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O ASSASSINO

ARTHUR SCHNITZLER

(1861-1931 - Áustria)

Um jovem, doutor em direito canônico e romano,


sem exercer sua profissão, órfão de pai e mãe, vivendo
em circunstâncias confortáveis, benquisto por sua
agradável companhia, estabelecera havia mais de um
ano uma relação com uma moça de origem humilde,
que, sem parentes como ele, não tinha necessidade de
levar em consideração a opinião alheia. Logo no início
do relacionamento, menos por bondade ou paixão do
que pela necessidade de gozar sua felicidade da forma
mais tranqüila possível, Alfred levara a amante a deixar
seu emprego como balconista numa respeitada loja
vienense. Mas, depois que, durante longo tempo,
embalado pela grata ternura da amante e pelo mais
confortável gozo da liberdade comum, se sentira melhor
do que durante qualquer relacionamento amoroso
anterior, começou a sentir paulatinamente aquela
inquietude promissora, sua velha conhecida, que, em
outros casos, lhe prenunciava o fim iminente da relação
amorosa, um fim que, neste caso, parecia não ser ainda
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previsível. Já estava se vendo, em sua mente, como


companheiro de sina de um amigo de juventude que,
envolto fazia anos num relacionamento similar, era
obrigado a levar agora uma vida retirada e limitada,
como enfadado pai de família; e algumas horas, que
sem intuições dessa espécie lhe teriam oferecido o mais
puro dos prazeres, ao lado de um ser tão gracioso e
suave como Elise o era, começaram a lhe causar enfado
e sofrimento. Embora tivesse a capacidade e, fato ao
qual gostava de atribuir maior valor ainda, a deferência
de não deixar Elise nada notar desses estados de alma,
eles possuíam, todavia, o poder de fazê-lo procurar
novamente com maior freqüência os círculos da alta
burguesia, dos quais havia se afastado quase que por
completo no decorrer do último ano. E quando, por
ocasião de uma festa dançante, uma dama muito
cortejada, filha de um próspero industrial, veio a seu
encontro com surpreendente amabilidade, fazendo-o
ver muito subitamente uma possibilidade fácil de
estabelecer uma relação que fosse mais adequada à sua
posição social e à sua fortuna, começou a sentir aquela
outra, que havia começado como uma aventura alegre e
desemba-raçada, como um incômodo grilhão de que um
jovem de seus méritos poderia se desvencilhar sem
escrúpulos. Contudo, a sorridente calma com que Elise
sempre tornava a recebê-lo, sua entrega sempre igual
nas horas em que estavam juntos e que agora iam se
tornando mais escassas, a ingênua segurança com que
ela o deixava partir de seus braços para um mundo que
lhe era desconhecido, tudo isso não apenas afastava de
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seus lábios, todas as vezes, as palavras de despedida,


antes sempre prestes a serem proferidas, mas também
o enchia de uma espécie de torturante compaixão,
cujas manifestações quase inconscientes só poderiam
parecer, a uma mulher tão crédula como Elise, novos e
mais densos sinais de sua inclinação. E assim a coisa
chegou a um ponto em que Elise acreditava ser adorada
por ele, de forma mais cálida do que nunca, justamente
nas ocasiões em que ele voltava de um encontro com
Adele; quando ele, agitado pela lembrança de olhares
doces e interrogativos, apertos de mão cheios de
promessas e, finalmente, em meio à embriaguez dos
primeiros beijos escondidos, voltava para aquela casa
dedicada só a ele e a seu amor; e em lugar de
despedir-se com um adeus, como se dispusera a fazer
ainda no limiar da porta, Alfred deixava a amante todas
as manhãs com novas juras de eterna fidelidade.
Assim passaram-se os dias entre as duas aventuras;
finalmente só restou a decisão sobre qual anoitecer
seria mais apropriado para a inevitável explicação a
Elise; a saber, se seria a noite anterior ao noivado com
Adele, ou a seguinte; e na primeira dessas duas noites,
como ainda ficara um prazo pela frente, Alfred
compareceu à casa da amante num estado de espírito
quase tranqüilizado pelo hábito desse seu jogo duplo.
Encontrou-a pálida, como nunca a vira antes,
recostada num canto do divã; ela também não se
ergueu como de costume quando de sua entrada, para
oferecer-lhe testa e os lábios aos beijos de boas-vindas,
mas mostrou um sorriso cansado, um pouco forçado, de
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tal forma que, simultaneamente com uma sensação de


alívio, cresceu em Alfred a conjetura de que a notícia de
seu iminente noivado tivesse chegado até ela, não
obstante todas as precauções, seguindo o caminho
enigmático de todos os boatos. Mas, apesar de todas as
precipitadas perguntas, nada ficou sabendo a não ser
que Elise, de tempos em tempos, sofria de espasmos no
coração, fato que ela ocultara até então, e que desses
espasmos em geral ela rapidamente se restabelecia; só
que, dessa vez, seus efeitos ameaçavam ser mais
duradouros do que nunca. Alfred, consciente de suas
intenções culposas, ficou tão tocado com estas
revelações que exagerou em suas manifestações de
compaixão e bondade; e, antes da meia-noite, sem
compreender como poderia ter chegado tão longe,
havia desenvolvido com Elise o plano de uma viagem
em comum, durante a qual ela encontraria com certeza
a cura para aqueles desagradáveis ataques.
Sentindo-se mais ternamente amado, mas também
imbuído da própria ternura do que nunca, ele se
despediu de Elise aquela noite com tal estado de
espírito que, no caminho de casa, cogitou seriamente
em enviar uma carta de renúncia a Adele, na qual
pensava em desculpar sua fuga do noivado e do
matrimônio como um decreto de sua errática natureza,
que não fora criada para uma felicidade perene e
tranqüila. As artísticas volutas de suas frases
perseguiram-no até o sono: mas já as luzes da manhã,
através das frestas da veneziana sobre seu cobertor,
fizeram-lhe parecer todo o esforço despendido como tão
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tolo quanto supérfluo. Sim, ele não teve capacidade de


se surpreender com o fato de que a amante, vítima,
agora, do sofrimento, e com quem passara a noite
anterior, lhe desse agora a impressão de estar
incrivelmente longe, como alguém que fora abando-
nado, enquanto Adele pairava diante de seu espírito,
florescendo no odor de incomensurável nostalgia. Perto
do meio-dia, apresentou ao pai de Adele seu pedido de
casamento, que foi recebido com muita amabilidade,
embora sem inteiro consentimento. Fazendo alusões
simpaticamente zombeteiras a sua juventude, com
tanta freqüência sujeita a tentações, o pai exigiu que
Alfred fizesse, antes de mais nada, uma viagem de um
ano, para pôr à prova em terras longínquas a força e a
resistência de seus sentimentos; e até se opôs à
proposta de uma troca de correspondência entre os
jovens, para poder ficar seguro de ter eliminado a
possibilidade de ambos criarem falsas ilusões. Quando
Alfred voltasse com as mesmas intenções, e se
encontrasse os mesmos sentimentos por parte de
Adele, dos quais agora ela estava convencida, ele
próprio não interporia o menor empecilho ao
matrimônio do jovem casal. Alfred, que parecia
submeter-se a estas condições apenas com muita resis-
tência, tomou-as, em verdade, como um novo
adiamento do prazo de seu destino; respirando aliviado,
e após breve reflexão, declarou que, sob tais
circunstâncias, preferia se despedir já àquela hora,
ainda que fosse apenas para trazer para mais perto o
fim do tempo de separação exigido. De início Adele
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pareceu ficar ferida por essa inesperada docilidade,


mas, após uma breve conversa entre os dois, permitida
pelo pai, Alfred convencera a noiva até o ponto de fazê-
la admirá-lo pela prudência de seu amor, deixando-o
partir, com juras de fidelidade e até lágrimas nos olhos,
para a perigosa separação.
Nem bem tinha chegado à rua, Alfred começou a
pensar em todas as possibilidades que trariam uma
solução para seu relacionamento com Elise, no decurso
do ano que ora estava à sua disposição. E sua ânsia de
liquidar as questões mais difíceis da vida sem a
intervenção ativa de Elise foi tão onipotente que acabou
por vencer não apenas sua vaidade, mas também se
mostrou favorável ao surgimento de sombrias
premonições, perante as quais, normalmente, seu
espírito dolente preferia recuar. A obrigação de uma
convivência mais estreita, à qual não estaria
acostumada, e que surgiria durante a viagem, assim
pensava ele, poderia muito bem trazer como
conseqüência que Elise esfriasse seus sentimentos e se
afastasse dele pouco a pouco; e também a doença
cardíaca da amante permitia pensar na perspectiva de
uma outra forma de libertação, evidentemente mais
indesejável. Logo, porém, Alfred afastou de si ambas as
idéias, a esperança e o temor, com um movimento tão
impetuoso, que no fim não havia nele nada mais do que
uma expectativa alegre e infantil de uma colorida
viagem de prazer para terras distantes, em companhia
de um ser amável e a ele afeiçoado; e na mesma noite
ainda tagarelou com a cândida amante, no mais alegre
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dos humores, sobre as agradáveis perspectivas da


viagem iminente.
Visto que a primavera estava se aproximando,
Alfred e Elise foram inicialmente à procura das suaves
margens do lago de Genebra. Mais tarde subiram para
altitudes mais frias, passaram o fim de verão num
balneário inglês, visitaram no outono cidades holan-
desas e alemãs, para finalmente fugirem ao tempo mais
sombrio que se aproximava, buscando o consolo do sol
meridional. Até ali não apenas Elise, que antes não fora
além dos arredores de Viena, flutuara pelo ano todo
como alguém que tem sonhos preciosos, dando a mão a
seu amado cicerone; também Alfred, por mais que
estivesse consciente o tempo todo do futuro e de suas
dificuldades apenas adiadas, tinha se entregue sem
reservas ao precioso presente, como se a felicidade de
Elise o aprisionasse. E enquanto, no inicio da viagem,
tentara cuidadosamente fugir de encontros com
pessoas conhecidas, evitando, na medida do possível,
mostrar-se com Elise em passeios mais concorridos ou
nos restaurantes de grandes hotéis, mais tarde
desafiava o destino com uma certa premeditação, e
estava preparado, com gosto, para receber um
despacho de sua noiva, em que ela o acusava de
quebra de fidelidade e, dessa forma, se ver livre de
uma posse que ainda ansiava calidamente, mas
também de todo dilema, de toda inquietação, de toda
responsabilidade. Contudo, nenhum telegrama, nenhu-
ma notícia de sua pátria veio até ele, pois Adele, contra
a vã expectativa de Alfred, atinha-se tão estritamente
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quanto ele ao acordo exigido pelo pai.


Mas chegou a hora em que, pelo menos para Alfred,
aquele ano de maravilhas teve um fim abrupto, parece-
ndo se deter no tempo subitamente, sem mágica e mais
vazio do que qualquer outro ano já por ele vivido. Isso
ocorreu no Jardim Botânico de Palermo, num claro dia
de outono, quando Elise, que até então se mostrara
saudável, vivaz e florescente, de repente levou as duas
mãos ao coração, olhou para o amante angustiada e
voltou logo a sorrir, como se estivesse consciente de um
dever, o de não lhe causar qualquer incômodo. Isso,
porém, em vez de comovê-lo, encheu-o de amargura,
que ele, é claro, soube disfarçar de imediato sob a
expressão da preocupação. Censurou-a, sem que ele
próprio acreditasse no que dizia, por ter-lhe certamente
ocultado ocorrências semelhantes por diversas vezes;
deu expressão a sua mágoa, pois ela evidentemente
considerava que ele não tinha coração; exortou-a a
procurar naquele dia ainda um médico e ficou bastante
sossegado quando ela, devido a sua reduzida confiança
nas artes terapêuticas dos médicos locais, recusou.
Contudo, quando ela, repentinamente, parecendo
esfuziante de gratidão e amor, ali, a céu aberto, no
banco diante do qual passavam as pessoas, apertou a
mão de Alfred contra os lábios, este sentiu, como uma
onda fugaz, o ódio disparar por suas veias; a presença
desse sentimento o surpreendeu de início, mas logo ele
conseguiu se desculpar com a lembrança das muitas
horas de enfado e de vazio que haviam sido, como de
repente acreditava descobrir, demasiado freqüentes
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durante a viagem. Simultaneamente inflamou-se nele


um desejo tão ardente por Adele que, apesar de todos
os acordos, enviou-lhe no mesmo dia uma carta, na
qual implorava por uma palavra a ser enviada para
Gênova, e assinou eternamente seu.
Poucos dias depois encontrou em Gênova sua
resposta, que dizia: E eu, sua pelo mesmo tempo. Com
o telegrama amarrotado junto ao peito, e que agora,
não obstante o tom dubiamente jocoso, parecia-lhe a
quintessência da esperança, iniciou com Elise uma
viagem para o Ceilão, a qual, como a parte
presumivelmente mais bela de todas, fora deixada para
o fim. Elise precisaria ter sido dona de um espírito mais
ardiloso do que lhe era próprio para poder intuir,
durante essa viagem, que só o audaz jogo da
imaginação de Alfred lhe estava a conferir maiores
deleites de amor do que nunca; para poder saber que
não era mais ela mesma quem se deitava em seu colo
nas silenciosas e escuras noites marítimas, mas sim a
noiva distante, magicamente trazida para perto, em
toda sua força vital, pela saudade de Alfred. Mas na
tórrida ilha, à qual por fim chegaram, na pesada
uniformidade da última estada, quando ele percebeu
que a fantasia, violentamente exigida, lhe negava seus
préstimos, começou a se manter afastado de Elise e foi
suficientemente pérfido para indicar como motivo de
sua reserva uma nova e leve advertência da doença do
coração, que sobreviera logo ao pôr o pé em terra
firme. Ela o aceitou, como tudo o que dele viesse, como
sinal de um amor que agora lhe significava todo o
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sentido e toda a bem-aventurança da vida. E quando


ela, sob o brilho selvagem de um céu azul-dourado,
fortemente abraçada a ele, viajava pelas sombras
sussurrantes das florestas, ignorava que seu
acompanhante só ansiava pela hora solitária em que,
sem ser incomodado por Elise, teria a oportunidade de
colocar no papel, com a pena esvoaçante, cálidas
palavras dirigidas à outra, de cuja existência no mundo
Elise, até então, nada sabia e nunca iria saber. Em tais
horas de solidão, seu desejo pela outra, distante,
crescia com tal intensidade que a próxima, aquela que
lhe pertencia, aquela com a qual estava viajando pelo
mundo durante já quase um ano, era por ele
inteiramente esquecida, até nos traços de seu rosto, até
nas nuanças de sua voz. E quando, na noite anterior ao
início da viagem de retorno, vindo do escritório,
encontrou Elise prostrada sobre o leito, quase
inconsciente, vítima de um novo e intenso ataque,
reconheceu, com uma sensação leve e quase doce de
horror, que aquilo que em outras oportunidades ele
acreditara sentir em si como uma espécie de silencioso
temor era a nunca apagada, a obscuramente
incandescente esperança de sua alma. Apesar disso,
sem demora e com uma emoção realmente dolorosa ele
mandou chamar um médico, que apareceu rapidamente
e mitigou o sofrimento da enferma com uma injeção de
morfina. Ao pretenso marido, que declarava por
motivos de força maior não poder adiar a viagem, que
agora parecia arriscada, o médico entregou um bilhete
em que recomendava à doente os cuidados especiais do
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médico de bordo.
Logo nos primeiros dias, o ar marítimo pareceu ter
efeito benigno sobre Elise. Sua palidez sumiu, sua
fisionomia tornou-se mais alegre, e ela mostrou-se mais
espontânea do que Alfred jamais tinha percebido. E
enquanto antes Elise se mantivera indiferente e até
hostil a qualquer aproximação de estranhos, por mais
inofensivos que fossem, agora ela não fugia às
conversas em comum, do tipo que a vida a bordo trazia,
e recebia com satisfação as respeitosas homenagens de
alguns passageiros do sexo masculino. Sobretudo um
barão alemão, que esperava encontrar no mar a cura de
uma enfermidade crônica dos pulmões, ficava tão
freqüentemente próximo de Elise como seria possível
sem chegar a ser importuno; e Alfred teria até se
convencido de que o comportamento encorajador que
Elise dispensava a este, o mais amável de seus
admiradores, era o sinal bem-vindo do florescimento de
uma nova inclinação. Mas quando, certa vez, fingindo
irritação com sua chocante amabilidade, Alfred tentou
pedir uma explicação a Elise, ela lhe declarou sorridente
que toda sua recente espontaneidade diante de outros
não tinha tido nenhuma outra finalidade senão
despertar os ciúmes do amante, e que ela se alegrava
de forma indizível pelo êxito de seu ardil. Dessa vez,
Alfred não conseguiu mais esconder sua impaciência,
sua decepção. Replicou à sua confissão, mediante a
qual Elise pensava tê-lo tranqüilizado e alegrado, com
palavras de uma dureza desconhecida para ela; em
meio a uma sombria perplexidade, ela resistiu àquelas
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palavras durante um certo tempo, até que subitamente


desmaiou e caiu sobre o piso da coberta, onde estava
ocorrendo o diálogo, tendo de ser carregada para a
cabine. O médico de bordo, já advertido pelo bilhete de
seu colega, não considerou necessário examiná-la mais
detidamente e trouxe ao coração torturado um alívio
passageiro, através do medicamento já uma vez
aplicado. Contudo, não pôde evitar que os ataques se
repetissem no dia seguinte e no terceiro dia, sem
qualquer motivo externo, e, mesmo que a morfina
nunca deixasse de fazer efeito, ele não pôde esconder o
temor de que a doença pudesse levar a um fim trágico;
assim, advertiu Alfred, de forma comedida porém
incisiva, que poupasse sua bela esposa em todos os
sentidos.
Alfred, em meio a seu obscuro e surdo rancor contra
Elise, teria facilmente se inclinado a obedecer ao
médico, sobretudo naquele ponto, em que suas
palavras pareciam uma severa proibição. Mas Elise,
ansiosa, conseguiu numa hora de solidão noturna arras-
tar o amante contrariado para dentro de seu coração,
como se desejasse reconciliá-lo através da ternura.
Porém, enquanto ela estava abandonada em seus
braços, com os olhos semicerrados, e ele via sobre sua
testa úmida refletir-se o brilho azulado das ondas que
entrava pela escotilha do camarote, Alfred sentiu, como
que provindo das maiores profundezas de sua alma, um
sorriso lhe subir aos lábios, um sorriso que ele mesmo
só lentamente entendeu ser desprezo, até de triunfo. E
enquanto ainda se tornava consciente, estremecendo,
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de sua obscura esperança, teve de dizer a si mesmo


que sua satisfação não consistiria apenas na salvação e
na fuga de toda aquela confusão; como também Elise,
tão logo reconhecesse que seu fim era inelutável, se lhe
fosse dada uma possibilidade de escolha, não desejaria
outro fim que o de falecer em meio a seus beijos. E
enquanto ela, agora, ciente do perigo, parecia disposta,
em entregas cada vez mais apaixonadas, a partir por
amor e através do amor, ele próprio se acreditava
suficientemente forte para aceitar um sacrifício por
meio do qual, por mais monstruoso que fosse, no
entrelaçamento de circunstâncias do destino, a sorte de
três seres humanos poderia ser alterada de forma
propícia.
Mas enquanto, noite após noite, observava o fraco
brilho de seus olhos, o desfalecido exalar de sua
respiração, com horror esperançoso passou a sentir-se
como que enganado sempre que, um minuto mais
tarde, seus olhares despertados reluziam gratos nos
dele, o hálito quente de seus lábios bebia com novo
desejo o dele, e assim, todo o aparato que sua mortal
perfídia não tinha servido a outro fim senão infundir
mais vida nos pulsos de Elise. E ela estava tão segura
de seu amor que, de dia, quando ele a deixava durante
horas sozinha ou na companhia de outras pessoas, para
entregar na coberta superior sua testa febril ao refresco
do vento marítimo, Elise ficava despreocupada e recebia
o sorriso perplexo e desvairado com o qual ele voltava
como se fosse uma carinhosa saudação, que ela
retribuía.
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Em Nápoles, onde o barco ia atracar para um


descanso de um dia, para depois zarpar sem escalas
para Hamburgo, Alfred esperava encontrar uma carta
de Adele, a qual implorara com palavras ardentes, pela
última vez, do Ceilão. O tempo tempestuoso obviou-lhe
o esforço de encontrar uma desculpa para, sem a
companhia de Elise, deixar-se levar até terra firme num
dos barcos que estavam à disposição, juntamente com
outros passageiros. Foi até o correio, adiantou-se até o
guichê, deu seu nome e teve de retirar-se com as mãos
vazias. Embora tentasse acalmar-se com a idéia de que
a carta de Adele poderia não ter sido enviada a tempo,
ou ter se perdido, a sensação de aniquilação que lhe
sobreveio após essa decepção o fez reconhecer que,
para ele, uma vida futura sem Adele era impensável.
Chegado ao fim de sua capacidade de simulação,
pensou de início em contar impiedosamente toda a
verdade a Elise, tão logo retornasse ao navio. Logo
raciocinou, porém, que as conseqüências de tal
confissão não seriam previsíveis, que poderiam atingir
Elise, mortal e instantaneamente, ou poderiam levá-la à
loucura ou ao suicídio; além do mais, tal acontecimento
dificilmente ficaria oculto em suas causas e, com isso,
seu relacionamento com Adele poderia se tornar
funesto. Temia que o mesmo aconteceria se ele adiasse
a confissão para o último momento, até o desembarque
em Hamburgo, ou mesmo até a chegada em Viena. Em
meio a tão desesperados pensamentos e quase que
inconsciente já de sua perfídia, Alfred vagava pela
praia, perto do meio-dia, sob o sol incandescente,
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quando subitamente sentiu tonturas e pensou estar


próximo de um desmaio. Cheio de medo, deixou-se cair
sentado sobre um banco e assim ficou, até que o
espasmo cedeu e as névoas diante de seus olhos
sumiram. Depois respirou fundo, como que
despertando. Sabia, de repente, que no instante
inconcebível em que seus sentidos ameaçaram
abandoná-lo, uma decisão tinha amadurecido até o fim,
terrível e clara, uma decisão que há muito havia se
preparado nas profundezas de sua alma. O desejo
ardente e cruel, cuja satisfação tentara incentivar
durante todos aqueles dias como que a partir de um
covarde esconderijo, ele precisava agora, sem mais
delongas, transformar em ação com sua própria vonta-
de, com suas próprias mãos. E como resultado de uma
longa reflexão interior, surgiu em sua mente um plano
pronto.
Levantou-se e foi, antes de mais nada, para um
hotel, para lá almoçar com o melhor dos apetites.
Depois procurou três médicos, a todos os quais se
apresentou como um doente que sofria de dores
insuportáveis, e que, acostumado há anos à morfina,
tivesse chegado ao fim sem suprimento; recebeu as
receitas, fez com que fossem aviadas em diferentes
farmácias e se encontrou, ao voltar a bordo com o sol
poente, na posse de uma dose que podia considerar
mais do que suficiente para seu intento. À mesa do
jantar contou com palavras do mais elevado
encantamento sobre um passeio por Pompéia, para o
qual teria aproveitado o dia transcorrido, e, com
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ardente prazer na mentira, como se devesse


superlativar seu próprio ser para o que há de mais
diabólico, alongou-se na descrição de um quarto de
hora que teria passado no jardim de Appius Claudius,
diante de uma estatueta, que em verdade nunca vira e
a respeito da qual lera casualmente num guia de
viagens. Elise estava sentada a seu lado; em frente a
ela, o barão; os olhares dos dois se encontraram e
Alfred não conseguiu repelir a impressão de que ali dois
fantasmas se fitavam com suas órbitas vazias.
Mais tarde, como em tantas outras ocasiões,
passeou com Elise pela coberta superior, ao luar,
enquanto ao longe desaparecia o brilho das luzes da
costa. Como durante um segundo se sentiu fraquejar,
reacendeu sua decisão imaginando que era o braço de
Adele aquele que apertava contra o seu, e, pela onda
de ardor que disparou por suas veias, reconheceu que a
felicidade que o esperava não teria sido comprada a um
preço alto demais nem pela mais terrível das culpas. Ao
mesmo tempo, porém, começou a surgir nele,
misteriosamente, algo semelhante à inveja pela jovem
criatura a seu lado, que estava destinada a encontrar a
saída salvadora de todas as confusões da vida sem
sofrimento nem apreensão.
Quando na cabine, abraçou Elise pela última vez
com uma clareza incrementada até quase o insuportá-
vel, mas também com desesperado prazer, sentiu-se
como o executor de um destino do qual sua vontade
não mais participava. Só um gesto de seus dedos teria
bastado para entornar o copo, que rebrilhava azul na
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mesinha, e as gotas de veneno teriam embebido, como


umidade inofensiva, o chão indiferente do camarote.
Mas Alfred ficou imóvel, esperando. Esperou até
perceber, finalmente, com o coração aos saltos, um
movimento de Elise que lhe era conhecido, pelo qual ela
estendeu a mão, com os olhos semicerrados, em
direção ao copo, para, como sempre o fazia antes de
adormecer, mitigar sua última sede. Viu com as
pálpebras desmesuradamente abertas, sem se mexer,
como ela se erguia um pouco, colocava o copo nos
lábios e bebia seu conteúdo de uma vez. Depois ela
voltou a se deitar com um leve suspiro, aninhando a
cabeça, como de hábito, no peito de Alfred, até
adormecer. Alfred sentia em sua fronte um martelar
lento e surdo, via a respiração calma de Elise e ouvia as
ondas batendo como uma queixa na proa do navio, que
flutuava através de um tempo que se havia detido.
De repente sentiu um intenso estremecimento
percorrer o corpo de Elise. Suas duas mãos agarraram o
pescoço dele, seus dedos pareciam querer penetrar em
sua pele e só depois, com um longo gemido, ela abriu
os olhos. Alfred se soltou de seu abraço, saltou da
cama, viu como ela tentava se levantar, debatia-se com
os braços no vazio, deixou vaguear um olhar treslou-
cado pela penumbra, para, de repente, tornar a cair
deitada totalmente imóvel, respirando de forma curta e
fraca. Alfred logo percebeu que ela perdera a consciên-
cia, e se perguntou, friamente, quanto tempo duraria
esse estado, antes do fim. Ao mesmo tempo pensou
que, no presente estado, ela talvez ainda pudesse ser
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salva; e, com o obscuro sentimento de, dessa forma,


tentar uma última vez o destino, quer aniquilando ele
próprio os frutos de sua ação, quer, correndo audaz-
mente um risco, expiando sua culpa, saiu à procura do
médico. Se este descobrisse o que ali se passara, o jogo
deveria estar definitivamente perdido para ele; caso
contrário, ele próprio se absolveria para todo o futuro
de qualquer culpa ou arrependimento.
Quando Alfred entrou no camarote com o médico,
Elise jazia pálida, com os olhos semicerrados e vítreos,
os dedos cravados no cobertor e gotas brilhantes sobre
a testa e as faces. O médico se inclinou, pôs seu ouvido
sobre o peito dela, ouviu longamente, sacudiu a cabeça
preocupado, separou as pálpebras de Elise, colocou a
própria mão diante dos lábios, ouviu novamente; depois
voltou-se para Alfred e lhe comunicou que a luta com a
morte havia chegado ao fim. Com um olhar tresloucado,
que não era fingido, Alfred juntou as mãos sobre a
cabeça, caiu diante da cama e ficou com a testa
apertada contra o joelho de Elise, durante um tempo.
Depois girou o corpo e fitou o médico com o olhar
perdido; este lhe ofereceu a mão num gesto de
compaixão; Alfred não a aceitou, sacudiu a cabeça e,
em posse plena de sua clareza interior, como que numa
demasiadamente tardia auto-recriminação, murmurou
para si:
- Se tivéssemos seguido seus conselhos ... - Depois
escondeu, aflito, o rosto entre as mãos.
- Eu deveria ter imaginado - ele ouviu o médico
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responder, em suave tom de censura; e num


sentimento onipotente de triunfo sentiu o brilho e a luz
de seus olhos, por trás de suas pálpebras fechadas.
Já no dia seguinte, como o prescrevem os regula-
mentos, o cadáver de Elise foi deitado ao mar e Alfred,
como viúvo, sentiu-se rodeado pela compaixão geral,
silenciosamente discreta. Ninguém se atrevia a
incomodá-lo, quando caminhava pela coberta durante
horas, olhando para uma distância que, para ele, o que
ninguém podia pressupor, estava permeada do odor da
mais doce esperança. Só o barão juntava-se a ele às
vezes, durante curtos minutos, evitando, com evidente
intenção, mencionar o triste acontecimento, sequer com
uma palavra. Alfred sabia bem que a única coisa que
levava o barão a acompanhá-lo nestes passeios era a
vontade de se sentir, durante alguns instantes, en-
volvido novamente pela atmosfera da amada morta.
Para Alfred, esses momentos eram os únicos em que se
sentia tocado pelo passado; fora isso, ele tinha se
elevado para além do seu ato e do que este poderia
significar para os homens. Numa presença viva, a
imagem daquela que ele ansiava com ardor, daquela
que ele tinha obtido através da culpa, estava diante
dele; e quando olhava da proa para baixo, em direção à
água, era como se a visse correr pacificamente por
sobre mundos enterrados, para os quais era indiferente,
nas profundezas de seu sono, ter submergido no dia
anterior ou há mil anos.
Só quando a costa alemã se tornou visível, seu
pulso acelerou. Sua intenção era não permanecer em
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Hamburgo mais do que o necessário; retirar a carta que


ali deveria esperar por ele e viajar com o primeiro trem
para casa. A lentidão do desembarque lhe produziu uma
impaciência aflitiva; e respirou como que libertado
quando sua bagagem foi enfim colocada na carruagem
e ele dirigiu-se ao correio pelas ruas da cidade, sobre as
quais pendia, com pequenas nuvens cor-de-rosa, o fim
da tarde de primavera. Entregou seu cartão ao
funcionário dos correios, olhou ansioso como ele
folheava a correspondência, estendeu a mão, pronto
para receber sua carta, e recebeu a resposta de que
não havia nada para ele, nenhuma carta, nenhum
cartão, nenhum telegrama. Tentou um sorriso incrédulo
e pediu ao funcionário, num tom quase humilde, do
qual imediatamente se envergonhou, que verificasse de
novo. E agora Alfred tentava decifrar o que estava
escrito nas bordas dos envelopes; acreditou
repetidamente reconhecer seu nome na letra de Adele,
voltou a estender esperançoso várias vezes a mão - e
teve de ouvir mais uma vez que havia se enganado. Por
fim, o funcionário voltou a colocar o montinho de
envelopes no escaninho, sacudiu a cabeça e se afastou.
Alfred despediu-se com exagerada cortesia e se
encontrou no minuto seguinte em frente ao portão,
semi-atordoado. A única coisa clara para ele era que
estava preso na cidade e que não poderia ir a Viena de
maneira alguma sem antes ter em mãos alguma notícia
de Adele. Foi para um hotel, pegou um quarto e, antes
de mais nada, jogou as seguintes palavras num
formulário de telegrama: "Nenhuma palavra sua.
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Inconcebível. Desconcertado. Estarei depois de amanhã


em casa. Quando posso vê-Ia? Responda imediata-
mente." Colocou seu endereço e entregou o despacho
com resposta paga. Quando entrou no saguão, já
iluminado para a noite, sentiu um par de olhos fixos
nele; de uma poltrona, com um jornal sobre os joelhos,
sério, sem se levantar, o barão, de quem se havia
despedido superficialmente no navio, o cumprimentava.
Alfred mostrou-se contente com o encontro inesperado,
e de fato acreditava-se contente, e comunicou ao barão
sua intenção de ficar na cidade até o dia seguinte. O
barão, que apesar de suas faces pálidas e de sua
tossinha contínua afirmava sentir-se muito bem, propôs
durante o jantar que os dois fossem a um vaudeville e,
diante da resistência de Alfred, observou, com as
pálpebras semicerradas e em voz baixa, que a tristeza
nunca tinha ressuscitado ninguém. Alfred riu, assustou-
se com o próprio riso, achou que seu embaraço fora
percebido pelo barão e sentiu imediatamente que não
poderia fazer nada mais inteligente do que se reunir a
ele. Logo após, sentado a seu lado num camarote,
bebia champanhe, via através da fumaça e da névoa,
ao som de uma orquestra vulgar, ginastas e palhaços
em suas artes e brincadeiras, ouviu mulheres seminuas
cantarem canções indecentes e dirigiu a atenção de seu
silencioso companheiro, como sob uma irada
compulsão, para pernas bem-feitas e seios generosos
que se mostravam no palco. Depois gracejou com uma
vendedora de flores, jogou uma rosa amarela em
direção a uma bailarina, que agitava sedutoramente os
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cachos negros, e riu quando viu os lábios finos do barão


estremecerem num ricto de amargura e nojo. Mais
tarde sentiu como se, da sala embaixo, centenas de
olhares o fitassem com maldosa curiosidade e como se
todos os cochichos e sussurros se referissem apenas a
ele. Um calafrio de angústia correu por suas costas;
depois lembrou-se de que havia bebido muito depressa
um par de taças de champanhe, e ficou novamente
calmo. Observou com satisfação que, enquanto estivera
inclinado sobre o parapeito, duas mulheres maquiadas
haviam começado uma conversa com o barão; respirou
fundo, como se tivesse escapado de um perigo,
levantou-se, acenou com a cabeça para o companheiro,
encorajando-o e saudando-o pela aventura; e logo
partiu, sozinho, pelas ruas que nunca vira antes nem
jamais iria ver, assobiando para si uma melodia
qualquer e com a sensação de estar vagueando através
de uma cidade de sonho, em direção ao hotel.
Quando acordou de manhã, após um sono pesado,
precisou primeiro tomar consciência de que não estava
mais viajando no navio e de que o brilho branco, diante
dele, não era o roupão de Elise, mas uma cortina. Com
um portentoso esforço de vontade repeliu uma
lembrança que ameaçava surgir e tocou a campainha.
Com o café da manhã trouxeram-lhe um telegrama.
Deixou-o na bandeja enquanto o garçom ficou no
quarto; e sentiu como se essa espera merecesse um
prêmio. Imediatamente depois que a porta foi fechada,
abriu o telegrama com dedos trêmulos; as letras
primeiro dançavam diante de seus olhos, mas, de
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repente, ficaram paradas, estáticas e imensamente


grandes: "Amanhã, às 11 horas da manhã. Adele".
Correu de um lado para o outro, riu por entre os dentes
e não se deixou abalar pelo tom curto e frio da
mensagem. Esse era seu jeito. E mesmo se em casa ele
não encontrasse tudo como até há pouco imaginara,
mesmo se algumas novidades desagradáveis
estivessem a sua espera, o que tinha de mais? Voltaria
a se defrontar com ela, a ficar ao alcance da luz de seus
olhos, do odor de seu hálito e, portanto, aquela
monstruosidade não tinha sido em vão.
Não ficou por mais tempo no hotel; durante o pouco
tempo que faltava até a partida do trem ele perambulou
pela cidade, com os olhos exageradamente abertos,
mas sem ver pessoas e coisas. Ao meio-dia partiu de
Hamburgo: fitou durante horas e horas, através da
janela do vagão, a paisagem que passava veloz;
reprimindo com a bem treinada força de sua vontade
tudo o que nele queria se mover enquanto
pensamentos, esperanças e temores; e quando, para
não chamar demasiadamente a atenção dos outros
passageios, ele pegava num livro ou jornal, contava,
sem ler, várias vezes até cem, quinhentos, mil. Quando
se fez noite, uma saudade extenuante rompeu com
todos os seus esforços de manter a compostura.
Repreendia-se por ter interpretado mal a falta de
notícias e o tom o último telegrama e não conhecia
nenhuma outra censura contra Adele, a não ser a de
que ela se ativera mais cabalmente ao acordo do que
ele. Mas mesmo que ela, de alguma forma, tivesse
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sabido que viajara em companhia de uma mulher, ele


se sentia suficientemente forte em seu amor para
ganhar de volta a ofendida, contra todo ciúme e toda
amargura. E chegou a se fazer senhor dessas fantasias
a um ponto tal que nessa noite infinita conseguiu ouvir
a melodia de sua voz, ver o contorno de sua figura e
seus traços, sim, e até sentir seu beijo, tão
ardentemente doce, como na realidade nunca lhe fora
dado receber de seus lábios.
Havia chegado em casa. Com amável conforto, sua
residência o recebeu. O desjejum, cuidadosamente
preparado, foi de seu total agrado e, pela primeira vez
depois de muitos dias, novamente, segundo queria lhe
parecer, pensava com toda calma na outra que, livre
para todos os tempos das aflições deste mundo, dormia
no mar silencioso. Por um instante sentiu como se
aquela seqüência de horas, antes do desembarque em
Nápoles até a morte de Elise, também pudesse ser uma
quimera de seus nervos abalados, e o triste fim teria
chegado, como os médicos haviam previsto, profetizado
até, apenas como resultado do desenvolvimento
previsto para a doença. Sim, o homem que, numa
cidade estranha que brilhava ao sol, correra
perfidamente de um médico para outro, de uma
farmácia para outra e que havia preparado o veneno
mortal com cruel premeditação, o homem que abraçara
a amante, com infame prazer, uma hora antes de
mandá-la para o além, parecia-lhe totalmente diferente
daquele que ali, entre paredes familiares, bebia seu chá
num ambiente calmo, burguês e confortável; parecia-
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lhe ser um homem que era muito mais do que ele,


alguém que ele mesmo devia admirar com arrepios.
Mas quando mais tarde, ao sair do banho, o espelho lhe
devolveu sua imagem nua e esbelta e, de repente, se
tornou consciente de que ele mesmo fizera o
inconcebível, viu seus olhos luzirem num brilho duro,
sentiu-se mais digno do que nunca de apertar contra o
peito a noiva que esperava e, com uma sarcástica
superioridade nos lábios, seguro de seu amor como
nunca antes estivera.
Na hora marcada entrou no salão amarelo que
deixara um ano atrás, quase na mesma data, e no
minuto seguinte Adele estava diante dele;
despreocupada, como se tivesse se despedido dele no
dia anterior, estendeu-lhe a mão, para um prolongado
beijo. O que me impede de abraçá-la? perguntou-se.
Mas aí ele já a ouviu falar, com a voz escura que ouvira
à noite, apenas em sonhos, e percebeu que ele mesmo
não tinha dito ainda nenhuma palavra, que só havia
sussurrado o nome dela, no momento em que ela
aparecera. Que ele não levasse a mal, começou ela, o
fato de não haver respondido a suas belas cartas; mas
a situação era simples, havia coisas que era melhor
dizer cara a cara do que por escrito. Seu silêncio já
devia tê-lo preparado, no sentido de que muita coisa
tinha mudado, e o tom frio de seu telegrama fora
totalmente proposital. Pois fazia seis meses mais ou
menos que ela estava noiva de outro homem. E ela
mencionou um nome que Alfred conhecia. Era o de um
de seus muitos bons amigos de tempos passados, em
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quem ao longo daquele ano pensara tão pouco, como


de resto ocorrera com quase todas as outras pessoas
com quem antes se relacionava. Ouviu Adele com
calma, fitou enfeitiçado com sua testa lisa; depois,
como que através dela, fitou o vazio e em seus ouvidos
soava um ruído de ondas longínquas, que corriam sobre
mundos submersos. De repente viu irromper nos olhos
de Adele algo semelhante a um brilho de medo, sabia
que estava frente a ela, pálido como um morto e com
um olhar terrível e disse, imprevistamente até para si
mesmo, num tom duro quase inaudível:
- Não é possível, Adele, você está enganada, você
não pode ...
O fato de finalmente ter encontrado palavras
acalmava-o, ao que tudo indicava.
Ela tornou a sorrir de maneira cortês e lhe explicou
que não era ela que se enganava, mas ele. Porque ela
podia, sim, podia tudo que quisesse. Ela nem ficara
noiva dele, mas eles haviam se separado como pessoas
livres, sem qualquer compromisso, tanto ela quanto ele.
E como ela não mais o amava, mas a um outro, a coisa
estava simplesmente liquidada. Ele precisava
compreender e aceitar esse fato; caso contrário, ela
sentiria muito não ter seguido o conselho que o pai lhe
dera de manhã, de não receber Alfred em sua casa. E
ela estava sentada diante dele, as mãos finas cruzadas
sobre os joelhos, com olhos claros e distantes.
Alfred sentiu que necessitava de todo o seu domínio
para não fazer algo ridículo ou horrível. O que queria,
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na verdade, não estava claro para ele. Agarrá-la pelo


pescoço e estrangulá-la, ou jogar-se no chão e chorar
como uma criança? Mas de que adiantava pensar a
respeito? Não tinha escolha; ele jazia lá, como que
derrubado, e ainda teve a presença de espírito de pegar
as mãos de Adele, que queria se afastar depressa, e de
implorar roucamente para que ficasse. Só mais um
quarto de hora! Que o ouvisse! Isso ele ainda podia
pedir-lhe, depois de tudo o que antes houvera entre os
dois. Tinha tanta coisa para lhe contar, mais do que ela
podia pressupor, e ela tinha o dever de ouvi-lo. Pois
quando ela soubesse de tudo, então também saberia
que lhe pertencia, que não poderia pertencer a nenhum
outro, que ele a tinha conquistado com culpa e
tormentos, que diante de seus imensos direitos todos
os outros cairiam no pó, no mais profundo pó, que ela
estava unida a ele, indissoluvelmente, para todo o
sempre, assim como ele a ela. E de joelhos diante da
moça, cravando suas mãos nas dela, olhando-a
fixamente, deixou voar suas palavras, expôs todo o
conteúdo do ano transcorrido; contou de como amara,
antes dela, uma outra, e de como junto com essa outra,
que fora doente e não tivera ninguém no mundo a não
ser ele, empreendera uma viagem, de como se
consumira nos tormentos da saudade, mas como a
outra se agarrara a ele, indefesa e aprisionadora; e de
como no fim de seu sofrimento, por amor a ela, a ela,
cujas mãos ele tinha entre as suas, por causa de um
amor como o mundo nunca antes vira, como ele tirara
deste mundo aquela outra, que não poderia nem
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quereria ter vivido sem ele, como ele a envenenara,


compassiva e perfidamente; de como agora, sob as
ondas distantes, a pobre criatura descansava, vítima de
um sacrifício feito em prol de uma felicidade que
também seria sem igual, tal como o preço com o qual
havia sido conquistada.
Adele se livrara de suas mãos e não levantara o
rosto para encará-lo. Ouvia o que ele contava e não
sabia bem de que maneira interpretar tudo aquilo, se
como um conto fantástico, sobre seres estranhos e
distantes, ou como uma notícia de jornal referente a
pessoas que em nada lhe interessavam. Talvez nem
acreditasse no que ele estava contando. Mas de
qualquer forma lhe era indiferente saber se era verdade
ou mentira o que saía daqueles lábios. Ele sentiu mais e
mais sua impotência. Viu todas as suas palavras escor-
rendo por ela, vazias e frias; e no final, quando quis ler
seu destino de seus lábios, o qual ele já conhecia, ela
apenas abanou a cabeça. Ele a olhava com angústia,
sabendo, mas também sem saber, com uma pergunta
desvairada nos olhos bruxuleantes.
- Não - disse ela duramente. - Acabou.
E ele soube que com este não tudo havia acabado
para sempre. A expressão de Adele ficou totalmente
impassível. Nem a menor lembrança da ternura
desaparecida, nem mesmo horror havia nela, só uma
expressão aniquiladora de indiferença e enfado.
Alfred inclinou a cabeça, sorrindo vazio como que a
consentir. Não mais pegou suas mãos, que ela deixou
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pender, alheias; virou-se e partiu. A porta ficou aberta


atrás dele e ele sentiu um sopro frio na nuca. Ao descer
a escada, sabia que não lhe restava a fazer mais nada a
não ser encontrar um fim para tudo aquilo. Isso estava
decidido tão firmemente para além de toda dúvida, que
ele caminhou vagarosamente até sua casa no lisonjeiro
dia primaveril, como quem procura o ansiado sono após
uma noite devassa.
Mas em seu quarto havia alguém esperando por ele.
Era o barão. Sem pegar na mão que Alfred lhe oferecia,
declarou desejar uma breve conversa com ele, e após
um rápido e cortês aceno de cabeça de Alfred,
continuou:
- É para mim uma necessidade comunicar-lhe que o
considero um patife.
"Muito bem", pensou Alfred, "também contra este
fim não há o que dizer"; e replicou, calmo:
- Estou à sua disposição. Amanhã cedo, se lhe
aprouver.
O barão sacudiu brevemente a cabeça. Ficou claro
que tudo já estava preparado, evidentemente desde
durante a viagem. Dois jovens da embaixada alemã só
esperavam suas instruções; e ele falou na sua
esperança de que seu antagonista, que se encontrava
agora em casa, poderia facilmente tomar as
providências necessárias para que a coisa se
concretizasse antes do anoitecer. Alfred acreditou poder
prometê-lo. Durante um instante veio-lhe a idéia de
confessar toda a verdade ao barão; mas, diante do
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imenso ódio que irradiava daquela testa fria, temia que


o outro, que talvez intuísse a verdade, o entregasse à
justiça; por isso preferiu calar.
Alfred encontrou os cavalheiros de que precisava
sem esforço. Um deles era o noivo de Adele, o outro um
jovem oficial, com quem gozara em tempos passados
mais de uma jornada prazerosa. Antes do pôr-do-sol,
nas várzeas do Danúbio, num lugar freqüentemente
escolhido para tais encontros, ele estava em frente ao
barão. Uma calma, que após as confusões dos dias
passados ele sentiu como se fosse a felicidade, o
recebeu. Quando viu o cano da pistola apontado em sua
direção, durante os três segundos que, contados por
uma voz distante, caíram como três gotas frias do céu
noturno, ressoando sobre o chão, ele pensou naquela
que fora inefavelmente amada, sobre cujo corpo em
decomposição corriam as ondas do mar. E quando jazia
no chão e algo escuro se inclinou sobre ele, o abraçou e
não mais queria soltá-lo, sentiu-se bem-aventurado,
porque ele, que expiara sua culpa, desaparecia por
causa dela, em direção a ela, no nada, pelo qual
ansiava há tanto tempo.
Tradução de George Bernard Sperber

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