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55 – A parte amarga 1 / 19

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A BRECHA

JACQUES FUTRELLE
(1875-1912 – Estados Unidos)

- Os grandes criminosos de verdade jamais são pegos,


pela simples razão de que os grandes crimes, por eles
cometidos, jamais são descobertos - observou com autoridade
o Prof. Augustus S.F.X. Van Dusen. - Há uma faísca de gênio
na perpetuação de um crime, Sr. Grayson, assim como deve
haver uma faísca de gênio no raciocínio que vier a descobrí-lo,
a menos que se trate do trabalho superficial de um enganador.
No último caso, tem havido crimes que até a própria polícia
desvendou. Mas o criminoso experimentado, o homem de
gênio, o profissional, por assim dizer, tem como perfeito só o
crime que não aparece nem pode aparecer como crime, em
absoluto; é portanto um crime que, em circunstância alguma,
o ligue a ele ou a qualquer pessoa.
O financista J. Morgan Grayson fixou os olhos no mirrado
homenzinho de ciência - o Máquina Pensante - através da
fumaça do charuto.
- É um fato psicológico estranho que o criminoso ocasional
cante vantagem do seu crime antecipadamente ou uns dez
minutos depois de cometê-lo - continuou o Máquina Pensante.
- Por exemplo, o homem que mata por vingança no fundo quer
que o mundo todo saiba que o trabalho foi seu; mas dez
minutos depois do crime, manifesta-se nele o temor, e aí,
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paradoxalmente, ele procura esconder o crime cometido e


proteger-se a qualquer custo. Com o temor, vem o pânico, com
o pânico, a irresponsabilidade, e é aí que ele vem a cometer
um erro: acaba abrindo à força um caminho que uma mente
bem treinada consegue seguir, partindo do motivo à prisão.
"Estes são os que terminam por ser descobertos. Mas
existem homens de gênio, Sr. Grayson, profissionalmente
dedicados ao crime. Nestes jamais se ouve falar, porque eles
nunca são apanhados, e jamais suspeitamos deles porque
nunca cometem um erro. Imagine os grandes cérebros da
história voltados para o crime. Bem, hoje em dia existem
inteligências tão poderosas quanto estas. E acontecem
homicídios, pilhagens, ladroagens bem debaixo dos nossos
narizes sem que a gente nem mesmo os suspeite. Se eu, por
exemplo, me tornasse um criminoso ativo ... "
Máquina Pensante fez uma pausa.
Grayson, com uma expressão meio estranha, continuava
arrancando baforadas do charuto.
- ... poderia matá-lo agora mesmo, aqui neste escritório -
prosseguiu ele, com toda a calma -, e ninguém jamais o
saberia, jamais suspeitaria de nada. E por quê? Porque eu não
cometeria erro algum.
Do jeito que ele falou, não soou como uma fanfarronada.
Era a simples enunciação de um fato. Grayson parecia meio
assustado. Se antes manifestara apenas interesse mesclado de
impaciência, agora mostrava-se fascinado com o que ouvia.
- Me mataria como, por exemplo? - inquiriu.
- Com um veneno, entre as dúzias que conheço, com
germes poderosíssimos, ou mesmo com uma faca ou revólver
- replicou placidamente o cientista. - Sei usar um veneno
muito bem; sei como inocular germes; sei como dar uma
perfeita aparência de suicídio, seja com uma faca ou com um
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revólver. E jamais cometo erros, Sr. Grayson. Na ciência, é


indispensável que sejamos exatos, nada de aproximações; só
tem valor o que é absolutamente exato. É preciso saber. Não é
como a carpintaria. Um carpinteiro pode cometer um engano
qualquer na juntura de uma peça sem enfraquecer a sua
mesa; mas se o cientista comete um erro, toda a estrutura vai
ao chão. É preciso saber. Conhecimento é progresso. E o
conhecimento se adquire pela observação e pela lógica, a
lógica inevitável. A lógica nos diz que dois e dois são quatro,
não de vez em quando, mas sempre.
Grayson bateu a cinza do charuto com ar ausente, e
pequenas rugas apareceram-lhe em volta dos olhos enquanto
fixava o inescrutável rosto do cientista. A cabeçona coberta de
um amarelo de palha se achava recostada contra a cadeira, os
olhos estrábicos de um azul aguado, voltados para cima, e os
dedos finos e muitos brancos apoiados ponta contra ponta. O
financista respirou profundamente.
- Fui informado de que o senhor é um homem
extraordinário - disse, por fim, lentamente. - Acredito. Quinton
Frazer, o banqueiro que me forneceu a carta de apresentação
para o senhor, me contou que lhe deve a solução de um
estranho mistério no qual ...
- Sim, sim - interrompeu o cientista, impaciente -, o roubo
do Banco Ralston. Eu me lembro.
- Por isso, vim solicitar a sua ajuda para algo ainda mais
inexplicável - prosseguiu Grayson, hesitante. - Bem sei que
quaisquer que fossem os honorários que lhe oferecesse, isso
não teria influência sobre o senhor; mas farei o pagamento à
beira do cofre e ... - Vamos ao caso - voltou a interrompê-lo o
Máquina Pensante.
- Não se trata de um crime, isto é, um crime punível por
lei - acrescentou Grayson
apressadamente -, mas custou-me milhões e ...
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Por um momento, Máquina Pensante baixou o olhar


estrábico para o do visitante, logo ergueu-o outra vez.
- Milhões! - exclamou. - Quantos?
- Seis, oito, talvez dez - respondeu Grayson. - Resumindo,
meu negócio está fazendo água. Meus planos são conhecidos
por outros, assim que consigo elaborá-los. E são planos
grandes, tenho milhões em jogo; e o segredo para isso é
absolutamente essencial. Durante anos consegui preservar o
sigilo, mas por meia dúzia de vezes, nestas últimas semanas,
meus planos chegaram ao conhecimento de terceiros e eu
venho perdendo ... A menos que conheça o mundo financeiro,
não imagina a tremenda desvantagem de alguém adivinhar as
nossas intenções; é a derrota a cada passo.
- Não, não conheço o mundo das finanças, Sr. Grayson -
retrucou Máquina Pensante. - Me dê um exemplo.
- Veja este último caso - disse o financista, sério. - Sem
maiores tecnicidades, eu havia planejado vender uma grande
quantidade das ações da Estrada de Ferro P.Q.&X., através dos
corretores, e forçando o grosso do estoque a baixar de preço
até um ponto em que outros corretores, agindo por mim,
pudessem comprar muito abaixo do preço real. Desta forma,
tinha a intenção de conseguir o controle completo das ações.
Mas meus planos foram conhecidos e, assim que comecei a
largar ações no mercado, tudo foi adquirido pelos
concorrentes, e como resultado disso, em vez do controle da
via férrea, acabei perdendo o grosso das ações que possuía. E
a mesma coisa se tem dado, com variações, meia dúzia de
vezes.
- Deduzo que esta tática seja essencialmente honesta -
voltou Máquina Pensante, com um tom suave.
- Claro, são negócios.
- Não vou dizer que entendo disso tudo - continuou o
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cientista. - Mas, afinal, não vem ao caso. O senhor quer saber


onde está o erro, a brecha nestas operações, não é mesmo?
- Exatamente.
- Muito bem, quem é que goza de sua confiança?
- Ninguém, a não ser a minha estenógrafa.
- Quem é ela?
- Uma moça que está comigo há seis anos; mais de cinco
anos antes de haver o que o senhor chamou de brecha. Confio
inteiramente nela. - Nenhum homem está a par dos seus
negócios?
- Não - retrucou o financista com uma carranca. - Aprendi,
e não é de hoje, que ninguém melhor do que eu sabe guardar
os meus segredos: as tentações são inúmeras. Além disso, não
toco no assunto com quem quer que seja. Nunca ... com
ninguém.
- Com exceção da sua estenógrafa - corrigiu o cientista.
- Fico dias, semanas, até meses desenvolvendo e
aperfeiçoando um plano e trago tudo na cabeça. Nada no papel
- explicou Grayson. - Quando afirmo que ela goza da minha
confiança, quero dizer que ela só fica sabendo dos meus
planos meia hora antes de a máquina entrar em ação. Por
exemplo, planejei esse negócio da estrada de ferro. Meus
corretores nada sabiam a esse respeito; a Sra. Winthrop
jamais ouvira qualquer referência a este respeito, a não ser
quinze minutos antes de a Bolsa de Valores abrir as portas
para o expediente do dia. Aí então, como sempre faço, lhe ditei
umas breves instruções para os meus corretores. E isso é tudo
o que ela sabe do negócio.
- Chegou a delinear o plano nestas cartas?
- Não. Dizia apenas aos meus corretores como agir.
- Mas uma pessoa inteligente, conhecendo o conteúdo das
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cartas, poderia perceber o que o senhor estava pretendendo


fazer, não poderia?
- Sim, embora ninguém conhecesse o conteúdo das cartas.
A Srta. Winthrop e eu éramos os únicos seres humanos que
conheciam o que ia escrito nelas todas.
Máquina Pensante ficou em silêncio durante tanto tempo
que Grayson começou a se remexer na cadeira.
- Quem estava na sala, além do senhor e da Srta.
Winthrop, antes de as cartas serem enviadas? - perguntou,
finalmente.
- Ninguém - retrucou o financista, enfático. - Uma hora
antes de eu ditá-las e pelo menos uma hora mais tarde, depois
de os meus planos terem ido por água abaixo, ninguém pisou
naquela sala. Apenas nós dois estávamos lá trabalhando.
- Mas quando acabou as cartas, ela saiu? - insistiu
Máquina Pensante.
- Não - respondeu Grayson -, nem mesmo se levantou da
sua mesa.
- E não terá ela enviado alguma coisa para fora ... cópias
das cartas por exemplo?
- Não.
- Não se comunicou com algum amigo pelo telefone? -
prosseguiu Máquina Pensante, tranqüilamente.
- Nem isso - respondeu Grayson.
- E não teria ela feito algum sinal pela janela?
- Não - voltou a dizer o financista. - Terminou as cartas e
pôs-se a ler um livro.
Mal se mexeu por umas duas horas.
Máquina Pensante baixou os olhos e fixou-os nos do
financista.
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- Alguém não poderia ter escutado tudo pela janela? -


insistiu, depois de um instante.
- Não. Meu escritório fica no décimo quinto andar, dando
para a rua, e não existe escada de incêndio naquele lado. - Ou
pela porta?
- Se conhecesse meu escritório, veria que isso seria
impossível porque ...
- Nada é impossível, Sr. Grayson - retrucou o cientista, em
tom seco. - Pode ser improvável mas não impossível. Não diga
isso, que isso me irrita particularmente - ficou em silêncio por
uns intantes. Grayson o encarava, esperando ... - Nem o
senhor nem ela atenderam o telefone?
- Não, ninguém nos telefonou nem telefonamos para
ninguém.
- Nenhuma fenda, buraco ou rachadura no assoalho, nas
paredes ou no teto da sala? - insistia o cientista.
- Detetives particulares, contratados por mim para tratar
desse caso, revistaram a sala e nada encontraram - respondeu
Grayson.
De novo Máquina Pensante mergulhou nos próprios
pensamentos. Grayson acendeu outro charuto e recostou-se
pacientemente na cadeira. Finas linhas iam surgindo na fronte
do cientista, e, aos poucos, os olhos estrábicos foram se
entrecerrando.
- As cartas que o senhor escreveu não teriam sido
interceptadas? - sugeriu afinal.
- Não - Grayson não hesitou. - As cartas foram enviadas
aos corretores por uma dúzia de métodos diferentes e cada
uma delas foi entregue faltando cinco minutos para as dez,
hora em que a Bolsa abre suas portas. A última, mandei
quando faltavam dez para as dez.
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Máquina Pensante levantou-se e começou a andar de um


lado parta o outro.
- O senhor não imagina as precauções que tomei,
principalmente neste último negócio da estrada de ferro -
continuou Grayson. - Usei de todos os meios possíveis para
manter o sigilo. E a Srta. Winthrop, sei disso, é inocente de
qualquer ligação com o caso. Os detetives particulares, a
princípio, suspeitaram dela, assim como o senhor, e ela ficou
sob vigilância dentro e fora do escritório durante semanas.
Quando não se achava sob meus olhos, era seguida pelos
homens a quem eu havia prometido uma quantia extravagante
caso encontrassem a brecha. Ela então de nada sabia, e
continua ignorando o caso até agora. Me sinto envergonhado
de ter agido assim, porque a investigação provou a sua inteira
lealdade para comigo. Neste último dia, ela ficou sob minha
observação pessoal durante duas horas. E não fez um único
movimento que eu não tivesse notado, porque a coisa
significava milhões para mim. Isso provou de uma forma cabal
que a culpa não era dela. O que mais podia eu fazer?
Máquina Pensante não respondeu. Parou diante da janela e
durante muito tempo ali permaneceu, imóvel, olhos apertados
formando dois traços.
- Eu estava a ponto de despedir a Srta. Winthrop -
continuou o financista -, mas neste último caso, a sua
inocência ficou de tal modo provada que seria uma injustiça da
minha parte, e assim ...
De repente, o cientista voltou-se para o visitante. - O
senhor fala dormindo? - perguntou.
- Não - foi a pronta resposta. - Também tinha pensado
nisso. Não sei como explicar, professor, mas existe uma brecha
neste caso que está me custando milhões.
- Tudo se resume no seguinte, Sr. Grayson - informou
Máquina Pensante, de um modo impertinente. - Se apenas o
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senhor e a Srta. Winthrop conheciam seus planos e eles foram


utilizados contra o senhor, sendo impossível descobrir por onde
se deu isso, a conclusão é que ou o senhor ou ela informaram
alguém, intencionalmente ou não. Isso é lógica tão pura
quanto a que dois e dois fazem quatro. Não há como discuti-la.
- Bem, eu lhe garanto que não fui - disse Grayson.
- Então foi a Srta. Winthrop - declarou Máquina Pensante.
- A menos que se delegue a seus rivais o poder da telepatia,
coisa que não se tem até hoje conhecimento. A propósito, o
senhor se referiu à parte contrária apenas como "oposição". Os
mesmos homens aparecem sempre contra o senhor ou trata-
se apenas de um homem?
- É um grupo - explicou o financista - com milhões a
sustentá-lo, encabeçado por Ralph Matthews, um jovem que
considero primordial em se opor a mim - e seus lábios se
apertaram.
- Por quê? - insistiu o cientista.
- Porque toda vez que me encontra, sorri - foi a resposta.
E de repente, Grayson pareceu desconcertado.
Máquina Pensante foi até a mesa, subscritou um envelope,
dobrou uma folha de papel, colocou-a dentro do envelope,
depois selou-o. Finalmente, voltou-se para o visitante. - A
Srta. Winthrop encontra-se no seu escritório neste momento?
- Sim.
- Vamos até lá.
Minutos mais tarde, o eminente financista conduzia o
eminente cientista à sua sala principal em Wall Street. A única
pessoa ali presente era uma jovem de uns vinte e seis, vinte e
oito anos - que virou a cabeça, avistou Grayson e voltou à sua
leitura. O financista indicou uma cadeira. Mas em vez de
sentar-se, Máquina Pensante dirigiu-se à Srta. Winthrop e lhe
estendeu o envelope selado.
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- O Sr. Ralph Matthews me pediu que lhe entregasse ... -


disse ele.
A jovem ergueu os olhos e olhou-o com franqueza, embora
com uma certa timidez: pegou o envelope e virou-o na mão.
- Sr. Ralph Matthews - repetiu ela, como se o nome lhe
fosse estranho. - Acho que não conheço ...
Máquina Pensante continuou a encará-la ostensivamente,
observando-a enquanto ela abria o envelope e retirava a folha
de papel. A única expressão que lhe viu no rosto foi a de
surpresa.
- Ora, mas a folha está em branco - exclamou, intrigada.
O cientista virou-se para Grayson, que olhava tudo aquilo
com um autêntico assombro.
- Posso usar seu telefone, por favor? - pediu ele.
- Claro - respondeu Grayson.
- Obrigado - falou o cientista.
Inclinou-se para a mesa em que a Srta. Winthrop
trabalhava e levantou o fone ao ouvido. Minutos depois, falava
com o repórter Hutchinson Hatch.
- Queria apenas lhe pedir que me encontrasse no meu
apartamento dentro de uma hora - falou. - Assunto
importante.
Foi tudo. Desligou, parou admirando uma bela caixa de
prata, uma espécie de estojo de maquiagem da Srta.
Winthrop, ao lado do telefone, e pôs-se a discursar
simpaticamente sobre as condições da meteorologia.
Grayson limitou-se a encará-Io, ainda espantado. A Srta.
Winthrop voltou à sua leitura.

***
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O Prof. Augustus S.F.X Van Dusen, eminente cientista, e


Hutchinson Hatch, repórter, vasculhavam entre chaminés e
outros obstáculos em cima de um telhado de um arranha-céu.
Lá embaixo, a cidade adormecida se estendia como um
panorama, as ruas pontilhadas de luz e telhados apenas
entrevistos em meio ao nevoeiro noturno. Mais acima, a
infinita escuridão se esparramava como um véu, estrelas
brilhando aqui e ali.
- Achei os fios - disse Hatch, baixando o corpo.
Máquina Pensante ajoelhou-se no telhado ao lado dele e
ficaram os dois na escuridão, apenas com a luz de uma
lanterna a lhes denunciar a presença.
- É esse o fio que o senhor precisa, Sr. Hatch - disse. - O
resto fica por sua conta.
- Está certo disso? - disse o repórter.
- Como sempre - foi a curta resposta.
Hatch abriu um pequeno saco e tirou dali diversas
ferramentas de aparência estranha. E espalhou-as todas no
telhado, ao seu lado. Depois, ajoelhando-se outra vez, pôs
mãos à obra. Durante meia hora trabalhou com o auxílio da
lanterna. Concluído, levantou-se.
- Está pronto - anunciou.
Máquina Pensante examinou a obra, grunhiu a sua
satisfação, e juntos voltaram à clarabóia, deixando um fio fino
e isolado a seguir-lhe os passos. Desceram do telhado para a
escuridão do hall do último andar. Apagaram a luz do andar. Lá
de baixo chegava o eco abafado dos passos do vigia, em meio
ao silêncio do prédio deserto.
- Cuidado - preveniu Máquina Pensante.
Atravessaram o hall em direção ao quarto dos fundos,
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sempre com o fio a lhes acompanhar os passos. Pararam


finalmente na última porta. Máquina Pensante remexeu numas
chaves, depois abriu a porta. No interior da peça, uma luz
acesa. Não se via um móvel e o único sinal de ocupação
recente era um telefone na parede.
Máquina Pensante parou, examinando o rolo de fio que
vinha soltando à medida que caminhava, e seu rosto
expressava dúvida.
- Não acho prudente deixar o fio exposto assim - disse,
finalmente. - Este andar está desocupado, é verdade, mas
alguém pode passar por aqui e alterar a arrumação. Pegue
este rolo, vá até o telhado enrolando o fio, depois balance o
rolo pela beira do edifício que eu o apanho aqui pela janela.
Será melhor assim, não irá chamar a atenção.

***

Por duas vezes no dia seguinte, Máquina Pensante falou


com o financista por telefone. Grayson estava em seu
escritório, a Srta. Winthorp na sua mesa, quando soou a
primeira ligação.
- Cuidado ao responder às minhas perguntas - preveniu o
cientista, assim que Grayson atendeu. - Sabe há quanto tempo
a Srta. Winthrop tem a caixa prateada que ela deixa em cima
da mesa, perto do telefone?
Grayson não conseguiu evitar uma olhada para o ponto em
que a moça estava sentada, lendo um livro.
- Sim - respondeu -, há sete meses. Fui eu que lhe dei de
presente no Natal passado.
- Ah! - exclamou o cientista. - Isso simplifica a questão. E
onde foi que comprou o presente?
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Grayson mencionou o nome de uma joalheria muito


conhecida.
Mais tarde nesse mesmo dia, Máquina Pensante voltou a
ligar para Grayson.
- Qual é a marca da máquina de escrever que ela usa? -
perguntou sem mesmo dizer "alô':
Grayson respondeu.
Enquanto o financista continuava sentado, sempre
perplexo com o professor Augustus, o cientista foi procurar
Hutchinson no seu local de trabalho.
- Qual é a marca da sua máquina de escrever? - foi logo
perguntando.
- Quatro ou cinco marcas diferentes - respondeu ele. -
Temos uma meia dúzia delas.
Atravessaram a redação quase deserta naquela hora, até
que os olhos azuis do cientista se fixaram numa máquina.
- É essa aí! - exclamou Máquina Pensante. - Escreva nela
qualquer coisa - pediu ele a Hatch.
Hatch puxou a cadeira e bateu diversas linhas da velha
passagem que começa assim: "É chegado o momento em que
todos os homens de boa vontade ... "
Máquina Pensante sentou-se ao lado dele, com um ar
completamente abstrato, enquanto ouvia com a máxima
atenção. Voltara a cabeça para o lado oposto em que se
achava o repórter, mas mantinha o ouvido preso à máquina de
escrever. Ficou assim algo como meio minuto, depois sacudiu a
cabeça de leve.
- Bata nas vogais primeiro lentamente, depois com rapidez
- quase que ordenou. Hatch continuou a obedecê-lo, enquanto
o cientista apurava mais ainda o ouvido.
E mais uma vez sacudiu a cabeça. Depois, cada máquina
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da redação foi testada da mesma maneira. Por fim o cientista


levantou-se e despediu-se e partiu, com uma expressão de
perplexidade estampada no rosto.

***

Naquela noite, Máquina Pensante deixou-se ficar por horas


e horas no seu laboratório, olhando para cima e perdido numa
absoluta concentração. Mudança alguma ocorria no seu rosto,
ou na posição assumida enquanto os minutos passavam; tinha
o cenho franzido e a linha fina dos lábios contraída. O
minúsculo relógio da sala de espera bateu dez, onze, meia-
noite e, finalmente, uma hora. À uma e meia, ele levantou-se
de um pulo.
- Mas, sem dúvida nenhuma, acho que estou ficando
burro! - exclamou à meiavoz. - Claro! Claro! Como é que eu
não pensei nisso logo de saída? ...
Aconteceu que, pela manhã, Grayson não apareceu no
escritório na hora de costume. É que correra, ansioso, à casa
do Máquina Pensante, em resposta a um bilhete recebido em
casa pouco antes de sair para o escritório.
- Por enquanto, nada - disse o cientista, assim que ele
entrou. - Mas você tem algo a fazer aqui, hoje. À uma hora,
prepare ordem para uma transação de grande vulto; e deve
agir exatamente como tem agido antes; nada de mudanças.
Dite as cartas como de costume para a Srta. Winthrop, mas
não as envie. Quando elas lhe forem entregues para assinar,
guarde-as até falar comigo .
- Quer dizer que a transação será totalmente simulada? -
perguntou o financista.
- Isso mesmo - foi a resposta. - Mas dê suas instruções
detalhadas para torná-las lógicas e convincentes.
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Grayson fez mais uma dúzia de perguntas, mas não


obteve as respostas correspondentes. Assim, foi ele para seu
escritório.
Máquina Pensante voltou a falar com Hatch pelo telefone.
- Descobri tudo - anunciou ele, em poucas palavras. -
Quero o melhor telegrafista que você conheça. Traga-o consigo
e me esperem na sala do último andar onde está o telefone,
exatamente às doze e quarenta e cinco de hoje.
- Um telegrafista?
- Foi o que eu disse: um telegrafista, o melhor! - retrucou
o cientista, irritado. - Até breve.
Hatch não deixou de sorrir quando ouviu o fone bater com
força do outro lado do fio, sorriu porque conhecia os métodos
daquele homem singular, cuja mente resolvia todos os
problemas que lhe eram propostos, e com tamanha exatidão!
Depois foi até a sala de telégrafo da redação e requisitou o
principal operador. Quinze para a uma, precisamente, estavam
os dois no quartinho do último andar.
O telegrafista olhou em volta, atônito. A peça continuava
vazia de móveis e utensílios, com exceção da caixa do telefone
colocada na parede.
- O que é que eu faço? - perguntou ele ao Máquina
Pensante.
- Eu lhe direi quando chegar o momento - respondeu o
cientista, olhando para o relógio.
Quando faltavam três minutos para a uma hora, estendeu
uma folha em branco para o telegrafista e deu-lhe as
instruções finais.
O homem olhou-o, espantado. Apesar disso, obedeceu às
ordens recebidas, sorrindo para Hatch enquanto mudava a
posição do cigarro na boca para fugir da fumaça que lhe ardia
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os olhos. Máquina Pensante ficou a postos, cheio de


impaciência, relógio na mão. Hatch não sabia o que estava
acontecendo, mas nem por isso deixava de se sentir extre-
mamente interessado naquilo.
Finalmente, o telegrafista ouviu alguma coisa. Seu rosto
pôs-se em estado de alerta na hora. Escutou durante alguns
instantes e logo um sorriso se lhe iluminou o rosto.

***

Menos de dez minutos depois de a Srta. Winthrop ter


passado por cima da máquina as cartas de instruções para
Grayson assinar, e enquanto ele punha-se a examiná-las em
silêncio, a porta se abriu e Máquina Pensante entrava na sala.
Atirou uma folha de papel em cima da mesa de Grayson e
foi diretamente até a Srta. Winthrop.
- Quer dizer que, no fim das contas, a senhorita conhecia
Ralph Matthews? _ disse-lhe ele.
A moça levantou-se e a sombra de uma emoção alterou-
lhe o rosto.
- o que o senhor quer dizer com isso? - perguntou.
- Pode afastar a caixinha de prata dali - continuou Máquina
Pensante, sem perddão ou pena. - Não há mais necessidade de
manter a ligação.
A Srta. Winthrop olhou para a extensão do telefone na sua
mesa e estendeu a mãe até ela. O estojo de maquiagem se
encontrava bem debaixo do fone, amparando-o de modo que o
peso ficava removido do gancho, deixando a linha aberta.
Afastou a caixa, e o fone voltou ao lugar com um leve estalido.
Máquina Pensante voltou-se para Grayson.
- Era a Srta. Winthrop! - exclamou Grayson, levantando-
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se. - Não consigo acreditar!


- Leia o papel que lhe dei, Sr. Grayson - reagiu Máquina
pensante, com voz fria. Talvez isso lhe traga alguma luz.
O financista abriu a folha de papel e correu os olhos pelo
que nela estava escrito; leu lentamente em voz alta:
"Peabody: venda dez mil ações da L.&W. por 97. McCracken e
Cia: venda dez mil ações da L.&W. por 97." - E assim
continuou até o fim da lista, espantado. Gradualmente, ao
perceber a importância do que lia, seus lábios foram ficando
severos, linhas duras em volta da boca.
- Compreendo, Srta. Winthrop - disse, por fim. - Aqui está
a substância das ordens que lhe ditei; e de uma maneira por
mim ignorada, a senhora as transmitiu a terceiros, não
autorizados a recebê-las. Embora desconheça como conseguiu
isso, compreendo que serviu de intermediária ... - deu um
passo até a porta e abriu-a com uma grave cortesia. - Pode ir,
por favor.
A Srta. Winthrop sequer se desculpou - limitou-se a curvar
a cabeça e saiu sem dizer palavra. Grayson seguiu-a com o
olhar, depois voltou-se para o Máquina Pensante e indicou-lhe
uma cadeira.
- O que foi que aconteceu? - perguntou, bastante curioso.
- A Srta. Winthrop é uma mulher muito inteligente - disse
o cientista. - Esqueceu-se, no entanto, de lhe dizer que, além
de datilógrafa e estenógrafa, é também uma exímia
telegrafista. É tão experiente em todas essas profissões, que
combinou todas elas, por assim dizer. Em outras palavras, ao
bater uma ordem sua à máquina, sabia dar a cada letra que
batia o clique do código Morse, de modo que outro telegrafista,
do outro lado do fio, ia escutando e traduzindo em letras os
sinais emitidos.
Incrédulo, Grayson apenas olhava para o cientista. -
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Continuo sem entender - murmurou.


Máquina Pensante levantou-se e foi até a mesa da Srta.
Winthrop. - Aqui tem uma extensão do telefone com o fone no
aparelho. Acontece que a caixa de prata que o senhor lhe deu
de presente é bastante alta para afastar o fone do gancho, e
quando isso acontece, a linha continua funcionando. Quando o
senhor se encontrava na sua mesa e a Srta. Winthrop na dela,
o senhor simplesmente não enxergava o telefone. Ora, com o
aparelho fora do seu campo de visão, nada mais simples para
ela do que levantar o receptor com o auxílio da caixa de prata
e manter assim a linha em funcionamento. Desta forma, o
bater das teclas da máquina era transmitido pelo fio a quem
quer que se achasse à escuta na outra ponta. E se, ao
datilografar uma carta se observasse um código telegráfico
simultaneamente com a cópia da referida carta, um operador
preparado para isso receberia a mensagem da sua
correspondência no mesmo momento em que ela a batia aqui
nesta sala. Simples. Só era preciso uma grande concentração
da parte dela para conseguir datilografar dentro de um ritmo
de código Morse.
- Entendi - exclamou Grayson.
- Assim que percebi que a brecha no seu escritório não se
definia pelos moldes usuais, procurei pelo o que seria fora do
comum - continuou Máquina Pensante. - Nada parece agora
muito misterioso: apenas um expediente mais inteligente,
nada além disso. - Inteligente! - repetiu Grayson, furioso da
vida. - É mais do que isso, é criminoso! Eu vou processá-la!
-Não lhe aconselho, Sr. Grayson - falou o cientista, de
cabeça fria. - Se considera honesto, uma simples questão de
negócios, jogar na Bolsa como o senhor faz, isso não se pode
chamar de desonesto. E não deve esquecer que a Srta.
Winthrop tem o apoio das pessoas que fizeram fortuna nas
suas costas. Quer dizer, no seu caso eu não processaria
ninguém. É um abuso de confiança, não há dúvida, mas ... -
55 – A parte amarga 19 / 19

Levantou-se como se tivesse dito tudo e encaminhou-se para a


porta. - No entanto, aconselho-o a demitir a pessoa
encarregada da central telefônica deste prédio.
- Ela também participou do plano? - perguntou Grayson.
Depois correu para a sala ao lado, mas esbarrou na porta com
um empregado que entrava.
- Onde está a Srta. Mitchell? - perguntou furioso o Sr.
Grayson.
- Pois eu estou vindo aqui exatamente para lhe dizer que
ela acabou de sair com a Srta. Winthrop sem dar a menor
explicação - explicou o rapaz. - Até outra hora, Sr. Grayson -
disse Máquina Pensante. O financista agradeceu e retornou à
sua sala.

***

Dias mais tarde, Máquina Pensante recebeu um cheque no


valor de dez mil dólares assinado por J. Morgan Grayson.
Olhou o cheque por alguns segundos e em seguida endossou-o
com sua letra grande e mal desenhada: "Pague-se à Casa das
Crianças Deficientes", e mandou que sua governanta o
despachasse pelo correio.
Tradução de Alves Moreira

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