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O HOMEM NA GALERIA

G.K. CHESTERTON
(1874-1936 Inglaterra)

Os dois homens apareceram simultaneamente nos dois


extremos daquela espécie de galeria que corre ao lado do
Teatro Apoio no Adelphi. A luz do entardecer nas ruas era forte
e luminosa, opalescente e vazia. A galeria, em comparação,
era longa e sombria, e cada um deles podia ver o outro apenas
como uma silhueta obscura na outra extremidade da
passagem. Mesmo assim, os dois se reconheceram, naquelas
sombras recortadas, porque eram ambos homens de aparência
inconfundível e se odiavam mutuamente.
A passagem coberta dava em uma extremidade para uma
das ruas que subia do Adelphi e, na outra, terminava num
terraço sobre o rio colorido pela luz do poente. Um lado da
galeria era a parede lisa do que fora um restaurante de teatro
de pouco sucesso, agora fechado. Do outro lado havia duas
portas, uma em cada extremidade. Nenhuma das duas portas
era como normalmente se imagina uma porta de camarim.
Eram portas de camarim, mas de um tipo particular e para uso
privativo de atores muito especiais, e naquele momento eram
usadas pelo astro e pela estrela do espetáculo de Shakespeare
em cartaz. Pessoas famosas, em geral, precisam de entradas e
saídas assim para receber amigos, ou para evitá-los.
Os dois homens em questão eram sem dúvida esse tipo de
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amigos; era evidente que conheciam as portas e não tinham


dúvidas de que se abririam para eles, pois ambos se
aproximaram daquela na extremidade superior com a mesma
tranqüilidade e confiança. Não com a mesma velocidade, mas
o homem que vinha do extremo oposto da galeria era o que
andava mais rápido, de forma que chegaram quase ao mesmo
tempo àquela porta secreta de camarim. Cumprimentaram-se
com civilidade e esperaram um momento antes que o mais
rápido, aquele que parecia ser o menos paciente dos dois, se
decidisse a bater na porta.
Nisso, como em tudo mais, um era o oposto do outro,
embora nenhum deles pudesse ser considerado inferior. Em
suas vidas privadas, eram pessoas encantadoras, capazes e
queridas. Como pessoas públicas, ambos eram bem-sucedidos
e famosos. Mas tudo a respeito deles, da fama à bela
aparência, era de natureza diversa e sem termo de compa-
ração. Sir Wilson Seymour era o tipo de homem cuja
importância era do conhecimento de todos aqueles que sabiam
das coisas que importavam. Quanto mais alguém penetrasse
nos círculos interiores do poder, em qualquer área, política ou
profissional, mais esbarraria em Sir Wilson Seymour. Era o
único membro brilhante em vinte comissões idiotas com uma
variedade de interesses que ia da reforma da Academia Real
ao projeto de atar o sistema monetário da Grã-Bretanha às
cotações de ouro e prata. Nas Artes, em especial, era
onipotente. Era uma figura tão singular que ninguém
conseguira determinar se se tratava de um grande aristocrata
que adotara a Arte ou de um grande artista adotado pela
aristocracia. Mas seria impossível estar com ele por cinco
minutos sem perceber qual dos dois realmente regulava a vida
de todos nós.
Sua aparência era "distinta" no sentido literal da palavra:
ao mesmo tempo convencional e única. As regras da moda não
encontrariam nada de errado com sua cartola de seda, que, no
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entanto, era diferente da cartola de seda de qualquer outra


pessoa talvez um pouco mais alta e somando alguns
centímetros à sua altura natural. Sua figura magra e alta era
ligeiramente curvada e, ainda assim, dava a impressão oposta
à de fragilidade. Os cabelos eram prateados, mas não
pareciam envelhecidos, apenas um pouco mais longos do que
o comum, mas não parecia afeminado; tinha ondas, sem
parecer que fora ondulado. A barba, cuidadosamente cortada
em ponta, dava-lhe uma aparência mais viril e masculina do
que se fosse descuidada, como a barba daqueles velhos
almirantes de Velásquez cujos retratos escuros cobriam as
paredes de sua casa. Usava luvas cinzentas com uma
tonalidade predominante de azul, e sua bengala era
ligeiramente mais longa que as centenas de outras, que
floresciam e se exibiam em teatros e restaurantes.
O outro homem não era tão alto, embora ninguém
pudesse descrevê-lo como baixo e, tanto quanto o primeiro,
era belo e forte. Cabelos também ondulados, mas claros e
cortados curtos sobre a cabeça maciça e forte - uma cabeça
com a qual se poderia arrombar uma porta, como disse
Chaucer a respeito da cabeça de seu moleiro. O bigode militar
e a postura dos ombros faziam-no parecer um soldado, mas
tinha um par de olhos azuis, atentos e francos, que são mais
comuns em marinheiros. O rosto tinha algo de quadrado, o
queixo era quadrado, os ombros eram quadrados, até mesmo
o corte de seu paletó era quadrado. Na verdade, no estilo
impiedoso então em voga, o caricaturista Max Beerbohm o
representara como uma proposição no quarto livro de Euclides.
Porque, embora devido a outro tipo de sucesso, ele
também era uma figura pública.
Não era necessário pertencer à alta sociedade para ter
ouvido falar do capitão Cutler, do cerco de Hong Kong e da
grande marcha através da China. Impossível não ouvir falar
dele onde quer que se estivesse; sua fotografia estava em toda
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parte; seus mapas e batalhas ilustravam as revistas;


cantavam-se canções em sua homenagem nos teatros e nos
bares. Sua fama, embora provavelmente menos consistente,
era dez vezes mais difundida, popular e espontânea do que a
do outro. Em milhares de lares ingleses ele pairava enorme
sobre o país, como Nelson. No entanto possuía infinitamente
menos poder na Inglaterra do que Sir Wilson Seymour.
A porta foi aberta para eles por um velho criado, ou
"roupeiro", cujo rosto cansado e roupas humildes e sem cor
contrastavam estranhamente com o brilhante interior do
camarim da grande atriz. Havia espelhos em toda parte e
cobrindo todos os ângulos de refração, de forma que pareciam
as centenas de faces de um enorme diamante - se fosse
possível penetrar o interior de um diamante. Os outros
elementos de luxo, algumas flores, algumas almofadas
coloridas, algumas roupas de palco, eram multiplicados pelos
espelhos, numa loucura das "Mil e uma Noites", e dançavam e
mudavam de lugar sem parar enquanto o roupeiro mudava a
posição de um espelho ou empurrava outro contra a parede.
Os dois homens se dirigiram a ele, chamando-o de
Parkinson, e perguntaram pela senhora a quem chamaram de
Srta. Aurora Rome. Parkinson disse que ela estava no outro
quarto, mas que iria avisá-la. Uma sombra cruzou o rosto dos
dois homens, pois o outro quarto era o camarim do grande
ator com quem Aurora Rome contracenava, e ela era do tipo
que não despertava admirações sem despertar ciúmes. Em
meio minuto, no entanto, a porta se abriu, e ela entrou, como
entrava sempre, mesmo na vida real, de um modo que até
mesmo o silêncio parecia uma explosão de aplausos, e
aplausos bem merecidos. Vestia um estranho robe de cetim
colorido em verde e azul metálicos que lembrava as cores de
um pavão, o tipo da coisa que deliciava crianças e estetas, e
seu pesado cabelo, de um castanho profundo, emoldurava um
daqueles rostos mágicos que são perigosos para todos os
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homens, mas especialmente perigosos para os meninos e os


homens ficando grisalhos. Com seu colega, o grande ator
americano Isidore Bruno, ela vinha interpretando uma versão
especialmente poética e fantástica de Sonhos de uma Noite de
Verão, centrada nas personagens de Oberon e Titânia ou, em
outras palavras, em Bruno e nela mesma. Movendo-se numa
dança mística, dentro do belo cenário de sonho, o costume
verde, como as asas de um escaravelho, realçava a
individualidade fugidia da rainha dos elfos. Mas diante dela e à
luz do dia, um homem via apenas o rosto da mulher.
Recebeu os dois visitantes com aquele sorriso misterioso e
radiante que mantinha tantos homens orbitando à mesma
perigosa distância em torno dela. Aceitou as flores de Cutler,
que eram tropicais e caras como suas vitórias, e um presente
de outro tipo, dado mais tarde, com displicência, por Sir Wilson
Seymour, porque não era de seu feitio demonstrar ansiedade
ou ser convencional a ponto de oferecer um presente óbvio
como flores. Comprara por quase nada - dissera ele - uma
antiguidade, uma adaga grega do período micênico, que
poderia ter sido usada na época de Teseu e Hipólita. Era feita
de bronze como todas as armas da época heróica, mas ainda
era bastante afiada. O que o atraíra, na verdade, fora a forma
da lâmina, como uma folha, e sua perfeição, como a de vaso
grego. Se pudesse interessar à Srta. Rome, ou talvez ser
usada no palco em alguma peça, esperava que ela aceitasse ...
A porta de comunicação interna se abriu para um vulto
enorme que conseguia contrastar com Seymour mais ainda
que o capitão Cutler. Com quase dois metros de altura, um
físico e músculos mais que teatrais e vestido no fantástico
costume de Oberon, em pele de leopardo e dourados, Isidore
Bruno parecia um deus bárbaro. Apoiava-se numa espécie de
bastão pontudo, que, visto da platéia, dava a impressão de
uma fina vara prateada, mas que no pequeno e congestionado
espaço do camarim tomava a aparência ameaçadora de uma
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lança de caçador. Com os olhos negros e vívidos rolando nas


órbitas, seu rosto bronzeado, apesar de belo, mostrava
naquele momento uma combinação de maçãs altas e dentes
muito brancos que parecia confirmar certas conjecturas
americanas sobre sua origem nas plantações sulistas.
- Aurora - ele começou a falar, naquela voz profunda,
como um tambor da paixão que emocionara tantas platéias -,
você poderia ...
Parou indeciso porque uma sexta figura aparecera na porta
- uma figura tão incongruente naquela cena a ponto de parecer
cômica. Era um homem extremamente pequeno, vestido com a
batina negra do clero secular da igreja romana, que parecia
(especialmente na presença de Bruno e Aurora) mais fora de
propósito ali do que Noé desembarcando da arca. Ele, no
entanto, não parecia consciente de nenhum contraste e disse,
com uma voz polida e inexpressiva:
- A Srta. Rome pediu que eu viesse.
Um observador atento poderia perceber um aumento na
temperatura emocional dos presentes, em resposta a uma
interrupção tão completamente destituída de emoção. O
distanciamento de um celibatário profissional parecia revelar
aos outros o fato de estarem todos em volta da mulher como
um círculo de rivais amorosos; da mesma forma que a
chegada de alguém com neve na roupa revelaria que o local
estava quente como uma fornalha. A presença de um único
homem não interessado nela fez crescer em Aurora Rome a
sensação de que todos os outros a amavam, cada um
perigosamente a seu modo: o ator com todo o apetite de um
selvagem e as exigências de uma criança mimada; o soldado
com o egoísmo simples de um homem com uma força de
vontade maior que seu intelecto; Sir Wilson com a tenaz e
cotidiana concentração com que os velhos hedonistas se
entregam ao culto do prazer; até mesmo o abjeto Parkinson,
que a conhecera antes de seu triunfo e que a seguia com olhos
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e solicitude pelo camarim, a amava com o idiota fascínio de


um cão.
Um observador atento perceberia algo ainda mais
estranho; algo que o inexpressivo homenzinho de negro (que
não era um observador completamente desatento) percebeu
com um contido divertimento. Era evidente que a grande
Aurora Rome, embora não fosse de nenhuma forma indiferente
à admiração do sexo oposto, naquele momento preferia livrar-
se de seus admiradores para ficar a sós com o único homem
presente que não a admirava - não a admirava naquele senso
específico; porque, na verdade, o padre teve de admirar a
firme diplomacia feminina com que ela conseguiu seu intento.
Talvez fosse a única coisa de que ela realmente entendia, mas
era metade da humanidade - a metade masculina. O pequeno
padre pôde observar a rápida eficiência, como numa campanha
napoleônica, com que ela despachou a todos sem banir
ninguém. Bruno, o grande ator, era tão infantil que foi fácil
fazê-lo partir, magoado e batendo a porta. Cutler, o oficial
britânico, era lento na percepção de idéias, mas perfeitamente
escrupuloso quanto ao comportamento. Poderia não perceber
indiretas, mas seria incapaz de não atender ao desejo explícito
de uma senhora. Quanto ao velho Seymour, esse foi tratado de
forma diferente e deixado por último. A única maneira de fazê-
lo ir era tratá-lo como um velho amigo e torná-lo cúmplice da
manobra. O padre foi obrigado a admirar a habilidade com que
as três coisas foram conseguidas com alguns movimentos
concatenados em uma única ação.
Ela dirigiu-se ao capitão Cutler com sua voz mais doce:
- É claro que adorei estas flores, porque sei que devem ser
as que você mais gosta. Mas não estarão completas sem as
minhas favoritas. Vá, por favor, até a flora na esquina e
consiga-me alguns lírios-do-vale para que esse buquê fique
realmente adorável.
Falando assim com Cutler, conseguiu o primeiro objetivo
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de sua investida diplomática, que era irritar Bruno. Ele logo


entregara sua lança, como um cetro, ao pobre Parkinson, e se
preparava para sentar em uma poltrona, como num trono;
mas, ao ouvi-la falar assim com seu rival, em seu olhar brilhou
a sensibilidade insolente do escravo; por um instante, fechou
os enormes punhos, e então se dirigiu para a porta e
desapareceu em seu camarim. Enquanto isso, a tentativa da
Srta. Rome de mobilizar o exército britânico não funcionou
com a facilidade esperada. Cutler, é verdade, se levantara e
partira para a porta imediatamente, sem seu chapéu, como
obedecendo a um comando. Mas talvez houvesse alguma coisa
ostensivamente elegante na figura lânguida de Seymour,
encostado num dos espelhos, que provocou nele um
repensamento e o fez parar na porta olhando de um lado para
o outro como um buldogue confuso.
- Tenho de mostrar a este idiota aonde deve ir - ela disse
em voz baixa a Seymour e foi até a porta apressar a partida do
outro.
Seymour ouviu com uma aparente displicência a conversa
dos dois, como era seu jeito, e pareceu aliviado quando ouviu
a dama dar suas últimas instruções ao capitão e depois se
voltar rápida e correr rindo para o outro extremo da galeria,
que dava para o terraço sobre o Tâmisa. No entanto, um ou
dois segundos depois, o semblante de Seymour voltou a
anuviar-se. Um homem na sua posição tinha tantos rivais, e
lembrou-se que na outra extremidade da galeria se encontrava
a porta para o camarim de Bruno. Não se esqueceu de sua
dignidade, trocou algumas palavras civilizadas com o padre
Brown sobre a influência da arquitetura bizantina na catedral
de Westminster, e então, com naturalidade, saiu e foi na
direção do outro lado da galeria. Padre Brown e Parkinson
ficaram a sós e nenhum dos dois tinha gosto pela conversação
supérflua. O roupeiro girou pelo camarim puxando espelhos e
os empurrando de volta contra as paredes; suas roupas
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surradas pareciam ainda mais velhas em contraste com a lança


festiva do Rei Oberon, que continuava segurando. Cada vez
que movia um espelho, aparecia uma nova imagem em negro
do padre. A absurda câmara de espelhos se encheu de padres
Brown, de cabeça para baixo no teto, como anjos dando saltos
mortais, como acrobatas, como indivíduos mal-educados
dando as costas às pessoas.
Padre Brown parecia inconsciente dessa nuvem de
testemunhas, mas seus olhos atentos seguiram Parkinson até
que este desapareceu no camarim de Bruno, levando consigo a
absurda lança. Então, ele se entregou àquelas meditações
abstratas que sempre o divertiam - calculando todos os
ângulos dos espelhos, os ângulos de cada refração, o ângulo
em que cada espelho deveria ser colocado nas paredes ...
Então ouviu o grito - sufocado, mas bastante alto.
Ficou de pé em um salto e parou, ouvindo. No mesmo
instante Sir Wilson Seymour entrou de volta no quarto, branco
como gesso.
- Quem era aquele homem na galeria? - gritou. - Onde
está meu punhal? Antes que o padre Brown pudesse girar em
seus sapatos, Seymour corria pelo quarto procurando a arma.
E antes que pudesse achar aquela arma ou outra qualquer
coisa, ouviu-se o ruído rápido de pés correndo no pavimento lá
fora, e a cara quadrada de Cutler apareceu na porta. Ele ainda
tinha grotescamente na mão um buquê de lírios-do-vale.
- O que é isso? - gritou. - Quem é aquela criatura na
galeria? É um de seus truques?
- Meus truques? - sibilou seu rival, e partiu em sua
direção.
Enquanto tudo isso acontecia, padre Brown saiu para o
topo da galeria, olhou através dela e imediatamente correu
para o que viu.
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Os outros dois abandonaram a discussão e correram atrás


dele, com Cutler perguntando:
- O que está fazendo? Quem é o senhor?
- Meu nome é Brown - disse o padre com tristeza,
erguendo-se de sobre alguma coisa que chamara sua atenção.
- A Srta. Rome me pediu que viesse e vim o mais rápido que
pude. Mas cheguei tarde demais.
Os três homens olharam para o chão, e no rosto de pelo
menos um deles a vida desapareceu na luz fraca do fim de
entardecer. Ela filtrava pelo meio da galeria como uma trilha
dourada e em sua claridade difusa estava caída Aurora Rome,
brilhante em seu vestido verde e ouro, com o rosto morto
virado para cima. Sua roupa estava rasgada, provavelmente
devido a uma tentativa de se defender do ataque, seu ombro
direito estava nu, mas a ferida de onde o sangue corria era do
outro lado. O punhal de bronze brilhava a pouco mais de um
metro de distância.
Houve um perceptível hiato de silêncio durante o qual
puderam ouvir o riso de uma florista lá fora, em Charing Cross,
e alguém assoviando com fúria, tentando chamar a atenção de
um táxi em uma das ruas que saem do Strand. Então, o
capitão, com um movimento rápido, que poderia ser tanto um
gesto instintivo quanto uma encenação, pegou Sir Wilson pela
garganta.
Seymour olhou para ele com calma, sem reação ou medo.
- Não precisa me matar - disse em voz fria. - Eu mesmo
me encarregarei disso. A mão do capitão hesitou e caiu;
enquanto o outro continuava com fria sinceridade: - Se me
faltar a coragem para fazer isso com o punhal, eu o farei em
um mês com a bebida.
- Bebida não será o bastante para mim - respondeu Cutler.
- Eu quero o sangue de alguém em troca disso. Não o seu,
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mas creio que sei de quem.


E, antes que os outros pudessem perceber suas intenções,
ele pegou o punhal e correu para a porta no outro extremo da
galeria, que arrombou com fechadura e corrente para
confrontar Bruno em seu camarim. Enquanto fazia isso, o
velho Parkinson apareceu na porta; com seu caminhar
hesitante, veio até o corpo caído na galeria, olhou para ele
com uma face cansada e então voltou trêmulo para o camarim
e foi sentar-se em uma das luxuosas cadeiras acolchoadas.
Padre Brown correu imediatamente para ele sem dar atenção a
Cutler e ao colossal ator, embora pudesse ouvir o ruído dos
golpes entre os dois, que começavam a lutar pelo punhal.
Enquanto isso, Seymour, que conseguira manter algum senso
prático, fora para a saída da galeria sinalizar para a polícia.
Quando a polícia chegou, foi apenas em tempo para
separar os dois homens, presos num simiesco abraço de ódio;
e para, depois de algumas perguntas, prender Isidore Bruno
sob a acusação de homicídio feita contra ele por seu furioso
oponente. A idéia de que o grande herói nacional do momento
prendera um criminoso com as próprias mãos parecia, sem
nenhuma dúvida, ter um apelo especial para a mente dos
policiais, a quem não falta um senso jornalístico. Cutler foi
tratado com uma certa reverência, e chamaram sua atenção
para um pequeno corte na mão. Enquanto Cutler o atacava,
entre mesas e cadeiras tombadas, Bruno conseguira torcer o
punhal e o ferira com um pequeno corte abaixo do pulso. O
ferimento era leve, mas, até a hora em que foi retirado do
local pela polícia, o prisioneiro olhava como um selvagem para
o sangue correndo, e tinha um sorriso fixo nos lábios.
- Parece uma espécie de canibal esse sujeito, não é
mesmo? - confidenciou o policial a Cutler.
Ele não respondeu, mas um momento mais tarde disse,
incisivo: - Temos de cuidar da ... da morta ... - e sua voz se
desarticulou.
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- Dos dois mortos - era a voz do padre vinda do outro


extremo da sala. - Este pobre homem já estava morto quando
cheguei perto dele. - Estava de pé, olhando para o velho
Parkinson, um vulto negro encolhido na bela cadeira. Ele
também pagara um tributo eloqüente à mulher morta.
O primeiro a quebrar o silêncio foi Cutler, numa
demonstração de que mesmo sua aridez era capaz de ternura.
- Gostaria que fosse eu - disse com sentimento. - Lembro
a forma que costumava olhá-la onde quer que ela fosse,
gostava dela mais que qualquer outra pessoa. Era o ar que
respirava; e sem esse ar, morreu.
- Estamos todos mortos - disse Seymour, numa estranha
voz, com o olhar perdido na rua.
Despediram-se do padre Brown na esquina, com algumas
desculpas por qualquer indelicadeza que houvessem
demonstrado. Os rostos de ambos eram trágicos, mas também
eram enigmáticos.
A cabeça do pequeno padre era como uma toca de lebres,
cheia de pensamentos saltando rápidos demais para que
pudesse agarrá-los. Como o rabo de um coelho branco, cruzou
por sua mente a idéia de que estava seguro da tristeza que
ambos sentiam, mas não que fossem inocentes.
- É melhor nos despedirmos - disse Seymour com uma voz
pesada. - Fizemos tudo o que podíamos para ajudar.
- Será que entenderiam meus motivos - perguntou o padre
Brown com calma - se dissesse que fizeram tudo para
prejudicar?
Ambos olharam para ele como culpados. Cutler foi incisivo:
- Prejudicar a quem?
- Aos senhores mesmos - respondeu o padre. - Não
gostaria de trazer-lhes mais um problema se não achasse ser
minha obrigação alertá-los. Caso esse ator seja inocentado, os
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senhores fizeram praticamente tudo que era possível para


colocar o pescoço na forca. Seguramente serei chamado a
testemunhar, e terei de contar que, logo após ouvir o grito, vi
quando os senhores entraram no camarim, transtornados, e
começaram uma discussão a respeito do punhal. Pelo que
testemunharei, qualquer um dos senhores poderia ter
cometido o crime. Isso os prejudica muito, e depois o capitão
Cutler conseguiu um problema com aquele punhal.
- O ferimento? - perguntou Cutler com desprezo. - É um
corte idiota.
- Que tirou sangue - respondeu o padre sacudindo a
cabeça. - Sabemos que há sangue no punhal agora, e por isso
não saberemos nunca se havia sangue antes.
Ficaram em silêncio até que Seymour disse, com uma
ênfase que não era normal nele:
- Mas eu vi um homem na galeria.
- Sei que o senhor viu - respondeu o padre com um rosto
impassível -; o capitão Cutler também viu. E é isto que faz a
coisa improvável.
Antes que qualquer um dos dois pudesse atinar com uma
resposta ou mesmo com o significado do que ele dizia, o padre
Brown já se despedira e fora embora, com seu andar pesado,
apoiado em seu guarda-chuva velho.
Da forma que são administrados os jornais modernos, as
notícias mais importantes e as mais honestas são as policiais.
Assim, se nesse século vinte há mais espaço para o
assassinato do que para a política, é porque assassinato é um
assunto tratado com mais seriedade. Mas nem isso seria capaz
de explicar a onipresença nem a riqueza de detalhes que "O
Caso Bruno" ou "O Mistério da Galeria" ganhou na imprensa
londrina e da província. Foi tão grande a excitação provocada
pelo caso que por algumas semanas a imprensa realmente
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noticiou a verdade; e as reportagens, com os depoimentos e


contradepoimentos, ainda que intermináveis e, às vezes,
insuportáveis, eram pelo menos confiáveis. A verdadeira razão
de tudo isso era, sem dúvida, a coincidência de envolver tantas
pessoas importantes. A vítima era uma atriz popular; o
acusado era um ator popular; e o réu fora preso, quase em
flagrante, pelo soldado mais popular daquela temporada
patriótica. Em tão extraordinárias circunstâncias, a imprensa
fora paralisada pela camisa-de-força do compromisso com a
verdade. Dessa forma o resto desse caso singular pode ser
resgatado das reportagens sobre o julgamento de Bruno.
O julgamento foi presidido pelo juiz Monkhouse, que era
um daqueles juízes acusados de ter senso de humor, e que na
verdade costumam ser muito mais sérios que os juízes sérios;
porque seu senso de humor se origina numa vívida
impaciência com a solenidade profissional, enquanto os juízes
sérios são na verdade poços de frivolidade porque repletos de
vaidade. Sendo todos os protagonistas personalidades
públicas, os advogados não ficavam atrás. O procurador da
Coroa era Sir Walter Cowdray, um homem pesado, mas que
também era um jurista de peso, do tipo que sabia como
parecer inglês e digno de confiança, e como ser retórico com
uma aparente relutância. Pela defesa o Sr. Patrick Butler, que
dava uma impressão de superficialidade àqueles que não
entendiam o caráter irlandês - e àqueles que nunca haviam
sido interrogados por ele.
A evidência médica era incontestável; o médico, chamado
por Seymour na mesma hora ao local do crime, concordava
completamente com o laudo do eminente cirurgião que mais
tarde examinara o corpo. Aurora Rome fora ferida de morte
por um instrumento agudo e cortante, tal como uma faca ou
punhal, com uma lâmina curta. O ferimento fora no coração e
ela morrera instantaneamente. Quando o médico a vira pela
primeira vez, ela estaria morta, no máximo, há vinte minutos.
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O que significava que, quando o padre Brown a encontrara,


não poderia estar morta há mais de três.
A isso seguiu um depoimento da polícia com evidências
colhidas na cena, na tentativa de determinar se a vítima
oferecera, ou não, resistência ao ataque. A única coisa que
poderia sugerir isso era o vestido rasgado no ombro, o que
também não parecia combinar com a direção e finalidade da
punhalada. Depois de fornecidos esses detalhes, ainda que
sem uma explicação satisfatória, foi chamada a primeira
testemunha importante.
O depoimento de Sir Wilson Seymour, como qualquer
outra coisa feita por ele, não foi apenas bom, foi perfeito.
Embora fosse figura pública mais importante do que o juiz,
apresentou uma solicitude gentil diante da justiça do rei; e
ainda que todos o olhassem como se fosse o primeiro-ministro
ou o arcebispo de Canterbury, era impossível fazer qualquer
reparo a seu comportamento no caso, além da constatação de
que era o comportamento de um cavalheiro bem nascido.
Mostrou também uma inteligência lúcida, como fazia nas
comissões. Fazia uma visita à Srta. Rome no teatro, onde
encontrara o capitão Cutler; tiveram, por um pequeno espaço
de tempo, a companhia do réu, que voltara depois a seu
camarim; enquanto estavam ali, juntou-se a eles um padre
católico, que vinha à procura da vítima e dissera chamar-se
Brown. A Srta. Rome fora então até o lado de fora, para
mostrar ao capitão Cutler a flora onde deveria comprar outras
flores para ela; a testemunha ficara no camarim, e trocara
algumas palavras com o padre. Ouvira claramente quando a
Srta. Rome, depois de orientar o capitão, voltou-se e correu
rindo para o outro extremo da passagem, onde ficava o
camarim do réu. Curioso com os movimentos de sua amiga,
saíra até a passagem e olhara na direção da porta do acusado.
Vira alguma coisa na galeria? Sim, ele vira alguma coisa.
Sir Walter Cowdray se permitiu uma pausa de efeito,
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durante a qual a testemunha manteve os olhos baixos e,


apesar de sua natural compostura, parecia mais pálido que de
costume. Então o promotor perguntou num tom mais baixo,
que misturava simpatia e algo de macabro:
- Chegou a ver com clareza?
Sir Wilson Seymour, embora emocionado, continuava com
as idéias claras.
- Vi claramente o contorno da figura sem poder determinar
sua fisionomia ou detalhes. A galeria tem um comprimento que
faz qualquer um dentro dela aparecer como uma sombra
contra a claridade no fundo.
A testemunha outra vez baixou seu olhar calmo e
continuou: - Já reparara nisso antes, quando vi o capitão
Cutler chegar.
Houve outra pausa, e o juiz se inclinou para anotar algo
em uma folha de papel. - Bem - disse Sir Walter, paciente -,
como era esse contorno? Seria talvez a figura da vítima?
- A mim me pareceu - respondeu a testemunha - um
homem alto.
Os olhos de todos na corte se mantiveram fixos em
alguma coisa - na caneta, no livro, num cabo de guarda-chuva,
no bico dos sapatos -, qualquer coisa para a qual estivessem
olhando, que pudesse prender seus olhos e evitar que
olhassem para o homem no banco dos réus, que sabiam
gigantesco. Bruno, alto como era, ficava ainda mais alto
quando não o olhavam.
Cowdray voltava para a cadeira, alisando a toga negra com
suas costeletas brancas e uma face solene; Sir Wilson se
preparava para deixar o banco das testemunhas, quando o
advogado da defesa se levantou e o interrompeu.
- Vou retê-lo apenas por mais alguns minutos - disse o Sr.
Butler, que era um homem de aspecto rústico, com
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sobrancelhas ruivas e uma expressão sonolenta. - O senhor


explicaria a essa corte como soube tratar-se de um homem?
Um sorriso refinado e distante pareceu cruzar o semblante
de Seymour.
- Acho que foram as calças - disse ele. - Quando vi a luz
que passava entre as pernas longas, convenci-me afinal que se
tratava de um homem.
Os olhos sonolentos de Butler se arregalaram repentina-
mente como numa explosão silenciosa.
- "Convenci-me afinal!" - repetiu devagar. - Então antes o
senhor pensara que era uma mulher?
Pela primeira vez, Seymour pareceu confuso.
- Não estamos falando de fatos, mas de impressões - disse
ele. - Mas se quer saber de minha impressão, havia algo
naquela figura que não era feminino, e ainda assim não era
exatamente como um homem, as curvas eram diferentes, e
parecia ter cabelos longos.
- Obrigado - disse o Sr. Butler, e sentou-se como se
houvesse conseguido o que queria.
O capitão Cutler era uma testemunha muito menos
composta e plausível que Sir Wilson, mas seu relato dos fatos
iniciais era exatamente o mesmo. Descreveu o retorno de
Bruno a seu camarim, sua própria saída para comprar os lírios,
seu retorno pelo lado de cima, o vulto que vira na galeria, sua
suspeita de Seymour e a luta com Bruno. Mas não foi capaz de
muitos detalhes sobre a figura que ele e Seymour haviam
visto. Indagado sobre o contorno do vulto escuro, disse que
não era um crítico de arte, numa óbvia indireta a Seymour.
Perguntado se era um vulto de homem ou de mulher, disse que
parecia mais o vulto de um animal, numa óbvia indireta ao
réu. Mas estava claramente abalado pela dor e tomado de uma
raiva sincera. Cowdray em pouco tempo o liberou, não vendo a
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necessidade de confirmar fatos já esclarecidos.


Como já fizera antes, o advogado de defesa também foi
rápido em suas perguntas, embora (como era seu hábito)
mesmo sendo rápido, ele parecia perder um tempo enorme. -
O senhor usou uma expressão muito interessante - disse
olhando para Cutler com ar sonolento. - O que quer dizer
quando afirma que se parecia mais com um animal do que
com uma mulher, ou um homem?
Cutler parecia muito agitado.
- Talvez não devesse ter dito isso - disse -, mas quando se
trata de alguém com os ombros arqueados de um chipanzé e o
cabelo duro como o de um porco ...
- Esqueça se seu cabelo parecia o de um porco - Butler o
interrompeu, impaciente de curiosidade; - era como o de uma
mulher?
- Como o de uma mulher! - exclamou o soldado. - Meu
Deus, não!
- A última testemunha disse que sim - retorquiu o
advogado com inescrupulosa rapidez. - E seu corpo tinha as
curvas sinuosas e semifemininas a que se referiu? Não? Não
tinha curvas femininas? Era um vulto, se estou entendendo
bem, mais para o corpulento e pesado?
- Talvez estivesse curvado para frente - disse Cutler em
voz fraca e rouca.
- E talvez não estivesse - disse o Sr. Butler, e pela segunda
vez foi sentar-se terminando abruptamente com a testemunha.
A terceira testemunha chamada por Sir Walter Cowdray foi
o pequeno padre católico, tão pequeno em relação aos outros
que sua cabeça mal se via no banco das testemunhas, de
forma a parecer que interrogavam uma criança. Por infortúnio,
Sir Walter metera na cabeça (em boa parte devido a certos
preconceitos religiosos) que o padre Brown estava do lado do
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réu, já que o réu era um ímpio, um estrangeiro e até meio


negro. Por isso, tratou-o de modo ríspido todas as vezes que o
sacerdote tentava explicar qualquer coisa, dizendo a ele que
respondesse com um sim ou não, e relatasse os fatos sem
sofismas e jesuitismos.
- Uma figura negra foi vista na galeria. E o senhor diz ter
visto essa figura. Bem, que forma tinha essa figura?
Os olhos do padre piscaram diante do tom agressivo, mas
ele tinha anos de treino em obediência.
- A figura - ele disse - era pequena e corpulenta. Tinha
duas projeções agudas na lateral da cabeça, ou do chapéu,
curvadas para cima, que se pareciam muito com chifres, e ... -
Oh! Com chifres? Era o diabo, sem dúvida! - exclamou
Cowdray, sentando-se com um riso de triunfo. - O diabo que
veio para comer os protestantes.
- Não, não era o diabo - disse o padre sem se alterar. - Eu
sei quem era.
A audiência fora tomada pela idéia irracional de uma
realidade monstruosa. Havia esquecido o homem no banco dos
réus e pensava apenas naquele vulto da galeria. E o vulto,
descrito por três testemunhas oculares, capazes e respeitáveis,
era um pesadelo mutante - uma testemunha o descrevera
como uma mulher, a outra como uma besta, e a terceira como
o demônio ...
O juiz olhava para o padre Brown com olhos atentos e
avaliadores.
- Seu testemunho é dos mais fantásticos - disse -, mas
alguma coisa nele me faz pensar que o senhor está tentando
dizer a verdade. Bem, quem era o homem que viu na galeria?
- Era eu mesmo - disse o padre Brown.
Butler levantou-se e quebrou o extraordinário silêncio na
sala com a voz calma: - Meritíssimo, permita que eu
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interrogue a testemunha.
E então, sem esperar, fez uma pergunta aparentemente
desconexa a Brown:
- O senhor ouviu os depoimentos sobre esse punhal; sabe
que os peritos dizem que o crime foi cometido com uma lâmina
curta?
- Uma lâmina curta - concordou Brown, balançando a
cabeça como uma coruja - mas com uma longa empunhadura.
Antes que a audiência pudesse descartar completamente a
idéia de que o padre vira a ele mesmo cometendo o crime com
um punhal curto e de longa empunhadura (o que de alguma
forma parecia aumentar o horror da coisa), ele se apressou a
explicar.
- O que quero dizer é que punhais não são as únicas
armas com lâminas curtas.
Lanças têm lâminas curtas. As pontas das lanças são
muito parecidas com punhais, especialmente essas lanças
estilizadas para o teatro. Como aquela que o pobre Parkinson
usou para matar sua esposa; e logo no dia em que ela me
chamara para tentar resolver seus problemas conjugais.
Cheguei tarde demais. Deus me perdoe! Mas ele morreu
arrependido, na verdade morreu de arrependimento. Não
conseguiu suportar o que fizera.
A impressão da audiência, ouvindo o interminável fluxo
verborrágico do pequeno padre, era a de que ele enlouquecera
no banco das testemunhas. Mas o juiz continuava olhando para
ele com olhos que brilhavam de interesse, e o advogado de
defesa continuou imperturbável com suas perguntas.
- Se Parkinson cometeu o crime com a lança de
pantomima - disse Butler -, fez isso a alguma distância da
vítima, como o senhor explicaria os sinais de resistência e luta,
como o vestido rasgado no ombro? - Ele começara a tratar a
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testemunha como se fosse um perito, mas naquele momento


ninguém deu atenção a isso.
- O vestido da pobre senhora se rasgou - disse a
testemunha - porque ficou preso num painel que deslizou da
parede ao lado dela. Estava tentando soltar o vestido quando
Parkinson saiu do camarim do acusado e a matou com a lança.
- Um painel? - perguntou o advogado.
- Pelo lado de dentro era um espelho - explicou o padre
Brown. - Quando estive no camarim, notei que alguns espelhos
podiam deslizar para o lado de fora, quero dizer, para a
galeria.
Outra vez houve um grande silêncio na sala, e desta vez
foi o juiz quem falou.
- Então quando o senhor olhou na galeria o que viu foi ao
senhor mesmo, refletido num espelho?
- Sim, meritíssimo; era o que estava tentando dizer, me
pediram que descrevesse o contorno do vulto; e nossos
chapéus têm abas que se parecem chifres, assim eu ...
O juiz se inclinou para frente, seus olhos estavam ainda
mais brilhantes, e ele disse numa voz com um traço de ironia:
- O que o senhor realmente está dizendo é que quando Sir
Wilson Seymour viu aquela coisa estranha com curvas e
cabelos de mulher, mas vestindo calças de homem, o que viu
na verdade foi Sir Wilson Seymour?
- Sim, senhor - disse o padre Brown.
- E quando o capitão Cutler viu um chipanzé, com ombros
arqueados e cabelos de porco, simplesmente olhava para ele
mesmo? - Sim, senhor.
O juiz se recostou na cadeira com ar de satisfação, no qual
era difícil separar o cinismo irônico da admiração.
- E o senhor tem alguma idéia da razão - ele perguntou -
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de ter reconhecido seu reflexo, quando dois homens tão


brilhantes não conseguiram fazer o mesmo?
Os olhos do padre Brown piscaram mais ainda do que
antes, e ele balbuciou:
- Realmente não sei, senhor, a menos que seja porque não
me olho no espelho com tanta freqüência.

Tradução de Octávio Marcondes

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