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(Jornal Abertura - Maio de 2003)

Da Terminologia à Atualização
Eugênio Lara*

Quando Allan Kardec estruturou o Espiritismo, dando-lhe uma feição de ciência filosófica, foi
obrigado a criar uma série de palavras para que os novos conceitos fossem assimilados de forma
adequada, sem que houvesse confusão com as teorias do espiritualismo em geral. A própria palavra
Espiritismo foi criada por ele a fim de diferenciá-lo do Spiritualism, um movimento religioso
surgido nos Estados Unidos e disseminado em alguns países da Europa, de características religiosas,
onde a mediunidade, ou melhor, o mediunismo desempenhava importante papel.

Toda ciência que se preze possui a sua terminologia. Aliás, trata-se de um dos vários critérios
epistemológicos para que determinada forma de conhecimento possa ser considerada uma ciência.
Se por conta deste e outros fatores, o Espiritismo é ou não é ciência, não cabe aqui discutir. O
objetivo deste artigo é bem outro.

As ciências médicas possuem um corpo de termos, de palavras com acepção bem específica, a fim
de que os médicos não se confundam nos diagnósticos, nas análises anatômicas, enfim, no exercício
da medicina. Há um consenso terminológico, aprovado em congressos mundiais, com o objetivo de
ordenar o uso de palavras específicas nos mais diversos idiomas. Os médicos agem como uma
verdadeira corporação e não permitem que qualquer gaiato ou novidadeiro venha a utilizar termos
que não se enquadrem dentro dos critérios aprovados nos congressos médicos.

Isso demonstra não somente espírito de corpo, mas sobretudo seriedade, critério científico,
metodológico, senão vira bagunça. O que deveria ser uma ciência acaba virando um mercado persa,
a "casa de Mãe Joana", uma feira livre, onde qualquer um dá o seu palpite e tenta enfiar pela goela
do freguês idéias e conceitos nem sempre condizentes com o consenso universal, ao menos aquele
aprovado em congressos sérios e altamente qualificados.

O mesmo critério usado pela Medicina e outras ciências deveria ser utilizado no Espiritismo. Não
que o fundador não tenha previsto a realização de congressos e projetado uma forma de gestão
administrativa para a organização e divulgação do Espiritismo. Isso ele o fez no Projeto 1868,
publicado na Revista Espírita e em Obras Póstumas. No entanto, sempre foi ignorado.

Os primeiros congressos internacionais realizados no final do século retrasado e início do século


passado chegaram perto do que Allan Kardec imaginou. Todavia, em função da má orientação do
movimento espírita, logo após o desencarne da esposa de Kardec, Amélie Boudet, os espíritas
tiveram de disputar o poder com segmentos do espiritualismo estranhos ao Espiritismo, como os
adeptos da Teosofia, do Esoterismo, da Rosacruz. Não fosse a atuação destacada de Léon Denis, já
senil, em um desses congressos, o Espiritismo se dispersaria em meio às correntes espiritualistas
que disputavam com ele uma hegemonia absurda, já que cada uma dessas doutrinas nada em raia
própria e atua em segmentos diferenciados do conhecimento espiritualista.

Após a II Guerra Mundial o movimento espírita praticamente desapareceu da Europa e tornou-se


uma potência em países da América Latina, notadamente no Brasil. Por aqui o processo de
desenvolvimento do pensamento espírita desandou, por fatores históricos, antropológicos e
sociológicos, mas sobretudo, pela ignorância em relação aos fundamentos do Espiritismo. Só para
se ter uma idéia disso, somente a partir dos anos 80 é que a Revista Espírita se popularizou com o
lançamento de uma edição popular, sem ser encadernada. E mesmo assim, não é todo mundo que
tem recursos para adquirir doze volumes de uma só vez. Cabe lembrar que a Federação Espírita
Brasileira nunca lançou essa obra fundamental do fundador do Espiritismo por considerá-la
dispensável e sem importância, sonegando dos espíritas brasileiros essa informação básica para o
entendimento doutrinário.
E aí foram surgindo as novidades. Enumeraremos três ocorrências que foram incorporadas ao dia-a-
dia do movimento espírita sem que houvesse um questionamento mais aprofundado, sem que
houvesse um consenso resultante da realização de congressos, seminários, colóquios ou qualquer
outra forma de reunião que envolvesse os espíritas brasileiros e estrangeiros numa assembléia, em
um processo de discussão democrática. Nada disso ocorreu e o prejuízo para o progresso do
pensamento espírita foi enorme, incalculável, pernicioso

Ciência-Filosofia-Religião...

A Federação Espírita Brasileira veio com essa novidade, Emmanuel em O Consolador ajudou a
popularizá-la e intelectuais espíritas influentes como Carlos Imbassahy e J. Herculano Pires
adotaram a idéia, já corrente entre os espíritas. Durante muito tempo não se discutia isso. Alguns
pensadores espíritas como Afonso Angeli Torteroli, Eusínio Lavigne, o Movimento Universitário
Espírita nos anos 60, dentre outros, assumiram uma concepção mais kardecista, bem distante do
falso tríplice aspecto, que chegou inclusive a ser nome de uma chapa da situação, a fim de se opor
aos chamados não-religiosos, nas eleições da União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo (USE), em 1986.

A verdade límpida e cristalina é que Allan Kardec jamais afirmou que o Espiritismo é ciência,
filosofia e religião. Esse tal do tríplice aspecto é uma invencionice, um Cavalo de Tróia, que traz
embutida a idéia de culto e o vírus nocivo do religiosismo. O uso da palavra religião para definir o
Espiritismo foi veementemente rechaçada por Kardec em passagens cruciais de sua obra (em O que
é o Espiritismo e na Revista Espírita).

A partir dos anos 80, com o trabalho de esclarecimento sistemático do escritor Krishnamurti de
Carvalho Dias (1930-2001), a questão veio à tona. O movimento de espiritização, sob a liderança de
Jaci Regis, encampou a idéia, dando origem à chamada questão religiosa, que persiste até hoje. Foi
aí que muitos integrantes do movimento espírita perceberam que Kardec nunca havia chamado o
Espiritismo de religião. E o tal de tríplice aspecto foi o que se poderia chamar de uma camisa de
força intelectual.

"Doutrina filosófica e moral", apenas isso, foi a definição de Kardec no Discurso de Abertura, por
ocasião da comemoração do Dia de Finados (Revista Espírita - outubro 1868). É mais do que
suficiente, não causa dúvidas, não compromete e nem oferece perigo de qualquer tipo de
desentendimento doutrinário

O Passe

Muitos círculos de magnetismo, após o advento do Espiritismo, transformaram-se em sociedades


espíritas. Allan Kardec era um estudioso do magnetismo, adepto do vitalismo, desde a juventude.
Todavia, apesar disso, não há registros históricos de que alguma instituição espírita do século
retrasado tenha incorporado a prática do chamado passe. Não há, na obra de Kardec, nenhuma
menção a esse respeito.

A cultura do passe se incorporou de tal maneira ao Espiritismo que um centro espírita que não
aplica passe é visto com preconceito pelos dirigentes espíritas. Há quem diga que um centro que
não tem passe não merece ser chamado de espírita, ou de que se esteja praticando um Espiritismo
sem espíritos. Dois absurdos, fruto da ignorância e do preconceito.

Uma das causas dessa prática, que se tornou corriqueira no movimento espírita, está na homeopatia.
Os primeiros médicos homeopatas eram, em sua grande maioria, espíritas. O uso do magnetismo
como recurso terapêutico servia como um complemento no tratamento aos pacientes.

Outro aspecto a ser considerado é a influência da Umbanda, um movimento espiritualista fruto do


sincretismo entre o Kardecismo e o Candomblé. Os primeiros terreiros de Umbanda surgiram no
final da década de 20 e início dos anos 30 do século passado, no Rio de Janeiro, e foram fundados
por espíritas kardecistas. A Umbanda é filha bastarda do Espiritismo, que no Brasil produziu muitos
outros filhos, como a LBV, o Santo Daime, o Racionalismo Cristão etc.
O passe desempenha, no terreiro, uma importância fundamental, seja ele aplicado por espíritos de
caboclos (índios) ou de pretos-velhos, através do "cavalo" (o médium). É muito comum médiuns
atuarem, tanto no centro "de mesa branca" como em tendas umbandistas. Há uma mútua influência.
Até hoje é comum vermos nos centros kardecistas mal orientados médiuns que se utilizam da
técnica umbandista: gestualidade meio circense, chiados, toque no paciente, preces e rezas ditas
oralmente durante a aplicação do passe etc.. Da mesma forma, há terreiros de Umbanda que
estudam obras espíritas e incorporam, do Kardecismo, determinados termos e conceitos, como
médium, mediunidade, espírito obsessor. A expressão guia, por exemplo, equivalente a espírito
protetor (ou anjo de guarda) do kardecismo, é usada tanto no terreiro de Umbanda como no centro
espírita.

Outro fator é a influência do cristianismo. A imposição de mãos, atribuída a Jesus de Nazaré,


instituída no cristianismo, notadamente no movimento pentecostal e no católico-carismático, tem no
passe espírita uma de suas maiores referências. O Jorê, o Do-in, Reike e tantas outras denominações
vêm se somar à transmissão ou transfusão de energias nos centros espíritas, o chamado passe.

O Plano Espiritual

O fundador do Espiritismo denominou de mundo espírita ou dos espíritos a dimensão onde os seres
humanos desprovidos de seu envoltório físico vivem, se relacionam consigo, entre si e conosco,
através da mediunidade.

A expressão mundo espírita mostrou-se, com o tempo, inadequada, apesar de ser, em nível
terminológico, a mais clara e precisa. Quem a ouve imagina se tratar de um mundo formado por
espíritas, e não por espíritos. Daí que mundo dos espíritos deveria ser o termo mais adequado, o
substituto natural, opcional. No entanto, sem o menor critério, os espíritas passaram a se utilizar de
outras expressões, influenciados que foram pelos espíritos, notadamente os que passaram a se
comunicar pelos médiuns Chico Xavier, Waldo Vieira e Yvonne Pereira.

A mais usual e que se tornou padrão em quase todos os segmentos do movimento espírita é plano
espiritual. Muito utilizado pelos espíritos André Luiz e Emmanuel, esse termo ganhou status, veio
para ficar, sem o menor questionamento.

Aparenta ser prático, preciso, no entanto, se formos analisar com mais cautela veremos que ele, ao
invés de expressar a realidade, confunde, causa desentendimento do que seja a erraticidade
enquanto habitat dos espíritos.

Plano tem a ver com a tridimensionalidade, altura, largura, profundidade. Em Matemática, na


Geometria Descritiva, é uma expressão muito usual. Plano x, plano y, dentro do sistema de
coordenadas cartesianas, dos dois eixos horizontal e vertical (x e y, respectivamente), abscissas e
ordenadas. Aplica-se a um espaço de três dimensões, limitado, a uma determinada superfície.

O mundo dos Espíritos – segundo o relato dos desencarnados a Kardec e as informações trazidas
pelo espírito André Luiz através do médium Chico Xavier – não é um plano, pois não possui três
dimensões. A palavra plano é inadequada para definir esse hiper-espaço, que se estrutura a partir de
uma materialidade tênue, energética, flexível e sujeita às injunções mentais; um mundo
ideoplástico, quatridimensional. Taí, mundo, eis a palavra mais adequada ainda para classificar o
que os espíritas chamam erroneamente de plano espiritual.

A aplicação do adjetivo espiritual, aqui está um segundo problema, não tão pior quanto o primeiro,
o uso de plano, mas que se mostra inadequado, inconveniente. Essa palavra foi pouco usada por
Kardec, a não ser em definições bem específicas, como no sinônimo de princípio inteligente
(princípio espiritual) ou na classificação de fluidos, na interessante e profunda teorização contida
em A Gênese.

O fundador da Doutrina fez restrições ao uso indiscriminado da expressão espiritual, não somente
para qualificar os fluidos, mas também o mundo dos espíritos, senão teria cunhado a expressão
mundo espiritual de modo definitivo, e isso ele não fez, mesmo usando-a nesse trecho a seguir:
"Não é rigorosamente exata a qualificação de fluidos espirituais, pois que, em definitiva, eles são
sempre matéria mais ou menos quintessenciada. De realmente espiritual, só a alma ou princípio
inteligente. Dá-se-lhes essa denominação por comparação apenas e, sobretudo, pela afinidade que
eles guardam com os Espíritos. Pode dizer-se que são a matéria do mundo espiritual, razão por
que são chamados fluidos espirituais." (A Gênese - cap. XIV - Os Fluidos - FEB).

Nesse mesmo capítulo, Kardec admite que a expressão fenômeno espiritual é inadequada e que
seria preferível fenômeno psíquico: "A denominação de fenômeno psíquico exprime com mais
exatidão o pensamento, do que a de fenômeno espiritual, dado que esses fenômenos repousam
sobre as propriedades e os atributos da alma, ou, melhor, dos fluidos perispiríticos, inseparáveis
da alma. Esta qualificação os liga mais intimamente à ordem dos fatos naturais regidos por leis;
pode-se, pois, admiti-los como efeitos psíquicos, sem os admitir a título de milagres." (A Gênese -
idem).

Note-se que esse texto foi escrito antes da Psicanálise, bem anterior à Parapsicologia, ciências que
ainda não existiam. O que qualifica ainda mais a precisão dos termos e conceitos inovadores usados
pelo fundador do Espiritismo

Idéia nova, palavra nova!

Bem antes da Semiótica e do desenvolvimento da Teoria da Comunicação, Kardec já era semiótico


e comunicólogo. Para idéias novas, palavras novas, eis um princípio básico hoje entre os
estudiosos da Comunicação, seja no campo da Semiótica ou mesmo da Semiologia. Logo na
introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec foi bem claro: "Os vocábulos espiritual, espiritualista,
espiritualismo têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos,
fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia." (O Livro dos Espíritos - Introdução ao
Estudo da Doutrina Espírita - FEB, Grifo nosso)

Enfim, em diversas passagens da Kardequiana, os espíritos nos deram um puxão de orelha quanto
às palavras:

— "Tudo depende das acepções das palavras. Por que não tendes uma palavra para cada coisa?"
(q.139)

— "As palavras pouco nos importam. Compete-vos a vós formular a vossa linguagem de maneira a
vos entenderdes. As vossas controvérsias provêm, quase sempre, de não vos entenderdes acerca dos
termos que empregais, por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que não vos fere os
sentidos." (q. 28)

— "É uma questão de palavras, com que nada temos. Começai por vos entenderdes mutuamente."
(q. 138 - Sobre a questão da alma como principio da vida material).

— "Mas isto constitui uma questão de palavras. Chamai as coisas como quiserdes, contanto que
vos entendais." (q. 153 - Sobre a perfeição e a vida eterna).

— "Uma coisa pode ser verdadeira ou falsa, conforme o sentido que empresteis às palavras. As
maiores verdades estão sujeitas a parecer absurdos, uma vez que se atenda apenas à forma, ou que
se considere como realidade a alegoria. Compreendei bem isto e não o esqueçais nunca, pois que
se presta a uma aplicação geral." (q. 480 - Sobre a questão da expulsão dos demônios).

— "Pura questão de palavras". (q. 668 - Sobre as manifestações espíritas e a pluralidade dos
deuses).

— "Tomai cuidado! Muito vos tendes enganado a respeito dessas palavras, como acerca de outras".
(q. 764 sobre a Pena de Talião).
— "Guerras de palavras! Guerras de palavras! Ainda não basta o sangue que tendes feito correr!
Será ainda preciso que se reacendam as fogueiras? (q. 1009 - mensagem de Platão sobre a questão
das penas eternas).

Foi justamente por não existir uma palavra para cada coisa que Kardec rechaçou o uso da palavra
religião para conceituar a Doutrina Espírita. Não foi por outro motivo que evitou o uso
indiscriminado de espiritual e chamou a nova filosofia espiritualista que fundou de Espiritismo, e os
seus adeptos de espíritas ou espiritistas. Este último termo, muito usado nos países de língua
castelhana. E o passe, por ser prático e sucinto, encaixou bem na mente dos espíritas brasileiros,
como num passe de mágica, sem autorização, permissão, sem pedir licença.

Um processo de atualização do Espiritismo começa pela sua terminologia. Questões conceituais,


epistemológicas, axiológicas, cosmológicas etc. são mais complexas, exigem um preparo que nem
sempre o movimento espírita possui, mas tem de ser feito. Agora, quanto aos termos próprios, trata-
se de um estudo necessário, um levantamento a ser feito por instituições espíritas de mentalidade
mais aberta, que deverá envolver estudiosos do Espiritismo, profissionais da linguagem, da área de
Comunicação, Filosofia, Pedagogia, enfim, espíritas envolvidos seriamente com a inserção da
filosofia espírita na contemporaneidade.

* Eugênio Lara, natural de São Vicente-SP (BRASIL), é arquiteto e jornalista. Membro-fundador do Centro de Pesquisa e
Documentação Espírita (CPDoc) e do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS); expositor do Centro Espírita Allan Kardec
(Santos-SP); articulista do jornal de cultura espírita Abertura e um dos coordenadores do site PENSE - Pensamento Social Espírita
(www.viasantos.com/pense).

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