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Da Terminologia à Atualização
Eugênio Lara*
Quando Allan Kardec estruturou o Espiritismo, dando-lhe uma feição de ciência filosófica, foi
obrigado a criar uma série de palavras para que os novos conceitos fossem assimilados de forma
adequada, sem que houvesse confusão com as teorias do espiritualismo em geral. A própria palavra
Espiritismo foi criada por ele a fim de diferenciá-lo do Spiritualism, um movimento religioso
surgido nos Estados Unidos e disseminado em alguns países da Europa, de características religiosas,
onde a mediunidade, ou melhor, o mediunismo desempenhava importante papel.
Toda ciência que se preze possui a sua terminologia. Aliás, trata-se de um dos vários critérios
epistemológicos para que determinada forma de conhecimento possa ser considerada uma ciência.
Se por conta deste e outros fatores, o Espiritismo é ou não é ciência, não cabe aqui discutir. O
objetivo deste artigo é bem outro.
As ciências médicas possuem um corpo de termos, de palavras com acepção bem específica, a fim
de que os médicos não se confundam nos diagnósticos, nas análises anatômicas, enfim, no exercício
da medicina. Há um consenso terminológico, aprovado em congressos mundiais, com o objetivo de
ordenar o uso de palavras específicas nos mais diversos idiomas. Os médicos agem como uma
verdadeira corporação e não permitem que qualquer gaiato ou novidadeiro venha a utilizar termos
que não se enquadrem dentro dos critérios aprovados nos congressos médicos.
Isso demonstra não somente espírito de corpo, mas sobretudo seriedade, critério científico,
metodológico, senão vira bagunça. O que deveria ser uma ciência acaba virando um mercado persa,
a "casa de Mãe Joana", uma feira livre, onde qualquer um dá o seu palpite e tenta enfiar pela goela
do freguês idéias e conceitos nem sempre condizentes com o consenso universal, ao menos aquele
aprovado em congressos sérios e altamente qualificados.
O mesmo critério usado pela Medicina e outras ciências deveria ser utilizado no Espiritismo. Não
que o fundador não tenha previsto a realização de congressos e projetado uma forma de gestão
administrativa para a organização e divulgação do Espiritismo. Isso ele o fez no Projeto 1868,
publicado na Revista Espírita e em Obras Póstumas. No entanto, sempre foi ignorado.
Ciência-Filosofia-Religião...
A Federação Espírita Brasileira veio com essa novidade, Emmanuel em O Consolador ajudou a
popularizá-la e intelectuais espíritas influentes como Carlos Imbassahy e J. Herculano Pires
adotaram a idéia, já corrente entre os espíritas. Durante muito tempo não se discutia isso. Alguns
pensadores espíritas como Afonso Angeli Torteroli, Eusínio Lavigne, o Movimento Universitário
Espírita nos anos 60, dentre outros, assumiram uma concepção mais kardecista, bem distante do
falso tríplice aspecto, que chegou inclusive a ser nome de uma chapa da situação, a fim de se opor
aos chamados não-religiosos, nas eleições da União das Sociedades Espíritas do Estado de São
Paulo (USE), em 1986.
A verdade límpida e cristalina é que Allan Kardec jamais afirmou que o Espiritismo é ciência,
filosofia e religião. Esse tal do tríplice aspecto é uma invencionice, um Cavalo de Tróia, que traz
embutida a idéia de culto e o vírus nocivo do religiosismo. O uso da palavra religião para definir o
Espiritismo foi veementemente rechaçada por Kardec em passagens cruciais de sua obra (em O que
é o Espiritismo e na Revista Espírita).
A partir dos anos 80, com o trabalho de esclarecimento sistemático do escritor Krishnamurti de
Carvalho Dias (1930-2001), a questão veio à tona. O movimento de espiritização, sob a liderança de
Jaci Regis, encampou a idéia, dando origem à chamada questão religiosa, que persiste até hoje. Foi
aí que muitos integrantes do movimento espírita perceberam que Kardec nunca havia chamado o
Espiritismo de religião. E o tal de tríplice aspecto foi o que se poderia chamar de uma camisa de
força intelectual.
"Doutrina filosófica e moral", apenas isso, foi a definição de Kardec no Discurso de Abertura, por
ocasião da comemoração do Dia de Finados (Revista Espírita - outubro 1868). É mais do que
suficiente, não causa dúvidas, não compromete e nem oferece perigo de qualquer tipo de
desentendimento doutrinário
O Passe
A cultura do passe se incorporou de tal maneira ao Espiritismo que um centro espírita que não
aplica passe é visto com preconceito pelos dirigentes espíritas. Há quem diga que um centro que
não tem passe não merece ser chamado de espírita, ou de que se esteja praticando um Espiritismo
sem espíritos. Dois absurdos, fruto da ignorância e do preconceito.
Uma das causas dessa prática, que se tornou corriqueira no movimento espírita, está na homeopatia.
Os primeiros médicos homeopatas eram, em sua grande maioria, espíritas. O uso do magnetismo
como recurso terapêutico servia como um complemento no tratamento aos pacientes.
O Plano Espiritual
O fundador do Espiritismo denominou de mundo espírita ou dos espíritos a dimensão onde os seres
humanos desprovidos de seu envoltório físico vivem, se relacionam consigo, entre si e conosco,
através da mediunidade.
A expressão mundo espírita mostrou-se, com o tempo, inadequada, apesar de ser, em nível
terminológico, a mais clara e precisa. Quem a ouve imagina se tratar de um mundo formado por
espíritas, e não por espíritos. Daí que mundo dos espíritos deveria ser o termo mais adequado, o
substituto natural, opcional. No entanto, sem o menor critério, os espíritas passaram a se utilizar de
outras expressões, influenciados que foram pelos espíritos, notadamente os que passaram a se
comunicar pelos médiuns Chico Xavier, Waldo Vieira e Yvonne Pereira.
A mais usual e que se tornou padrão em quase todos os segmentos do movimento espírita é plano
espiritual. Muito utilizado pelos espíritos André Luiz e Emmanuel, esse termo ganhou status, veio
para ficar, sem o menor questionamento.
Aparenta ser prático, preciso, no entanto, se formos analisar com mais cautela veremos que ele, ao
invés de expressar a realidade, confunde, causa desentendimento do que seja a erraticidade
enquanto habitat dos espíritos.
O mundo dos Espíritos – segundo o relato dos desencarnados a Kardec e as informações trazidas
pelo espírito André Luiz através do médium Chico Xavier – não é um plano, pois não possui três
dimensões. A palavra plano é inadequada para definir esse hiper-espaço, que se estrutura a partir de
uma materialidade tênue, energética, flexível e sujeita às injunções mentais; um mundo
ideoplástico, quatridimensional. Taí, mundo, eis a palavra mais adequada ainda para classificar o
que os espíritas chamam erroneamente de plano espiritual.
A aplicação do adjetivo espiritual, aqui está um segundo problema, não tão pior quanto o primeiro,
o uso de plano, mas que se mostra inadequado, inconveniente. Essa palavra foi pouco usada por
Kardec, a não ser em definições bem específicas, como no sinônimo de princípio inteligente
(princípio espiritual) ou na classificação de fluidos, na interessante e profunda teorização contida
em A Gênese.
O fundador da Doutrina fez restrições ao uso indiscriminado da expressão espiritual, não somente
para qualificar os fluidos, mas também o mundo dos espíritos, senão teria cunhado a expressão
mundo espiritual de modo definitivo, e isso ele não fez, mesmo usando-a nesse trecho a seguir:
"Não é rigorosamente exata a qualificação de fluidos espirituais, pois que, em definitiva, eles são
sempre matéria mais ou menos quintessenciada. De realmente espiritual, só a alma ou princípio
inteligente. Dá-se-lhes essa denominação por comparação apenas e, sobretudo, pela afinidade que
eles guardam com os Espíritos. Pode dizer-se que são a matéria do mundo espiritual, razão por
que são chamados fluidos espirituais." (A Gênese - cap. XIV - Os Fluidos - FEB).
Nesse mesmo capítulo, Kardec admite que a expressão fenômeno espiritual é inadequada e que
seria preferível fenômeno psíquico: "A denominação de fenômeno psíquico exprime com mais
exatidão o pensamento, do que a de fenômeno espiritual, dado que esses fenômenos repousam
sobre as propriedades e os atributos da alma, ou, melhor, dos fluidos perispiríticos, inseparáveis
da alma. Esta qualificação os liga mais intimamente à ordem dos fatos naturais regidos por leis;
pode-se, pois, admiti-los como efeitos psíquicos, sem os admitir a título de milagres." (A Gênese -
idem).
Note-se que esse texto foi escrito antes da Psicanálise, bem anterior à Parapsicologia, ciências que
ainda não existiam. O que qualifica ainda mais a precisão dos termos e conceitos inovadores usados
pelo fundador do Espiritismo
Enfim, em diversas passagens da Kardequiana, os espíritos nos deram um puxão de orelha quanto
às palavras:
— "Tudo depende das acepções das palavras. Por que não tendes uma palavra para cada coisa?"
(q.139)
— "As palavras pouco nos importam. Compete-vos a vós formular a vossa linguagem de maneira a
vos entenderdes. As vossas controvérsias provêm, quase sempre, de não vos entenderdes acerca dos
termos que empregais, por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que não vos fere os
sentidos." (q. 28)
— "É uma questão de palavras, com que nada temos. Começai por vos entenderdes mutuamente."
(q. 138 - Sobre a questão da alma como principio da vida material).
— "Mas isto constitui uma questão de palavras. Chamai as coisas como quiserdes, contanto que
vos entendais." (q. 153 - Sobre a perfeição e a vida eterna).
— "Uma coisa pode ser verdadeira ou falsa, conforme o sentido que empresteis às palavras. As
maiores verdades estão sujeitas a parecer absurdos, uma vez que se atenda apenas à forma, ou que
se considere como realidade a alegoria. Compreendei bem isto e não o esqueçais nunca, pois que
se presta a uma aplicação geral." (q. 480 - Sobre a questão da expulsão dos demônios).
— "Pura questão de palavras". (q. 668 - Sobre as manifestações espíritas e a pluralidade dos
deuses).
— "Tomai cuidado! Muito vos tendes enganado a respeito dessas palavras, como acerca de outras".
(q. 764 sobre a Pena de Talião).
— "Guerras de palavras! Guerras de palavras! Ainda não basta o sangue que tendes feito correr!
Será ainda preciso que se reacendam as fogueiras? (q. 1009 - mensagem de Platão sobre a questão
das penas eternas).
Foi justamente por não existir uma palavra para cada coisa que Kardec rechaçou o uso da palavra
religião para conceituar a Doutrina Espírita. Não foi por outro motivo que evitou o uso
indiscriminado de espiritual e chamou a nova filosofia espiritualista que fundou de Espiritismo, e os
seus adeptos de espíritas ou espiritistas. Este último termo, muito usado nos países de língua
castelhana. E o passe, por ser prático e sucinto, encaixou bem na mente dos espíritas brasileiros,
como num passe de mágica, sem autorização, permissão, sem pedir licença.
* Eugênio Lara, natural de São Vicente-SP (BRASIL), é arquiteto e jornalista. Membro-fundador do Centro de Pesquisa e
Documentação Espírita (CPDoc) e do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS); expositor do Centro Espírita Allan Kardec
(Santos-SP); articulista do jornal de cultura espírita Abertura e um dos coordenadores do site PENSE - Pensamento Social Espírita
(www.viasantos.com/pense).