e pensei que aquele
refugiado tinha razão; a parede a todo o momento podia ser abatida. Mas Filippo
abanou a cabeça com segurança, confiado:
“Sou compadre do meu meeiro... batizei-lhe o filho e ele batizou-me a filha...
não sabes que entre compadres não há velhacarias?”
Pensei então, ao ouvi-lo falar assim, que se pode ser muito esperto, como ele
julgava ser, e em dada altura fazer figura de parvo, porque acreditar em histórias de
compadres em relação a Concetta e Vincenzo parecia-me que era mesmo uma
tolice, sem dúvida simpática, mas apesar de tudo tolice. Não disse nada, para não o
consumir com suspeitas. Tanto mais que já alguém experimentara pô-lo de
sobreaviso e de pouco servira.
Naquela mesma noite Severino voltou do vale, coberto de pó até os olhos,
triste e cansado. Disse que fora à cidade e encontrara a parede esburacada e o
esconderijo vazio; tinham-lhe levado tudo e agora estava arruinado; julgava que
tanto podiam ter sido os Alemães como os Italianos, mas supunha que tivessem sido
os italianos, ou, antes, os fascistas, pelo pouco que pudera apurar, interrogando as
raras pessoas que continuavam na cidade. Dadas estas explicações, para ali ficou
mudo, encolhido numa cadeira, diante da porta da casa de Filippo, mais amarelo e
mais escuro do que o costume, abraçando o espaldar e olhando só com um olho
para Fondi, onde o tinham roubado, enquanto o outro parecia fechar-se em
piscadelas de entendimento, e isto era talvez o mais triste, porque só se pisca o olho
quando se está satisfeito e a ele pouco faltava para se matar de desespero.
De vez em quando abanava a cabeça e repetia em voz baixa:
“Os meus tecidos... não tenho nada... levaram-me tudo...” Depois passava a
mão na testa, como se não pudesse convencer-se. Por fim, disse:
“Fiquei velho num só dia...” E desandou para a sua casita, sem aceitar a ceia
de Filippo, que procurava consolá-lo e acalmá-lo.
No dia seguinte via-se que ele continuava a pensar nos seus tecidos e
meditava na maneira de os reaver. Estava convencido de que quem lhos roubara
era gente da terra, provavelmente fascistas, ou, melhor, esses que se intitulavam
agora fascistas e antes da queda de Mussolini eram conhecidos no vale como
vagabundos e pedintes. Esses vagabundos, mal o fascismo voltou, inscreveram-se
imediatamente na Milícia, com o único fito de comer e gozar à custa da população,
que, devido à guerra e à ausência das autoridades, se encontrava completamente
abandonada, entregue a si própria. Severino, firmemente resolvido a reaver os seus
tecidos, pode dizer-se que ia todos os dias ao vale, voltando à noite cansado,
coberto de pó e de mãos vazias, mas mais decidido do que nunca. Essa firme
resolução revelava-se até na sua atitude: sempre calado, os olhos cintilantes, fixos,
um nervo constantemente a tremer sob a pele esticada do maxilar. Se alguém lhe
perguntava o que ia fazer todos os dias a Fondi, limitava-se a responder:
“Vou à caça”, dando a entender que ia à caça dos seus tecidos e de quem
lhos roubara.
A pouco e pouco, das converses de Severino com Filippo depreendi que
esses fascistas de quem ele desconfiava estavam entrincheirados num barracão
duma quinta chamada do Uomo Morto. Eram uns doze e tinham transportado para
esse refúgio grande quantidade de provisões, arrancadas à força aos camponeses,
e lá comiam e bebiam e gozavam, servidos por algumas rameiras que tinham sido
antes criadas de servir ou operárias. À noite saíam e andavam pela cidade,
entravam nas casas abandonadas pelos refugiados, revistavam-nas uma por uma,
roubavam o que lá ficara e batiam com as espingardas em todas as paredes e
pavimentos para ver se havia algum esconderijo. Estes fascistas andavam todos
armados com metralhadoras, bombas e punhais e sentiam-se em segurança porque
em todo o vale, como já disse, não havia agora carabineiros, pois todos tinham
fugido ou sido presos pelos Alemães, nem polícia nem outra qualquer autoridade.
Ficara, é certo, um guarda municipal, mas era um pobre homem, carregado de
família, que andava de quinta em quinta, roto e esfomeado, a pedir aos camponeses
que lhe dessem, por amor de Deus, um bocado de pão ou um ovo. Em suma, não
havia lei e os gendarmes do exército alemão, que se distinguiam dos outros
soldados porque traziam ao peito uma espécie de colar, eram os únicos que a
faziam respeitar; mas era a lei deles, não a dos Italianos, e era uma lei que, por
assim dizer, nos parecia feita de propósito para lhes permitir arrebanhar os homens,
roubar as coisas e fazer toda a espécie de exigências.
Para dar uma pálida idéia de tudo quanto sucedia naqueles tempos, basta
afirmar que um camponês duma localidade perto de Santa Eufêmia, uma manhã,
não sei por que razão, deu uma navalhada num sobrinho, um rapaz de dezoito anos,
deixando-o na vinha a esvair-se em sangue até morrer. Isto sucedeu às dez horas
da manhã. Às cinco horas do mesmo dia, o assassino foi ao talho clandestino
comprar meio quilo de carne. O crime já era conhecido de toda a gente, mas
ninguém se atreveu a dizer-lhe nada: eram coisas lá entre eles e todos tinham medo
de intervir. Só uma mulher teve a coragem de lhe observar:
“Mas que coração é o teu... mataste o sobrinho e vens aí muito sossegado
comprar carne?”
E ele retorquiu:
“Toca a quem toca... ninguém me prende, pois agora já não há lei e cada qual
faz o que lhe apetece...”
E tinha razão; não o prenderam e ele enterrou o sobrinho debaixo duma
figueira e continuou a viver sem ninguém o incomodar.
Severino, então, meteu-se-lhe em cabeça fazer justiça por suas próprias
mãos, visto já não haver justiça oficial. Não sei o que combinou nesses passeios a
Fondi, mas uma manhã chegou lá acima um rapazito do campo, com um palmo de
língua de fora por subir a encosta a correr, e gritou que Severino vinha aí com os
alemães, que tinha os alemães do seu lado e que eles o iam ajudar a recuperar as
fazendas, porque tinham chegado a acordo. Todos os refugiados saíram dos
casinhotos e nós as duas também. Seríamos umas vinte pessoas no socalco, a
vigiar o carreiro, à espera de ver surgir Severino e os alemães.
Entretanto todos diziam que Severino fora inteligente e sensato, pois a
verdade é que a autoridade estava agora na mão dos Alemães e estes não eram
vagabundos nem delinqüentes como os fascistas e não só lhe restituiriam os
tecidos, como castigariam os culpados. Filippo era o que mais falava a favor dos
Alemães:
“É gente séria, que faz tudo a sério: a guerra, a paz e o negócio... Severino
fez bem em recorrer a eles... Os Alemães não são como nós, Italianos, anárquicos e
indisciplinados... têm disciplina e em tempo de guerra roubar é um ato contrário à
disciplina... Estou certo de que vão restituir as fazendas ao Severino e punir esses
malandros fascistas... Valente Severino, fez o que devia fazer: quem tem hoje
autoridade na Itália? Os Alemães. Então é necessário recorrer aos Alemães...”
Filippo pensava em voz alta, pavoneando-se e cofiando o bigode. É claro,
pensava nas duas coisas escondidas em casa do meeiro; ficaria contente se
Severino recuperasse as fazendas e se os ladrões fossem castigados, pois também
tinha bens escondidos e também receava que lhos roubassem.
Olhávamos para o carreiro, onde por fim assomou Severino, mas, em vez dos
alemães que julgávamos que subissem com ele em patrulha armada, vimos só um
alemão e, ainda por cima, simples soldado, nem sequer era da polícia militar.
Quando chegaram lá acima ao socalco, Severino, altivo e satisfeito, apresentou-o
com o nome de Hans, que em alemão quer dizer João, e todos o rodearam, de mãos
estendidas, mas Hans não apertou nenhuma e limitou-se a fazer a saudação militar,
batendo os calcanhares e levando a mão à pala do boné, como para pôr uma
distância entre ele e os refugiados. Este Hans era um homem baixinho, lourinho, de
ancas largas como uma mulher, cara branca e um pouco cheia. Tinha duas ou três
grandes cicatrizes na face e, quando lhe perguntaram onde as recebera, respondeu
secamente:
“Estalingrado."
Por causa daquelas cicatrizes, a sua cara mole e não muito redonda, como
que amolgada, parecia mesmo um pêssego ou uma maçã caídos da árvore e que,
ao caírem, se racham e machucam e depois, quando se partem, estão por dentro
meio podres. Tinha olhos azuis, mas não bonitos, de um azul deslavado,
inexpressivo, muito claro, como que de vidro. Severino, entretanto, muito orgulhoso,
explicava-nos que se tornara amigo daquele Hans porque, por coincidência, Hans,
na sua terra, em tempo de paz, era também alfaiate. Assim, entre alfaiates,
tinham-se entendido, e ele contara-lhe o roubo e Hans prometera-lhe recuperar os
tecidos, pois, precisamente porque era alfaiate, podia compreender melhor do que
qualquer outro as suas preocupações. Resumindo, o alemão não era da polícia, não
eram muitos alemães, mas um só, não se tratava de uma coisa oficial, mas
particular, entre amigos do mesmo ofício, ambos alfaiates. Mas o alemão estava
fardado, tinha a espingarda-metralhadora a tiracolo e comportava-se como
verdadeiro soldado; logo, todos ao desafio, lhe mostraram boa cara. Um
perguntava-lhe quanto tempo duraria a guerra, outro interrogava-o sobre a Rússia,
onde ele tinha estado, outro queria saber se os Ingleses dariam batalha ou se
seriam os Alemães a tomar a ofensiva. Hans, quanto mais perguntas lhe faziam,
mais inchava de importância, como um balão vazio que alguém assopra. Disse que
a guerra ia durar pouco porque os Alemães possuíam armas secretas... que os
Russos combatiam bem, mas os Alemães combatiam melhor... que em breve os
Alemães desencadeariam a ofensiva e lançariam os Ingleses ao mar. Em suma,
incutia respeito; Filippo, por fim, convidou-o para almoçar com Severino em sua
casa.
Eu também assisti ao almoço; já tinha almoçado, mas estava com curiosidade
de ver aquele alemão, o primeiro que aparecia lá em cima. Quando cheguei, iam na
fruta. Toda a família de Filippo estava presente, menos Michele, que odiava os
Alemães e pouco antes, quando Hans falava com bazófia da grande vitória que em
breve iriam alcançar sobre os Ingleses, o olhara, sombrio e ameaçador, como se
quisesse saltar-lhe em cima e dar cabo dele aos murros. Agora, graças ao vinho que
bebera, o alemão ganhara mais confiança. Não fazia senão bater no ombro de
Severino, repetindo que os dois eram alfaiates e amigos até à morte e iria fazer com
que lhe restituíssem as fazendas. Depois tirou do bolso a carteira e mostrou a
fotografia duma mulher alta e gorda, fazia dois dele, de cara bonacheirona; disse
que era sua mulher. Voltaram a falar da guerra e Hans repetiu:
“Nós fazer ofensiva e lançar ao mar Ingleses.”
Filippo, que queria amansá-lo, lisonjeando o reforçou:
“Pois claro, claro... deitam-nos ao mar, a todos... esses assassinos.”
Mas o alemão respondeu:
“Não, assassinos não, bravos soldados.”
E Filippo:
“São bravos soldados, decerto, sabe-se, são bravos soldados.”
Mas o alemão volveu:
“Tu admiras soldados ingleses... tu traidor.”
E Filippo, assustado:
“Quem os admira?... Se disse que são assassinos.”
Mas o alemão estava implicativo.
“Não assassinos, bravos soldados... mas traidores como tu que admiram
Ingleses, kaputt”, e fazia o gesto de cortar o pescoço.
Em suma, não gostava de uma coisa nem de outra, nunca estava satisfeito, e
todos ficamos cheios de medo porque de repente ele pareceu transtornado. Disse a
Severino:
“Porque não estás na frente de batalha?... Nós, Alemães, combatemos e
vocês, italianos, estão aqui... tu para a frente.”
Severino assustou-se e respondeu:
“Fui licenciado... fraco do peito.”
E bateu no peito e era verdade, estivera muito doente e diziam até que tinha
só um pulmão. O alemão, porém, zangado, agarrou-o por um braço, dizendo!
“Agora vens já comigo para a frente,” Levantou-se e começou a puxá-lo.
Severino ficou branco e esforçava-se em vão por sorrir, e todos estavam
consternados e eu tive tanto medo que o coração parecia querer saltar-me do peito.
O alemão puxava pelo braço de Severino e este procurava resistir, agarrando-se a
Filippo, que também parecia assustado. Então, de repente, o alemão soltou uma
risada e disse:
“Amigos... amigos... tu alfaiate e eu alfaiate... tu recuperar os tecidos e ficar
rico... eu ir à frente, fazer a guerra e morrer.”
E, sempre a rir, tornou a bater-lhe com a mão no ombro.
A mim esta cena causou-me uma impressão estranha, a impressão de me
encontrar, não diante de um homem, mas de um animal selvagem que ora ronrona
ora mostra os dentes e não se sabe que intenções tem nem como se há de lidar
com ele. Parecia-me que Severino se iludia, tal como os que costumam dizer:
“Este animal conhece-me... a mim nunca me morde.”
E, como se provou, a sua confiança não tinha razão de ser.
Depois desta cena, o alemão tornou-se amável, bebeu mais vinho, bateu
ainda não sei quantas vezes no ombro de Severino, de tal modo que ao alfaiate lhe
passou de todo o medo e, num momento em que o alemão estava distraído, disse a
Filippo:
“Hoje mesmo terei as minhas fazendas... verás.”
Dali a pouco o alemão levantou se da mesa, tornou a pôr o cinturão, que
tirara ao sentar-se, dizendo a rir que tinha de alargar um furo por ter comido muito.
Depois voltou-se para Severino:
“Nós ir lá abaixo e logo tu tornar aqui com os teus tecidos.”
Severino ergueu-se também, o alemão fez a saudação militar, batendo os
calcanhares, e lá foi, muito empertigado, na companhia de Severino, pelo carreiro
abaixo, de socalco em socalco, a caminho do vale. Filippo, que saíra com os outros
pare os ver abalar, disse por fim, exprimindo o sentimento geral:
“Severino confia muito naquele alemão... mas eu, no seu lugar, não confiava
tanto.”
Esperamos toda aquela tarde e parte da noite e Severino não voltou. No dia
seguinte fomos à casita onde ele morava com a família e encontramos a mulher a
chorar no escuro, com a filha ao colo. Estava com ela uma velha camponesa, que
fiava lã na sua roca e repetia de vez em quando, ao puxar o fio:
“Não chores, mulher... Severino há-de voltar, está descansada...”
Mas ela abanava a cabeça e respondia:
“Sinto que ele não volta mais... senti-o logo uma hora depois de o ver
partindo”
Procuramos confortá-la, mas ela não fazia senão chorar, dizendo que era a
culpada, pois o marido fizera tudo aquilo por sua cause e por cause da filha, para
terem boa vida, pare serem ricas, e ela devia tê-lo impedido de comprar essas
malditas fazendas. Não havia nada a dizer; a verdade é que Severino não voltava e
contra um fato nada valem todas as boas palavras deste mundo. Estivemos a
acompanhá-la o dia inteiro, ora dizendo uma coisa ora outra, fazendo todas as
suposições possíveis sobre o desaparecimento de Severino, mas ela continuava a
chorar e a repetir que o marido não voltaria mais. No dia seguinte tornamos à casita,
mas já não a encontramos: de madrugada pegara na filha ao colo e descera ao vale,
para saber o que tinha acontecido.
Depois, durante alguns dias não soubemos mais nada de Severino nem da
mulher. Por fim, Filippo, que, a seu modo, gostava de Severino, decidiu apurar o que
se passava e mandou chamar Nicola, um velho camponês que já não trabalhava no
campo e passava os dias com os garotos para cima e para baixo, nos socalcos.
Disse-lhe o que queria: que fosse saber o que era feito de Severino,
recomendando-lhe que devia ir ao lugar do Uomo Morto, precisamente onde
estavam instalados os fascistas que tinham roubado os tecidos. O velho, ao
princípio, não queria ir, mas Filippo prometeu-lhe trezentas liras e, como Nicola, por
dinheiro, era capaz até de entrar num forno aceso, não disse mais nada e foi
preparar o burro. Declarou que voltaria no dia seguinte, que dormiria em casa duns
parentes, no campo, e pôs no alforge um pão e um bocado de queijo.
Despedimo-nos dele e vimo-lo partir, muito direito em cima da albarda, o
chapeuzinho preto na cabeça, o cachimbo na boca, escarranchado no burro, uma
perna para cada lado, os tamancos com atilhos brancos. Filippo recomendou-lhe
que procurasse entre os fascistas um tal Tonto, que era o menos mau de todos, e o
velho disse que assim faria e lá foi.
Passou aquele dia e passou metade do dia seguinte. Ao entardecer, eis que
aparece no socalco o burro, que o velho conduzia pela carreata, e, em cima da
albarda, o Tonto. Chegaram e o Tonto desmontou: era um homem de cara escura e
magra, barba crescida, olhos melancólicos e encovados e nariz comprido e curvo.
Todos o rodearam logo e o Tonto parecia embaraçado, calava-se. O velho Nicola,
pegando na cabeçada do burro, disse-nos então:
“O alemão ficou com as fazendas e mandou o Severino trabalhar para as
fortificações, na frente de batalha, foi o que aconteceu.”
Depois de dizer isto, afastou-se e foi dar de comer ao animal. Ficamos todos
varados... O Tonto estava à parte, um pouco confundido: Filippo, irritado, disse-lhe:
“E tu que vieste fazer cá acima?”
O Tonto avançou um passo e, muito humilde, volveu:
“Filippo, não me julgue mal... vim cá para lhe ser agradável. Quero contar-lhe
como as coisas se passaram para não supor que fomos nós.”
Todos o olharam com antipatia, mas todos queriam saber o que sucedera; por
fim, Filippo, embora de má vontade, convidou-o a beber um copo em sua casa. O
Tonto aceitou e lá foram, e nós atrás, em procissão. No quarto, o Tonto sentou-se
em cima dum saco de feijão e Filippo deu-lhe o vinho, ficando em pé diante dele;
nós reunimo-nos na soleira da porta, também de pé. O Tonto bebeu com calma e
depois disse:
“É inútil negar: fomos nós que levamos as fazendas... Nestes tempos, Filippo,
cada um por si e Deus por todos... Severino julgava que tinha escondido bem as
fazendas, mas éramos muitos a saber onde estavam e então pensamos: se não
formos nós, serão os alemães, uma denúncia depressa se faz, é melhor portanto
ficarmos com elas. E que mal havia nisso, Filippo?”, juntou as mãos e olhou para
nós. “Também temos família e, nos tempos que correm, todos pensamos em
primeiro lugar na família e depois no resto. Não digo que tivéssemos feito bem, mas
sim que o fizemos por necessidade. Você, Filippo, é comerciante, Severino é alfaiate
e nós... nós cá nos arranjamos... Mas Severino fez mal em recorrer aos alemães,
que não tinham nada com o assunto, Que diabo, Filippo, se Severino não quisesse
ser malandro, podíamos chegar a um acordo, por exemplo, vendermos as fazendas
e dividirmos os lucros... ou então dávamos-lhe um presente... entre conterrâneos,
sempre se chegaria a acordo... Mas Severino quis fazer-nos mal e sucedeu o que
sucedeu. Veio aquele alemão duma figa e Severino disse-nos uma porção de
ofensas e palavrões e logo o alemão nos apontou a metralhadora, afirmando que
tinha de fazer uma busca. Nós, que, em certo sentido, dependemos dos Alemães,
não pudemos opor-nos, Os tecidos apareceram e o alemão carregou-os no
caminhão em que tinham vindo ambos e lá se foi embora com Severino, que, ao
partir, ainda nos gritou: ‘Há finalmente justiça neste mundo!’ Sim, bonita justiça.
Sabem o que fez o alemão? Dali a poucos quilômetros encontrou outro caminhão
cheio de italianos recrutados para irem trabalhar nas fortificações, na frente de
combate. Então parou o caminhão e apontando-lhe a metralhadora mandou descer
o Severino e meteu-o no caminhão dos recrutados. E assim Severino, em vez de
recuperar as fazendas, foi mandado para frente e o alemão, que é alfaiate, vai enviar
agora pouco a pouco os tecidos para a Alemanha, onde abrirá com eles uma
alfaiataria, rindo-se do Severino e de nós todos, Agora pergunto eu, Filippo: para
que meteu ele nisto os alemães? Entre dois litigantes, o terceiro é que aproveita... e
foi o que sucedeu, juro que é verdade.”
Filippo e todos nós, depois deste discurso do Tonto, ficamos silenciosos;
também porque, entre tudo quanto o Tonto dissera, havia aquele pormenor do
recrutamento, de que ouvíramos falar, é certo, mas nunca tão clara e
tranqüilamente, como de uma coisa normal. Por fim, Filippo ganhou coragem e
perguntou o que era isso do recrutamento. O Tonto respondeu com indiferença:
“Os alemães andam por aí com um caminhão e levam todos os homens que
encontram aptos para o trabalho e mandam-nos para frente, para os lados de
Cassino ou Gaeta, a fortificar as linhas.”
“E como os tratam?”
Tonto encolheu os ombros:
“Hum! Muito trabalho, barracas e pouca comida. Já se sabe como os Alemães
tratam os que não são alemães...”
Ficamos de novo em silêncio; mas Filippo insistiu:
“Mas prendem os homens da planície... os refugiados que estão nas
montanhas, não os prendem, pois não?”
Tonto encolheu de novo os ombros:
“E melhor não confiar muito nos Alemães... fazem como às alcachofras:
comem as folhas a uma e uma... Agora toca aos da planície, depois tocará aos da
montanha.”
Ninguém pensava já em Severino: todos tinham medo e cada qual pensava
em si próprio. Filippo perguntou:
“Mas como sabes tu essas coisas?”
Tonto respondeu:
“Sei-as porque tenho de tratar todos os dias com os alemães... Ora
prestem-me atenção: ou se alistam na Milícia, como nós, ou aconselho-os a
esconderem-se bem... mas muito bem... doutro modo os alemães apanham-nos uns
a seguir aos outros.”
Depois deu algumas explicações: os alemães primeiro agiam na planície,
arrebanhando todos os homens aptos para o trabalho; em seguida passavam às
montanhas e agiam da seguinte forma: de manhã cedinho, ainda escuro, uma
companhia de soldados subia ao cimo de um monte; depois, chegado o momento,
por volta do meio-dia, descia para o vale, espalhando-se em leque por toda a
vertente de maneira que os que estavam, suponhamos, a meia encosta, como nós,
ficavam presos como os peixes numa grande rede.
“Eles pensam em tudo!”, observou nessa altura um, com voz apavorada.
Tonto agora estava já senhor de si e quase se tornava descarado. Tentou, por
isso, a léria das recomendações com Filippo, que sabia ser o mais endinheirado:
“Mas, se chegarmos os dois a acordo, posso dar uma palavrinha, a favor do
teu filho, ao capitão alemão, que conheço muito bem...”
Talvez Filippo, deveras receoso, aceitasse discutir o caso. Mas,
inesperadamente, Michele avançou para ele e disse-lhe com dureza:
“Porque esperas para te ires embora?”
Todos emudeceram, surpreendidos, tanto mais que Tonto estava armado com
bombas e espingarda e Michele não tinha qualquer arma. Mas, não sei porquê, o
Tonto ficou subjugado com aquele tom. Disse, relutante:
“Bem, se é assim. arranjem-se como puderem... eu vou indo.”
Depois levantou-se e saiu. Todos o seguiram e Michele, antes de ele
desaparecer, gritou-lhe do alto do socalco:
“Em vez de andares a oferecer os teus serviços, pensa em ti... os alemães
qualquer dia tiram-te a espingarda e mandam-te trabalhar, como ao Severino.”
O Tonto voltou se e fez-lhe uma figa. Nunca mais o vimos.
Depois de o Tonto se ter ido embora, fomos com Michele para o nosso
casinhoto. Rosetta e eu comentávamos o caso, lamentando o pobre Severino, que
perdera primeiro as fazendas e a seguir a liberdade. Michele, com ar sombrio,
estava calado, de cabeça baixa, mas de repente encolheu os ombros e disse:
“Foi bem feito!”
Protestei:
“Como podes dizer uma coisa dessas? Aquele pobre ficou arruinado e agora
talvez deixe lá a pele.”
Ele não respondeu logo e só passado um momento gritou:
“Enquanto não perderem tudo, não compreenderão nada... Têm de perder
tudo e sofrer e chorar lágrimas de sangue... só então estarão maduros.”
Objetei:
“Mas o Severino nem sequer fez aquilo por interesse, fê-lo por causa da
família...”
Michele pôs-se a rir, mesmo com maldade:
“A família!... A grande desculpa para todas as patifarias neste país... Pois
bem, tanto pior para a família."
Michele, já que estou a falar dele, tinha na verdade um caráter curioso. Dois
dias depois do desaparecimento definitivo de Severino, falando nós disto ou daquilo,
veio a propósito eu dizer que como era inverno e anoitecia cedo. Não sabia o que
fazer para passar o tempo. Michele lembrou então que, se quiséssemos, nos podia
ler qualquer coisa em voz alta. Aceitamos, satisfeitas, embora estivéssemos pouco
habituadas a leituras, como me parece que já o dei a entender. Mas naquela
situação até os livros podiam servir para nos distrairmos. Eu, julgando que ele
pretendia ler-nos algum romance, recordo-me de lhe ter perguntado:
“O que é? Uma história de amor?”
Michele respondeu, com um sorriso:
“Muito bem, acertaste, é mesmo uma história de amor.”
Ficou combinado que Michele nos leria um livro em voz alta, nessa noite,
depois da ceia, que comíamos sempre dentro da cabana, a uma hora em que não
sabíamos como matar o tempo.
Lembro-me muito bem dessa noite, que ficou gravada na minha memória, não
sei porquê, talvez porque Michele revelou então uma particularidade do seu caráter
que eu não conhecia. Revejo a cena, nós duas e a família de Paride, todos sentados
sobre cepos e bancos em volta do fogo meio apagado, quase no escuro, a
lamparina de azeite pendurada atrás de Michele para ele poder ler. A cabana era
mesmo tenebrosa: do teto de ramos secos pendiam farripas negras de fuligem, que
balançavam ao mais leve sopro; ao fundo, quase submersa na escuridão, estava
sentada a mãe de Paride, até parecia a bruxa de Benevento, tão velha e enrugada
era, sempre a fiar lã com a roca e o fuso. Rosetta e eu estávamos contentes por
causa da leitura; mas Paride e a família não tanto, pois, após um dia inteiro de
trabalho, mal chegava a noite ficavam a cabecear com sono e às vezes iam logo
para a cama. As crianças dormiam já, aninhadas ao pé das mães.
Michele disse-me, antes de começar, tirando um livrinho do bolso:
“Cesira, querias uma história de amor e vou ler precisamente uma história de
amor.”
Uma das mulheres, mais por cortesia do que por curiosidade, perguntou se
era uma história verdadeira ou inventada e ele então respondeu que talvez fosse
inventada, mas era como se realmente tivesse acontecido. Entretanto abria o livrinho
e ajeitava os óculos no nariz. Por fim anunciou que ia ler alguns episódios da vida de
Jesus, no Evangelho. Ficamos todos pouco à vontade, porque esperávamos um
verdadeiro romance; além disso, tudo o que trata de religião parece sempre
aborrecido, talvez porque as coisas da religião as fazemos mais por dever do que
por prazer. Paride, interpretando o sentimento geral, observou que todos
conhecíamos a vida de Jesus e por isso a leitura não nos daria novidades. Rosetta
não disse nada; mais tarde, porém, quando estávamos no nosso casinhoto,
sozinhas, comentou:
“Se ele não acredita em Jesus, porque não o deixa em sossego?”, quase
aborrecida, mas não hostil, pois simpatizava com Michele, muito embora não o
compreendesse verdadeiramente, como aliás ninguém lá em cima.
Michele, às palavras de Paride, limitou-se a responder com um sorriso:
“Tens a certeza?” Depois anunciou que ia ler o episódio de Lázaro,
acrescentando: “Lembram-se quem era?”
Ora todos nós já ouvíramos falar deste Lázaro, mas à pergunta de Michele
apercebemo-nos de que não sabíamos bem quem era nem o que tinha feito. Talvez
Rosetta soubesse, mas também desta vez ficou calada.
“Bem”, disse Michele com tranqüilo ar de triunfo, “dizem que conhecem a vida
de Jesus e nem sequer sabem quem foi Lázaro... No entanto, este episódio está
pintado, como muitos outros, nos quadros da Paixão que há nas igrejas... até na
igreja de Fondi, lá em baixo...”
Paride, pensando talvez que estas palavras envolviam para ele uma censura,
observou:
“Mas sabes que para ir à igreja, lá em baixo no vale, é preciso perder um
dia?... Nós temos de trabalhar e não podemos desperdiçar um dia, nem mesmo para
ir à igreja.”
Michele não lhe respondeu e começou a ler. Como estou certa de que o
episódio de Lázaro é conhecido de todos os que lerem as minhas recordações, não
o transcrevo aqui, tanto mais que Michele o leu sem fazer comentários: os que o não
conhecem, podem lê-lo no Evangelho. Limitar-me-ei a observar que, à medida que a
leitura prosseguia, em volta de Michele as caras dos camponeses exprimiam, cada
vez mais, se não aborrecimento, pelo menos indiferença e desilusão. Esperavam
uma bonita história de amor e, em vez disso, ele lia-lhes a história dum milagre, no
qual, ainda por cima, pelo menos assim me pareceu, não acreditavam, como de
resto não acreditava o próprio Michele. Mas havia uma certa diferença enquanto os
ouvintes se aborreciam, tanto que duas mulheres tinham começado a cochichar,
rindo baixinho, uma terceira não fazia senão bocejar e o próprio Paride, sem dúvida
o mais atento, mostrava, curvado para frente, uma cara absolutamente obtusa e
insensível, Michele, por seu lado, à medida que avançava na leitura, parecia
comover-se com aquele milagre em que não acreditava. Quando chegou à frase:
“E Jesus disse: eu sou a ressurreição e a vida”, interrompeu-se um momento
e todos pudemos ver que parara porque não podia continuar a ler com os olhos
rasos de lágrimas. Compreendi que ele chorava por causa do que lia, pois, como
logo a seguir se tornou claro, o relacionava de algum modo com a nossa presente
situação; mas uma daquelas mulheres que se aborreciam a ouvi-lo estava tão longe
de pensar que o episódio de Lázaro lhe pudesse provocar aquelas lágrimas que
observou, solícita:
“Incomoda-te o fumo, Michele?... Aqui há sempre muito fumo... Bem, já se
sabe, estamos numa cabana...”
Para compreender bem esta frase é preciso ter presente, e parece-me que já
aludi a isso, que o fumo do braseiro não saía pela abertura da chaminé, que não
existia, mas sim, muito devagar, através dos ramos secos do telhado, estagnando
durante bastante tempo dentro da cabana. Por isso, muitas vezes acontecia
chorarem todos os que lá se encontravam, incluindo os dois cães, a gata e os
gatinhos. Aquela mulher pretendera desculpar-se do fumo, por amabilidade, mas
Michele, de repente, limpou as lágrimas e começou a gritar de uma forma imprevista:
“Qual fumo nem qual cabana... eu não leio mais porque vocês não
compreendem... e é inútil tentar fazer compreender quem nunca o conseguirá.
Porém, lembrem-se disto: cada um de vocês é Lázaro... e eu, ao ler a história de
Lázaro, li a vossa história, a história de todos... de ti Paride, de ti Luisa, de ti Cesira,
de ti Rosetta e também a de mim próprio, e a de meu pai, e a daquele patife do
Tonto, e a do pobre Severino com as suas fazendas, e a dos refugiados, que estão
cá em cima, e a dos alemães e fascistas que estão no vale, em suma, a de todos...
todos estão mortos, estamos todos mortos e julgamos Ester vivos... Enquanto nos
julgarmos vivos porque temos as nossas fazendas, o nosso medo, as nossas
preocupações, as nossas famílias, os nossos filhos, estaremos mortos... Só no dia
em que nos apercebermos de que estamos mortos, mais do que mortos, putrefatos,
decompostos, cheirando a cadáver a uma légua de distância, somente então
começaremos a viver... Boa noite.”
Dito isto, levantou-se, atirando ao chão a lamparina de azeite, que se apagou,
e saiu batendo com a porta, Ficamos todos no escuro, estupefatos. Por fim, Paride,
depois de muito procurar, lá conseguiu encontrar a lamparina e acendeu-a, Mas
ninguém sentiu vontade de comentar aquela fúria de Michele; Paride disse somente,
com o ar embaraçado e soma de camponês que julga saber tudo:
“Michele fala bem e depressa... é filho de burgueses, não é camponês...”
Suponho que também as mulheres pensavam o mesmo: tudo aquilo eram
coisas de senhores que não cavam nem ganham a vida com o suor do seu rosto.
Concluindo, demos as boas-noites e fomos para a cama. Michele, no dia seguinte,
fingiu não se recordar já da cena, mas nunca mais se ofereceu para nos ler em voz
alta.
Nessa ocasião, porém, confirmei a opinião que formara de Michele no dia em
que ele nos disse que, em rapaz, pensara a sério em ser padre. Na realidade, como
então pensei, apesar de todos os seus discursos contra a religião, Michele
assemelhava-se mais aos padres do que aos homens vulgares, como Filippo e os
outros refugiados. Por exemplo, aquela sua fúria quando se deu conta, ao ler o
episódio de Lázaro, de que os camponeses não o compreendiam, não o escutavam
e se aborreciam, com uma pequena troca de palavras poderia tê-la qualquer pároco
de aldeia durante a prédica do domingo, ao aperceber-se, enquanto gesticulava no
púlpito, de que os paroquianos, na igreja, estavam distraídos e não lhe prestavam
atenção. Era, no fim das contas, a fúria dum padre que considera todos os outros
mortais como pecadores que é necessário instruir e levar ao bom caminho, e não a
de um homem que se julga semelhante aos outros homens.
Para terminar as minhas observações sobre o caráter de Michele, quero
contar outro pequeno episódio que confirma tudo quanto acabo de dizer. Como já
mencionei, ele nunca falava de mulheres nem de amor e parecia não ter nenhuma
experiência a esse respeito. Não apenas por falta de ocasião, mas, como se
compreenderá pelo que vou contar, principalmente por ser, neste capítulo, muito
diferente dos rapazes da sua idade. O caso foi o seguinte: Rosetta adquirira o
costume de todas as manhãs, mal saltava da cama, tirar a roupa e lavar-se
completamente nua. Eu ia buscar ao poço um balde cheio de água e dava-lho; ela
deitava metade dessa água por cima da cabeça, em seguida ensaboava o corpo
todo e por fim despejava a outra metade. Rosetta era muito asseada e a primeira
coisa que quis que eu comprasse aos camponeses, mal chegamos a Santa Eufêmia,
foi o sabão que eles faziam em casa, e continuou a lavar-se assim, mesmo no pino
do inverno, quando lá em cima fazia um frio próprio de montanha e de manhã a
água do poço estava tão gelada que o balde saltava no gelo antes de o partir e a
corda quase me cortava as mãos. Esse balde cheio de água, despejado por cima da
cabeça, verifiquei-o nas poucas vezes que quis imitar Rosetta, tirava-me a
respiração e fazia-me estar de boca aberta um minuto, sem falar. Pois numa dessas
manhãs Rosetta tinha-se lavado, como era seu costume, e estava a esfregar-se
fortemente com a toalha, perto da cama, com os pés em cima duma tabuazinha para
os não sujar na lama do chão. A minha filha tinha um corpo robusto, como mal se
podia imaginar pelo seu rosto meigo e delicado, de olhos grandes, nariz um pouco
comprido e boca carnuda a sobressair do queixo fugidio que a fazia parecer uma
cordeirinha. Tinha o peito não muito grande mas desenvolvido como uma mulher
feita que já tivesse sido mãe, os seios cheios e brancos, como se tivessem leite, os
biquinhos escuros muito arrebitados, como que a procurar a boca de um neném
acabado de dar à luz. O ventre, ao contrário, era mesmo o duma rapariga virgem:
liso, plano quase encovado. Pelas costas, então, era verdadeiramente bela, parecia
uma estátua, daquelas de mármore branco que se vêem nos jardins públicos de
Roma espáduas cheias e redondas, dorso longo e ao fundo uma pronunciada curva,
como a duma égua jovem, a dar relevo às nádegas brancas, redondas e
musculosas, tão bonitas e asseadas que me dava vontade de as comer com beijos,
como quando ela tinha dois anos. Sempre pensei que um homem, ao ver a minha
Rosetta nua, de pé, a esfregar com uma toalha, curvados rins, fazendo tremer um
pouco, a cada movimento, o lindo peito sólido e alto, devia ao menos perturbar-se,
ficar vermelho ou pálido, conforme o temperamento. E isto porque se pode ter o
pensamento noutra coisa, mas, no momento em que uma mulher se apresenta nua,
todos os pensamentos voam como passarinhos de uma árvore quando se dispara
um tiro: e não fica senão a perturbação do macho diante da fêmea. Ora Michele, não
sei como, numa dessas manhãs em que Rosetta estava, como disse, a limpar-se,
toda nua, a um canto do casinhoto, veio procurar-nos e, sem bater, empurrou a
porta, entreabrindo-a. Eu estava sentada logo à entrada e poderia avisá-lo, gritando-
lhe: “Não entres, Rosetta está a lavar-se!” No entanto, confesso, quase não me
desagradou que ele entrasse, assim de improviso, e isto porque uma mãe tem
sempre orgulho da filha e, nesse momento, mais forte do que a surpresa, e mesmo
do que a reprovação, foi a minha vaidade de mãe. Pensei: “Vai vê-la nua... pouco
mal faz, tanto mais que não é de propósito... verá como a minha Rosetta é bonita!”
Com este pensamento na cabeça, fiquei calada; e ele, iludido pelo meu silêncio
abriu a porta de par em par e ficou em frente de Rosetta, que entretanto procurava
em vão cobrir-se com a toalha. Eu observava-o: vi o um momento indeciso, quase
aborrecido por ver Rosetta assim nua: depois voltou-se para mim, dizendo à pressa
que o desculpasse, talvez fosse ainda muito cedo, mas de qualquer forma queria
dar-nos a grande novidade que ouvira nesse mesmo instante a um rapaz de
Pontecorvo que andava na montanha a vender tabaco: os Russos tinham
desencadeado uma grande ofensiva contra os Alemães e estes retiravam em toda a
frente. Acrescentou que tinha que fazer, ver-nos-ia mais tarde e foi-se. Nesse
mesmo dia encontrei maneira de lhe falar a sós e disse-lhe a sorrir:
“Tu, Michele, verdadeiramente não és como os outros rapazes da tua idade...”
Ele toldou-se um pouco e perguntou:
“Porquê?”
E eu:
“Tiveste diante dos olhos uma bonita rapariga como Rosetta, toda nua, e só
pensaste nos Russos e nos Alemães e na guerra: pode dizer-se que nem sequer a
viste.”
Ele ficou de mau humor, ou, antes, quase se zangou, e disse:
“Que tolice é essa? Admiro-me que sejas tu, a mãe dela, a falar dessa
maneira.”
Eu volvi-lhe então:
“Também o escaravelho é bonito para a mãe, não sabias, Michele? E que tem
isso? Por acaso te disse que viesses cá esta manhã e entrasses sem bater? Mas,
como entraste, talvez me zangasse se tivesses olhado Rosetta com demasiada
insistência, mas, no fundo, porque sou mãe, não me desagradaria de todo. Em vez
disso, nada, nem sequer a viste...”
Michele sorriu, um sorriso forçado, depois afirmou:
“Para mim essas coisas não existem.”
E foi esta a primeira e a última vez que falamos em tal assunto.
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
O bom tempo, além das bombas dos Ingleses, trouxe um outro flagelo: os
recrutamentos dos Alemães. O Tonto tinha-os anunciado, mas, no fundo, ninguém
acreditara, e agora alguns camponeses fugidos na montanha informavam-nos que
no vale os alemães tinham feito uma rusga, prendendo todos os homens aptos para
o trabalho, metendo-os em caminhões e mandando-os não se sabia para onde, uns
diziam que para as fortificações da frente de batalha, outros afirmavam que para a
Alemanha. Depois veio outra má notícia: de noite os alemães cercaram um vale
próximo do nosso, subiram ao cimo do monte e em seguida desceram,
espalhando-se pelas encostas e apanhando na sua rede, como peixes, todos os
homens, os quais expediram logo em caminhões para longe dali. Os refugiados
ficaram imediatamente cheios de medo, pois havia entre eles pelo menos quatro ou
cinco rapazes que, no momento da queda do fascismo, estavam na tropa e tinham
desertado, e eram mesmo esses rapazes que os alemães procuravam, porque os
consideravam traidores e queriam fazer-lhes pagar a traição, obrigando-os a
trabalhar como escravos, quem sabe onde e em que condições. Os mais astutos
eram os pais, e mais do que todos Filippo, por causa de Michele, que o estava
sempre a contrariar, mas em quem tinha muito orgulho. Em resumo, fez-se uma
reunião em casa de Filippo e ficou decidido que nos próximos dias, enquanto
houvesse o perigo dos recrutamentos, todos os rapazes subiriam de madrugada a
montanha, cada um para seu lado, descendo só ao pôr-do-sol. Lá no alto, embora
os alemães pudessem lá ir também, havia muitos atalhos que conduziam a outros
vales ou a outras montanhas e no fim de contas os alemães eram homens como os
outros e decerto perderiam a coragem ao ver que tinham de andar quilômetros e
quilômetros, por montes e vales, só para apanharem um homem ou dois. Michele,
para dizer a verdade, não queria fugir como os outros, não por bazófia, mas porque
nunca gostava de fazer o mesmo que todos faziam. Mas a mãe tanto lhe pediu e
suplicou que ele por fim cedeu.
Rosetta e eu decidimos ir com ele, não porque tivéssemos medo, não
prendiam as mulheres, mas para fazermos qualquer coisa, pois no socalco
morríamos de tédio, e também para estarmos ao pé de Michele, que era a única
pessoa lá em cima a quem nos tínhamos afeiçoado. Assim começou para nós uma
vida estranha de que me lembrarei enquanto viver.
Noite ainda, Paride, que se levantava sempre antes do romper da aurora,
vinha bater à nossa porta; vestíamo-nos à pressa, alumiados pela luz fraca de uma
lamparina de azeite. Saíamos para o frio, no escuro, com muitas sombras a
correrem para cima e para baixo pelo socalco fora e as janelas das casitas a
iluminarem-se uma após outra. Por fim encontramos Michele, pequenino, todo
enroupado em camisolas e camisolões, com um pau na mão, parecia mesmo um
anão das fábulas, dos que vivem nas cavernas de guarda aos tesouros. Sem
trocarmos uma palavra, lá seguíamos atrás dele pela montanha acima.
Começávamos a subir no escuro, através de mato denso e alto, que nos
chegava até ao peito, pelo carreiro incrustado de gelo, não se via nada, mas Michele
tinha uma lâmpada de bolso e, graças a esse foco de luz, podíamos ver o caminho;
e andávamos, andávamos, sem falar. Entretanto, enquanto subíamos, o céu
começava a clarear por trás das montanhas, tornando-se lentamente de um cinzento
sujo, mas ainda com muitas estrelas a brilharem uma última vez antes de romper o
dia. As montanhas desenhavam-se, negras, sobre esse fundo mais claro e
pontilhado de estrelas; depois também elas aclaravam, revelando a sua cor verde,
aqui e além manchada do escuro do mato e dos bosques. Agora já não havia
estrelas e o céu era de um cinzento quase branco e todo o mato surgia aos nossos
olhos, seco, gelado pelo inverno, mortificado, silencioso e ainda adormecido. Mas o
céu tornava-se gradualmente rosa no horizonte e azul por cima das nossas cabeças
e com os primeiros raios do sol que despontavam atrás de um dos montes, agudos e
cintilantes quais flechas de ouro, todas as cores apareciam, o vermelho-vivo de
alguns troncos, o verde-brilhante do musgo, o branco-creme dos penachos das
canas, o negro-lustroso dos ramos apodrecidos. A seguir deixávamos o matagal
para caminharmos num bosque de carvalhos que cingia a serra até lá muito em
cima. Eram carvalhos enormes, espalhados pela encosta, a boa distância uns dos
outros, que tinham crescido sem se tocarem e aqui e além estendiam os seus ramos
como braços, quase como se quisessem dar-se as mãos para se ajudarem e não
caírem devido à força do vento ou ao declive. Torcidos e espaçados, formavam um
bosque esparso, permitindo que o olhar abrangesse a encosta cheia de calhaus
brancos, até o cume recortado no céu azul. O atalho era quase plano no meio do
bosque, o sol acordava os pássaros empoleirados nos ramos, que se ouviam
esvoaçar e pipilar em grande número, embora não se vissem. Michele ia à frente de
nós, parecia feliz não sei porquê; andava com desembaraço, fazendo girar o ramo
de árvore que Lhe servia de bordão e assobiando uma ariazinha que parecia uma
marcha militar.
Subimos um bocado e os carvalhos tornavam-se cada vez mais raros,
menores e mais torcidos; por fim cessavam de todo, ficando só o carreiro íngreme
por entre pedras duma brancura que cegava; um pouco mais acima, atingíamos o
cume do monte, ou, melhor, a passagem entre dois cumes para onde nos
dirigíamos. Chegados lá, encontrávamo-nos num planalto que era mesmo uma
surpresa, depois de tantas pedras, todo atapetado de erva macia e muito verde,
entre a qual, aqui e além, se erguiam, como corcovas, rochas brancas e redondas.
No meio desse prado cor de esmeralda havia um velho poço defendido por um
parapeito de pedras soltas. Do planalto gozava-se um panorama soberbo, e até eu,
pouco dada a entusiasmar-me com as belezas naturais, talvez porque nasci na
montanha e as conheço bem, garanto que fiquei de boca aberta e cheia de
admiração a primeira vez que o contemplei. De um lado os olhos desciam pela
encosta majestosa, toda em socalcos, semelhante a uma escadaria imensa, até o
vale e, mais longe ainda, até a risca azul e cintilante do mar; do outro não se viam
senão montanhas e mais montanhas, as da Ciociaria, algumas salpicadas de neve
ou completamente brancas, outras calcinadas e cinzentas. Lá em cima fazia frio,
mas não muito, porque havia um sol puro e límpido e se estava bem ao sol e não
havia vento, pelo menos durante todo o tempo em que para lá fomos, cerca de duas
semanas.
Tínhamos de passar lá o dia inteiro: estendíamos um cobertor sobre a erva e
deitávamo-nos em cima dele. Repousávamos assim algum tempo e, quando
sentíamos vontade de nos mover, girávamos por aqui ou por ali. Michele e Rosetta
afastavam-se, colhendo flores ou simplesmente conversando, ou, melhor, ele
falando e ela ouvindo; mas eu, a maior parte das vezes, não os acompanhava e
ficava no planalto. Agradava-me estar sozinha; em Roma podia fazê-lo quando
queria, mas em Santa Eufêmia era impossível, porque de noite dormia com Rosetta
e durante o dia havia refugiados em toda a parte. Estar só dava-me a ilusão de uma
paragem na vida, durante a qual podia olhar em volta; na realidade, o tempo
passava, mas eu não dava por ele como quando estava acompanhada. Havia lá em
cima um grande silêncio; de um valezito logo abaixo chegava às vezes o som dos
chocalhos dum rebanho, mas era o único ruído e por vezes nem parecia um
verdadeiro ruído, não chegava a perturbar, dir-se-ia antes um rumor que tornava
mais calmo o lugar e mais profundo o silêncio. Agradava-me ir de ora em quando ao
pé do poço, aproximar-me do bocal e olhar para baixo, muito tempo. Era bastante
fundo, ou pelo menos assim parecia, pois a água mal se entrevia. As avencas tão
lindas, com os seus pezinhos negros como ébano e folhas verdes e finas que nem
plumas, despontavam densas por entre as pedras e refletiam-se na água escura.
Debruçava-me, olhava o fundo longamente e lembrava-me de que, em criança,
mirar-me nos poços me inspirava ao mesmo tempo medo e atração; imaginava que
os poços comunicavam com um mundo subterrâneo povoado de fadas e anões e
quase sentia vontade de me deixar cair para esse mundo e abandonar o meu...
Olhava para baixo enquanto os olhos não se habituavam àquela obscuridade e não
via distintamente a minha cara refletida na água; então, agarrava uma pedra e
deixava-a cair no meio da cara e via-a despedaçar-se no tremor dos círculos que a
queda da pedra provocava. Além de olhar para dentro do poço, agradava-me
também passear por entre aquelas rochas brancas e redondas, tão estranhas, que
se elevavam aqui e além no meio da erva verde. Nestes passeios parecia-me
igualmente voltar a ser criança: quase tinha a esperança de encontrar no meio
dessa erva coisas preciosas, talvez porque a própria erva, tão verde, me parecia ali
uma coisa preciosa, ou talvez também porque em lugares como aquele, segundo os
contos que ouvira em criança, podia estar enterrado um tesouro. Mas ali só havia
erva, que não vale nada e se dá aos animais. Uma vez encontrei um trevo de quatro
folhas e ofereci-o a Michele e ele, mais para me agradar do que por superstição,
guardou-o na carteira.
O tempo passava assim lentamente; o sol subia no céu e tornava-se
escaldante, tanto que algumas vezes abria a blusa e me estendia no chão, para me
queimar como se estivesse na praia. À hora do almoço, Michele e Rosetta voltavam
do seu passeio, e então comíamos, sentados na erva, um bocado de pão com
queijo. Comi antes e depois muitas coisas boas, mas aquele pão escuro e duro,
misturado com farinha de milho, e aquele queijo de ovelha tão rijo que era preciso
um martelo para o partir parecem-me, ao lembrá-los, o melhor que comi na vida.
Talvez o seu condimento fosse o apetite que a caminhada e o ar da montanha nos
provocavam; talvez a idéia do perigo constituísse também um molho raro; o certo,
porém é que comia com um prazer estranho, como se me apercebesse pela primeira
vez na vida de que a comida, além de nos servir simplesmente para viver e
recuperar as forças, nos pode proporcionar também prazer. E devo acrescentar a
propósito que lá em cima, em Santa Eufêmia, me sucedeu o mesmo pela primeira
vez com muitas outras coisas que são, é estranho dizê-lo, as mais simples, por
assim dizer, e que habitualmente se fazem mecanicamente, sem se pensar nelas. O
sono, que nunca antes me tinha parecido um apetite, cuja satisfação desse prazer e
repouso; a limpeza do corpo, que, como era difícil, se não impossível, parecia lá
uma coisa quase voluptuosa; em suma, tudo quanto diz respeito ao físico, a que na
cidade se dedica pouco tempo e quase sem se dar por isso. Penso que, se
estivesse lá em cima um homem que me agradasse, também o amor teria para mim
um sabor novo, mais profundo e mais forte. Era, em suma, como se me tivesse
tornado um animal, pois imagino que os animais, não tendo que pensar senão no
próprio corpo, devem experimentar os sentimentos que eu experimentava então,
obrigada pelas circunstâncias a ser somente um corpo que se alimentava, dormia se
arranjava e procurava o maior bem-estar possível.
O sol dava a volta ao céu, lentamente, descendo para o lado do mar. Quando
o mar começava a ficar mais escuro e a avermelhar-se com os raios do poente,
iniciávamos a descida para casa, não já pelo carreiro, mas a correr pela encosta,
sem querer saber do atalho, escorregando nas ervas e nas pedras. Assim, o
caminho que de madrugada percorrêramos em duas horas, à volta não levava mais
de meia hora. Chegávamos na altura da ceia, cobertos de pó, as vestes cheias de
folhas e espinhos, e íamos logo para a cabana cear. Deitávamo-nos cedo e de
madrugada estávamos de novo a pé.
Nem sempre, porém, lá em cima, no planalto, tudo estava calmo e distante da
guerra. Não me refiro aos aviões que freqüentemente passavam sobre as nossas
cabeças, isolados ou em esquadrilha, nem às explosões cujo rumor nos chegava do
vale, enfraquecido pela distância, e que indicavam que esses safados dos alemães
continuavam a destruir os diques, espalhando a água e a malária por toda a parte;
falo, sim, dos encontros que de vez em quando tínhamos e que tornavam para nós a
guerra sempre presente. E isto porque aquela passagem tão solitária era o caminho
quase obrigatório de todos quantos, através das montanhas, trilhando sempre os
cumes altos e evitando os vales, desciam de Roma e da alta Itália, ocupadas pelos
Alemães, para a Itália meridional, onde se encontravam os Ingleses. Eram, na
maioria, soldados em fuga, ou gente pobre que queria voltar à sua aldeia, de onde a
guerra a expulsara, ou ainda prisioneiros fugidos de qualquer campo de
concentração.
Lembro-me muitíssimo bem de um desses encontros. Estávamos a comer,
como de costume, pão e queijo, e eis que apareceram, de repente, por trás dumas
rochas, dois homens armados de varapaus, com tal aspecto que por pouco não os
tomava por selvagens. Vinham rotos e esfarrapados, mas não foi isso que me meteu
medo, porque de farrapos andava toda a gente vestida lá em cima; mas os seus
ombros, de uma largura nunca vista, e os seus rostos, completamente diferentes dos
Italianos, fizeram-me tanta impressão que nem sequer pude mexer-me ao vê-los
aproximar-se, e ali fiquei, sentada, paralisada de medo, com o pão e o queijo
suspensos no ar. Michele, que não tinha medo de nada nem de ninguém, não só por
coragem, mas porque confiava em todos, aproximou-se dos dois homens e começou
a falar com eles por gestos. Tomamos ânimo e também nós duas nos aproximamos.
As caras de ambos eram amarelas e achatadas, sem barba, com umas rugas
compridas na pele lisa ao longo das faces; tinham cabelos negros e espessos, olhos
pequenos, repuxados para cima nos ângulos, ao lado das têmporas: narizes
esmagados e bocas de mortos cheias de dentes aguçados e escuros. Michele
disse-nos que eram dois prisioneiros russos, mas de raça mongol, como quem diz
chinesa; em sua opinião, tinham fugido de qualquer campo de concentração alemão
onde estavam prisioneiros. Eu não me cansava de olhar para os seus ombros muito
largos, pensando que talvez tivesse sido uma imprudência não nos termos
escondido ou fugido: aqueles dois homens eram tão fortes que, se saltassem em
cima de mim ou de Rosetta, decerto não poderíamos escapar. Mas os dois mongóis
comportaram-se como gente boa: sempre a falar por gestos, ficaram conosco uma
hora ou pouco mais, o tempo de descansarem. Michele ofereceu-lhes pão e queijo e
eles comeram com discrição e parece-me que agradeceram. Riam constantemente,
os pobrezinhos; talvez, como não conseguiam compreender-nos nem fazer-se
compreender, quisessem dar-nos a entender, com esse riso, que as suas intenções
eram boas. Michele, sempre por gestos, explicou-lhes o caminho que deviam tomar
e, passado algum tempo, lá se foram embora, por entre as fragas; de longe
pareciam mesmo dois grandes macacos a caminharem sobre as patas traseiras,
com o auxílio dos varapaus que tinham arrancado de qualquer árvore.
Uma outra vez passou um operário italiano que estivera a trabalhar nas
fortificações da frente de batalha, não me lembro onde, e tinha fugido porque lá não
comiam nada, eram tratados como cães e trabalhavam como escravos. Quase não
se tinha em pé. Era um perfeito rapaz, distinto, de rosto fino e moreno, mas magro
como um cão, os ossos a furarem-lhe a pele, os olhos encovados e tristes e todo o
corpo verdadeiramente na espinha. Disse-nos que tinha família em Puglie e
esperava chegar lá, caminhando assim de montanha em montanha. Há uma
semana que andava e tinha um aspecto miserável, os sapatos rotos, as vestes em
farrapos. Não disse grande coisa; por causa da fraqueza, falava devagar, a custo, e
poucas palavras de cada vez, como se quisesse poupar o fôlego. Ouvira dizer que
em Roma houvera uma revolta e que tinham morrido alguns alemães... estes, em
represália, mataram muitos italianos... mas não sabia quando, nem como, não sabia
mais nada. Por fim, sempre a falar dos Alemães, disse:
“São uns miseráveis. Sabem muito bem que já perderam a guerra, mas, como
a guerra lhes agrada e nada lhes falta, porque vivem à nossa custa, continuarão a
fazê-la enquanto tiverem um soldado. Se a guerra não acabar depressa,
morreremos todos de fome e de miséria. Ou acaba a guerra ou acabamos nós.”
Aceitou, de Michele, pão, queijo e algum tabaco e, depois de descansar uma
meia hora no planalto, retomou o seu caminho, arrastando devagar as pernas.
Parecia que a cada passo iria cair ao chão para não se levantar mais.
Uma manhã, quando estávamos a apanhar sol, ouvimos inesperadamente um
assobio. Escondemo-nos logo todos os três atrás duma daquelas rochas brancas,
para ver o que se passava. Nunca se sabia... estávamos sempre alerta e sempre
com medo que aparecessem os alemães e nos prendessem. Dali a pouco Michele
deitou a cabeça de fora e viu, em frente, outra cabeça, que se escondia à pressa
atrás duma rocha não muito distante. Continuamos assim durante algum tempo, a
espiar-nos uns aos outros, e por fim vimos que não eram alemães e eles viram que
nós éramos italianos e saíram do esconderijo. Eram dois homens da Itália
meridional, militares, um tenente e um alferes, segundo nos disseram, mas vestidos
à paisana, pois também eles, como tantos outros, fugiam através das montanhas em
direção ao Sul, no intuito de passarem as linhas de combate e atingirem a terra onde
tinham as famílias. Um era moreno e alto, de pele escura, cara redonda, olhos
pretos como o carvão, dentes brancos e lábios quase de cor violeta; o outro era
louro, de cara comprida, olhos azuis e o nariz muito aguçado. O moreno chamava-se
Carmelo e o louro Luigi. De todos os encontros que tivemos no cimo da montanha,
foi talvez este o menos agradável, não porque os dois fossem verdadeiramente
antipáticos: é provável que em tempo de paz, na sua terra, eu não achasse nada
que lhes censurar, mas, como adiante se verá, a guerra exercera neles uma
influência péssima, como de resto em tantos outros, pondo a descoberto o lado mau
do seu caráter, que de outra forma ficaria oculto. E a propósito quero afirmar que a
guerra é uma grande provação: para se julgar bem os homens é preciso vê-los em
tempo de guerra, não em tempo de paz; não quando há leis e respeito pelos outros
e temor a Deus, mas sim quando todas essas coisas não existem e cada um age
segundo a sua natureza, sem freios de qualquer espécie.
Aqueles, no momento do armistício, encontravam-se num regimento
aquartelado em Roma e desertaram; primeiro estiveram escondidos, depois fugiram
da capital, na esperança de chegarem às suas terras. Durante um mês viveram em
casa de um camponês, nas faldas do monte das Fadas, e fiquei logo com má
impressão deles ao ouvi-los falar desse homem, que, em suma, os hospedara, de
uma maneira depreciativa, como de um pobre tísico ignorante, que nem sabia ler e
cuja casa parecia um covil. Um disse, a rir:
“Mas, já se sabe, tínhamos de nos contentar, em tempo de racionamento, pão
bolorento...”
Disseram ainda que tinham abalado do monte das Fadas porque o camponês
lhes dera a entender que não podia tê-los lá mais tempo, não tinha comida para lhes
dar, mas o moreno observou que não era verdade, pois, se tivessem dinheiro, a
comida decerto aparecia, todos os camponeses são interesseiros. Em conclusão,
iam para o Sul e esperavam passar a frente.
Era a hora do almoço e Michele, embora de má vontade, ofereceu-lhes o pão
e o queijo do costume. O moreno disse que aceitava o pão, mas, quanto ao queijo,
tinham um inteiro, roubado ao camponês avarento sem ele dar por isso, na altura em
que o deixaram. E, dizendo isto, tirou o queijo da sacola e agitou-o no ar, a rir. Fiquei
mal impressionada com esta declaração tão franca, não tanto pelo roubo, vulgar
naqueles tempos em que todos roubavam e o furto já não se chamava furto, como
pelo à vontade, que me parecia impróprio num homem como ele, com o posto de
tenente e que, pelas suas maneiras, devia pertencer à burguesia. Além disso, não
era bonito, pensei, pagar a hospitalidade daquele pobre homem levando-lhe o pouco
que tinha. Mas não disse nada; sentamo-nos na erva e começamos a comer e,
enquanto comíamos, conversávamos, ou melhor, ouvíamos o moreno, que falava
pelos cotovelos e sempre de si próprio, atribuindo-se uma grande importância, quer
como proprietário de terras na sua aldeia, quer como oficial durante a guerra. O loiro
ouvia-o semicerrando os olhos por causa do sol e de vez em quando contradizia-o
maliciosamente; mas o outro não se desconcertava e prosseguia com as suas
gabarolices. Dizia por exemplo o moreno:
“Na minha aldeia tenho uma herdade...”
E o louro:
“Bem, digamos dois ou três campitos do tamanho de lenços de assoar.”
“Não, uma grande herdade, e é preciso um cavalo para a percorrer.”
“Ora, ora, basta ir a pé e não é preciso dar muitos passos.”
Ou então:
“Arranjei uma patrulha e entrei no bosque. Estavam lá escondidos, pelo
menos, uma centena de soldados inimigos.”
“Eia, eu fui contigo e vi, não eram mais de quatro ou cinco.”
“Não, digo-te que eram pelo menos cem... claro, quando surgiram de trás das
sebes onde estavam escondidos, não os contei, nesses momentos há mais que
fazer do que contar os inimigos, mas deviam ser pelo menos cem...”
“Vamos, diminui lá isso, faz-lhe um desconto, eram uns cinco ou seis...”
E assim por diante. O moreno dizia-as das grossas, num tom muito seguro e
fanfarrão; o loiro, fraco e indolente, não deixava passar nem uma. Por fim, o moreno
contou o que fizera no dia em que fora proclamado o armistício e o exército italiano
se dispersara:
“Eu estava nos serviços da intendência, um armazém militar cheio de todos
os bens que Deus criou. Quando soube que a guerra acabara, não hesitei: mandei
carregar num caminhão tudo quanto pude, caixas de conservas, queijos, farinhas,
toda a espécie de gêneros alimentícios, e levei esse carregamento para casa, para a
minha mãe.”
Riu satisfeito do seu belo feito, mostrando a fieira dos dentes brancos e
perfeitos; então Michele, que até aí o ouvira sem uma palavra, observou num tom
seco:
“Em resumo, você roubou.”
“Que quer dizer?...”
“Quero dizer que momentos antes era um oficial do exército italiano e
momentos depois era um ladrão.”
“Meu caro senhor, não sei quem é, nem como se chama, mas podia...”
“Podia o quê?”
“Quem lhe disse que roubei?... Fiz o que faziam todos, se eu não tivesse
levado esses gêneros, outro qualquer os levaria.”
“É possível, mas, apesar disso, foi você que os roubou...”
“Veja como fala, sou capaz...”
“De quê, vejamos de que é capaz?...”
O loiro disse então ao moreno em ar de troça:
“É pena, Carmelo, mas tens de reconhecer que este senhor chegou para ti...
Tocado!”
O moreno encolheu os ombros e disse a Michele:
“Não quero perder tempo a discutir consigo.”
“Faz muito bem”, declarou Michele com autoridade, “mas sempre lhe digo
porque é que se comporta como um ladrão... Não contente em ter roubado, ainda se
gaba... supõe que foi muito esperto... se o tivesse feito e se se envergonhasse,
poderia supor-se que o fizera por necessidade... ou arrastado pelo contágio da
multidão... Mas não, gaba-se, e assim mostra que não ligou importância ao que fez e
está pronto a fazê-lo de novo.”
O moreno. furioso com este tom, levantou-se, agarrou num ramo de árvore e
brandiu-o contra Michele, dizendo:
“Ou está calado ou...”
Mas Michele nem teve tempo de reagir. O loiro desarmou-o imediatamente,
com uma risadinha maliciosa:
“Tocado de novo!”
Carmelo então voltou a sua fúria contra o amigo:
“Mas cala-te, também participaste no saque, estávamos lá os dois...”
“Eu apenas obedecia... eras meu superior... ah! ah!” Em suma, a refeição
acabou em silêncio, com o moreno deveras sombrio e o loiro a fungar. Depois
ficamos ainda mais algum tempo calados. Mas Carmelo não podia engolir aquela do
ladrão e dali a pouco disse em ar de desafio a Michele:
“Você, que julga sem saber e chama tão facilmente ladrão a quem vale mais,
mas muito mais, do que você, pode saber-se quem é? Eu posso dizer quem sou:
Carmelo Ali, oficial, agricultor, licenciado em direito, condecorado por mérito,
cavaleiro da Coroa de Itália. E você, quem é?”
O loiro, fungando, observou:
“Esqueceste-te de dizer que és também o secretário do fascio na nossa terra.
Porque não o dizes?”
Carmelo respondeu, aborrecido:
“O fascio já não existe, só por isso não o disse... mas sabes bem que, como
secretário do partido, nunca ninguém se queixou de mim.”
O loiro, a rir, corrigiu:
“A não ser que te aproveitavas disso para apanhares as camponesas mais
bonitas que iam pedir-te algum favor... Sempre foste um grande D. João...”
Carmelo, lisonjeado com a acusação, sorriu, mas não a repeliu; depois
voltou-se para Michele, insistindo:
“Então, meu caro senhor, diga um título, um curso, uma condecoração,
qualquer coisa em suma que nos faça compreender quem é e com que direito critica
os outros.”
Michele olhava-o fixamente através das espessas lentes de míope; por fim
perguntou:
“Que lhe importa o que sou?”
“Mas ao menos é licenciado?”
“Sim, sou licenciado... mas, mesmo que não fosse, nada mudaria.”
“Que quer dizer?”
“Quero dizer que você e eu somos homens e aquilo que somos, somos pelo
que fazemos, e não pelas honras e cursos... e o que você fez e disse define-o como
um homem pelo menos leviano e de consciência muito elástica... eis tudo.”
“Tocado!”, exclamou outra vez o loiro, nudo.
O moreno desta feita escolheu o partido de não fazer caso. Disse de repente,
pondo-se em pé:
“Eu sou estúpido em baixar-me a discutir consigo... Vamos, Luigi, que se faz
tarde e ainda temos de andar muito... Obrigado pelo pão e não duvide que, se for à
minha aldeia, lho pagarei com juros.”
Michele, caprichoso, respondeu com calma:
“Sim, contanto que o pão não seja feito com a farinha que você roubou ao
exército italiano.”
Agora Carmelo, que já ia distante, limitou-se a encolher os ombros, dizendo:
“Vá para o diabo mais o exército italiano.”
Ouvimos ainda o loiro repetir numa risada: “Tocado!” Depois viraram por trás
de uma rocha e desapareceram da nossa vista.
Outra vez vimos ao longe, num carreiro que contornava a montanha, uma
quantidade de gente que caminhava em fila indiana, como em procissão. Passaram
daí a pouco junto de nós. Eram pelo menos trinta pessoas, os homens com fatos
domingueiros, a maior parte fatos pretos, as mulheres com o seu trajo regional:
saias compridas, blusas e xales. As mulheres levavam à cabeça embrulhos e cestos
e ao colo as crianças menores; as crianças maiorzinhas iam pela mão dos homens.
Estes desgraçados, como eles próprios explicaram, eram os habitantes de uma
aldeia que estava mesmo na lha da frente. Os alemães, uma manhã, tinham-nos
acordado de madrugada, quando ainda dormiam, e deram-lhes meia hora para se
vestirem e embrulharem os objetos mais necessários. Depois meteram-nos num
caminhão e transferiram-nos para um campo de concentração perto de Frosinone.
Mas, passados alguns dias, fugiram desse campo e agora tentavam regressar à sua
aldeia, através das montanhas, para voltarem às suas casas e recomeçarem a sua
vida. Michele interrogou o chefe do grupo, um perfeito homem, já velhote, de
bigodes grisalhos, e este disse-lhe com ingenuidade:
“Se não fosse por mais nada, pelos animais... Se nós não pensarmos nos
animais, quem há-de pensar?... Os alemães?...”
Michele não teve coragem de lhes dizer que, ao chegarem à aldeia, não
encontrariam casas, nem animais, nem nada. Descansaram um momento e
retomaram o seu caminho. Eu simpatizei imenso com esses pobrezinhos, tão
resignados e confiantes, naturalmente porque se assemelhavam a nós as duas, a
Rosetta e eu: também tinham sido postos fora das suas casas pela guerra, também
andavam fugidos nas montanhas, abandonados, como ciganos. Alguns dias mais
tarde soube que os alemães os tinham prendido e levado outra vez para o campo de
Frosinone. Depois não soube mais nada deles.
Fizemos esta vida, subir de madrugada e descer ao pôr-do-sol, durante umas
duas semanas; por fim tornou-se evidente que os alemães tinham renunciado aos
recrutamentos, pelo menos naquele ponto da montanha, e ficamos lá em baixo e
recomeçamos a vida do costume. Ficou-me, porém, a saudade daqueles dias tão
lindos que passei no alto do monte, em comunhão íntima com a solidão e a
natureza. Lá em cima não havia refugiados nem camponeses a aborrecerem-me
com a guerra, os ingleses, os alemães e a carestia; não tinha canseiras para
cozinhar um ruim almoço ou jantar com lenha verde numa cabana escura; nada nos
lembrava a situação em que nos encontrávamos, a não ser aqueles dois ou três
encontros que já referi. Podia pensar que ia passear todos os dias com Michele e
Rosetta, e eis tudo.
Aquele pradozinho verde sobre o qual o sol de inverno se tornava tão quente
que parecia mesmo estarmos em maio, com as montanhas da Ciociaria no
horizonte, coroadas de neve, e do outro lado o mar cintilando ao fundo da planura de
Fondi, parecera-me um lugar encantado, onde muito bem podia estar escondido um
tesouro, como ouvia dizer em criança. Mas esse tesouro não estava debaixo da
terra, sabia-o agora, encontrara-o em mim própria, com tanta surpresa como se o
houvesse desenterrado com as minhas mãos: era aquela calma profunda, uma
completa ausência de medo e de ansiedade, uma confiança em mim e no que,
passeando sozinha, sentia crescer no meu íntimo à medida que os dias passavam.
Em tantos anos, foram talvez esses os dias mais felizes da minha vida e, é estranho
dizê-lo, foram também aqueles em que fui mais pobre, mais desprovida de tudo,
tendo pão e queijo por único alimento e a erva do prado por leito, e nem uma cabana
para me acoitar, vivendo mais como um animal selvagem do que como um ser
humano.
Agora estava-se no fim de Dezembro e mesmo no dia de Natal chegaram na
verdade os Ingleses. Não os ingleses do exército de Garigliano, bem entendido, mas
dois ingleses que fugiam, como tantos, pelas montanhas e apareceram em Santa
Eufêmia na manhã de 25 de Dezembro. O tempo continuava lindíssimo, frio, seco e
límpido; nessa manhã, ao chegar à porta do casinhoto, avistei no socalco uma
pequena multidão. Aproximei-me e vi que os refugiados e os camponeses cercavam
dois rapazes que pareciam forasteiros: um louro e pequeno, de olhos azuis, nariz
direito e fino, boca vermelha, barba loura cortada em ponta; o outro, alto e magro, de
olhos azuis e cabelos pretos. O louro falava um italiano arrastado e disse-nos que
eram ingleses: ele, oficial da marinha, o outro, simples marinheiro. Tinham
desembarcado para os lados de Óstia, perto de Roma, para fazerem ir pelos ares,
com dinamite, um pouco do que restava aos pobres italianos. Uma vez a missão
concluída, voltaram à praia, mas o barco que os trouxera não tornou a aparecer e
tiveram de fugir e esconder-se como e onde puderam. O período das chuvas
passaram-no em casa de uns camponeses, para os lados de Sermoneta, mas
agora, que fazia bom tempo, queriam tentar atravessar as linhas e alcançar Nápoles,
onde estava o seu comando.
Estas explicações foram seguidas de outras tantas perguntas e respostas;
refugiados e camponeses queriam saber como ia a guerra e quando acabava. Mas
eles sabiam tanto como nós: viviam nas montanhas há muitos meses, durante os
quais só tinham lidado com camponeses analfabetos que não estavam a par do que
se passava. Assim, quando os refugiados se aperceberam de que os dois não
sabiam nada e, ainda por cima, precisavam de auxilio, agora um, logo outro,
afastaram-se todos, repetindo que era perigoso estar ao pé dos ingleses, pois nunca
se sabe o que pode acontecer: denunciar é fácil e se os alemães viessem a sabê-lo,
era caso para suceder alguma desgraça. Em suma, por fim ficaram os dois sozinhos
no meio do socalco, ao sol, vestidos de farrapos, as barbas compridas, olhando em
volta como perdidos...
Também eu, confesso, tive medo de estar ao pé deles, e não por mim, mas
por Rosetta; mas Rosetta fez-me sentir vergonha desse medo, dizendo:
“Mamã, eles têm o ar de quem anda perdido, os pobrezinhos... e hoje é dia de
Natal... Não têm nada de comer e naturalmente gostariam de estar com as famílias e
não podem... Porque não os convidamos a comer conosco?”
Envergonhei-me do meu medo e pensei que Rosetta tinha razão. Não valeria
a pena desprezar os refugiados como desprezava, se no fim de contas procedia
como eles. Lá conseguimos que os dois compreendessem que os convidávamos a
comer conosco o jantar de Natal. Aceitaram logo, muito felizes.
Para esse Natal eu fizera um sacrificiozinho, sobretudo por causa de Rosetta,
que todos os anos, desde que nascera, festejava aquele dia melhor do que a filha
dum senhor. Comprara a Paride uma galinha e assara-a no forno com batatas. Tinha
também feito massa em casa, pouca, verdade se diga, pois restava-me pouquíssima
farinha, e arranjara uns pãezinhos com recheio. Tinha dois salpicões, que cortei em
fatias finas, pare comermos com alguns ovos cozidos. Fiz também doce: à falta de
melhor, raspei umas quantas alfarrobas, misturei essa farinha com farinha de trigo,
passes de uvas, pinhões e açúcar e cozi no forno um bolo baixo e duro, mas
saboroso. Consegui ainda que um refugiado me dispensasse uma garrafa de
marsala, o vinho tinha-me dado Paride. Fruta havia com abundância: em Fondi as
árvores estavam carregadas de laranjas, que custavam baratíssimo, e uns dias
antes comprara cinqüenta quilos delas e não comia outra coisa todo o dia.
Pensei convidar também Michele e disse-lho quando ele se dirigia à pressa
para casa do pai. Aceitou logo e penso que o fez sobretudo para não estar junto da
família. Acrescentou:
“Cara Cesira, fizeste hoje uma boa ação... Se não tivesses convidado esses
dois homens, retirava-te toda a minha estima.”
Michele, no entanto, chamou o pai, que apareceu à janela; então disse-lhe
que o tínhamos convidado para jantar e que aceitara. Filippo, em voz baixa, pois
tinha medo que os ingleses o ouvissem, começou a aconselhá-lo:
“Não vás, eles são dois fugitivos, se os alemães vêm a sabê-lo, estamos
arranjados.”
Mas Michele encolheu os ombros e, sem esperar que o pai acabasse o
discurso, dirigiu-se para o nosso casebre.
Tinha posto a mesa de Natal com uma toalha de linho espesso que os
camponeses me emprestaram. Rosetta colocara em volta dos pratos ramos cortados
no mato, verdes com bagas vermelhas, semelhantes àqueles que se vêem nas
festas em Roma. Num prato estava a galinha, que, para cinco pessoas, era
pequena, nos outros os salpicões, os ovos, o queijo, as laranjas e o doce. O pão
tinha-o feito de propósito para aquele dia e estava ainda quente do forno e cortara-o
em fatias, uma para cada um. Comemos com a porta aberta, pois a casa não tinha
janelas e, se a porta estivesse fechada, ficávamos às escuras. Lá fora brilhava o sol
e avistava-se o panorama de Fondi, luminoso e lindíssimo até onde o mar cintilava
ao longe. Michele, depois dos pãezinhos recheados, começou a atacar os ingleses a
respeito da guerra. Dizia-lhes das boas e fortes, falando de igual para igual, e eles
pareciam um pouco admirados. Talvez por não esperarem uma conversa daquelas
em tal lugar, com um farroupilha. Michele disse-lhes que tinham cometido um grande
erro em não desembarcar perto de Roma, em vez de desembarcarem na Sicília;
nessa altura teriam tomado Roma com facilidade e toda a Itália meridional. Agora,
avançando a passo e passo pela Itália acima, não só destruíam o pais, como faziam
sofrer horrivelmente as populações, que se encontravam, por assim dizer, entre a
bigorna, que eram eles, e o martelo, que eram os alemães. Os ingleses respondiam
que não sabiam nada de tudo isso, eram soldados e obedeciam. Michele então
atacou-os com outros argumentos: porque faziam a guerra, com que fim? Os
ingleses responderam: faziam a guerra para se defender dos Alemães, que queriam
submeter o mundo inteiro. Michele respondeu: isso não era razão suficiente, toda a
gente esperava que eles, depois da guerra, criassem um mundo novo, com mais
justiça, mais liberdade e mais felicidade do que o antigo. Se não conseguissem criar
esse mundo, então teriam perdido também a guerra, embora de fato fossem os
vencedores.
O oficial loiro ouvia Michele com desconfiança e respondia pouco, mas o
marinheiro pareceu-me que tinha as mesmas idéias, embora, por respeito ao oficial,
seu superior, não tivesse coragem de as exprimir. Por fim, o oficial cortou a
discussão, dizendo que o essencial, agora, era vencer a guerra; para o resto,
confiava no seu governo, que tinha certamente planos para criar esse mundo novo
de que Michele falava. Compreendemos todos que não queria comprometer-se
numa discussão embaraçosa, e o próprio Michele, embora contrariado, também
compreendeu e propôs que bebêssemos à saúde desse mundo novo que iria surgir
depois da guerra.
Enchemos os copos de marsala e bebemos todos à saúde do mundo de
amanhã. Michele estava comovido e tinha lágrimas nos olhos e, depois desse
primeiro brinde, quis beber à saúde dos Aliados, incluindo os Russos, que nessa
altura, segundo constava, tinham alcançado uma grande vitória sobre os Alemães.
Estávamos todos muito contentes, mesmo como se deve estar em dia de Natal; por
momentos pareceu-nos que não havia diferenças de língua nem de educação, que
éramos na verdade todos irmãos e que esse dia, que tantos séculos antes vira
nascer Jesus num estábulo, assistia agora também ao nascimento de qualquer coisa
semelhante a Jesus, qualquer coisa de bom e de novo que tornaria os homens
melhores. No fim do jantar fizemos um último brinde à saúde dos dois ingleses e
depois abraçamo-nos todos; eu abracei Michele, Roseta e os dois ingleses e eles
abraçaram-nos e dissemos uns aos outros:
“Bom Natal e bom Ano Novo!“
Pela primeira vez desde que estava em Santa Eufêmia me senti
verdadeiramente feliz. Michele, porém, observou daí a pouco que tudo aquilo era
muito bonito, mas havia um limite para o sacrifício e o altruísmo, e explicou aos dois
ingleses que nós as duas lhes podíamos oferecer hospitalidade aquela noite, o
máximo; depois era melhor partirem, porque seria verdadeiramente perigoso para
eles e para nós se ficassem lá em cima: os alemães podiam vir a sabê-lo e então
ninguém nos salvaria da sua vingança. Os ingleses responderam que
compreendiam perfeitamente estas exigências e asseguraram-nos que partiriam no
dia seguinte.
Ficaram conosco todo aquele dia. Falaram um pouco de tudo com Michele e
eu não pude deixar de notar que, enquanto Michele parecia muito bem informado
sobre a terra deles, até quase melhor do que eles próprios, eles, ao contrário,
ignoravam tudo da Itália, na qual todavia se encontravam e faziam a guerra. O
oficial, por exemplo, disse-nos que andara na universidade, portanto era pessoa
instruída. Mas Michele, arranha que arranha, acabou por descobrir que ele não
sabia quem era Dante. Ora eu não sou instruída e nunca li o que escreveu Dante,
mas conhecia-o pelo menos de nome, e Rosetta disse-me que, quando andava na
escola, não só lhe tinham ensinado quem era Dante, como também lera alguns
trechos desse poeta. Michele confessou-nos baixinho a sua admiração e, sempre
em voz baixa, num momento em que os ingleses não o ouviam, acrescentou que
assim se explicavam muitas coisas, como por exemplo os bombardeamentos que
tinham destruído tantas cidades italianas. Os aviadores que deitavam as bombas
não sabiam nada de nós nem dos nossos monumentos, a ignorância tornava os
tranqüilos e sem piedade e a ignorância, acrescentou Michele, é talvez a causa de
todas as nossas dores e das dos outros, porque a malvadez não é senão uma forma
de ignorância e quem sabe não pode verdadeiramente fazer mal.
Aquela noite dormiram os dois num palheiro e, de manhã cedo, sem se
despedirem, foram-se embora. Estávamos ambas muito cansadas, pois ficáramos a
pé até tarde, o que não era habitual: todos os dias íamos para a cama com as
galinhas.
Assim, nessa manhã, já passava do meio-dia e nós ainda dormíamos. No
melhor desse sono, eis que ouço uma pancada terrível na porta e depois uma voz
medonha que dizia não sei o quê numa língua que eu não conhecia.
“Oh, meu Deus, mamã!”, exclamou Rosetta, aconchegando-se a mim. “Que é
isto?”
Fiquei um momento sem me mexer, quase incrédula, e logo outra pancada e
outro grito incompreensível. Então disse a Rosetta que ia ver quem era, saltei da
cama tal como estava, em saia de baixo, toda despenteada, os pés descalços, e fui
abrir a porta. Eram dois militares alemães; um devia ser sargento e o outro simples
soldado. O sargento era mais jovem: tinha a cabeça loura, a cara branca como
papel, os olhos dum azul deslavado, sem pestanas, sem expressão e sem luz. O
seu nariz era um pouco torto para um lado e a boca torcida para o outro; duas
cicatrizes na face, longas e pálidas, davam-lhe um aspecto curioso, como se a boca
continuasse até o pescoço. O outro era um homem de meia-idade, forte, moreno, de
testa enorme, olhos tristes e encovados, de um azul-escuro, o maxilar de cão
mastim. Digo a verdade: assustei-me deveras, não por mais nada, pelos olhos do
sargento, frios e inexpressivos, de um azul tão feio que pareciam os olhos de um
animal, e não dum homem. Porém, não mostrei medo e gritei-lhe na cara com
quanta força tinha:
“Olá, que bicho te mordeu, desgraçado? Queres arrombar a porta? Não vês
que somos duas mulheres e estamos a dormir? Nem sequer podemos dormir?”
O sargento dos olhos claros fez com a mão um gesto, dizendo em mau
italiano:
“Bona, bona.”
Depois, voltando-se para o soldado, fez-lhe aceno para que o seguisse e
entrou na casota.
Rosetta estava ainda na cama e olhava-os de olhos esbugalhados, os lençóis
puxados até o queixo. Espreitaram por toda a parte, até debaixo da cama; e o
sargento, na sua fúria pesquisadora, até levantou o lençol a Rosetta, como se ela
pudesse ter debaixo das roupas aquilo que procuravam. Depois saíram. Entretanto,
juntaram-se à porta muitos refugiados, e hoje, pensando nisso, digo que foi mesmo
um milagre os dois alemães não os interrogarem a respeito dos ingleses, pois
decerto, quanto mais não fosse por estupidez, algum havia de dar com a língua nos
dentes, e, então, coitadinhas de nós... De resto, o fato de os alemães irem lá acima,
logo no dia seguinte à chegada dos ingleses, fez-me pensar sempre que houve com
certeza denúncia ou, pelo menos, alguma conversa. Mas os alemães, segundo me
pareceu, não queriam ter aborrecimentos, e por isso se limitaram a fazer uma busca
à pressa, sem interrogar ninguém.
Porém, os refugiados, que não estavam habituados a ver alemães lá em
cima, queriam informar-se a respeito da guerra, se terminaria ou não depressa. Um
até foi chamar Michele, que sabia alguma coisa de alemão, e, no momento em que
os dois estavam para se ir embora, empurraram-no para a frente, porque ele não
queria, e gritaram-lhe:
“Pergunta-lhes quando acaba a guerra.”
A Michele, via-se a uma légua de distância, não lhe agradava falar com os
alemães. Mas encheu-se de coragem e lá disse qualquer coisa. Reproduzo agora
em italiano aquilo que os alemães e Michele disseram em alemão, porque uma parte
Michele traduziu-a logo ali para os refugiados e a outra parte traduziu-me depois de
os alemães partirem. Michele perguntou-lhes quando acabaria a guerra e o sargento
respondeu que não demoraria muito, com a vitória de Hitler. Acrescentou que os
Alemães tinham umas armas secretas e com elas iriam deitar ao mar os Ingleses, o
mais tardar na primavera. Disse ainda qualquer coisa que fez uma grande impressão
aos refugiados.
“Faremos a ofensiva e deitaremos os Ingleses ao mar. Entretanto, os
comboios servirão para transportar munições e nós viveremos do que os Italianos
têm, e aos italianos que nos traírem, deixa-los-emos morrer de fome.”
Disse assim mesmo, com ar convicto, calmo e desapiedado, como se, em vez
de italianos, isto é, cristãos, falasse de moscas ou de qualquer outro animalejo. Os
refugiados calaram-se todos ao ouvir estas palavras, pois não as esperavam; não
sei porquê, supunham que os alemães tinham simpatia por eles. Michele, que
tomara o gosto de falar, perguntou ainda de onde eram. O sargento respondeu que
era de Berlim e em tempo de paz tinha uma pequena fábrica de caixas de cartão,
mas agora tinham-lha destruído, e por isso não lhe restava senão fazer a guerra o
melhor que podia. O soldado hesitou antes de responder; depois, revirando os olhos
encovados e tristes e fazendo uma cara aflita, como um cão que apanhou uma
paulada, disse que também era de Berlim e também lhe não restava mais nada
senão a guerra, pois a mulher e a filha única tinham-lhe morrido, vítimas dos
bombardeamentos. Em resumo, ambos responderam mais ou menos a mesma
coisa: que tinham perdido tudo nos bombardeamentos e só pensavam agora em
fazer a guerra; simplesmente, via-se bem, era claro como a água, o sargento fazia a
guerra com zelo e paixão, talvez até com malvadez, enquanto o soldado, tão
sombrio, com aquela testa enorme que parecia cheia de tristeza, fazia a guerra por
qualquer outra razão, talvez por desespero, pois sabia que ninguém já o esperava
em casa. E eu pensei que aquele soldado talvez não fosse mau; mas o fato de ter
perdido a mulher e a filha poderia torná-lo ruim, e se, por exemplo, Deus me livrasse
de tal, nos tivesse prendido as duas, talvez não hesitasse em matar Rosetta ao
lembrar-se de que lhe morrera uma filha da mesma idade nos bombardeamentos de
Berlim. Enquanto pensava em tudo isto, o sargento, que parecia ter algum agravo
dos Italianos, perguntou de repente por que razão entre os refugiados havia tantos
rapazes com as mãos nos bolsos, enquanto todos os alemães combatiam na frente.
Michele respondeu-lhe, elevando a voz, quase aos gritos, que ele e todos os outros
tinham combatido por Hitler e pelos Alemães na Grécia, em África e na Albânia e
estavam prontos a combater de novo, até a última gota de sangue, e todos lá em
cima ansiavam pela hora em que o grande e glorioso Hitler vencesse definitivamente
a guerra e deitasse ao mar esses safados dos Ingleses e Americanos. O sargento
ficou um pouco atrapalhado com esta tirada; olhava com ar de dúvida para Michele,
media-o de alto a baixo e via-se que não o acreditava. Mas, em suma, eram
palavras que não faziam mal nenhum e contra as quais nada podia dizer, embora
não acreditasse nelas. Assim, depois de terem entrado nas outras casotas e
revistado aqui e além, mas de má vontade e sem interesse, os dois voltaram para o
vale com grande alívio de todos nós.
Eu porém fiquei impressionada com a atitude de Michele. Não digo que devia
insultar os alemães, mas todas aquelas mentiras, assim gritadas com uma cara sem
vergonha, surpreenderam-me bastante. Disse-lho e ele encolheu os ombros e
respondeu-me:
“Com os nazis tudo é lícito: mentir-lhes, traí-los, matá-los se for possível, Que
farias a uma serpente venenosa, um tigre ou um lobo raivoso? Procuravas, decerto,
reduzi-lo à impotência pela força ou pela astúcia. Naturalmente não lhe falavas,
tentando de qualquer modo amansá-lo, porque já sabias que isso seria inútil. É
assim com os nazis. Eles colocaram-se fora da humanidade, como animais:
selvagens, e por isso, para os combater, todos os meios são bons. Tu, como aquele
oficial inglês tão instruído, nunca leste Dante. Se o tivesses lido, saberias que Dante
diz: ‘E cortesia fu in lui esser villano’”.
Perguntei o que queria dizer aquela frase de Dante e ele então explicou-me
que queria dizer precisamente que com gente como os nazis era já muita cortesia
mentir e atraiçoar. Nem isso mereciam. Eu disse por dizer que entre os nazis
também podia haver bons e maus, como há em todo o lado, e portanto não se podia
saber se aqueles dois eram maus. Mas Michele pôs-se a rir:
“Aqui não se trata de bons e maus. Talvez sejam bons para as mulheres e
para os filhos, tal como os lobos e as serpentes são bons para as fêmeas e suas
crias. Mas para a humanidade, é isso que conta, contigo, comigo, com Rosetta, com
estes refugiados e camponeses, não podem deixar de ser maus.”
“E porquê?”
“Porque”, respondeu, passado um momento de reflexão, “estão convencidos
de que é o bem aquilo que nós chamamos o mal. E fazem o mal julgando que
cumprem o seu dever.”
Fiquei na dúvida, parecia-me não ter compreendido. Ele, porém, não me dava
atenção e concluiu, como que a falar consigo mesmo:
“A combinação do mal e do sentido do dever, eis o que é o nazismo.”
Era curioso como Michele podia ser tão bom e ao mesmo tempo tão duro!...
Lembro-me de termos encontrado alemães noutra ocasião, em circunstâncias muito
diferentes. Eu tinha já pouca farinha e fazia o pão aproveitando não só o farelo mais
fino, mas também o mais grosso. Um dia decidimos ir ao vale a ver se
encontrávamos um pouco de farinha para trocar por ovos. Os ovos comprara-os a
Paride; tinha dezesseis e esperava, em troca desses ovos e juntando-lhe algum
dinheiro, arranjar uns quilos de farinha branca. Nunca mais descêramos ao vale
desde o dia daquele bombardeamento que causara tanto medo ao pobre
Tommasino, e, digo-o com sinceridade, desta vez ia de má vontade. Não sei porquê,
falei nisto diante de Michele e ele ofereceu-se para nos acompanhar. Aceitei com
prazer porque, com Michele, sempre me sentia mais segura, pois era a única pessoa
lá em cima que verdadeiramente me inspirava coragem e confiança. Meti então os
ovos num cestinho com palha e pusemo-nos a caminho de manhã cedo. Estávamos
nos primeiros dias de Janeiro, em pleno inverno, em plena guerra, no momento, por
assim dizer, mais negro, mais frio e mais desesperado, daquele desespero que
durava há tantos anos já. A última vez que descera ao vale, nesse dia em que fora
com Tommasino, havia ainda folhas nas árvores, embora amarelas, e erva nos
prados, depois de tantas chuvas, e nas encostas algumas flores, as últimas do
Outono, como ciclames e violetas selvagens. Mas agora, à medida que descíamos,
víamos tudo seco, cinzento, árido e nu, num ar frio e sem sol, sob um céu nublado e
sem cor. Partimos bastante alegres, mas depressa nos calamos: o dia estava
silencioso como são silenciosos os dias de Inverno e esse silêncio gelava-nos e
impedia-nos de falar.
Primeiro descemos pela encosta à direita do vale, depois atravessamos o
planalto onde, entre figueiras-da-índia e rochas, caíra a bomba lançada pelo avião
no dia em que íamos acompanhadas por Tommasino, passando em seguida para o
lado esquerdo. Caminhamos assim sem falar ainda meia hora e por fim chegamos à
entrada do vale, onde havia a pontezinha, a encruzilhada e a casa em que
Tommasino morara até o dia fatal do bombardeamento. Lembrava-me desse lugar
como de um sítio risonho, bonito e amplo, e fiquei surpreendida, confesso, ao vê-lo
triste, cinzento, nu e mesquinho. Já viram uma mulher sem cabelo? Eu já vi uma
rapariga da minha aldeia que teve o tifo: uma parte caiu-lhe, o resto rasparam à
máquina zero. Parecia outra, até tinha uma expressão diferente, fazia lembrar um
ovo grande e feio, com a cabeça lisa e calva que as mulheres nunca têm, pois uma
cara privada dos cabelos fica como que esmagada por uma luz demasiado crua. Do
mesmo modo, sem a folhagem espessa e verde dos três plátanos que davam
sombra à casita de Tommasino, sem a verdura que cobria as pedras das margens
do riacho, sem as plantas dos dois lados da estrada e nos valados, que então eu
não notara, mas deviam lá estar, pois agora sentia a sua falta, aquele lugar não
parecia o mesmo, perdera toda a beleza, exatamente como uma mulher a quem
tivessem rapado o cabelo. E, não sei porquê, vendo-a assim tão miserável,
constrangeu-me o coração e quase me pareceu que se assemelhava um pouco às
nossas vidas naquele momento, também nuas e sem ilusões, numa guerra que não
acabava mais.
Seguimos pela estrada principal e daí a pouco tivemos o primeiro encontro do
dia. Um homem conduzia pelas rédeas dois cavalos, castanhos e gordos, muito
bonitos, na verdade. Eram dois cavalos alemães, mas o homem tinha um uniforme
que eu nunca vira. Quando chegamos ao pé dele, primeiro olhou-nos, depois
saudou-nos e, como fazíamos o caminho na mesma direção, começou a conversar
conosco num mau italiano. Assim andamos e falamos um bom bocado. Era um
rapaz dos seus vinte e cinco anos, de uma beleza como poucas vezes tenho visto
na vida. Alto, de ombros largos, cintura delgadíssima como uma mulher, elegante,
pernas altas, metidas em botas de couro amarelo. Era louro como o ouro, tinha
olhos de uma cor entre o verde e o azul, talhados em amêndoa, estranhos e
sonhadores, o nariz direito, comprido e fino, a boca vermelha e bem desenhada e,
quando sorria, descobria uns dentes lindíssimos, brancos e certos, que era um
prazer olhá-los. Disse-nos que não era alemão, mas sim russo, de uma terra muito
distante, cujo nome não me lembro. Confessou tranqüilamente que traíra os Russos
e se pusera ao lado dos Alemães porque não gostava dos Russos, embora também
não gostasse dos Alemães. Acrescentou que, juntamente com outros compatriotas
que tinham traído igualmente o seu país, estava ao serviço dos nazis; mas agora
tinha a certeza de que os Alemães perdiam a guerra, pois a sua crueldade revoltara
o mundo inteiro, que se unira contra eles. Os Alemães, concluiu, mais mês, menos
mês, perdem a guerra e então, para ele, acabaria tudo, e fez nesta altura um gesto
que nos deixou gelados, levando a mão ao pescoço, como que a dizer que os
Russos lhe cortariam a cabeça. Falava com calma, como se a própria sorte lhe fosse
indiferente. E sorria até, não só com a boca, mas com aqueles olhos estranhos,
cerúleos, que pareciam dois bocadinhos de mar, onde o mar é mais fundo. Via-se
que odiava os Alemães e odiava os Russos e se odiava a si mesmo e não lhe
importava nada morrer. Caminhava tranqüilamente, segurando pelas rédeas os dois
cavalos. Na estrada deserta e no campo cinzento e gelado não havia senão ele e os
seus cavalos e parecia inacreditável que este homem tão belo estivesse, por assim
dizer, já condenado e tivesse de morrer, talvez mesmo antes do fim do ano. Na
encruzilhada onde nos separamos disse ainda, acariciando as crinas a um dos
cavalos:
“Estes dois cavalos são tudo quanto me resta na vida e nem sequer são
meus...”
Depois, lá se foi em direção à cidade. Ficamos a vê-lo um momento
afastar-se. E eu não pude deixar de pensar que encontrara mais uma vitima da
guerra: se não fosse a guerra, aquele rapaz tão belo teria ficado na sua aldeia,
decerto para se casar e trabalhar e ser um homem honrado, como todos os outros.
A guerra obrigara-o a sair da aldeia, obrigara-o a trair e agora a guerra matava-o e
ele estava resignado a morrer, e isso, entre tantas coisas horríveis, era talvez a pior,
por ser a menos natural e a menos compreensível.
Tomamos, à esquerda, uma estrada secundária que conduzia aos laranjais.
Esperávamos trocar aí os ovos pelo pão dos alemães que tinham as suas tendas à
beira do pomar, como da outra vez. Mas não encontramos ninguém, as peças de
artilharia tinham desaparecido. Só se via o solo pisado e sem ervas no sítio onde
tinham estado as tendas e algumas árvores arrancadas e despedaçadas, era tudo...
Disse então que seria melhor continuarmos por aquela estrada, pois talvez outros
grupos de alemães estivessem acampados um pouco mais adiante.
Caminhamos ainda um quarto de hora, sempre em silêncio, e, por fim,
percorrido quase um quilômetro, encontramos uma rapariga loura que andava por ali
sozinha, não como quem se dirige para um lugar determinado, mas como quem
passeia sem destino. Caminhava devagar, olhando com estranho interesse para os
campos cinzentos e nus e dando de vez em quando uma dentada num bocado de
pão. Fui ao seu encontro e perguntei-lhe:
“Dize-me, sabes se há alemães para estes lados, se seguirmos pela estrada
adiante?”
Ela parou ao ouvir a minha pergunta e fitou-me. Usava um lenço na cabeça, e
era uma linda rapariga, sã e robusta, de cara larga, um pouco maciça e olhos
grandes, castanhos. Respondeu logo à pressa:
“Os alemães... decerto que os há... pois estão cá os alemães.”
Perguntei-lhe:
“Mas onde estão?”
Ela olhava-me e agora parecia assustada, de repente, sem me responder, fez
um movimento para se ir embora. Peguei-lhe num braço e repeti a pergunta. Então
baixou a voz e disse:
“Se eu te disser, não vais contar onde tenho as provisões?”
Fiquei de boca aberta ao ouvir tais palavras, que eram ao mesmo tempo
adequadas às circunstancias e completamente absurdas. Exclamei:
“O que dizes? Porque me falas tu de provisões?”
E ela, abanando a cabeça:
“Vêm e levam tudo... vêm e levam tudo... os alemães, claro... mas sabes o
que lhes disse a última vez que cá vieram? Não tenho nada, não tenho farinha, não
tenho feijões, não tenho banha, não tenho nada... só tenho o leite para o meu
menino... se o querem, levem-no... aqui está.”
E, olhando-me fixamente, de olhos esbugalhados, começou a desabotoar a
blusa. Fiquei perplexa, tal como Michele e Rosetta. Ela olhava para nós, mexendo
os lábios como se falasse consigo mesma, e entretanto abria a blusa até a cinta e
depois, com uma das mãos, os dedos abertos, como fazem as mães quando dão de
mamar aos filhos, tirou para fora o seio.
“Não tenho senão isto... levem-no”, repetia em voz baixa, sonhadora. Agora
tinha conseguido tirar para fora da blusa todo o seio, que era lindo, redondo e cheio,
com aquela transparência de pele e brancura que habitualmente indicam que a
mulher é mãe e amamenta. Mas, depois de o tirar, eis que de repente se foi embora,
cantarolando, distraída, a blusa toda aberta, um seio à mostra e outro tapado.
Fez-me impressão vê-la ir assim a mordiscar o bocado de pão, com o seio exposto
ao frio do inverno, única coisa viva e branca e luminosa e quente naquele instante
sem sol e sem cor, nu e frio...
“É louca!”, disse por fim Rosetta.
Michele confirmou secamente:
“Sim!”
Recomeçamos a caminhar em silêncio. Como não se viam alemães em parte
alguma, Michele propôs que fôssemos a casa de uns seus conhecidos que
possivelmente viviam refugiados numa barraca no meio dos laranjais. Disse-me que
eram gente honesta e talvez nos pudessem indicar onde se encontravam alemães
que nos trocassem os ovos por pão. Assim, dali a pouco deixamos a estrada e
metemos por um carreiro através do pomar. Michele disse-nos que todas aquelas
laranjeiras pertenciam à pessoa a casa de quem íamos, um advogado solteiro, que
vivia com a mãe, já velha. Andamos talvez dez minutos e por fim desembocamos
numa pequena clareira, diante duma barraquita insignificante, com paredes de tijolo
e teto de chapa ondulada. A barraca tinha duas janelas e uma porta. Michele
aproximou-se de uma das janelas, olhou, viu que os donos estavam em casa e
bateu duas vezes. Esperamos um bocado e por fim a porta abriu-se lentamente,
como que de má vontade, e o advogado apareceu na soleira. Era um homem duns
cinqüenta anos, corpulento, calvo, fronte pálida e brilhante como o marfim,
circundada de cabelos pretos desgrenhados, olhos aquosos e à flor da pele, nariz
em bico, boca mole e dobrada sobre o duplo queixo. Vestia um casaco como os que
se usam à noite na cidade, de fazenda azul e gola de veludo preto. Mas, além deste
casaco tão elegante, tinha um par de calças esfarrapadas e botas de soldado, de
couro, com cardas.
Ao ver-nos, notei-o imediatamente, ficou pouco satisfeito; porém recompôs-se
logo e deitou os braços ao pescoço de Michele, com uma cordialidade quase
excessiva.
“Michelino... bravo, bravo... que bom vento te traz por cá?”
Michele apresentou-nos e ele saudou-nos a distância, empertigado, quase
com frieza. Entretanto, continuávamos à porta e ele não nos convidava a entrar.
Michele, então, disse:
“Passamos por aqui e lembramo-nos de lhe fazer uma visita.”
O advogado estremeceu:
“Muito bem... íamos agora mesmo sentar-nos à mesa... venham... comem
conosco.” Hesitou e depois acrescentou: “Michele, vou avisar-te... como conheço os
teus sentimentos, que, de resto, são também os meus... Convidei o tenente alemão
que comanda a bateria antiaérea instalada aqui ao lado... tinha de o fazer... nos
tempos que correm...”
Assim, desculpando-se e suspirando, introduziu-nos na barraca. Uma mesa
redonda estava posta junto da janela e era a única coisa limpa e em ordem na sala:
o resto eram apenas bugigangas, montes de farrapos, pilhas de livros, montões de
malas e caixas, À mesa estavam já sentados a mãe do advogado, uma senhora
idosa, pequena, vestida de preto, de face enrugada e apreensiva, qual macaquinha
assustada, e o tenente nazi, loiro, magro, chato como uma folha de papel na farda
justa, as compridas pernas metidas em calções de montar e polainas e estendidas
sem cerimônia, uma para cada lado, debaixo da mesa. Tinha mesmo focinho de cão:
só nariz, os olhos, quase amarelos, muito próximos um do outro, sem pestanas nem
sobrancelhas, com expressão estudada e hostil, a boca grande e repuxada nos
cantos. Cortês e obsequioso, levantou-se e saudou-nos, batendo os calcanhares:
mas não apertou a mão a ninguém e tornou a sentar se imediatamente, como quem
diz:
“Não o faço por vocês, mas sim porque sou uma pessoa educada.”
O advogado, entretanto, explicava que o tenente comandava uma bateria
antiaérea, o que nós já sabíamos, e que aquele almoço era um almoço de boa
vizinhança.
“E esperemos”, concluiu, “que a guerra acabe depressa e o tenente possa por
sua vez retribuir nos este convite em sua casa, na Alemanha.”
O tenente não disse nada, nem sequer sorriu. e eu pensei que ele não
percebia a nossa língua e não tinha compreendido. Mas, depois, de repente, ouvi-o
dizer em bom italiano à mãe do advogado, que, com voz lamentosa, lhe oferecia um
vermute:
“Obrigado, não tomo aperitivos.”
E compreendi então, não sei porquê, que ele não sorria porque embirrava, por
qualquer motivo, com o dono da casa. Michele contou o encontro com a louca e o
advogado disse com indiferença:
“Ah, sim, Lena!... Ela foi sempre doida. No ano passado, naquela confusão de
tropas para um lado e para o outro, um soldado surpreendeu-a enquanto vagueava
nos campos, sozinha como de costume, e engravidou.”
“E onde está agora o filho?”
“Está com a família, que o cria com todo o cuidado. Mas ela, a pobre louca,
imagina que lho querem tirar por não ter leite para alimentá-lo. É curioso, porém, que
o amamenta regularmente, isto é, a horas certas, a mãe põe-lho nos braços e ela faz
o que a mãe lhe diz que faça. Mas continua com a idéia fixa de que não pode
saciar-lhe a fome.”
O advogado falava da pobre Lena como de uma coisa sem importância. A
mim, pelo contrário, causara-me uma impressão profunda, que nunca mais se
apagou da minha memória. Como se aquele seio nu, que ela oferecia a qualquer na
estrada, fosse a verdadeira imagem das condições em que todos nós, Italianos,
vivíamos naquele inverno de 1944: desprovidos de tudo, como os animais que não
têm senão o leite que dão aos filhos.
Entretanto, a mãe do advogado, assustada, trêmula, apreensiva, ia à cozinha
e voltava, trazendo os pratos nas duas mãos, como se fossem o Santíssimo
Sacramento. Pôs na mesa salame e fatias de presunto, pão de fabrico alemão, igual
àquele de que nós andávamos à procura, depois uma verdadeira sopa com os
condimentos necessários e por fim um grande frango assado com guarnição de
legumes em conserva. Pôs também na mesa uma garrafa de vinho tinto, de boa
qualidade. Via-se que o advogado e a mãe faziam tudo para agradar àquele
rapazote alemão; como era agora vizinho deles, com a sua bateria, tinham todo o
interesse em amansá-lo.
Mas o tenente possuía de fato um caráter ruim, pois a primeira coisa que fez
foi indicar o pão e inquirir:
“Posso perguntar-lhe, senhor advogado, como conseguiu adquirir este pão?”
O advogado, todo enrolado no capote como se tivesse febre alta, respondeu
numa voz hesitante mas zombeteira:
“Bem, foi um presente, um soldado deu-nos isso e nós demos-lhe outra
coisa... sabe-se, em tempo de guerra...”
“Uma troca”, disse o outro, severo, “isso é proibido... E quem é esse
soldado?”
“Ah! ah! tenente, fala-se do pecado, mas não do pecador... Prove este
presunto, não é alemão, é nosso.”
O tenente não disse nada e começou a comer o presunto. Depois o tenente
deixou o advogado em paz e voltou-se para Michele. Perguntou-lhe à queima-roupa
qual era a sua profissão e Michele respondeu, sem hesitar, que era professor.
“Professor de quê?”
“De literatura italiana.”
O tenente, com grande espanto do advogado, afirmou então tranqüilamente:
“Conheço a vossa literatura e até traduzi para alemão um romance italiano”.
“Qual?”
O tenente disse o nome do autor e o título, mas já não me recordo de um nem
de outro e vi que Michele, que até então não mostrara nenhum interesse pelo
tenente, parecia agora interessado. O advogado, vendo que o nazi falava a Michele
quase com uma espécie de consideração, de igual para igual, também mudou de
atitude: parecia contente por sentar Michele à sua mesa; chegou a dizer ao tenente:
“Ah! o nosso Festa é um literato... um literato de valor!”
E dava-lhe palmadas no ombro. Mas dir-se-ia ser ponto de honra para o
tenente não ligar nenhuma ao advogado, que era o dono da casa e o convidara. E
continuou, voltado para Michele:
“Vivi dois anos em Roma e estudei a vossa língua... pessoalmente, ocupo-me
de filosofia”.
O advogado procurou meter-se na conversa, dizendo a brincar:
“Então deve compreender porque é que nós, Italianos, encaramos tudo
quanto nos aconteceu ultimamente com filosofia... ah! ah! é isso mesmo, com
filosofia...”
Mas mais uma vez o tenente nem sequer olhou para ele. Agora falava
animadamente com Michele, citando uma quantidade de nomes de escritores e
títulos de livros; via-se que conhecia bem a literatura e percebi que Michele, mesmo
contra vontade, ia cedendo a pouco e pouco, não digo a um sentimento de estima,
mas pelo menos de curiosidade. Continuaram assim algum tempo e em seguida,
não sei como, começaram a falar da guerra e do que pode significar a guerra para
um homem de letras ou um filósofo. O tenente, depois de observar que era uma
experiência importante, ou, antes, necessária, saiu-se com esta:
“Mas a sensação mais original e até a mais estética,” repito esta palavra
estética, embora naquela altura não a tivesse compreendido, porque toda a frase me
ficou na memória como que gravada a fogo, “experimentei-a durante a campanha
dos Balcãs, e sabe, senhor professor, de que maneira? Limpando uma caverna
cheia de soldados inimigos com o lança-chamas...”
Quando ele proferiu esta frase, ficamos todos quatro, Rosetta, eu, o advogado
e a mãe, como petrificados. Depois pensei que talvez aquilo fosse gabarolice e quis
convencer-me que não o tinha feito, que não era verdade: ele bebera já alguns
copos de vinho, tinha o rosto avermelhado e os olhos um pouco brilhantes, mas no
mesmo instante senti oprimir-se-me o coração e gelei completamente. Olhei para os
outros. Rosetta tinha os olhos no chão; a mãe do advogado, nervosa, endireitava
com as mãos trêmulas a dobra da toalha; o advogado fez como as tartarugas,
enterrou a cabeça na gola do capote. Só Michele olhava para o tenente de olhos
bem abertos; então disse-lhe:
“Interessante, não há outra coisa a dizer, muito interessante... Mas ainda mais
original e estética, suponho, deve ser a sensação do aviador que lança bombas
sobre uma aldeia e depois, ao passar, vê que onde estavam casas não resta senão
uma nuvem de pó...”
O tenente, porém, não era tão tolo que não percebesse a ironia daquela frase
de Michele. Passado um momento, declarou:
“A guerra é uma experiência insubstituível, sem a qual um homem não pode
chamar-se um homem... E, a propósito, senhor professor, como é que está aqui e
não na frente?”
Michele retorquiu-lhe com simplicidade:
“Qual frente?”
E, por muito estranho que pareça, o tenente desta vez não disse nada,
limitou-se a lançar-lhe um olhar mau e voltou-se para o prato.
Mas não estava satisfeito, via-se a uma légua de distancia; compreendia que
tinha em sua volta pessoas, se não hostis, pelo menos desfavoráveis. Assim, de
súbito, deixou Michele em paz, talvez por não lhe parecer bastante assustado, e
atacou de novo o advogado:
“Caro senhor”, disse muito empertigado, indicando a mesa, “aqui nada-se em
abundância, enquanto toda a gente das redondezas, de uma maneira geral, rebenta
de fome. O que fez para adquirir tantas coisas boas?”
O advogado e a mãe trocaram um olhar significativo, assustado e apreensivo
o da mãe, tranqüilizador o do filho; depois este afirmou:
“Asseguro-lhe que nos outros dias não comemos assim... fizemo-lo em sua
honra.”
O tenente calou-se um momento e em seguida perguntou:
”O senhor é proprietário aqui no vale, não é verdade?”
“Sim, de certo modo, sou.”
“De certo modo? Disseram-me que possui metade do vale...”
“Oh! Não, meu caro tenente, quem lhe disse isso foi algum mentiroso ou
invejoso ou as duas coisas juntas... possuo uns pomares... nós chamamos pomares.
a estes lindos bosques de laranjeiras.”
“Disseram-me que estes pomares rendem bom dinheiro... o senhor é um
homem rico.”
“Bem, senhor tenente, rico, rico, não... vivo do que é meu.”
“E sabe como vivem os camponeses que trabalham para o senhor?”
O advogado, vendo o caminho que a conversa tomava, respondeu com
dignidade:
“Vivem bem... neste vale são dos que vivem melhor...”
O tenente, que nessa altura cortava um pedaço de frango, observou sem
sorrir, espetando a faca na direção do advogado:
“Se estes passam bem, imagine-se como hão-de viver os que passam mal...
Eu vejo como vivem os seus camponeses. Vivem como animais, ente ou casas que
parecem chiqueiros, comem como as bestas e vestem-se de farrapos. Nenhum
camponês, na Alemanha, vive assim. Nós, na Alemanha, envergonhar-nos-íamos se
os nossos camponeses vivessem dessa maneira”.
O advogado, para agradar à mãe, que deitava olhares suplicantes, a pedir:
“Não lhe dês corda, está calado”, encolheu os ombros e não replicou. O tenente,
porém, insistiu:
“Que diz, meu caro advogado, a tudo isto? O que me responde?”
O outro desta vez afirmou:
“São eles que querem viver assim, asseguro-lhe, meu tenente. O senhor não
os conhece“.
Mas o tenente retorquiu com dureza:
“Não, vocês, os proprietários, é que querem que os camponeses vivam dessa
maneira. Tudo depende disto”, e batia na cabeça. “Vocês são a cabeça da Itália e a
culpa é vossa se os camponeses vivem como animais...”
O advogado estava mesmo assustado e via-se que engolia a comida com
esforço, como os frangos quando comem à pressa. A mãe tinha uma expressão
completamente desvairada e vi-a juntar as mãos, às escondidas, no regaço: rezava,
encomendava-se a Deus. O tenente prosseguiu:
“Antigamente, eu conhecia apenas algumas cidades da Itália, as mais belas, e
dessas cidades conhecia só os monumentos. Mas agora, graças à guerra, conheço
a fundo o seu país, percorri-o todo de lés a lés. E sabe, egrégio advogado, o que lhe
digo? Que as vossas diferenças de classes são um escândalo!”
O advogado ficou calado; porém fez um movimento de ombros como quem
diz: “E que tenho eu com isso?” O tenente percebeu e saltou:
“Não, meu caro senhor, isso diz-lhe também respeito, como a todos os outros,
advogados, engenheiros, médicos, professores, intelectuais. A nós, Alemães, por
exemplo, indignam-nos as enormes diferenças que há entre os oficiais e os soldados
italianos: os oficiais, cobertos de galões, vestem uniformes de tecidos especiais,
comem comidas especiais, têm em tudo e para tudo um tratamento especial,
privilegiado. Os soldados andam vestidos de farrapos, comem como animais, são
tratados como gado... Que tem a dizer, meu caro senhor, a tudo isto?”
O advogado desta vez falou:
“Digo-lhe que talvez seja verdade. Eu sou o primeiro a deplorá-lo. Mas que
posso eu fazer sozinho?”
E o outro, teimoso:
“Não meu caro senhor, não deve dizer isso. A sua responsabilidade é
evidente porque, se o senhor e todos os que são como o senhor quisessem
verdadeiramente que esta situação mudasse, ela mudaria. Sabe porque é que a
Itália perdeu a guerra e agora nós, os Alemães, temos de desperdiçar tropas nesta
frente italiana? Por causa dessa diferença entre soldados e oficiais, entre o povo e
os senhores da classe dirigente. Os soldados italianos não combatem porque
pensam que esta guerra é a vossa guerra, não a deles. E manifestam precisamente
a sua hostilidade não combatendo. Que tem a dizer a isto, egrégio advogado?”
O outro, talvez por raiva, desta vez conseguiu vencer o medo e pronunciou:
“É verdade que o povo não quis a guerra. E eu também não. Esta guerra
foi-nos imposta pelo governo fascista. E o governo fascista não é o meu governo,
disto pode o senhor estar certo.”
Mas o nazi, levantando a voz:
“Não, caro senhor, isso é muito cômodo. Este governo é o seu governo.”
“O meu governo? O senhor está a brincar, tenente...”
A mãe interveio nessa altura:
“Francesco, por favor, por amor de Deus!”
O tenente insistiu:
“Sim, o seu governo, quer a prova?”
“Mas qual prova?”
“Eu sei tudo a seu respeito, meu caro senhor, sei por exemplo que é um
antifascista, um liberal. Apesar disso, o senhor não se entende com os camponeses
e os operários do vale e entende-se com o secretário do fascio... que diz a isto?...”
O advogado encolheu mais uma vez os ombros:
“Pois saiba que não sou antifascista, nem liberal, não me ocupo de política,
trato apenas das minhas coisas... E, depois, que tem isso... andei na escola com o
secretário do fascio, somos quase parentes, a minha irmã casou com um primo
dele... Vocês, Alemães, não podem compreender certas coisas... Não conhecem a
Itália bem...”
“Não, caro senhor, esta é uma prova boa e sólida... vocês, fascistas e
antifascistas, estão todos unidos uns aos outros, porque são todos da mesma
classe, e este governo é o governo de todos os fascistas e antifascistas porque é o
governo da vossa classe... hem! Claro, os fatos falam por si, o resto é conversa...”
O suor molhava agora a testa do advogado, se bem que na barraca fizesse
frio; a mãe, não sabendo o que fazer, tinha se levantado, muito assustada, e dizia
com voz trêmula:
“Vou preparar-lhes um bom café...”
E encafuou-se em seguida na cozinha. O tenente entretanto dizia:
“Eu não sou como a maior parte dos meus compatriotas, que são tão
estúpidos como vocês, Italianos... eles amam a Itália por causa dos monumentos e
porque as suas paisagens são as mais belas do mundo... ou porque encontram um
italiano que fala alemão e comovem-se ao ouvir falar a própria língua... ou porque
lhes oferecem um bom jantar, como o senhor me ofereceu hoje, e ficam amigos.
Mas eu não sou como esses alemães estúpidos e ingênuos. Vejo as coisas como
elas são e digo-as de cara a cara, meu caro senhor.”
Não sei porquê, talvez porque aquele pobre advogado me causava dó,
disse-lhe de repente, quase sem refletir:
“O senhor sabe por que razão o advogado lhe ofereceu este jantar?”
“Porquê?”
“Porque vocês, Alemães, metem medo a toda a gente... não há ninguém que
não tenha medo de vocês... por isso procurou amansá-lo, como se faz a um animal
feroz, dando-lhe qualquer coisa boa a comer...”
Até custa a acreditar, mas ele mostrou por momentos uma cara quase triste e
amargurada: a ninguém, nem mesmo a um alemão, agrada ouvir dizer que mete
medo e que as outras pessoas são amáveis com ele só por terem medo. O
advogado, cheio de terror, procurou remediar as coisas, intervindo:
“Tenente, não dê ouvidos a esta mulher... é uma pessoa simples, não
compreende certos assuntos...”
Mas o nazi fez-lhe sinal que se calasse e perguntou:
“E porque é que nós, Alemães, metemos medo? Não somos homens como os
outros?”
Eu, agora lançada, ia responder-lhe: “Não, um homem verdadeiramente
homem, ou seja, um Cristão, não tem prazer em limpar, como o senhor disse há
pouco, uma caverna cheia de soldados vivos com um lança-chamas...” Mas, por
sorte, pois não sei o que daí poderia advir, não tive tempo; subitamente, começou no
vale um banzé de disparos desordenados e secos dos canhões antiaéreos,
alternando com os estrondos mais profundos das bombas que caíam. Ao mesmo
tempo, o ar enchia-se de um rumor distante, mas que se aproximava, tornando-se
cada vez mais distinto. O tenente levantou-se imediatamente, exclamando:
“Os aviões... tenho de correr para a minha bateria!”
E, deitando ao chão cadeiras e tudo quanto encontrou na passagem, saiu a
correr. O primeiro a recompor-se depois da fuga do tenente foi o advogado:
“Depressa, depressa, venham... vamos para o abrigo...”
Levantou-se e saiu da barraca à nossa frente. A um canto do terreiro havia
uma abertura à flor da terra, protegida por um castelo de traves e sacos de areia. O
advogado dirigiu-se para lá e começou a descer uma escadinha de madeira,
repetindo:
“Depressa, que daqui a instantes estão mesmo por cima de nós”.
De fato, sentia-se aquele rumor, entre as explosões da antiaérea, tornar-se
cada vez mais intenso, como se viesse de trás das árvores que circundavam a
clareira. Depois tudo acabou e ali ficamos no escuro, num quarto subterrâneo que
parecia ter sido escavado mesmo por baixo da clareira.
“Isto naturalmente não basta para uma bomba”, disse o advogado, “mas serve
pelo menos para nos abrigar das balas das metralhadoras... por cima de nós há um
metro de terra e os sacos...”
Estivemos lá em baixo não sei quanto tempo, de pé, no escuro, quase sem
poder respirar: ouvia-se de quando em quando, mas muito fraco, um tiro da
antiaérea, e era tudo. Por fim o advogado abriu a portinha, verificou que a calma era
completa e saímos para o ar livre. O advogado apontou-nos alguns dos sacos de
areia rasgados e furados e apanhou um projétil de latão, do comprimento de um
dedo, dizendo:
“Isto, se nos apanhava, matava-nos com certeza.”
A seguir, erguendo os olhos para o céu:
“Benditos aviões, venham muitas vezes. Oxalá nos libertem desse maldito
tenente, que é mesmo um animal feroz.”
A mãe repreendeu-o:
“Não digas isso, Francesco. Também é um cristão, não se deve desejar a
morte a ninguém.”
Mas o advogado respondeu:
“Um cristão? Maldito seja ele, maldita a sua bateria e maldito o dia em que
chegou aqui! Quando se for embora, hei-de dar um jantar mil vezes melhor do que o
de hoje. E fica entendido, estão todos convidados.”
E não se cansava de amaldiçoar o tenente alemão, com verdadeiro ódio.
Tornamos a entrar na barraca e bebemos o café; depois a mãe do advogado ficou
com os ovos e deu-nos em troca alguma farinha e feijões. Por fim despedimo-nos e
partimos.
Fazia-se tarde e, como já tínhamos trocado os ovos, eu queria voltar
depressa a Santa Eufêmia. No vale só tivéramos maus encontros. Primeiro o russo
com os cavalos, depois a pobre louca, por fim o tenente alemão. Michele, durante o
caminho, disse:
“A ouvi-lo falar, fazia-me raiva sobretudo uma coisa.”
“O quê?”
“Que tivesse razão, apesar de ser nazi.”
Eu observei:
“Porquê? Os nazis também podem ter razão de vez em quando.”
E ele, de cabeça baixa:
“Nunca!”
Queria perguntar-lhe como explicava que aquele nazi tão feroz, que sentia
prazer em queimar gente com o lança-chamas, fosse capaz ao mesmo tempo de se
impressionar com a injustiça que reinava na Itália. Michele dissera-nos sempre que
só sentiam a injustiça as pessoas de bem, os melhores, os únicos que ele não
desprezava. E eis que aparecia aquele tenente, ainda por cima filósofo, que sentia e
censurava a injustiça e simultaneamente tinha prazer em matar gente. Seria
possível? Então, no fim das contas, a justiça não era uma coisa boa? Mas não tive
coragem de lhe comunicar as minhas reflexões, pois via-o abatido e triste. Assim
deixamos o vale e chegamos a Santa Eufêmia, onde já fazia escuro há pedaço.
CAPÍTULO VII
5
Bolo especialmente fabricado em Milão, feito com farinha, manteiga, açúcar, ovos e passas de uvas. Tem a
forma de um cilindro abaulado no cimo
das cabanas, vimos na base daquela grande rocha em forma de panettone, de que
já falei, a abertura negra duma caverna; uma das mulheres disse-nos que lá dentro
havia refugiados. Perguntei-lhe se tinha alguma comida para vender, mas ela
abanou a cabeça, taciturna, em sinal negativo; depois, num tom reticente,
acrescentou que talvez os refugiados pudessem vender-nos qualquer coisa. O que
me pareceu estranho, pois habitualmente os refugiados não vendem, compram.
Contudo, dirigimo-nos para a caverna, quando mais não fosse, ao menos
para pedir informações, visto que das mulheres dos pastores, selvagens e
desconfiadas, era impossível arrancar uma única palavra. O chão, à medida que nos
aproximávamos, estava juncado de grande quantidade de ossos, pequenos e
grandes, misturados com o cascalho, sem dúvida os restos das cabras e ovelhas
consumidas por aqueles refugiados; mas além dos ossos havia também lixo, caixas
ferrugentas, farrapos, sapatos velhos, papéis. Parecia um desses terrenos de Roma
destinados a construções, onde se deita o lixo das casas vizinhas. Aqui e além
viam-se círculos negros de fogueiras com tições apagados em volta de pequenos
montes de cinza. A entrada da caverna era bastante ampla e, em torno, toda negra e
suja. De pregos espetados na pedra, pendiam panelas, tachos de cobre, trapos e
um quarto de cabra há pouco abatida, do qual escorria ainda o sangue para o chão.
Quando entrei, confesso, fiquei surpreendida: alta e profunda, com a abóbada
enegrecida pelo fumo e o fundo tão escuro que nem se lhe via o fim, parecia um
imenso dormitório, completamente cheio de camas e enxergões, alinhados uns ao
lado dos outros, como num hospital ou numa caserna. Lá dentro reinava o mau
cheiro característico dos asilos e albergues para pobres e aquelas camas, à primeira
vista, pareceram-me em desordem, com os lençóis revolvidos, sujos de causar
medo. Os refugiados estavam aqui e ali e eram muitos: uns sentados na beira da
cama, coçando a cabeça ou muito quietos sem fazer nada; outros deitados,
enrolados nos cobertores; outros ainda passeando dum lado para o outro no
pequeno espaço livre. Um grupo, sentado em duas camas, em volta de uma
pequena mesa, jogava as cartas mais ou menos como os de Santa Eufêmia, com os
chapéus na cabeça e os sobretudos pelas costas. Numa das camas notei uma
mulher seminua que dava o peito a um bebê; mais além, três ou quatro crianças,
encostadas umas às outras, imóveis, como mortas, estavam talvez a dormir. O fundo
da caverna, como disse, ficava no escuro, mas entreviam-se trastes amontoados,
numa grande pilha, provavelmente tudo quanto aqueles pobres refugiados tinham
conseguido trazer consigo quando fugiram.
Junto da entrada da gruta notei uma coisa insólita: um altar construído com
caixas de embalagens e, a cobri-lo, uma linda toalha bordada. Em cima da toalha,
um crucifixo e duas jarras de prata, nas quais, à falta de flores, tinham posto ramos
de carvalho com toda a folhagem Por baixo do crucifixo, em vez de santos e outros
objetos do culto, vi com estranheza vários relógios, talvez uma dúzia, alinhados em
boa ordem. Eram todos relógios de tipo antigo, dos que se traziam no bolso do
colete, a maior parte de metal branco, mas dois pareceram-me de ouro. Junto do
altar, num banco, vi o padre. Digo o padre porque o distingui pela tonsura, pois,
quanto ao resto, seria difícil imaginar que fosse padre. Era um homem de uns
cinqüenta anos, com rosto moreno, magro e grave. Não tinha batina, estava vestido
todo de branco, camisa branca, faixa branca, calças, ou, melhor, calções à zuavo,
meias pretas e sapatos pretos. Em suma, tirara, sabe-se lá porquê, a batina, e ficara
com o que trazia por baixo. Estava imóvel, a cabeça inclinada e mãos unidas no
regaço, mexendo depressa os lábios como se rezasse. Depois levantou os olhos
para mim, que, entretanto, me aproximara para observar bem o altar; e vi então que
eram uns olhos desvairados e, ao mesmo tempo, como que privados de vista. Disse,
baixinho, a Rosetta: “É louco”, mas sem me admirar, porque desde há tempos que já
não me admirava de nada.
Ele, entretanto, olhava para mim fixamente, com um olhar que a pouco e
pouco ia tomando uma expressão curiosa, como quem reconhece lentamente uma
pessoa. De súbito levantou-se, pegou-me num braço e disse:
“És corajosa, sempre vieste... relógios.”
Voltei-me para a caverna, um pouco confusa, tanto mais que a mão dele me
apertava o braço com força terrível, como apertam as patas dos falcões ou dos
milhafres. Um dos refugiados que jogavam as cartas, o qual tinha seguido a cena
pelo canto do olho, gritou sem se voltar:
“Faz-lhe a vontade, dá corda aos relógios... coitado, destruíram-lhe a igreja e
a casa e ele fugiu com os seus relógios e bem, dá corda a estes não raciocina... mas
não faz mal a ninguém... podes estar descansada.”
Um pouco mais tranqüilas, Rosetta e eu pegamos cada uma em seu relógio e
demos-lhe corda, ou, melhor, fingimos dar, porque todos tinham corda e
trabalhavam muito bem. Ele olhava-nos como olham os padres, de pé, as pernas
abertas, as mãos atrás das costas, carrancudo, a cabeça inclinada. Quando
acabamos, disse numa voz profunda:
“Agora, que lhes deram corda, posso finalmente dizer missa... corajosas,
corajosas, vieram finalmente...”
Naquele momento aproximou-se de nós outra habitante da caverna: uma
jovem freira, cuja presença me tranqüilizou imediatamente. Tinha um rosto pálido, de
um oval perfeito, as sobrancelhas negras muito juntas, formando como que um traço
escuro sobre os olhos negros, brilhantes e tranqüilos, semelhantes a duas estrelas
numa noite de verão. O que, porém, me fez mais impressão e na verdade me
maravilhou foi o escapulário e tudo quanto era branco no seu hábito de freira:
imaculado como a neve e, inacreditável naquele lugar, engomado na perfeição.
Como podia ela apresentar-se assim tão limpa e irrepreensível naquela caverna
imunda? Com boas maneiras e uma voz doce, voltou-se para o padre:
“Vamos, Dom Matteo, venha comer conosco... Mas antes vista qualquer
coisa... não parece bem comer em ceroulas...”
Dom Matteo, de pernas abertas, um verdadeiro zuavo da cabeça aos pés,
ouvia-a de boca aberta, os olhos perdidos. Resmungou por fim:
“E os relógios? Quem pensa nos relógios?”
A irmã volveu, numa voz tranqüila:
“Deram-lhes corda; trabalham todos à maravilha, veja, Dom Matteo, marcam
todos a mesma hora, que é precisamente a hora do almoço.”
Entretanto, tirara de um prego a batina preta do padre e ajudava-o a enfiá-la,
com boas maneiras, tal como se fora enfermeira de um louco num manicômio. Dom
Matteo deixou que ela lhe vestisse a batina cheia de pó e de nódoas; depois,
passando a mão pela cabeça despenteada, lá foi com a freira, que o amparava pelo
braço, para o fundo da caverna, onde se via em cima de um tripé um grande
caldeirão preto a fumegar. Ela disse então, voltando-se para nós:
“Venham também os três, a comida chega para todos.”
Aceitamos e aproximamo-nos do caldeirão, em volta do qual, neste meio
tempo, se tinham reunido muitos outros refugiados. Entre eles notei um que parecia
descontente e arrogante ao mesmo tempo, um homenzinho baixo, gordo, muito mal
vestido, todo em farrapos, despenteado e com a barba comprida. Tinha um rasgão
nas calças, mesmo nos fundilhos, e por ele saía-lhe a fralda da camisa branca.
Lamuriava-se, estendendo o prato:
“A mim dá-me sempre menos do que aos outros, Irmã Teresa; porque me dá
sempre menos a mim?”
A Irmã Teresa não lhe respondeu, estava atenta a encher as tigelas, dando a
todos um bocado de carne e duas conchas de caldo; mas outro refugiado, um
homem de meia-idade, de bigodes pretos e cara vermelha, disse sarcasticamente:
“Ticó, porque não aplicas uma multa à irmã?... És guarda-municipal,
aplica-lhe uma multa por te dar menos sopa do que aos outros.”
E depois, rindo para Michele:
“Nós vivemos aqui muito bem: o padre está doido, os polícias foram
deportados para a Alemanha, o guarda anda com a fralda da camisa fora das calças
e o prefeito, que sou eu, é o mais esfomeado de todos. Não há autoridade, é um
milagre que não se matem uns aos outros.”
A irmã respondeu sem levantar os olhos do caldeirão:
“Não é um milagre, é a vontade de Deus, que quer que os homens se ajudem
mutuamente.”
Ticó, no entanto, resmungava:
“Dom Luigi tem sempre vontade de brincar... Não sabe que um guarda sem
uniforme é um pobretão como qualquer outro? Dê-me novamente o uniforme e
poderei então manter a ordem.”
E eu pensei que no fundo ele tinha razão. Pelo menos em certos casos o
uniforme é tudo. E até aquela boa irmã, com o seu caráter doce e a sua religião, não
teria tanta autoridade se, em vez do hábito de freira, estivesse vestida de farrapos,
como eu e Rosetta.
Adiante. Comemos a sopa, uma caldaça gorda em que decerto tinham cozido
carne de bode, pois cheirava e sabia a bodum; apesar da fome, quase não
conseguia engoli-la. Enquanto comíamos, ouvimos as mesmas conversas que
conhecíamos em demasia: a carestia, a chegada dos Ingleses, os
bombardeamentos, os recrutamentos, a guerra. Por fim, quando me pareceu o
momento propício, arrisquei-me a perguntar se alguns deles podia vender-nos
quaisquer mantimentos. Ficaram estupefatos, como já imaginava: não tinham nada;
tal como nós, também compravam aqui e além, ou acabavam por consumir o que
tinham trazido da terra. Mas aconselharam-nos a ir ter com os pastores que viviam
nas cabanas, fora da caverna, dizendo-nos:
“É a eles que compramos... têm sempre um queijo ou um cabrito... vejam se
lhes vendem alguma coisa.”
Eu respondi que uma mulher nos indicara a gruta, afirmando que os pastores
não tinham nada para vender. O prefeito encolheu os ombros:
“Dizem isso porque não confiam em ninguém e querem manter os preços
altos. Mas têm os rebanhos e por estes lados são ainda os únicos que podem
vender seja o que for.”
Em resumo, agradecemos à irmã e aos refugiados a sopa, tornamos a passar
diante do altar cheio de relógios do padre louco e saímos da caverna. Nesse mesmo
instante passava entre a fraga e as cabanas um pequeno rebanho de ovelhas e
cabras guiado por um homenzarrão de tamancos brancos, calças pretas, faixa na
cinta, casaco preto e chapéu preto. Uma refugiada que estava perto da entrada da
caverna a mordiscar um naco de pão e ouvira a nossa conversa indicou-me,
dizendo:
“Olha, aquele é um dos evangelistas... vende-te queijo se souber que lho
pagas bem.”
Corri atrás do homem e gritei-lhe:
“Tens algum queijo para vender?”
Ele não me respondeu, nem sequer se voltou, continuando a andar; parecia
surdo. Tornei a gritar:
“Sr. Evangelista, vende-me queijo?”
Ele então disse:
“Não me chamo Evangelista, chamo-me De Santis.”
E eu:
“Disseram-me que te chamavas Evangelista.”
E ele:
“Não, nós pertencemos à religião evangelista, assim é que é.”
Por fim, lá acabou por dizer que talvez pudesse vender-nos o queijo e
seguimo-lo até à cabana. Primeiro meteu as ovelhas num cortelho ao lado, uma por
uma, chamando as pelo nome: “Bianchina, Paciocca, Matta, Celeste...”, e assim por
diante; depois fechou a porta ao rebanho e conduziu-nos à sua cabana. Era
semelhante àquela em que vivia Paride, talvez um pouco maior, mas, não sei
porquê, mais triste, mais vazia e mais funda; ou talvez isto fosse apenas uma
impressão causada pelo seu acolhimento pouco amável. Em volta do fogo do
costume, e sentadas em iguais bancos e cepos de madeira, estavam muitas
mulheres e crianças. Sentamo-nos também e ele, em primeiro lugar, pôs-se a rezar,
juntando as mãos; todos o imitaram, até as crianças. Fiquei pasmada ao vê-lo rezar,
pois os camponeses, pelo menos lá para os meus sítios, raramente rezam e só o
fazem na igreja; mas lembrei-me da resposta dele sobre a religião evangelista e
compreendi que não eram como nós, que criam em Deus de uma maneira diferente.
Michele, cheio de curiosidade, mal ele acabou a oração, perguntou lhe porque eram
evangelistas, e, ao fazê-lo, parecia conhecer o significado dessa palavra. O
homenzarrão respondeu que ele e dois dos seus irmãos tinham estado na América a
trabalhar e lá encontraram um pastor protestante que os convenceu, e por isso se
tinham convertido à religião evangelista. Michele perguntou-lhe com que impressão
ficara da América e ele volveu:
“Embarcamos em Nápoles e desembarcamos numa pequena cidade do
Pacífico; depois fomos de comboio para as florestas, porque tínhamos sido
contratados como lenhadores. Por aquilo que vi, parece-me um pais de florestas.”
“Viste alguma cidade?”
“Não, só aquela onde desembarcamos, uma cidade pequena... Estivemos
dois anos nas florestas e depois voltamos pelo mesmo caminho para a Itália.”
Michele parecia surpreendido e também divertido, porque, disse-me mais
tarde, na América há cidades enormes e eles só viram árvores e por isso pensavam
que a América era uma floresta imensa... Falaram da América ainda durante algum
tempo; depois, como se fazia tarde, eu aludi ao queijo; o homem então remexeu no
escuro, entre a palha do teto, e tirou de lá dois queijinhos de ovelha, amarelados,
dizendo com toda a simplicidade que, se os queríamos, custavam tanto. Dei um
salto, pois era um preço como nunca ouvira, mesmo naqueles tempos de carestia, e
disse:
“O quê, o teu queijo é de ouro?”
Ele respondeu, gravemente:
“Não, é melhor do que o ouro, é queijo. O ouro não o podes comer, o queijo,
sim.”
Michele observou, sarcástico:
“O Evangelho ensina-te a pedir esses preços?”
O homem não respondeu e eu insisti:
“Eia pouco, a Irmã Teresa, ali na caverna, disse que Deus quer que os
homens se ajudem uns aos outros. É bonita a vossa maneira de ajudar os homens.”
E ele, com cara de bronze, tranqüilo:
“A Irmã Teresa é de outra religião, nós não somos católicos.”
“E o que julgas que é ser evangelista?”, interveio de novo Michele. “É vender
pelo dobro do que vendem os que são católicos?”
E ele, com a mesma gravidade:
“Evangelista, irmão, é observar os preceitos do Evangelho. Nós
observamo-los.”
Em suma, tinha sempre uma resposta pronta e não havia nada a fazer, era
mais duro do que uma pedra. Disse-nos, por fim:
“Se querem, posso vender-lhes um cordeiro... bem gordo, para a Santa
Páscoa... tenho-os até de seis quilos. Faço um preço razoável.”
Pensei que de fato a Páscoa se aproximava e que um cordeiro vinha mesmo
a propósito; perguntei-lhe o preço e dei outro salto; com esse dinheiro quase
poderíamos comprar, além do cordeiro, a ovelha que o parira. Michele proferiu de
repente:
“Sabes o que vocês são, os Evangelistas? Boas pessoas para matarem os
outros à fome.”
E o homem:
“Sossega, irmão, o Evangelho ensina os homens a amarem-se uns aos
outros.”
Por fim, desesperada, disse que lhe comprava o queijo, mas ele tinha de fazer
um abatimento. Sabem o que me respondeu?
“Um abatimento? É o preço mais baixo que posso fazer. É melhor que o
deixes ficar, irmã, pois, se o compras ao meu preço, ficarás a querer-me mal e, se
eu o vender ao teu, ficarei a odiar-te. Ora o Evangelho ensina os homens a
amarem-se uns aos outros. Deixa-o ficar e assim continuaremos a querer-nos bem.”
Não fiz caso desta recomendação e discuti não sei quanto tempo; mas ele era
inflexível e não houve meio de o convencer; quando o punha contra a parede,
provando-lhe que era um ladrão, saía-se com uma máxima do Evangelho, como. por
exemplo:
“Não te deixes dominar pela ira, irmã, a ira é um ruim pecado.”
Por fim, lá paguei esse preço exorbitante, obtendo somente que ele nos
desse a mais uma fatia de requeijão, que comemos ali com um bocado de pão.
Depois despedimo-nos e ele, à porta, se bem que nos tivéssemos separado
friamente, saudou-nos assim:
“Deus seja convosco, irmãos.”
Pensei comigo, quase de mau grado:
“E a ti que o diabo te leve para o Inferno.”
Esta caminhada não nos rendeu senão aquele queijo; e pensar que tínhamos
andado tantos quilômetros pelas montanhas e cada um de nós quase gastara um
par de tamancos! ... Mas, como acontece às vezes nestas situações, daí a poucos
dias veio a compensação, sem esforço, como que por intervenção da Providência: o
coveiro, que andava pelas montanhas à procura de comida, no seu cavalo preto,
vendeu-nos por um preço razoável uma quantidade de feijão-frade. Tinha-o
comprado a uns desterrados iugoslavos que na altura do armistício fugiram da ilha
de Ponza, escondendo-se num vale vizinho do nosso, e agora, com medo dos
Alemães, iam-se embora não sei para onde e não podiam levar com eles todas as
provisões. O coveiro, um rapaz aloirado, muito alto e vivo, deu-nos também algumas
notícias da guerra, que soubera por esses desterrados. Disse-nos que numa cidade
chamada Estalingrado, na Rússia, os Alemães tinham sofrido uma derrota terrível e
que os Russos lhes aprisionaram um exército inteiro, com todos os seus generais;
Hitler, desencorajado, ordenara então a retirada. Acrescentou que era agora uma
questão de dias, o máximo de semanas, e a guerra acabava.
Estas notícias encheram de alegria os refugiados, mas não os camponeses. A
maior parte dos homens de Santa Eufêmia que andavam na guerra encontravam-se
mesmo em Estalingrado e até tinham escrito dessa cidade, por isso agora muitas
daquelas mulheres temiam pela vida dos maridos e dos irmãos, e com razão, pois a
seguir soube-se que nem um sequer se salvara.
Em todo o mês de Março, enquanto os dias cresciam e lentamente a
montanha começava a verdejar e o ar a tornar-se mais ameno, continuou o
bombardeamento de Anzio de um lado e de Cassino do outro. Estávamos, por assim
dizer, a meio caminho entre Anzio e Cassino e todo o dia e toda a noite ouvíamos
muito bem os canhões que disparavam naqueles dois lugares, sem tréguas, como
se estivessem ao desafio. Bum, bum... dizia o canhão de Anzio, primeiro com a
explosão da partida e depois com a da chegada; bum, bum... respondia o de
Cassino do outro lado. O céu parecia uma pele de tambor, que repercutia
sombriamente esses estrondos, como quando se dá um murro num bombo. Fazia
impressão ouvir semelhante barulho ameaçador e lúgubre em dias tão lindos;
chegava-se a pensar que a guerra fazia agora parte da natureza, que aquele barulho
estava ligado e confundido com a luz do sol e que também a primavera sofria, como
os homens, do mal da guerra. Aquele estrondo do canhão entrara já na nossa vida,
como os farrapos, a carestia, os perigos, e, como nunca parava, tornou-se, como os
farrapos, a carestia e os perigos, uma coisa normal, à qual nos habituáramos, de tal
modo que, se acabasse, como de fato acabou um belo dia, ficaríamos
surpreendidos. Isto serve para dizer que nos habituamos a tudo e a guerra se pode
tornar um hábito, e aquilo que nos modifica não são os fatos extraordinários, que
acontecem uma só vez, mas sim esse hábito, essa longa aceitação das coisas
contra as quais deixamos de nos revoltar.
Nos primeiros dias de abril, a montanha estava mesmo bonita, toda verde e
florida, e o ar tão ameno que podíamos andar fora de casa todo o dia. Mas naquelas
flores que alegravam a vista ocultava-se para nós, refugiados, a idéia da fome, pois
as flores desabrocham quando as plantas alcançam o máximo de desenvolvimento,
se tornam duras e fibrosas e não se podem já comer. Em suma, aquelas flores tão
lindas significavam que o nosso último recurso, a chicória, acabara e que, na
verdade, desta vez só a chegada imediata dos Ingleses nos poderia salvar. Também
as árvores estavam em flor, os pessegueiros, as amendoeiras, as macieiras, as
pereiras, aqui e além, na encosta, dir-se-iam pequenas nuvens brancas e
cor-de-rosa suspensas no ar calmo, sem vento; mas também não podíamos olhar
para essas árvores sem pensar que aquelas flores tinham de se tornar frutos e os
frutos, dos quais nos poderíamos alimentar, só estariam maduros daí a alguns
meses. E o trigo, que era ainda erva verde, baixo e tenro qual veludo, produzia-me
também uma espécie de desfalecimento: ainda se passaria muito tempo antes que,
crescido e loiro, pudesse ser ceifado e trilhado, os grãos levados ao moinho e a
farinha feita em massa e metida no forno em lindos pães de quilo. Ah! A beleza pode
apreciar-se com a barriga cheia; mas, com a barriga vazia, todos os pensamentos
vão dar ao mesmo e a beleza parece um engano ou, pior, uma troça.
A propósito do trigo ainda verde, lembro-me de uma coisa que nesses dias
me deu a noção exata da carestia. Uma tarde desci a Fondi, como era costume, na
esperança de comprar pão; quando chegamos ao vale, ficamos varados ao ver três
cavalos do exército alemão que pastavam tranqüilamente num campo de trigo. Um
soldado sem divisas, talvez um russo traidor como o que encontráramos da outra
vez, estava sentado na cerca, sem fazer nada, com uma erva entre os dentes, a
guardá-los. Garanto, nunca como nesse momento compreendi tão bem o que
significa a guerra e como, em tempo de guerra, o coração deixa de ser coração e o
amor do próximo não existe e tudo é possível. Estava um lindo dia, cheio de sol e de
flores, e nós os três, Michele, Rosetta e eu, de pé junto a cerca ficamos olhando
para aqueles três cavalos bonitos e gordos que, coitados, sem cuidarem do mal que
os donos os obrigavam a fazer, comiam o grão de trigo duro, com o qual se fabrica o
pão dos cristãos. Lembro-me que em criança os meus pais me diziam que o pão é
sagrado, que é um sacrilégio deitá-lo fora ou estragá-lo, e até é um pecado voltá-lo.
Agora via que esse pão o davam aos animais, quando tanta gente no vale e nas
montanhas morria de fome. Michele disse, por fim, exprimindo o sentimento geral:
“Se fosse crente, diria que tinha chegado o apocalipse quando se vêem os
cavalos a pastar no trigo. Como não sou, limito-me a dizer que chegaram os nazis, o
que no fundo é talvez a mesma coisa.”
Nesse mesmo dia, um pouco mais tarde, tivemos a confirmação do caráter
dos Alemães, tão estranho e tão diferente do nosso, cheio talvez de grandes
qualidades, mas com enormes lacunas, como se não fossem homens completos.
Fomos outra vez a casa do advogado onde encontráramos aquele oficial ruim que
gostava, como dizia, de limpar as grutas de inimigos com o lança-chamas. Desta vez
encontramos lá outro alemão, um capitão. O advogado, porém, advertiu-nos:
“Este não é como os outros, é uma pessoa educada, fala francês, viveu em
Paris e, sobre a guerra, pensa como nós.”
Entramos na barraca e o capitão, como fazem todos os alemães, levantou-se
à nossa chegada e apertou-nos a mão, batendo os calcanhares. Era na verdade um
homem fino, um cavalheiro, já um pouco calvo, de olhos cinzentos, nariz delgado e
aristocrático, na boca uma expressão altiva; um belo homem, em resumo, que
pareceria quase italiano se não fosse aquele seu ar rígido que os Italianos nunca
têm. Falava bem o italiano e dirigiu-nos uma quantidade de cumprimentos sobre a
Itália, dizendo que era a sua segunda pátria e que ia todos os anos para Capri; a
guerra, se não lhe servisse para mais, servia-lhe ao menos para visitar muitos
lugares bonitos da Itália que ainda não conhecia. Ofereceu-nos cigarros, informou-se
a respeito de Rosetta e de mim, falou por fim da família e mostrou-nos uma
fotografia: a mulher, uma linda senhora de magníficos cabelos loiros, e três meninos,
também muito lindos, três anjinhos, todos loiros. Disse, voltando a pegar na
fotografia:
“Neste momento, estes meninos são felizes.”
Perguntamos porquê e respondeu que tinham desejado ter um burrinho e ele,
dias antes, comprara um em Fondi e mandara-lhe de presente, para a Alemanha.
Entusiasmado, entrou em pormenores: encontrara exatamente o burrinho que
procurava, de raça sarda, e, como era ainda de manhã, mandara-o num comboio
militar, com um soldado encarregado de lhe dar continuamente leite; no comboio ia
também uma vaca. E ria, satisfeito, pensando que os filhos andariam a essa hora a
cavalo no burrico, muito felizes da sua vida.
Nós, o advogado e a mãe estávamos pasmados: era tempo de carestia, não
havia comida, mas ele arranjara maneira de mandar um burrinho para a Alemanha e
de o alimentar no trajeto com leite que podia ter sido dado às crianças italianas, que
tanta falta tinham dele. Onde estava o seu amor à Itália e aos Italianos se não se
apercebia duma coisa tão simples? No entanto, pensei, não fizera isto por maldade,
pois era decerto o melhor alemão que encontrara até essa altura; fizera-o, sim,
porque era alemão e os Alemães, como já disse, têm uma maneira de ser especial,
talvez com boas qualidades, mas todas pendendo só para um lado, enquanto no
outro não têm nem uma, mais ou menos como certas árvores que crescem
encostadas a uma parede e têm os ramos todos voltados para o lado oposto à
parede.
Michele, agora, que faltava a comida, procurava ajudar-nos de todas as
maneiras, ora abertamente, levando-nos uma parte do seu almoço ou da sua ceia,
ante os olhares de reprovação da família, ora às escondidas, roubando para nós as
provisões do pai. Por exemplo, um dia mostrei-lhe o pão que nos restava, um pão
pequeno e, ainda por cima, com dois terços de farinha de milho. Ele então disse que
dali em diante nos traria pão, pouco de cada vez, tirando-o da caixa onde a mãe o
punha. E assim fez. Todos os dias nos trazia algumas fatias de um pão ainda
branco, sem mistura de farinha de milho nem de sêmeas, um pão como ninguém
mais fazia lá em cima, embora Filippo chorasse continuamente a sua miséria e
dissesse para quem o queria ouvir que ele e a família estavam na última, reduzidos
a passar fome.
Um dia, não sei porquê, em vez das três ou quatro fatias de costume, Michele
trouxe-nos dois pães inteiros, tinham cozido pão nessa manhã e ele julgava que não
dariam pela falta. Mas deram e Filippo fez um banzé dos demônios, gritando que lhe
tinham roubado as provisões; mas não disse que eram pães porque, se o dissesse,
desmentia-se, pois andava sempre a afirmar que já não tinha farinha. Filippo fez
uma verdadeira investigação policial, medindo a altura e a largura da janela,
examinando o terreno em baixo, a ver se a erva estava calcada, observando os
umbrais para ver se acaso teria caído algum bocado de cal e por fim convenceu-se
de que, dada a pequenez e a altura da janela, devia ter sido um garoto a entrar em
casa e a praticar o furto, mas que esse garoto não poderia chegar tão alto sem a
ajuda de um adulto. De conclusão em conclusão, decidiu que o garoto era
certamente um tal Mariolino, filho dum refugiado, e que o adulto que o ajudara fora
com certeza o pai. Mas tudo teria ficado por aí se Filippo não comunicasse as suas
suspeitas à mulher e à filha. O que para ele eram apenas suposições, tornaram-se
imediatamente certezas para as duas mulheres. Primeiro deixaram de cumprimentar
o refugiado e a mulher, passando na frente deles sempre caladas e sérias; depois
deixaram escapar algumas alusões:
“O pão hoje estava bom?” Ou: “Tenham cuidado com o Mariolino... pode
quebrar a cabeça ao subir às janelas.”
Por fim, um dia disseram-lhes de cara a cara:
“O que vocês são é uma família de ladrões.”
Começou então um burburinho que dificilmente se pode descrever, com gritos
e berros que chegavam até o céu. A mulher do refugiado, mulher pequena e fraca
de saúde, desgrenhada, esfarrapada, repetia numa voz estridente:
“Anda! Anda!”
Confesso que não sei o que ela queria dizer. E a mulher de Filippo, por seu
lado, gritava-lhe na cara que eram todos uns ladrões. Assim, uma repetindo aquela
única palavra: “Anda!”, e a outra berrando que eram ladrões, continuaram por algum
tempo, uma em frente da outra, num círculo de refugiados, sem se tocarem, como
duas galinhas furiosas. Entretanto, nós as duas, não sem remorsos, estávamos a
trincar o pão de Filippo nesse mesmo instante, no escuro, para não dar nas vistas,
um bocado a cada grito das duas mulheres, e não posso negar que aquele pão
roubado quase me parecia mais saboroso que o nosso, precisamente porque tinha
sido roubado e porque o comíamos às escondidas. No entanto, depois desse dia.,
Michele teve o cuidado de fazer as coisas de maneira que a família não desse conta,
uma fatia agora outra logo, e de fato não tornaram a descobrir os furtos e também
não houve mais cenas.
Passou abril com as suas flores e a fraqueza nos estômagos e veio maio com
o calor; agora, além da fome e do desespero, havia o tormento das moscas e das
vespas. Na nossa casota havia tantas moscas que, por assim dizer, passávamos o
dia a enxotá-las e à noite, quando íamos para a cama, elas iam também dormir nas
cordas em que dependurávamos os vestidos, e eram tantas que as cordas ficavam
negras. As vespas tinham o ninho debaixo do telhado e entravam e saíam em
nuvens, e ai de quem lhes tocasse, picavam sem dó nem piedade. Suávamos todo o
dia, talvez por causa da fraqueza, e, com o calor, não sei porquê, decerto porque
não podíamos lavar-nos nem mudar de roupa, apercebemo-nos a certa altura de
que parecíamos duas pedintes, daquelas que parecem não ter idade nem sexo e
pedem esmola à porta dos conventos. Os nossos vestidos estavam feitos em
farrapos e cheiravam mal; os nossos tamancos (desde há algum tempo que não
tínhamos sapatos) também causavam dó, consertados por Paride com bocados de
velhos pneus de automóvel, e o quartito tornou-se inabitável por causa das moscas,
das vespas e do calor; depois de ter sido um refúgio no inverno, era agora pior do
que uma prisão.
Rosetta, apesar de toda a sua doçura e paciência, sofria com esta situação
talvez mais do que eu, porque eu nasci camponesa, mas ela nasceu na cidade.
Tanto que um dia disse-me:
“Tu, mamã, falas-me sempre em comida... mas eu não me importaria de
passar fome ainda durante um ano contanto que tivesse um vestido limpo e vivesse
numa casa asseada.”
O fato é que faltava também a água, porque não chovia já há meses e ela não
podia lavar-se com a água do poço, como durante o inverno, justamente quando
tinha disso mais necessidade...
Em maio soube uma coisa que pode dar uma idéia do desespero a que
tinham chegado os refugiados. Parece que em casa de Filippo houve uma reunião,
na qual participaram só os homens, e durante essa reunião foi decidido que, se os
Ingleses não chegassem nesse mês, os refugiados, que possuíam todos armas - um
tinha um revólver, outro uma espingarda de casa, outro uma faca - obrigariam os
camponeses a pôr em comum as provisões, a bem ou à força. Michele também
participou na reunião e protestou logo, disse-nos depois, declarando que se
colocaria ao lado dos camponeses. Um dos refugiados, então respondeu-lhe:
“Muito bem, nesse caso tratar-te-emos como aos outros, considerando-te um
deles.”
Em resumo, essa reunião talvez não significasse lá grande coisa, porque,
apesar de tudo, os refugiados eram boa gente e duvido que fossem capazes de
fazer uso das armas; mas serve para indicar o grau de desespero a que todos
tinham chegado. Outros, soube-o mais tarde, como estava bom tempo e o solo
endurecera, preparavam-se para partir de Santa Eufêmia em direção ao Sul,
atravessando as linhas de batalha, ou ao Norte, onde se dizia que os mantimentos
não faltavam. Outros falavam também em ir para Roma, a pé, porque, diziam, no
campo nos deixam morrer de fome, mas na cidade hão-de ajudar-nos, têm medo da
revolução. Em suma, ao calor daquele sol ardente de maio, tudo se movia, tudo se
esboroava, cada um tornava a pensar em si mesmo e na própria pele e muitos
estavam até dispostos a arriscar a vida para sair daquela situação de imobilidade e
de espera sem fim.
De repente, um dia qualquer, eis que chegou a grande notícia: os Ingleses
tinham desencadeado a ofensiva a sério e avançavam. Não posso descrever a
alegria dos refugiados, os quais, à falta de melhor, não podendo beber porque não
havia vinho, nem comer porque não havia comida, se manifestaram abraçando-se e
atirando os chapéus ao ar. Coitados, mal sabiam eles que o avanço dos Ingleses
nos traria ainda mais sofrimentos. As dificuldades mal tinham começado.
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
De madrugada fomos acordadas por alguém que batia à porta com pancadas
tão fortes como se a quisesse arrombar. Era o soldado que nos auxiliara na véspera.
Quando abrimos, avisou-nos de que o automóvel que nos levaria a Vallecorsa já
estava lá em baixo e nos devíamos despachar. Vestimo-nos à pressa e, ao
vestir-me, notei que me sentia mais forte do que nunca; aquelas horas de sono
tinham-me restaurado por completo. Compreendi que Rosetta também se sentia
forte, pela maneira enérgica como se lavou e vestiu. Só uma mãe pode perceber
estas coisas; lembrava-me de Rosetta, no dia anterior, apatetada pelo sono e pelas
emoções, a cara suja de lama seca, os olhos distraídos e tristes; e agora dava-me
prazer olhá-la ao sentar-se na cama, as pernas pendentes, a espreguiçar-se,
levantando os dois braços e enchendo de ar o lindo peito branco, que parecia ir
saltar fora da combinação; e depois dirigir-se ao lavatório, situado a um canto, deitar
a água fria do jarro na bacia, lavar-se com força, não só a cara, mas também o
pescoço e os ombros, e, de olhos fechados, pegar às apalpadelas na toalha e
esfregar-se bem até ficar vermelha, pegando em seguida na saia e enfiando-a pela
cabeça, no meio do quarto. Eram tudo gestos normais que lhe vi fazer não sei
quantas vezes. Mas sentia neles a sua juventude e a sua força restaurada, como se
sente a juventude e a força de uma bela árvore banhada de sol, quando todas as
suas folhas mexem ao mais leve sopro do vento da primavera.
Bem, adiante. Vestimo-nos e descemos a correr as escadas ainda desertas
daquela casa vazia. Em frente da porta estava um desses pequenos automóveis
descobertos do exército aliado, bastante sólidos e com assentos de ferro. Ao
volante, um oficial inglês, loiro, de faces vermelhas e expressão embaraçada ou
talvez aborrecida. Indicou-nos os assentos de trás e disse-nos em mau italiano que
tinha ordem para nos levar a Vallecorsa. Não parecia muito amável, sem dúvida
mais por timidez do que por antipatizar conosco. No automóvel estavam também
duas enormes caixas de papelão cheias até acima de conservas; o oficial inglês
disse-nos, sempre com o seu ar embaraçado, que o major nos mandava aquelas
caixas com os seus cumprimentos e desejos de boa viagem, desculpando-se de não
poder despedir-se de nós, mas estava muito ocupado. Enquanto duraram estes
preparativos, vários refugiados que, provavelmente, tinham passado a noite ao
relento cercaram o automóvel, olhando-nos em silêncio, com a inveja claramente
estampada no rosto. Apercebi-me de que nos invejavam porque arranjáramos
maneira de sair de Fondi e também por termos todas aquelas conservas; confesso,
nesse momento quase experimentei um sentimento de vaidade, embora aliado a
certo remorso. Mal sabia eu quanto a nossa sorte era pouco para invejar!...
O oficial pôs o motor a trabalhar e o automóvel partiu, rápido, por cima de
poças e escombros, em direção às montanhas. Tomou por uma estrada secundária
e bem depressa, sempre a grande velocidade, começou a subir, entre dois montes,
um vale estreito e profundo, onde corria um riacho. Nós íamos caladas e o oficial
também, nós porque, no fim de contas, nos enfastiava falar por gestos e ganidos,
como surdas-mudas, e ele talvez por timidez ou por não gostar de ser motorista. De
resto, que podíamos nós dizer àquele oficial? Que estávamos satisfeitas por deixar
Fondi? Que estava um lindo dia de maio, com o céu azul, sem nuvens, e o sol
resplandecente a inundar os campos verdes e viçosos? Que íamos para a aldeia
onde eu nascera? Tudo coisas que não lhe interessavam... E ele teria razão se
respondesse que não queria saber disso para nada, que ia ali apenas a cumprir o
seu dever, o de nos conduzir a determinada terra, conforme as ordens recebidas, e
portanto era melhor irmos caladas, pois tinha de guiar e não podia distrair-se.
Porém, ainda que pareça estranho, embora eu pensasse assim, senti, em todo o
tempo, o desejo aflitivo de falar àquele oficial, de saber quem era, onde tinha a
família, o que fazia em tempo de paz, se estava noivo, e assim por diante. Na
realidade, compreendo-o agora, passado o perigo eu tornava a experimentar os
sentimentos normais dos tempos normais, isto é, retomava interesse pelas pessoas
e pelas coisas alheias a mim, para além da minha segurança e da de Rosetta. Em
resumo, recomeçava a viver, ou, melhor, a fazer muitas coisas sem razão, por
simpatia, por simples capricho, por impulso, ou até por brincadeira. E aquele oficial
despertava a minha curiosidade, como, depois de uma longa doença, ao entrar-se
na convalescença, desperta curiosidade tudo quanto vemos por acaso, ainda que
seja insignificante. Olhava para ele e via que tinha cabelos loiros verdadeiramente
magníficos, da cor do ouro, com muitas madeixas lisas e brilhantes que se
acamavam e entrançavam como as fibras de um lindo cesto e depois formavam, na
nuca, franjas caprichosas. Estes cabelos de ouro davam-me quase a tentação de
estender a mão e acariciá-los: não porque aquele jovem me agradasse ou atraísse
de uma maneira especial, mas só porque a vida me dava de novo prazer e aqueles
cabelos eram mesmo vivos. E, de fato, experimentava igual sensação pelas árvores
de folhagem nova que corriam ao nosso encontro na estrada, e pelo paredão de
pedras polidas e bem talhadas que sustentava o terrapleno do outro lado do fosso, e
pelo céu azul e o claro sol de maio. Tudo isto me agradava, tudo despertava em mim
apetite, como depois de um longo jejum que por muito tempo me tivesse tirado o
gosto de comer.
A estrada secundária, depois de ladear durante algum tempo o riacho, no vale
estreito e alto, foi dar finalmente à estrada nacional e o riacho a um ribeiro largo e
transparente que corria num vale um pouco mais amplo. As montanhas agora não
estavam mesmo em cima da estrada, desciam para ela em suaves encostas e não
eram verdes, mas sim pedregosas e nuas. Toda a paisagem se tornava, a cada
passo, mais nua, mais deserta e mais severa. Era a paisagem onde eu crescera e
me fizera mulher, reconhecia-a cada vez melhor, e a sensação desencorajante,
quase assustadora, da sua selvajaria e solidão era em parte mitigada pela alegria de
me encontrar num local familiar. Era mesmo uma paisagem de salteadores e nem o
sol de maio a tornava mais agradável e acolhedora; não havia senão pedras e
rochas e encostas cobertas de pedras e rochas e quase nenhuma verdura; e aquela
estrada negra, lisa e brilhante que corria por entre aqueles pedregulhos dir-se-ia
uma serpente acordada pelos primeiros passos da primavera. Não se via uma casa,
um palheiro, uma barraca, uma cabana; não se via um único ser vivo, homem ou
animal. Eu sabia que aquele vale continuava assim nu, silencioso e deserto durante
quilômetros e quilômetros e a única aldeia que aí se encontrava era a minha terra,
um grupo de casas alinhadas ao longo da estrada e em volta de uma praça onde se
erguia a igreja.
Corremos assim um bocado, em silêncio, e depois, de repente, numa volta do
caminho, eis que surge, a alguma distância, a minha aldeia. Tudo continuava como
eu me lembrava ainda: dos dois lados da estrada, o povoado começava com duas
casas que eu conhecia muito bem, velhas casas de campo construídas com pedras
daqueles montes, sem cal, escuras e modestas, com as telhas verdes do musgo.
Senti de súbito não sei que timidez em relação àquele oficial inglês, que parecia tão
aborrecido de nos servir de motorista: e impulsivamente bati-lhe no ombro e
disse-lhe que podíamos parar ali: tínhamos chegado. Ele travou no mesmo instante
e eu, já vagamente arrependida do meu gesto, avisei Rosetta de que chegáramos
ao nosso destino e devíamos descer. Apeamo-nos no meio da estrada e o oficial
ajudou-nos a descarregar as duas grandes caixas com provisões, que pusemos à
cabeça. Depois pronunciou, em italiano, de maneira quase afetuosa e com um
sorriso:
“Boa sorte!”
Logo deu meia volta rapidíssima e partiu como um foguete. Passados uns
segundos, já tinha desaparecido na curva da estrada e nós as duas estávamos
sós...
Foi então que notei o profundo silêncio e completa solidão do lugar. Não se
via ninguém, não se ouvia nenhum rumor, a não ser o do vento da Primavera, doce
e leve, que corria no vale. Ao olhar para as duas casas à entrada da aldeia, descobri
qualquer coisa em que não reparara no primeiro instante: tinham as janelas
cerradas, as madeiras igualmente fechadas e na porta do rés-do-chão duas tábuas
pregadas em cruz. A aldeia fora evacuada... E pela primeira vez admiti que talvez
tivesse feito mal em deixar Fondi: ali havia, é verdade, o perigo dos
bombardeamentos, mas havia também muita gente e não se estava só... Senti
constranger-me o coração e, para ganhar coragem, disse a Rosetta:
“Talvez na aldeia não esteja ninguém, talvez se tenham refugiado em
qualquer parte. Nesse caso não paramos aqui, seguimos até Vallecorsa, que fica a
poucos quilômetros. Ou então pedimos a qualquer condutor de caminhão que nos
leve, esta estrada é muito freqüentada, há-de passar alguém...”
Quase no mesmo instante, como a confirmar as minhas palavras, eis que
aparece na curva uma longa fila de carros militares. Esta aparição reconfortou-nos:
eram aliados, por isso amigos; em caso de apuros, podíamos recorrer a eles, como
em Fondi. Pus-me na beira da estrada, ao lado de Rosetta, para ver desfilar a
coluna diante de nós. À frente vinha um pequeno automóvel descoberto, semelhante
àquele que nos trouxera; lá dentro iam três oficiais e por cima do motor levava
espetada uma bandeirinha. Era uma bandeira azul, branca e vermelha, a bandeira
francesa, como soube depois, e os oficiais eram oficiais franceses, com o quepe do
feitio de uma panela redonda e a pala dura por cima dos olhos. Atrás deste
automóvel vinham muitos caminhões, todos iguais, a abarrotar de tropas, mas não
eram soldados semelhantes aos que vira até então, eram homens de pele escura,
com caras de turcos, tanto quanto deixavam adivinhar os turbantes vermelhos que
lhes envolviam as cabeças, e cobertos por lençóis brancos, tendo por cima um
capote de cor escura. Só mais tarde soube a origem destes soldados: eram de
Marrocos, portanto marroquinos, e Marrocos, segundo penso, é um país distante,
que fica em África, e, se não fosse a guerra, estes marroquinos nunca teriam vindo à
Itália. A coluna não era muito comprida; fechava-a um automóvel semelhante àquele
que ia na frente; a estrada então voltou a ficar deserta e silenciosa. Disse a Rosetta:
“São aliados, decerto, mas não sei a que raça pertencem. Nunca vi gente
assim “
Em seguida dirigi-me para o povoado. Pouco antes da aldeia, a montanha
encurvava para a estrada um grande rochedo, por baixo do qual havia uma espécie
de gruta com uma nascente. Disse a Rosetta, enquanto caminhava com a caixa à
cabeça:
“Aquilo é uma gruta com uma nascente. Vamos lá, pois tenho sede e quero
beber.”
Foi isto o que disse, mas, na realidade, queria era tornar a vê-la, pois em
criança e mais tarde, já rapariga, ia àquela gruta buscar água todos os dias várias
vezes, com o cântaro de cobre à cabeça, e ficava lá a conversar dez minutos ou
mais, conforme os casos, com outras mulheres que também ali iam por igual razão;
às vezes até encontrava gente das aldeias vizinhas com barris amarrados à albarda
dos burros, porque a água daquela fonte tinha fama e era a única nas redondezas
que durante o verão não secava e continuava a correr, sempre gelada e abundante.
Gostava daquela gruta e lembrava-me que, em criança, me parecia um lugar
estranho e misterioso, que me metia medo e ao mesmo tempo me atraía; muitas
vezes me debruçava, o busto todo dobrado para a frente, na beira do tanque que lá
existia, para me ver espelhada na água negra, e olhava durante muito tempo as
avencas densas que ocultavam a nascente. Gostava de contemplar a minha imagem
voltada ao contrário, tão clara e colorida; gostava de olhar para as avencas tão
lindas, com as folhinhas verdes e as hastes negras como ébano; gostava de ver o
musgo aveludado, com gotas brilhantes como pérolas e constelado de florinhas
vermelhas que cobria a rocha. Mas sentia-me atraída sobretudo pela gruta porque
na aldeia alguém me contara uma lenda segundo a qual quem se atirasse com
decisão à água, nadando sempre para o fundo, chegaria a um mundo subterrâneo
muito mais belo do que o nosso cá em cima, com cavernas cheias de tesouros e
anões e lindas fadas.
Esta história causara-me grande impressão e mesmo mais tarde, quando já
era rapariga e não acreditava nisso, pois sabia ser apenas uma lenda, nunca
cheguei à gruta sem me lembrar dela e experimentar uma sensação de dúvida e
incerteza, como se aquilo não fosse uma lenda, mas sim uma coisa verdadeira e eu
pudesse dar ainda aquele mergulho, se quisesse ir lá abaixo visitar as tais cavernas
encantadas. Fomos até a gruta, pus no chão a caixa, subi os dois ou três degraus e
debrucei-me, esmagando o peito na beira do tanque, por baixo das estalactites
revestidas de musgo verde e brilhante que, tal como outrora, pingavam gota a gota.
Também Rosetta se aproximou e eu olhei um momento as nossas duas caras
refletidas na água negra imóvel e suspirei, pensando no sem-número de coisas, nem
sempre boas, que tinham sucedido desde o tempo em que, criança ainda, me
debruçava para aquela água e nela me via como num espelho. Por baixo das
avencas densas, no fundo do tanque, via-se, como então, o leve borbulhar
produzido pela nascente e pensei que aquela nascente continuaria a brotar assim
por toda a eternidade, doce e tranqüila, quando eu e Rosetta e todos os outros
fôssemos embora deste mundo e desta guerra tão terrível restasse apenas a
recordação. Porque tudo acaba, considerei; eu estava ali e já não era criança e tinha
uma filha crescida, mas a fonte continuava a deitar água, como sempre...
Inclinei-me e bebi; creio que uma lágrima me caiu dos olhos para o tanque;
Rosetta, ao meu lado, bebia também e não se apercebeu. Depois limpamos a boca,
tornamos a pôr as caixas à cabeça e dirigimo-nos para a aldeia.
Tal como imaginava, a aldeia estava deserta. Não fora bombardeada nem
devastada, apenas abandonada. Todas as casas, umas casas pobres, de pedra em
bruto, sem rebocos, encostadas umas às outras ao longo da estrada, estavam
intactas, mas de janelas fechadas e portas pregadas. Caminhamos um bocado entre
duas filas de habitações mortas que me davam quase uma sensação de medo,
como quando se caminha num cemitério e se pensa na gente que está por baixo das
lápides; passamos diante da casa de meus pais, também fechada e pregada;
renunciei a bater e, sem dizer nada a Rosetta, apressei o passo; por fim chegamos a
um largo em declive, com degraus, no cimo do qual se erguia a igreja, uma igrejinha
mesmo de aldeia, de velhas pedras enegrecidas, rústica e antiga, sem floreios nem
ornamentos. O largo continuava tal qual como eu me lembrava dele: os degraus
calcetados de pedra negra com listras brancas; quatro ou cinco árvores plantadas
irregularmente, que, como sempre na primavera, se apresentavam carregadas de
folhas novas, e a um lado um velho poço com o parapeito da mesma pedra negra da
igreja e o cabrestante de ferro todo enferrujado. Notei que, sob o pórtico, sustentado
por duas colunas, a porta da igreja estava semi-aberta e disse a Rosetta:
“Sabes o que vamos fazer? A igreja está aberta, vamos sentar-nos lá dentro
um bocado, a descansar, e depois seguimos a pé para Vallecorsa.”
Rosetta não respondeu e seguiu-me. Entramos e imediatamente percebi, por
vários indícios, de que a igreja fora, se não devastada de propósito, pelo menos
habitada por soldados e reduzida ao estado de estrebaria. A nave era comprida e
estreita, caiada, com grandes traves negras no teto e ao fundo o altar, este último
sobrepujado por um quadro representando Nossa Senhora com o Menino. O altar
estava agora nu, sem paramentos nem nada; o quadro continuava lá, mas de banda,
como se um terremoto o houvesse deslocado, e os bancos, que outrora se
alinhavam em duas filas até junto do altar, tinham desaparecido todos, menos dois,
dispostos no sentido do comprimento. Entre eles, no chão, havia muitas cinzas e
alguns tições pretos, sinal de que se acendera ali lume. A igreja recebia luz de um
grande vitral por cima da entrada, que noutro tempo fora brilhante e colorido. Agora,
desses vidros não restavam senão alguns fragmentos aguçados e na igreja era dia
claro. Encostei-me a um dos bancos sobreviventes, endireitei-o, de modo a ficar de
frente para o altar, pousei lá a caixa e disse a Rosetta:
“Eis o que é a guerra: nem as igrejas respeitam...”
Depois sentei-me e Rosetta sentou-se ao meu lado. Experimentava uma
sensação estranha, como a de quem se encontra num lugar sagrado, e no entanto
não tinha vontade de rezar. Voltei os olhos para o quadro de Nossa Senhora, todo
torcido, com o rosto da Virgem já negro de fumo, e não a olhar para baixo, para os
bancos, como antigamente, mas sim para o teto, de revés; pensei que, se quisesse
rezar, teria, antes de tudo, de endireitar aquela imagem. Mas talvez nem mesmo
assim fosse capaz de rezar; estava como que inteiriçada e não sentia nada, a não
ser uma espécie de atordoamento. Esperava encontrar a aldeia onde nascera e a
gente no meio da qual tinha crescido e, se Deus quisesse, também os meus pais;
mas, ao contrário, encontrara apenas uma casa vazia... Todos tinham abalado, não
se sabia para onde, e talvez também Nossa Senhora, desgostosa por terem
ofendido a sua imagem, deixando-a para ali à banda. Olhei para Rosetta, ao meu
lado, e vi que ela rezava de mãos postas e cabeça inclinada, mal movendo os
lábios. Disse-lhe então, em voz baixa:
“Fazes bem em rezar... reza também por mim... eu não tenho coragem...”
Naquele instante ouvi não sei que barulho de passos e de vozes do lado da
entrada, voltei-me e, como um relâmpago, vi chegar à porta qualquer coisa branca
que imediatamente desapareceu. Pareceu-me reconhecer, porém, um daqueles
estranhos soldados que viramos passar pouco antes na estrada dentro de
caminhões. Tomada de súbita inquietação, levantei-me e disse a Rosetta:
“Vamos... é melhor ir andando...”
Ela levantou-se logo, benzendo-se; ajudei-a a pôr a caixa à cabeça, pus
também a minha e depois dirigimo-nos para a entrada. Empurrei a porta, que estava
fechada, e encontrei-me cara a cara com um soldado que parecia turco, tão escuro e
bexigoso era, com um carapuço vermelho enterrado até os olhos, pretos e
brilhantes, e o corpo embrulhado naquele capote escuro por cima do lençol branco.
Ele pôs-me as mãos no peito, empurrando-me para trás e dizendo-me qualquer
coisa que não entendi; atrás dele vi outros, não sei quantos, pois o bruto agarrou-me
com força um, braço e puxou-me logo para dentro da igreja, enquanto os outros,
todos de lençol branco e carapuço vermelho, entravam de roldão. Então gritei:
“Mais devagar, que querem de nós? Somos refugiadas!”
Ao mesmo tempo, a caixa que trazia à cabeça caiu e senti as conservas
rolarem no chão. Comecei a debater-me. O turco agarrava-me pela cintura,
apertava-me contra ele, a cara escura e feroz perto da minha. De súbito ouvi um
berro, agudo, dilacerante, era Rosetta; então procurei libertar-me com quantas
forças tinha, para correr em seu auxílio, mas ele apertava-me desalmadamente e,
embora lhe fincasse a mão no queixo, empurrando-lhe a cara para trás, senti que ele
conseguia arrastar-me para um canto, na penumbra da igreja, à direita da entrada.
Então gritei também, um berro ainda mais agudo que o de Rosetta, e creio que pus
nele todo o meu desespero, não só por aquilo que me estava a acontecer nesse
instante, como por tudo quanto me sucedera desde o dia em que saí de Roma.
Seguiu-se uma breve luta e por fim desmaiei...
Voltei a mim passado não sei quanto tempo; estava estendida a um canto, na
penumbra da igreja, os soldados tinham-se ido embora e reinava um grande
silêncio. Doía-me a cabeça, mas só atrás, na nuca; não tinha outras dores e
compreendi que aquele homem terrível não conseguira os seus intentos; eu
defendi-me, dando-lhe vigoroso apertão no sítio onde os homens não toleram que os
apertem, e ele, raivoso, agarrou-me pelos cabelos e bateu-me com a cabeça no
pavimento; por isso desmaiei e, já se sabe, é difícil fazer seja o que for a uma
mulher desmaiada. Mas também não me fizera nada porque, como refleti a seguir,
os companheiros o chamaram, para segurar Rosetta e ele deixou-me e foi saciar-se,
como todos os outros, na minha pobre filha. Infelizmente, Rosetta não desmaiou e
tudo quanto lhe sucedeu viu-o com os olhos e sentiu-o com os sentidos. Eu estava
para ali estendida, quase incapaz de me mexer; depois experimentei levantar-me e
senti subitamente uma dor aguda na nuca. Porém, reagi, pus-me de pé e olhei em
volta. Primeiro não vi senão o pavimento da igreja semeado de caixas de conservas
que tinham rolado pelo chão no momento em que fomos assaltadas; depois ergui os
olhos e vi Rosetta. Tinham-na arrastado, ou então perseguido, até junto do altar;
estava estendida de costas, o vestido levantado e a cobrir-lhe a cabeça, nua dos pés
até à cintura.
Aproximei-me e chamei-a, em voz baixa: “Rosetta!”. Mas não esperava que
ela me respondesse, e ela, de fato, não me respondeu, nem se mexeu e
convenci-me de que estava morta. Inclinei-me e afastei-lhe as roupas de cima da
cara. Vi então que ela me olhava de olhos arregalados, sem pronunciar uma palavra,
sem se mover, com um olhar que nunca lhe vi, como um animal preso numa
armadilha, sem poder mexer-se, à espera que o caçador lhe dê o golpe de
misericórdia. Sentei-me então junto dela, debaixo do altar, passei-lhe o braço pela
cintura, levantei-a, apertei-a contra mim e disse:
“Meu tesouro!...”
Mas não consegui dizer mais nada, comecei a chorar e as lágrimas
saltavam-me dos olhos e eu bebia-as e sentia que eram amargas, com toda a
amargura concentrada que eu recolhera na minha vida. Entretanto, esforçava-me
por compô-la; antes de tudo, tirei o lenço do bolso e limpei-lhe o sangue ainda fresco
das coxas, baixei-lhe a combinação e a saia e depois, sempre a chorar
perdidamente, meti-lhe dentro do colete o seio que aqueles bárbaros tinham tirado
para fora e abotoei-lhe a blusa. Por fim peguei num pentezinho que me tinham dado
os ingleses e penteei-lhe cuidadosamente os cabelos desgrenhados. Ela
deixava-me fazer tudo, estava quieta e não falava. Eu agora já não chorava e
entristecia-me por não poder chorar, nem gritar, nem me desesperar. Disse-lhe:
“Podes sair daqui?”
Respondeu que sim, numa voz muito baixa. Ajudei-a a levantar-se; ela
vacilava, estava muito pálida, mas por fim lá deu alguns passos, sempre amparada a
mim. A meio da igreja, quando chegamos junto dos dois bancos, disse-lhe:
“Temos de apanhar estas coisas e metê-las nas caixas. Não devemos
deixá-las aqui. Podes?”
Novamente respondeu que sim; enchi as duas caixas com as conservas que
estavam espalhadas no chão, pus-lhe uma à cabeça e fiquei com a outra; por fim
saímos. Continuava a doer-me a nuca de uma maneira que não sei explicar, e ao
sairmos da igreja até se me enevoou a vista; mas reagi, com o pensamento em
Rosetta, que devia sofrer bastante naquele momento. Descemos devagar os
degraus resvaladiços do largo; o sol já ia alto e iluminava com a sua bela luz as
paredes escuras. Marroquinos não havia nem um; depois de terem feito o que
fizeram, foram-se embora, graças a Deus, talvez para irem fazer o mesmo em
qualquer outra terra próxima. Atravessamos toda a aldeia por entre duas filas de
casas fechadas e silenciosas, logo tomamos a estrada principal, cheia de sol, limpa,
clara, batida pelo vento da Primavera, que me soprava docemente aos ouvidos e
parecia dizer-me que não me desesperasse, pois tudo continuava como dantes,
como sempre. Andamos talvez um quilômetro, lentamente, sem falar; mas eu
sentia-me cada vez pior da nuca e compreendi que também Rosetta não podia mais.
Disse-lhe:
“Agora, na primeira quinta que encontrarmos, paramos até amanhã, para
descansar.”
Ela não disse nada, começava assim aquele silêncio em que se fechou
depois de os marroquinos a violarem e que havia de durar muito e muito tempo. Em
suma, demos ainda mais uns cem passos e vi vir ao nosso encontro um
automovelzinho descoberto, em tudo semelhante àquele que nos trouxera, com dois
oficiais dentro, dois oficiais franceses, reconheci-os logo pelo quepe em forma de
panela. Então senti não sei que impulso e pus-me no meio da estrada, fazendo
sinais com o único braço livre, e eles pararam. Aproximei-me e gritei-lhes com fúria:
“Sabem o que fizeram os turcos que vocês comandam? Sabem o que tiveram
a coragem de fazer num lugar sagrado, na igreja, sob os olhares de Nossa
Senhora? Digam, sabem o que eles fizeram?”
Não me compreendiam e olhavam-me espantados: um era moreno, de bigode
preto e cara vermelha, cheia de saúde; o outro era loiro, delgado, pálido, de olhos
azuis e vesgos. Gritei outra vez:
“Desgraçaram a minha filha, sim, desgraçaram-na para sempre, uma filha que
era um anjo e agora está pior do que se tivesse morrido. Mas não sabem o que eles
fizeram?”
Então o moreno levantou a mão e fez um sinal como a dizer “basta” e depois
repetiu, em italiano, mas com acento francês: “Pace, pace”, que quer dizer “paz”.
Gritei:
“Sim, paz, linda paz, esta é a vossa paz, filhos de um corno?!”
O louro não sei o que disse ao moreno, naturalmente que eu era doida, pois
levou um dedo à testa e sorriu. Então perdi por completo a cabeça:
“Não sou doida, não, olhem!”
E, atirando a caixa ao chão, corri para Rosetta, que ficara mais atrás, no meio
da estrada, com a caixa à cabeça, imóvel, e levantei-lhe as saias para lhes mostrar
aquelas belas pernas ensangüentadas, No mesmo momento ouvi o automóvel
passar ao meu lado a grande velocidade e, quando me voltei, vi-o desaparecer lá
adiante na curva.
Rosetta continuava parada, semelhante a uma estátua, com a caixa à cabeça,
o braço levantado para a segurar, as pernas unidas, e eu de repente tive medo que
ela tivesse enlouquecido e, baixando-lhe o vestido, pronunciei:
“Minha filha, porque não falas? O que tens?... Fala à tua mamã.”
Então ela respondeu, numa voz tranqüila:
“Não é nada, mamã. E uma coisa natural, já está a passar.”
Respirei fundo, pois tive verdadeiramente medo que ela, com o abalo, ficasse
tola; perguntei-lhe, já um pouco mais animada:
“Então podes andar ainda um bocado?”
Respondeu:
“Sim, mamã.”
Pus a caixa à cabeça e continuamos a palmilhar a estrada principal. Andamos
ainda mais outro quilômetro e eu sentia-me cada vez pior da nuca; de vez em
quando quase desfalecia e toda a paisagem ficava negra, como se o sol se
encobrisse de repente. Por fim, numa curva, vimos um morro abrigado por
montanhas mais altas, redondo e coberto de mato. No cimo, entre o mato, havia
uma cabana como as que em Santa Eufêmia os camponeses construíam para meter
os animais. Disse a Rosetta:
“Não posso mais e tu também deves estar cansada. Vamos para aquela
cabana; se tiver gente, devem ser cristãos e hão-de deixar-nos passar lá a noite. Se
não houver ninguém, tanto melhor. ficamos hoje e amanhã e, logo que nos
sentirmos bem, retomaremos o caminho.”
Rosetta não disse nada, como de costume; mas desta vez fiquei menos
inquieta, pois já sabia que não tinha enlouquecido, estava somente perturbada, e
isso compreendia-se, depois do que sucedera. No entanto, sentia que ela nunca
mais seria a mesma e que qualquer coisa mudara, não só no seu corpo, mas
também na sua alma. E, embora fosse sua mãe, não tinha o direito de lhe perguntar
o que pensava, pois a única maneira de lhe demonstrar todo o meu afeto era
deixá-la em paz.
Seguimos por uma vereda que serpenteava no meio do mato, em direção à
cabana, e por fim, após longa subida, chegamos lá. Como imaginava, era uma
choupana de pastores, com paredes de pedra solta, o telhado de palha, descendo
quase até ao chão, e a porta de madeira. Pousamos as caixas e tentamos abrir a
porta. Mas esta tinha uma barra de ferro com um grande soquete e era feita de
tábuas muito grossas: não podíamos pensar em abri-la, nem um homem a
conseguiria arrombar. Enquanto abanávamos a porta, ouvimos primeiro um balido
muito fraco e depois outro e outro; pareciam de cabras, mas não fortes e irritados
como são os balidos das cabras quando estão no escuro e querem sair, mas fracos
e lamentosos. Então disse a Rosetta:
“Fecharam aqui dentro os animais e fugiram... é preciso arranjar maneira de
os pôr cá fora.”
Assim, fui para o lado da cabana e comecei a tirar a palha do telhado. Tarefa
difícil, pois a palha estava bastante comprimida e emaranhada devido à chuva e ao
fumo e por ter sido acamada ali há muito tempo; além disso, cada feixe estava preso
com vimes aos troncos de esteio. Porém, arrancando aqui e além, ora
despedaçando os vimes, ora desatando-os, consegui tirar alguns feixes de palha e
fazer um buraco bastante grande à altura da parede, e, logo que o alarguei, uma
cabra branca e preta aproximou a cabeça, pondo as patas na parede e olhando para
mim com olhos lamentosos e balindo. Disse-lhe:
“Anda, linda, salta, salta!”
Mas vi que ela, a pobrezinha, embora procurasse erguer-se, não tinha forças,
e compreendi que aquelas cabras estavam enfraquecidas pela fome e era preciso
tirá-las de lá. Alarguei mais o buraco, enquanto a cabra continuava com as patas
apoiadas à parede, olhando-me e balindo baixinho; depois agarrei-a pela cabeça e
pelo pescoço, puxei-a e ela fez um esforço e saltou. Logo a seguir outra cabra
apareceu no buraco e de novo me esforcei por tirá-la para fora, e depois uma
terceira e uma quarta. Por fim não apareceu mais nenhuma, mas sentia-se ainda
balir na cabana; alarguei de novo o buraco e saltei lá para dentro. Vi logo dois
cabritos que estavam mesmo debaixo da abertura, incapazes de saltar porque eram
muito pequenos. A um canto distingui um vulto e aproximei-me: era uma cabra
branca, estendida no chão, de lado, imóvel. Um cabrito estava junto dela, agachado,
com as patas dobradas debaixo da barriga e o pescoço estendido, a mamar. Ainda
pensei que a cabra estivesse assim imóvel para dar de mamar ao cabrito, mas,
quando me aproximei, vi que estava morta. Compreendi-o logo pelo abandono da
cabeça, pela boca semi-aberta e pelas moscas pousadas aos cantos da boca e dos
olhos. A cabra morrera de fome e os três cabritos viviam ainda porque tinham podido
mamar até o último suspiro da mãe. Peguei nos cabritos, um por um, e,
inclinando-me para fora, pousei-os no chão, ao pé da parede. As outras quatro
cabras que libertara devoravam já o mato com uma avidez furiosa, cegas de fome;
os cabritos alcançaram-nas e bem depressa cabras e cabritos deixaram de se ver,
embrenhados no meio dos arbustos. Mas ouviam-se os seus balidos, cada vez mais
claros e fortes, como se a cada bocado a sua voz se fortalecesse e quisessem
assim dar-me a entender que estavam melhor e me agradeciam tê-los salvo da
morte.
Em conclusão, tirei para fora da cabana, com grande custo, o cadáver da
cabra e arrastei-o para tão longe quanto pude, para não nos incomodar com o mau
cheiro. Depois peguei naquela palha toda que arrancara do telhado, juntamente com
outra que consegui: alargando mais o buraco, e coloquei-a num canto da cabana,
fazendo na sombra uma espécie de cama. Disse a Rosetta:
“Vou estender-me nesta palha, quero dormir um bocado. Porque não fazes o
mesmo?”
Ela respondeu:
“Eu fico aqui fora, ao sol.”
Não insisti e fui deitar-me. Estava na sombra, mas pelo buraco aberto no
telhado via um pedaço de céu azul; o sol alongava os seus raios no chão da cabana,
semeado das caganitas negras das cabras, brilhantes como bagas de louro;
respirava-se ali um bom cheiro a estábulo. Sentia os ossos quebrados e compreendi
que era incapaz, devido ao cansaço, de me amargurar verdadeiramente com o que
sucedera a Rosetta: o acontecido ficara na minha memória como qualquer coisa
incompreensível e absurda; via em pensamento as suas lindas pernas brancas, as
coxas apertadas e os músculos em relevo, e ela de pé, imóvel, no meio da estrada,
e o sangue a escorrer até aos joelhos, muito vivo e vermelho, brilhando ao sol.
Quanto mais rememorava essa cena, menos a compreendia. Finalmente adormeci...
Dormi pouco, talvez só meia hora; de repente acordei, em sobressalto, e
chamei logo por Rosetta, aos gritos, quase com ansiedade. Ninguém respondeu,
havia um silêncio profundo, não se ouviam sequer as cabras, e sabe-se lá para onde
teriam ido. Chamei outra vez, e depois, inquieta, levantei-me, saltei para fora, pelo
buraco: Rosetta não estava ali. Dei a volta à cabana, vi as duas grandes caixas de
conservas encostadas à parede, mas dela nem sombra.
Fui tomada de um medo louco, pensei que tivesse fugido, cheia de vergonha
e desespero, que tivesse ido para a estrada para se meter debaixo de algum
automóvel e acabar assim num momento de desanimo. Faltou-me o ar e senti o
coração bater mais apressado no peito; comecei a chamar por Rosetta, parada
diante da porta, mas em todas as direções. Ninguém respondia, talvez porque não
gritasse muito alto; com a perturbação faltava-me a voz. Então abandonei a cabana
e caminhei ao acaso pelo meio do mato. Segui a vereda, que ora se alargava, clara
e poeirenta, ora não era mais do que um traço incerto entre os arbustos altos.
Imprevistamente, cheguei junto duma rocha que descia a pique para a estrada
principal. Havia ali uma árvore e a rocha estava talhada em forma de banco. donde
se podia ver uma boa parte da estrada que serpenteava no vale estreito e, lá mais
abaixo, o leito da torrente, semeado de seixos brancos, com dois ou três braços de
água transparente, correndo e cintilando ao sol entre os seixos e os tufos de
verdura. Quando me sentei na rocha e me inclinei para olhar, vi Rosetta ao longe.
Compreendi então que não me tivesse ouvido, pois estava muito mais abaixo do que
a estrada, no meio do riacho pedregoso, e caminhava sem pressas, com prudência,
saltando de uma pedra para outra, evitando molhar os pés; pela sua maneira de
andar, vi que não fora por desespero ou por perturbação de ânimo que ali descera.
Depois vi-a parar no sítio onde a corrente era mais estreita e mais funda, ajoelhar-se
e inclinar-se até tocar com o rosto na água para beber. Quando acabou, ergueu-se,
olhou em volta um momento e em seguida levantou as saias, descobrindo as
pernas, e, embora eu tivesse bastante longe, pareceu-me ver um risco escuro de
sangue seco que lhe chegava até o joelho. Agachou-se, de pernas abertas,
apanhando a água na concha da mão e levando-a ao ventre: compreendi que se
lavava. Tinha a cabeça inclinada para um lado e lavava-se sem pressa, com
método, assim me pareceu, não se importando de expor ao sol e ao ar as suas
vergonhas. Todas as minhas terríveis suposições caíram por terra: Rosetta
afastara-se da cabana, descera à ribeira, unicamente para se lavar...
Devo confessá-lo, experimentei uma sensação de dolorosa desilusão. Claro,
eu não queria que ela se matasse; no entanto, temia-o: mas vê-la agir de uma
maneira tão diferente da que imaginava inspirava-me uma decepção profunda e
quase medo do futuro. Parecia-me que se vergara já ao novo destino, que começara
para ela na igreja, ao perder a virgindade por obra daqueles bárbaros, e que o seu
obstinado silêncio era mais de resignação do que de furor. E pensei mais tarde,
quando esta impressão, infelizmente, se confirmou, que, nesses poucos instantes de
tormento, a minha pobre Rosetta se tornara bruscamente mulher, tanto no corpo
como na alma, mulher endurecida, experimentada, amarga, sem ilusões nem
esperanças.
Fiquei a olhá-la durante muito tempo, lá de cima, do rochedo. Depois de se
limpar o melhor que pôde, e sempre com o mesmo impudor quase animal, tornou a
atravessar a corrente e subiu de novo para a estrada. Em seguida atravessou-a e eu
então levantei-me da rocha e voltei para a cabana: não queria que ela pensasse que
a tinha estado a espiar. De fato, vi-a chegar daí a poucos minutos, com uma cara
não de todo sossegada e calma, mas sem qualquer expressão: eu, fingindo uma
fome que não tinha, disse-lhe:
“Estou com apetite, queres comer alguma coisa?”
Respondeu-me numa voz indiferente:
“Se quiseres...”
Sentamo-nos ambas em frente da cabana, numas pedras, e abri duas caixas
de conservas, e de novo fiquei surpreendida, de uma maneira obscuramente
dolorosa, ao ver que ela comia com apetite, ou, melhor, vorazmente. Também desta
vez não esperava, decerto, que não comesse, pelo contrário; no entanto, vê-la
atirar-se à comida com tal sofreguidão surpreendeu-me, pois pensava que, pelo
menos, depois de tudo quanto sucedera, a comida lhe repugnasse. Não sabia o que
dizer, estava para ali apalermada, a vê-la tirar com os dedos, das caixas abertas, os
bocados de carne em conserva, um a seguir a outro, e metê-los na boca e
mastigá-los com fúria, de olhos arregalados. Por fim disse-lhe:
“Minha rica filha, não deves pensar mais no que sucedeu na igreja... não
penses e verás...”
E ela, interrompendo-me, pronunciou secamente:
“Se não queres que eu pense, começa por não me falares mais nisso.”
Fiquei surpreendida, até o tom da sua voz já era outro: quase irritado e, ao
mesmo tempo, frio, impassível.
Em suma passamos lá em cima quatro dias e quatro noites, sempre a fazer
as mesmas coisas, isto é, dormindo de noite na cabana, em que entrávamos pelo
buraco do telhado, levantando-nos com o sol, comendo as conservas do major
inglês, matando a sede na água da corrente e quase não falando, a não ser quando
era mesmo necessário. Durante o dia andávamos no mato, sem destino: às vezes
dormíamos também à tarde, no chão, debaixo duma árvore. As cabras, depois de
pastarem todo o dia, voltavam para a cabana e nós ajudávamo-las a saltar para
dentro e depois dormiam conosco, acaçapadas umas contra as outras, a um canto,
juntamente com os cabritos, que tinham começado a mamar ora numa ora noutra e
já nem se lembravam da mãe morta, Rosetta estava sempre com o mesmo humor
apático, indiferente, distante: como me pedira, não lhe falei mais no que sucedeu na
igreja; e desde então não toquei em tal assunto uma única vez, e a dor que
experimentei ficou dentro de mim, como um espinho, e nunca mais me abandonará
porque nunca encontrará expressão. A propósito daqueles quatro dias, não sei
porquê, estou convencida de que foi nessa altura que Rosetta mudou
verdadeiramente de caráter, ou à força de pensar, de uma maneira muito especial,
em tudo quanto lhe sucedeu, ou transformando-se sem querer e sem dar por isso,
pela própria força do ultraje sofrido, numa pessoa diferente da que fora até aí. E
devo dizer que ao princípio até eu me surpreendi com a sua mudança tão completa
e tão radical, passando do branco para o preto: mas depois, pensando melhor,
pareceu-me que, dado o seu temperamento, não podia ser de outra forma. Já aqui
afirmei que ela era levada pela sua natureza para uma estranha perfeição; se era
qualquer coisa, tinha de o ser a fundo e completamente, sem incertezas nem
contradições, e de tal forma que sempre estive convencida de que a minha filha era
uma espécie de santa. Ora essa perfeição de santa, feita, como disse, sobretudo de
inexperiência e ignorância da vida, fora ferida de morte pelo que sucedeu na igreja;
então mudou bruscamente para a perfeição oposta, sem essas meias-medidas,
moderação e prudência próprias das pessoas normais, imperfeitas e espertas.
Tinha-a visto até aí toda devoção e bondade, pureza e doçura; devia esperar, de
futuro, que ela se voltasse para o excesso oposto, com a mesma ausência de
dúvidas e de hesitações, a mesma inexperiência e o mesmo sentido absoluto.
Muitas vezes, em conclusão das minhas reflexões sobre este doloroso
assunto, disse a mim própria que a pureza é uma coisa que não se pode receber à
nascença como dom da natureza, por assim dizer; mas que se encontra com as
provações da vida e quem a recebeu ao nascer perde-a cedo ou tarde e tanto mais
facilmente quanto mais confiava possuí-la: em suma, vale mais nascer imperfeito e
tornar-se, a pouco e pouco, se não perfeito, pelo menos melhor, do que nascer
perfeito e depois ser obrigado a abandonar aquela primeira efêmera perfeição pela
imperfeição da experiência e da vida.
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
E assim chegou o grande dia do regresso a Roma. Mas como foi diferente do
que eu imaginara nos meus sonhos, durante os nove meses vividos em Santa
Eufêmia!... Sonhara um regresso alegre e feliz, num desses caminhões militares
repletos de rapagões loiros, ingleses ou americanos, contentes, simpáticos, cheios
de vida, e Rosetta ao meu lado, doce e tranqüila como um anjo; e talvez Michele
fosse também conosco, igualmente muito feliz. E eu numa grande ansiedade por ver
aparecer no horizonte a cúpula de São Pedro, que é a primeira coisa que se vê de
Roma, e o coração repleto de esperança, e a cabeça a zunir, cheia de projetos em
relação a Rosetta e ao seu casamento e à loja e à casa.
Pode dizer-se que naqueles nove meses estudei todos os pormenores desse
regresso e até cada pormenor desses pormenores. E tinha imaginado também a
nossa chegada a casa, com Giovanni a acolher-nos, calmo e sorridente, o charuto
apagado ao canto da boca, e os vizinhos que se juntavam em volta de nós e que
nós abraçávamos a sorrir e a dizer: ”Bem, já cá estamos, depois contaremos tudo o
que nos sucedeu.”
Tinha pensado em todas estas coisas e em muitas outras, e lembro-me que,
ao pensar nelas, me surpreendia às vezes a sorrir com antecipada alegria, mas
nunca, mesmo nunca, me passou pela mente que as coisas não sucedessem tal
qual como eu as imaginava. Em suma, não previ que, como dizia Concetta, a guerra
é a guerra, isto é, que, mesmo quando já está prestes a extinguir-se, ainda é a
guerra e, qual fera moribunda que continua a querer fazer mal, pode ainda dar-nos
uma patada. Ora a guerra dera-nos patadas bem fortes mesmo nas vésperas de
acabar: os marroquinos violaram Rosetta, os nazis mataram Michele e nós as duas
tínhamos agora de ir para Roma no caminhão daquele malandro do Rosário, e eu,
em vez de tantas coisas alegres que imaginara saborear, tinha a alma cheia de
tristeza, de desilusão e de desespero.
Era uma manhã de junho, já com o calor e a luz de verão no céu afogueado e
na terra seca e poeirenta. Rosetta e eu, dentro da barraca, acabávamos de nos
vestir pois o caminhão de Rosário esperava-nos na estrada principal. Rosetta
passara parte da noite fora, e eu, que o sabia e a vira entrar sorrateiramente,
continuava a experimentar aquele sentimento de impotência de que já falei: minha
alma transbordava de palavras que queria dizer, mas minha boca não sabia
exprimi-las. Todavia, por fim, consegui pronunciar, enquanto ela se lavava a um
canto, de pé diante da bacia:
“Posso saber onde estiveste esta noite?”
Esperava novo silêncio ou qualquer resposta breve; mas desta vez não foi
assim, não sei porquê. Rosetta acabou de se limpar, depois voltou-se para mim e
disse-me numa voz clara e firme:
“Estive com Rosário. E não me perguntes mais o que faço, para onde vou e
com quem estou, porque ficas a sabê-lo agora: faço amor, onde posso e com quem
posso. E quero também dizer-te que isso me agrada, ou, melhor, que não posso
nem quero deixar de o fazer...”
Exclamei:
“Mas com Rosário, minha filha, não vês quem é Rosário...”
E ela:
“Com ele ou com outro, para mim é igual. Já te disse, é a única coisa que me
agrada e me apetece fazer. E daqui por diante será sempre assim, por isso não me
faças mais perguntas, pois não poderei responder-te de outra maneira.”
Ela nunca falara tão claro, ou, antes, era a primeira vez que me falava assim;
compreendi que, enquanto não lhe passasse aquele frenesi, devia proceder como
ela me dizia: não lhe perguntar nada, calar-me. E foi o que fiz: acabei de vestir-me
em silêncio, enquanto ela, do outro lado do leito, fazia o mesmo.
Saímos, por fim, da barraca e encontramos Rosário, sentado à mesa com a
mãe, a comer uma salada de cebolas com pão. Concetta veio logo ao nosso
encontro e começou a fazer-nos os discursos do costume, desconexos e exaltados,
que tanto me irritavam ao princípio de a conhecer, quanto mais agora.
“Então, sempre se vão embora, voltam para Roma, abençoadas sejam, suas
felizardas... Vão-se embora e deixam-nos, a nós, pobres camponeses, aqui neste
deserto, onde não há mais nada senão fome e todas as casas estão em ruínas e
toda a gente anda rota e nua como os Ciganos... Suas felizardas, vão fazer vida de
senhoras em Roma, onde há abundancia... O que os Ingleses deram aqui só
durante três dias darão lá o ano inteiro... Mas fico contente, porque gosto de vocês e
dá-nos sempre prazer que as pessoas de quem gostamos sejam felizes e estejam
bem.”
Para me furtar a tais efusões. repliquei:
“Sim, somos umas felizardas... E tivemos muita sorte, não haja dúvida...
Sobretudo por termos encontrado uma família como a vossa.”
Mas ela não compreendeu a ironia e continuou:
“Podes dizê-lo bem alto, que somos uma boa família. Estiveram aqui como
em vossa casa, foram tratadas como irmã e filha, comeram, beberam, dormiram e
estiveram à vontade. Ah! Famílias como a nossa não há muitas!...”
“Felizmente!”, ia eu responder, mas detive-me, pois agora tinha pressa de
partir, mesmo com aquele Rosário que me era tão odioso, contanto que não
estivesse mais tempo naquela clareira fechada, entre aqueles laranjais tão espessos
que me pareciam uma prisão. Despedimo-nos de Vincenzo, que nos disse, com o
seu ar meio aparvalhado:
“Já nos deixam? Mas há tão pouco tempo que chegaram! Porque não ficam
ao menos para as festas de agosto?”
Concetta quis abraçar-nos e beijar-nos nas duas faces, com uns beijos
sonoros, que soavam tão falsos como as suas palavras. Por fim, lá seguimos pelo
carreiro, voltando para sempre as costas àquela maldita casa cor-de-rosa. Na
estrada principal estava o caminhão. Subimos, Rosetta ao lado de Rosário e eu ao
lado de Rosetta.
Rosário ligou o motor engrenou e pôs o carro em movimento, gritando
“Partida para Roma!” O caminhão rolou velozmente em direção à estrada nacional.
Era já manhã alta; um sol de junho, ardente, seco, cheio de força, alegre e jovem,
iluminava a estrada branca de pó e as sebes também esbranquiçadas pela poeira;
quando o caminhão abrandava, ouviam-se, em cima das poucas árvores que
ladeavam a estrada, as cigarras cantar, escondidas entre a folhagem. Ao ouvir esse
canto, ao ver aquele pó tão branco na estrada e nas sebes e as cotovias que
desciam para debicar os excrementos das mulas e depois levantavam de novo vôo
no céu luminoso, vieram-me de repente as lágrimas aos olhos. Sim, este era o
campo, o meu querido campo, onde foi criada, onde cresci e onde me refugiei no
período da carestia e da guerra, como quem se acolhe junto de uma mãe muito
velha que já viveu e viu muito e, não obstante, continua boa e sabe tudo e tudo
perdoa. Mas o campo tinha-me traído; tudo se conjugara para acabar mal; agora eu
estava mudada e o campo continuava a ser o mesmo de sempre: o seu sol aquecia
todas as coisas menos o meu coração gelado; as cigarras cantavam, belo canto que
dá prazer ouvir quando se é novo e se gosta de viver, mas que me parecia fastidioso
agora, que nada mais esperava da vida: e o cheiro do pó quente, que inebria os
sentidos ainda virgens e não satisfeitos, sufocava-me como se me tapassem o nariz
e a boca. O campo tinha-me traído e eu voltava para Roma sem esperanças, ou,
pior, desesperada. Chorava baixinho e bebia as lágrimas amargas que me desciam
dos olhos, procurando no entanto voltar a cabeça para o lado da estrada, para evitar
que Rosário e Rosetta me vissem chorar. Mas Rosetta percebeu e perguntou:
“Porque choras, mamã?”, numa voz tão doce que me fez quase pensar que
se tornara de novo, por um milagre do céu, a minha Rosetta de outros tempos.
Ia responder-lhe quando, voltando-me, vi a sua mão pousada na coxa de
Rosário, muito em cima, e lembrei-me de repente que eles iam calados há alguns
minutos, nem sequer se mexiam... Compreendi o significado daquele silêncio e
daquela imobilidade... Mesmo diante dos meus olhos!... Aquela doçura da voz de
Rosetta não era a doçura da inocência, mas a do prazer... E acariciavam-se sem
pudor e sem vergonha, enquanto ele guiava, logo de manhã cedo, como os animais
no cio, que fazem aquilo a todas as horas e em qualquer sítio. Disse então:
“Choro de vergonha, é por isso que choro...”
A estas palavras, Rosetta teve um movimento como que para retirar a mão;
mas o odioso Rosário agarrou-lhe e tornou a pô-la em cima da coxa. Ela resistiu um
momento, ou, pelo menos, assim me pareceu; depois ele deixou-lhe a mão e ela não
a retirou; compreendi uma vez mais que, para ela, o que fazia era mais forte do que
a minha vergonha e até do que a sua, embora, apesar de tudo, fosse capaz de
senti-la.
Entretanto rodávamos na Via Ápia; os grandes plátanos que desfilavam dos
dois lados da estrada juntavam a folhagem nova e espessa por cima das nossas
cabeças. Parecia que corríamos no interior de uma galeria verde; o sol, rompendo
aqui e além por entre as folhas, alongava de quando em quando os seus raios na
estrada e dir-se-ia então que até o asfalto, tão opaco, se tornava matéria luminosa e
palpitante, semelhante ao lombo de um animal, quente de sangue e de vida. Eu ia
com a cabeça virada para a estrada, para não ver o que Rosetta e Rosário faziam;
para me distrair dos meus tristes pensamentos, comecei a observar a paisagem. Vi
as inundações provocadas pelos Alemães quando fizeram saltar os diques, com as
suas águas azuis encrespadas pelo vento, de onde emergiam aqui e além uns tufos
de árvores e ruínas, onde outrora havia campos cultivados e quintas. Depois de San
Biagio, a estrada seguia à beira-mar. O mar estava calmo, varrido por uma brisa
ligeira e fresca que fazia correr de través inúmeras ondas azuis; e cada onda
mostrava um reflexo de luz a cintilar e todo o mar parecia sorrir ao sol. Agora,
Terracina. Fez-me ainda mais impressão do que Fondi, uma verdadeira desolação,
as casas todas esfoladas pelo fogo das metralhadoras e furadas por buracos
grandes e pequenos, e as janelas negras como os olhos dos cegos, ou, pior ainda,
azuis, porque só restava a fachada e montões de escombros poeirentos e fossos
cheios de água amarela em toda a parte e por elas se via o céu. Não havia ninguém
em Terracina, pelo menos assim me pareceu, nem na praça principal, onde a fonte
tinha a taça cheia de caliça até acima, nem nas ruas compridas e direitas,
marginadas por ruínas, que iam em direção ao mar.
Pensei que em Terracina devia ter acontecido o mesmo que em Fondi: o
primeiro dia fora uma feira, uma grande multidão, soldados, camponeses e
refugiados, distribuições de mantimentos e roupas, alegria e alarido, em resumo,
vida, depois o exército avançara para Roma e, repentinamente, a vida cessara,
ficando apenas um deserto de ruínas e silêncio.
Passada Terracina, continuamos a correr loucamente pela estrada que vai em
direção a Cisterna, tendo de um lado o canal denso e verde do saneamento e do
outro uma vasta planície, aqui e além alagada, estendendo-se até o sopé das
montanhas azuis que limitavam o horizonte. De vez em quando, à beira da estrada
via-se, nos fossos, a carcaça de um carro militar, de rodas para cima, já enferrujado
e irreconhecível, como se a guerra tivesse passado ali há muitos anos; de tempos a
tempos, também, num campo de trigo, avistava-se, imóvel, apontando para o céu, o
canhão alongado de um carro de assalto e, quando nos aproximávamos, víamos o
carro inteiro afundado entre as espigas altas, imóvel e ressequido como um animal
ferido de morte e depois abandonado.
Rosário guiava agora a grande velocidade, só com uma das mãos, enquanto
com a outra apertava a de Rosetta no regaço dela. Eu não podia suportar aquele
espetáculo, um indício mais da mudança que se operara na minha filha, e de
repente, nem sei porquê, lembrei-me que ela sabia cantar bem e tinha uma bonita
voz, doce e musical, e, quando estava em casa, ocupada na lida doméstica,
costumava cantar para fazer companhia a si própria, e eu, no quarto ao lado, muitas
vezes me encantava a ouvi-la, porque naquela voz que se elevava, tranqüila e
alegre, e parecia nunca se cansar nem perder o fio da canção, estava todo o seu
caráter, como era então e agora deixara já de ser. Lembrei-me do seu canto nessa
estrada entre Terracina e Cisterna e experimentei como que o impulso de
ressuscitar, nem que fosse por um momento só, a ilusão da Rosetta de outro tempo.
Disse:
“Rosetta, porque não cantas qualquer coisa? Sabias cantar tão bem... Vá,
canta uma canção bonita... de outro modo, com este sol e esta estrada tão reta,
acabamos por adormecer...”
Ela respondeu:
“O que queres que eu cante?”
Disse, ao acaso, o nome de uma canção que estivera em voga alguns anos
antes e ela começou a cantar, com toda a força, imóvel, sempre com a mão de
Rosário no seu regaço. Mas vi que já não era a mesma voz; parecia menos decidida
e menos melodiosa; também errava a música; ela apercebeu-se disso, pois
repentinamente interrompeu-se e disse:
“Tenho medo de já não saber cantar, mamã, sinto-me sem vontade.”
Deu-me ganas de lhe gritar: “Sentes-te sem vontade e já não sabes cantar
porque tens essa mão no regaço e já não és tu, nem tem o sentimento de outro
tempo, que te enchia o peito e te fazia cantar como um passarinho!”, mas não tive
coragem de falar. Rosário disse então:
“Bem, se querem, canto eu.”
E começou, em voz rude, a entoar uma canção vulgar e brejeira. Eu agora
sofria ainda mais do que antes: pelo fato de Rosetta não poder cantar - até nisso
estava mudada! - e também por ouvir cantar Rosário. Entretanto, o carro seguia a
uma velocidade louca e bem depressa chegamos a Cisterna. Também aqui, como
em Terracina, era completa a desolação. Lembro-me, sobretudo, da fonte da praça,
um semicírculo de casas esburacadas ou destruídas: a taça estava cheia de
destroços, no meio da taça via-se um pedestal com uma estátua; esta estátua,
porém, não tinha cabeça, mas sim um gancho de ferro negro no seu lugar, e
conservava apenas um braço e a este braço faltava a mão. Parecia uma pessoa
viva, precisamente porque lhe faltavam a mão e a cabeça. Também aqui não
passava nem um cão; as pessoas ou estavam ainda nas montanhas ou escondidas
entre os escombros. Depois de Cisterna, a estrada atravessava uns bosques pouco
densos de sobreiros e não se via uma casa nem um cristão, mas somente, a perder
de vista, chão verde e troncos torcidos e vermelhos, que até pareciam esfolados.
Agora o dia não se mostrava tão bonito: dos lados do mar surgira um negrume,
primeiro um pequeno leque de nuvenzinhas cinzentas, depois esse leque foi-se
abrindo e tornara-se imenso, com o cabo voltado para o mar e as varetas, feitas de
nuvens cinzentas e juntas, espalhadas por todo o céu.
O sol encobrira-se e o campo, com aqueles sobreiros torcidos e vermelhos,
que dir-se-ia sofrerem por estarem assim torcidos e vermelhos, ficara de uma só cor,
desmaiada e opaca, sem luz. Havia uma solidão completa; e, embora o ruído do
motor não parasse um único instante, adivinhava-se que reinava um grande silêncio,
sem cantos de cigarras nem de pássaros.
Rosetta dormitava; Rosário fumava, mesmo a guiar; e eu ora seguia com os
olhos os marcos brancos dos quilômetros, ora afundava o olhar por entre os
sobreiros, sem ver nada nem ninguém. Depois a estrada fez uma curva e eu, que
continuava a olhar para os sobreiros, fui de súbito projetada para a frente, batendo
com a cabeça no vidro do pára-brisas. Quando retomei a minha posição, vi que a
estrada estava cortada por um poste telegráfico derrubado: ao mesmo tempo, três
homens saíam do sobreiral e avançavam para nós, agitando as mãos para
mandarem parar o caminhão. Rosetta disse, acordando:
“O que é?”
Mas ninguém lhe respondeu: eu não compreendia nada do que se passava e
Rosário já tinha descido e dirigia-se com decisão ao encontro dos três homens.
Estes, lembro-me muitíssimo bem, e ainda hoje era capaz de os reconhecer entre
mil, estavam vestidos de farrapos, como toda a gente naqueles dias; um era
pequeno, loiro, de ombros largos e o fato de veludo castanho; o segundo era alto, de
meia idade, escanzelado, a cara tensa e magra, os olhos encovados e os cabelos
grisalhos em desordem; o terceiro era um rapaz do tipo comum, moreno, a cara
larga, os cabelos negros, não muito diferente de Rosário. Este, ao descer do
caminhão, teve um gesto que não me passou despercebido: tirou rapidamente do
bolso um embrulho e escondeu-o no tablier. Eu compreendi que aquele embrulho
tinha dinheiro e compreendi também, repentinamente, que aqueles três homens
eram ladrões. Depois tudo aconteceu num relâmpago, enquanto Rosetta e eu
olhávamos, imóveis e paralisadas de assombro, através do pára-brisas, sujo de
insetos esmagados, de pó e de sulcos de chuva que parecia acrescentar, à luz
mortiça do céu enevoado, não sei que melancolia e incerteza. Através desse vidro,
vimos Rosário ir ao encontro dos três, com ar decidido, pois era corajoso, e os
outros afrontarem-no ameaçadores. Via Rosário de costas, mas via muito bem a
cara do loiro com quem ele falava: tinha a boca vermelha, um pouco torcida, com
qualquer coisa como uma erupção ou espinhas nos cantos.
Em resumo, o loiro falou e Rosário respondeu; o loiro falou outra vez e, à
segunda resposta de Rosário, de repente levantou a mão e agarrou-lhe a gola do
casaco mesmo por baixo do pescoço. Rosário fez um movimento com os ombros,
primeiro para a direita, depois para a esquerda, libertando-se, e ao mesmo tempo
vi-o, com clareza, levar a mão ao bolso de trás das calças. Em seguida ouvi um tiro,
depois outros dois, e julguei que fosse Rosário a disparar. Entretanto ele voltou-se,
como se se dirigisse para o caminhão, de cabeça baixa, estranhamente incerto, e
depois, de súbito, caiu de joelhos, mantendo-se nessa posição, com as mãos
estendidas para o chão; esteve um momento assim de cabeça baixa, como que a
refletir, e por fim atirou-se de lado. Os três, sem se importarem mais com ele,
caminharam para o caminhão. O loirinho, agora com uma pistola na mão,
pendurou-se na portinhola e meteu a cabeça na cabina, dizendo-nos, arquejante:
“Vocês as duas desçam imediatamente, desçam!”
Ao mesmo tempo agitava a pistola, não tanto para nos ameaçar, como talvez
para nos dar a entender que devíamos descer. Entretanto, os outros dois tiravam o
poste da estrada. Vi que tínhamos de obedecer e disse a Rosetta:
“Bem, desçamos.”
E ia abrir a porta. Mas nesse instante o loirinho, já quase todo enfiado na
cabina, inclinou-se para fora, a olhar a estrada, e vi que os outros dois lhe faziam
sinais, como que a adverti-lo de qualquer coisa de novo que estava a acontecer.
Proferiu uma blasfêmia, saltou do caminhão, correu para os dois companheiros e
vi-os fugir, todos três, desesperadamente, por entre os sobreiros, onde bem
depressa desapareceram, a correr aos zigue-zagues. Durante momentos não houve
mais nada nem ninguém, a não ser o poste telegráfico afastado para um lado e o
corpo de Rosário imóvel no meio da estrada.
Disse então a Rosetta:
“E, agora, o que fazemos?”
Mas quase ao mesmo tempo surgiu ao pé de nós um pequeno automóvel
descoberto com dois oficiais ingleses e um soldado a conduzir. O automóvel
abrandou a marcha, pois o corpo de Rosário barrava o caminho, mas não tanto que,
andando ao rés da beira, não se pudesse passar; os dois oficiais voltaram-se,
olharam para o corpo e depois para nós as duas; vi um deles fazer um gesto ao
condutor, como que a dizer: “Quem morre está morto, vamos para diante”, e o
automóvel partiu logo, passou quase rente ao corpo de Rosário, retomou a corrida e
bem depressa desapareceu ao longe na estrada, numa curva. Então, não sei como,
lembrei-me do dinheiro que Rosário escondera no tablier; estendi a mão, peguei no
embrulho e escondi-o no seio. Rosetta viu-me fazer o gesto e deitou-me um olhar
que me pareceu quase de desaprovação. Subitamente sentiu-se uma chiadeira forte
de freios e um caminhão parou ao mesmo tempo junto do nosso.
Desta vez era um italiano, um homem pequeno, de cabeça grande e calva, a
cara pálida e toda suada, os olhos redondos à flor da pele e suíças compridas
descendo até ao meio do rosto. Tinha uma expressão espantada e descontente,
mas não má, como a de quem faz por dever um ato de coragem e ao mesmo tempo
amaldiçoa a sorte que o torna corajoso contra vontade. Perguntou à pressa:
“Mas que sucedeu?”, sem sair do caminhão, a mão na alavanca das
mudanças.
Disse-lhe:
“Mandaram-nos parar e mataram aquele rapaz e depois fugiram. Queriam
roubar. E agora nós, que somos duas refugiadas...”
Ele interrompeu-me:
“Para onde fugiram?”
Indiquei o sobreiral; ele voltou para lá os olhos espantados e disse depois:
“Por amor de Deus, depressa, subam para o meu caminhão, se querem ir
para Roma, mas depressa, andem depressa, por amor de Deus...”
Compreendi que, se hesitasse um momento, ele partiria, e apressei-me a
descer, puxando Rosetta pela mão. Ele, então, gritou, com voz aflita:
“Afastem esse corpo, afastem-no, senão não posso passar.”
Olhei e vi que, de fato, o caminhão dele, muito mais largo do que o pequeno
automóvel dos oficiais ingleses, não tinha espaço suficiente para passar entre a
beira e o corpo de Rosário.
“Andem depressa, pelo amor de Deus...”, recomendou outra vez, com aquela
voz lamentosa; eu então recuperei ânimo e disse a Rosetta:
“Ajuda-me.”
Caminhei para o corpo de Rosário, estendido de lado, com um braço
levantado por cima da cabeça, como que para se agarrar a qualquer coisa que não
tivera tempo de apanhar. Inclinei-me e peguei-lhe num pé, Rosetta inclinou-se e
pegou-lhe no outro, e, assim, a custo, porque ainda pesava bastante, arrastamo-lo
para um lado, para a beira da estrada, as costas e a cabeça no chão e os braços
estendidos ao comprido, sem vida, de rastos no asfalto. Rosetta foi a primeira a
deixar cair o pé e eu logo a seguir fiz como ela; mas depois inclinei-me à pressa
para o morto, num gesto instintivo, quase com receio de descobrir que ainda
estivesse vivo: na realidade, tinha o embrulho do seu dinheiro no seio e convinha-me
conservá-lo, porque nas nossas condições me fazia muito jeito e queria ter bem a
certeza de que ele estava na realidade morto. E estava mesmo morto, compreendi-o
pelos olhos, que tinham ficado abertos e olhavam não sei para onde, imóveis.
Confesso, naquele instante comportei-me como uma pessoa interesseira e vil, tal
qual como se teria comportado Concetta, em conformidade com a sua convicção de
que a “guerra é a guerra”. Guardara o dinheiro do morto; e, por causa do dinheiro,
receava que o morto não estivesse morto, mas sim vivo; como verifiquei que estava
na verdade morto, quis compensar aquele meu abjeto receio com um ato de fé que
não custava nada: rapidamente, enquanto o homem do caminhão me gritava,
impaciente:
“Está descansada, já está morto, não há nada a fazer...”, inclinei-me e fiz o
sinal da Cruz com o indicador e o médio no peito de Rosário, no sítio onde o casaco
preto estava manchado com uma larga nódoa escura.
Senti, ao fazer esse gesto, os meus dedos aflorarem o tecido do casaco, que
estava úmido; e depois, enquanto corria juntamente com Rosetta para o caminhão,
olhei furtivamente os dedos com que fizera o sinal da Cruz e vi-os vermelhos de
sangue vivo, acabado de jorrar. Experimentei repentinamente, à vista daquele
sangue, um remorso obscuro, quase horror de mim mesma, por ter feito aquele
gesto hipócrita no corpo do homem que, momentos antes, tinha roubado, e esperei
que Rosetta não tivesse percebido. Mas, quando limpei os dedos à saia, vi-a olhar
para mim e compreendi que ela tinha visto tudo. Entretanto, subimos ambas para
junto do motorista. O caminhão partiu.
Aquele homem guiava curvado para o volante, que segurava com ambas as
mãos, como quem se agarra a um destroço, os olhos esbugalhados, o rosto pálido,
ofegante, cheio de medo; eu ia preocupada com o maço das notas de banco que
levava no seio e Rosetta olhava em frente, a cara imóvel e apática, em que seria
impossível encontrar o reflexo de qualquer sentimento. Veio-me à idéia que nenhum
dos três, cada qual pelos seus motivos, tínhamos demonstrado piedade por Rosário,
morto como um cão e abandonado na estrada; o homem, amedrontado, nem sequer
descera para ver se estava morto ou vivo; eu preocupara-me sobretudo em verificar
se na verdade estava morto por causa do dinheiro que lhe tirara, e Rosetta
limitara-se a arrastá-lo por um pé para a valeta, como se fosse o cadáver
malcheiroso e incômodo de um animal qualquer...
Não havia piedade, nem emoção, nem simpatia humana: um homem morria e
os outros não faziam caso, cada um pensando só em si próprio. Era a guerra, como
dizia Concetta, e eu temia que esta guerra se prolongasse nas nossas almas por
muito tempo, depois de a verdadeira guerra ter acabado. Mas o caso de Rosetta era
ainda o pior dos três: meia hora antes acariciava Rosário; acordara nele o desejo e
satisfizera-lhe; dera e recebera prazer; e agora ia ali sentada de olhos enxutos,
imóvel, indiferente, apática, sem sombra de pena no rosto. Pensava nisto e dizia a
mim própria que tudo estava ao contrário do que devia estar, que a vida se tornara
absurda, sem pés nem cabeça e as coisas importantes já não eram importantes e as
que não tinham importância é que se tornavam importantes. Depois, de repente,
aconteceu um fato estranho que não tinha previsto: Rosetta, que até então, como
disse, não manifestara nenhum sentimento, começou a cantar. Primeiro com uma
voz hesitante, como que estrangulada, depois aclarando-a e alterando-a, cada vez
mais segura, começou a cantar a mesma canção que eu lhe pedira para cantar
pouco antes e ela, sentindo-se incapaz, interrompera à primeira estrofe. Era uma
cançoneta em voga anos atrás e Rosetta costumava cantá-la, como já disse ao
cuidar da lida doméstica; não era grande coisa, antes um pouco sentimental e tola, e
pareceu-me primeiro estranho que ela a cantasse naquele momento, depois da
morte de Rosário: mais uma prova da sua insensibilidade e indiferença. Mas a seguir
lembrei-me que, quando lhe pedi para cantar, ela me respondera que não era capaz,
que se sentia sem vontade, e recordei-me que pensara então que ela tinha mudado
por completo e não podia cantar porque já não era a mesma de outros tempos; por
isso disse de mim para mim que talvez, recomeçando a cantar, ela quisesse dar-me
a entender que não era verdade, que não estava mudada, que ainda era a mesma
Rosetta de outros tempos, boa, doce e inocente como um anjo. De fato, enquanto
pensava assim, olhei para ela e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas, e estas
lágrimas saltavam-lhe dos olhos arregalados e corriam-lhe pelas faces; de repente, a
confiança voltou-me; Rosetta não tinha mudado tanto como eu temia; chorava por
Rosário, primeiro que tudo, que fora morto sem piedade, como um cão, e depois por
ela e por mim e por todos quantos a guerra atingira, massacrara e arruinara. E isto
queria dizer que ela, no fundo, não estava mudada, e eu também não, embora
tivesse roubado o dinheiro de Rosário, nem os outros que a guerra, em todo o tempo
que durara, tinha tornado semelhantes a nós. Subitamente senti-me confortada, e
deste conforto brotou, espontâneo, o pensamento: “Logo que chegue a Roma,
mando este dinheiro à mãe de Rosário.”
Sem dizer nada, passei um braço por cima do braço de Rosetta e apertei a
sua mão na minha...
Ela cantou ainda várias vezes aquela canção enquanto o caminhão corria
para a curva de Velletri; e depois, quando as lágrimas deixaram de lhe correr dos
olhos, parou de cantar. Aquele homem do caminhão não era mau, estava somente
apavorado. Talvez tivesse compreendido qualquer coisa, porque de repente
perguntou:
“O que era a vocês aquele rapaz que mataram?”
Apressei-me a responder:
“Não nos era nada, apenas um conhecido, um do mercado negro que se
ofereceu para nos trazer a Roma...”
Mas ele, tomado outra vez de medo, acrescentou à pressa:
“Não digas nada, não quero saber de nada, não sei nada e não vi nada; em
Roma deixo-as e será como se nunca nos tivéssemos visto nem conhecido...”
Eu respondi:
“Tu é que perguntaste...”
E ele:
“Sim, tens razão, mas dou o dito por não dito.”
Finalmente, surgiu ao fundo da planície extensa e verde uma longa risca de
cor incerta, entre branco e amarelo: os subúrbios de Roma. E por trás,
sobrepujando-a, simples sombra, cinzenta no fundo cinzento do céu, muito distante,
mas nítida, a cúpula de São Pedro! Só Deus sabe quanto eu ansiara durante todo
esse ano tornar a ver, no horizonte, aquela querida cúpula, tão pequena e ap
mesmo tempo tão grande que podia ser confundida com um acidente do terreno,
uma colina ou uma montanha; tão sólida, embora não mais do que uma sombra; tão
tranqüilizadora e familiar, mil vezes vista e observada. Aquela cúpula, para mim, não
era só Roma, mas a minha vida de Roma, a serenidade dos dias que se vivem em
paz conosco e com os outros. Lá ao longe, no fundo do horizonte, aquela cúpula
dizia-me que podia agora voltar confiante a casa, que a antiga vida retomaria o seu
curso, apesar de todas as mudanças e tragédias. Mas também me dizia que essa
minha nova confiança a devia a Rosetta e ao seu canto e às suas lágrimas. E que,
sem essa dor de Rosetta, Roma não teria tornado a ver as duas mulheres inocentes
que um ano antes dali tinham partido e entretanto se tornaram, com a guerra e por
causa da guerra, uma ladra e outra prostituta.
A dor... Voltou-me ao pensamento Michele, que não estava ali conosco nesse
momento tão suspirado do regresso e nunca mais estaria ao pé de nós, e
lembrei-me daquela noite em que nos leu em voz alta, na cabana de Santa Eufêmia,
a passagem do Evangelho sobre Lázaro, zangando-se porque os camponeses não
tinham compreendido nada e gritando que estávamos todos mortos à espera da
ressurreição, como Lázaro. Então, essas palavras de Michele tinham-me deixado na
dúvida; agora, sim, compreendia que Michele tinha razão e que durante algum
tempo também Rosetta e eu estivéramos mortas, mortas para a piedade que se
deve aos outros e a nós próprios. Mas a dor viera salvar-nos no último momento; e,
assim, de certa maneira, a história de Lázaro aplicava-se também a nós: graças à
dor conseguíramos por fim sair da guerra, que nos encerrava no seu túmulo de
indiferença, crueldade e maus sentimentos, para retomarmos o curso da nossa vida,
que talvez seja uma pobre vida cheia de escuridão e de erros mas a única que
devemos viver, como sem dúvida no-lo diria Michele se estivesse ali conosco...
Fim do livro
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